O Milagre da Igreja
Antonin Dalmace, Sertillanges. PERÂMBULO
O Milagre da Igreja tem
tantas formas, que foi deveras impossível, neste pequeno escrito, dar dele uma ideia
suficiente, ou mesmo sumária.
Tem-se distinguido: o
milagre dessa instituição que se precede a si mesma e domina o tempo; o milagre
do estabelecimento evangélico, compreendendo o estabelecimento do Homem-Deus em
sua pessoa, vida, manifestações, obra; o milagre da difusão cristã: entrada da Igreja
na história por meios politicamente desproporcionados, adaptação prodigiosa aos
regimes humanos acolhedores ou hostis, poder incomparável de absorção e de assimilação
do princípio cristão relativamente aos elementos religiosos ou profanos que o meio
lhe apresenta; finalmente, o milagre imanente à existência atual da Igreja e à sua
perpetuidade.
É um esquema. É a compreensão
excessiva de um tema o qual, aliás, nenhum pensamento iguala. Na hora atual, vai
crescendo por toda parte, no mundo, o interesse concernente ao fato católico e à
Igreja. Se Deus o permitisse, de acordo com esse movimento teríamos aqui contribuído
para despertar mais alguns espíritos, senão à compreensão, ao menos à suspeita de
uma maravilha que eles acotovelam sem ter ideia do que ela oculta e do que significa
para eles mesmos. Vêem somente exterioridades onde reside um interior incomparável.
Realçam somente fraquezas e insuficiências, muitíssimas vezes ilusórias, lá onde
o Único Necessário elegeu a sua morada, ao mesmo tempo patente e oculto.
Se é que não fomos de
todo mal sucedidos, tenham eles ao menos uma visão obscura, geradora de um movimento
do coração, a respeito dessa Pessoa misteriosa, humana e celeste, uma e múltipla,
imóvel e ativa, infalível e investigadora, perfeita e sujeita `às crises, santa
e, em nós, pecadora, que respira através do tempo. Le Saulchoir, Julho de 1933.
(lugar de estudo da província dominicana da França desde 1904.)
CAPÍTULO 1 - A IGREJA ANTES DA IGREJA
Demos ao nosso primeiro
estudo um título que não poderia convir a muitas instituições. Ele significa que
a instituição religiosa de que falamos se precede de alguma sorte a si mesma; que,
portanto, por alguma coisa de si mesma ela é superior ao tempo; que em todo caso
lhe é igual; mas dá no mesmo; pois só é igual ao tempo, ao invés de se deixar talhar
nele uma parte arbitrária, aquilo que se mostra superior ao que o tempo mede.
A história de toda instituição
é como uma página branca tarjada de preto; precede-a o nascimento de si e outro
nada segue-a; porque tudo morre. Só a Igreja não somente não morre, mas, em certo
sentido, não nasceu; porquanto, se ela é uma realidade temporal, tendo uma história,
é também uma realidade extratemporal, em razão de não passar a sua história de uma
espécie de símbolo. Símbolo real, símbolo que é uma parte da sua realidade, mas
que se acha transcendido por uma realidade mais alta, pertencente ao mundo do espírito
e roçando pelo tempo apenas com a ponta das asas. Aliás, essas asas são tão largas
de envergadura que envolvem todo o tempo, à feição do Espírito criador, de quem
a Igreja é uma emanação direta.
Tal é a primeira noção
a penetrar quando se quer falar corretamente dos antecedentes da Igreja.
É que, para o católico,
a Igreja não é uma instituição particular, como haveria outras ao lado, antes ou
depois: é uma instituição universal, que chama a si e que a si subordina realmente
toda a raça, no intuito de, por Cristo, homem universal, uni-la a Deus que habita
Cristo e que se fez homem n'Ele, a fim de que por Ele o homem suba e tenha acesso
a Deus. Nestas poucas palavras, todo o pensamento católico se encerra. Ora, a raça
de que Cristo é o chefe religioso e da qual, por Ele, o Espírito de Deus se torna
a alma, a raça, digo, é todo o passado e todo o futuro, ao mesmo tempo que o presente.
A humanidade compõe-se
de mortos tanto e mais do que de vivos, escreveu Augusto Comte: pela mesma razão
compõe-se de homens nascituros tanto e mais - penso eu - do que de homens já nascidos
ou desaparecidos. A humanidade é todo o desdobramento das gerações sobre a terra,
como um eu individual é o desdobramento de uma vida em seus diversos estados. Era
o que Pascal via ao escrever a sua fórmula célebre: "A humanidade é como um
homem único, que subsiste sempre e aprende continuamente".
Portanto, se a Igreja
é a humanidade religiosamente organizada por meio desse Filho de Deus - Filho do
Homem, que é Cristo, deve a Igreja ser necessariamente onitemporal. Poder-se-ia
dizer que é eterna, considerando apenas o seu caráter divino: foi o que permitiu
a João, o inspirado, dizer de Cristo, chefe da Igreja, que ele é antes que o mundo
fosse nascido, ou seja, como Deus. Mas como homem, precisamente enquanto chefe da
Igreja, São Paulo di-lo-á não mais eterno, porém onitemporal, pertencente a todos
os tempos: Ontem, hoje e em todos os séculos. (Hebreus 13,8.)
Não que queiramos ressuscitar
aquelas lendas rabínicas segundo as quais Cristo viveria de uma vida positiva, posto
que invisível, através das gerações, por exemplo, como diziam alguns, no paraíso
terreal, conservado e guardado pela espada de fogo do arcanjo contra a curiosidade
dos geógrafos! Mas não são essas realidades materiais as únicas realidades.
Se sempre foi verdade
dizer que nenhum homem chega a Deus senão por Cristo, que em Cristo a humanidade
toda é oferecida a Deus, aceita por Deus e unida a Deus para uma vida eterna, bem
necessário se torna que, de uma maneira ou de outra, Cristo tenha existido sempre,
sempre à disposição de quem quer que, homem de ontem ou de hoje, daqui ou dacolá,
procurasse o caminho para o Único Necessário e o Único Suficiente da alma humana.
Há uma gravitação universal
das almas, e Cristo lhes é o Sol. Somente n'Ele está a grandeza, a inocência e a
felicidade da terra. Religião viva, se assim posso falar, já que Ele se apresenta
como o Vínculo, a Ponte, a Entrada, a Porta que faz comunicar e estabelece numa
vida comum o homem e Deus, deve Ele dominar a raça na sua dupla extensão, espacial
e temporal. De tão longe quanto venhamos sobre o imenso meridiano do universo moral,
e qualquer que seja o momento do tempo em que situemos a nossa frágil existência,
cumpre que, de uma maneira ou de outra, toquemos nesse ponto, para tocarmos no divino
que lhe é parcialmente idêntico. Só aí a tangente infinita toca o círculo humano.
Toda a questão, para nós,
está em definir sob que formas históricas essa vida espiritual, que Cristo preside
e que é a vida da Igreja, pôde manifestar-se antes que a própria Igreja fosse deste
mundo na sua forma presente.
Mas primeiro devemo-nos
perguntar por que é que somos trazidos a esta complicação: a Igreja antes da Igreja,
Cristo antes de Cristo, e a todas as consequências que daí decorrem.
Há aí uma questão de filosofia
religiosa que muitos não percebem, mas que nem por isso deixa de existir, e cujo
desconhecimento dá lugar a objeções variadas contra a teologia católica. Se Cristo
é o ponto de partida e o meio único de todo o movimento religioso humano, por que
é que, historicamente, ele não se acha no início da história humana? Aquilo que
é definido como princípio deveria, ao que parece, fazer-se ver no principio. Natural
seria que o Novo Adão, como nós chamamos a Jesus Cristo, o segundo primeiro homem,
como diz o Padre Lagrange, fosse colocado no começo da vida universal, com toda
a sua linhagem diante dele, como nosso chefe de raça temporal tem a sua linhagem
diante de si.
Em lugar disso, somos
levados a estabelecer o nosso sistema religioso sobre um duplo plano: um plano quase
metafísico, segundo o qual Deus é situado em primeiro, depois Cristo, e finalmente
todos os homens, seja qual for a sua época; e, doutra parte, um plano histórico,
em virtude do qual Deus está, de fato, na dianteira, mas desta vez considerando
como na ordem do tempo; em seguida, toda uma longa série de séculos ou mesmo de
milênios, em que os homens viveram sem o Cristo histórico; depois Cristo; depois
uma segunda série de gerações saídas dele.
Esses dois planos coexistem
e não coincidem. Podemo-nos perguntar por quê. Mas a razão não é difícil de dar,
e é pouco filosófico o motivo alegado em sentido contrário.
Um pai é obrigado a vir
ao mundo antes do filho; mas um príncipe já não é obrigado a nascer antes dos súditos:
podem estes preparar-lhe o reinado. Com maioria de razão um chefe espiritual, cuja
ação utiliza a Divindade, senhora dos tempos, não tem ele necessidade de situar
sua vida num momento antes que noutro? O homem poderá unir-se a Cristo futuro tanto
quanto a Cristo passado, a Cristo desconhecido tanto como a Cristo conhecido. Antes
de Lavoisier os homens viviam do oxigênio do ar e não o conheciam.
Chefe de raça espiritual,
Cristo pode, pois, inserir sua vida temporal onde quer que seja, como o ponto de
partida do círculo é não importa onde, e como o fazedor de carros que empurra uma
roda imprime a ação, sobre o contorno desta, em qualquer das pinas, mas nem por
isso deixa de acionar a roda toda. A roda dos séculos tem assim pinas sucessivas
que são as diversas épocas; a ação de Cristo, exercendo-se sobre uma delas, animará
todas as outras.
Verdade é que será com
modalidades diferentes, e eu não pretendo que a presença real de Cristo, na sua
vida histórica, seja desprovida de interesse religioso. Mas fica assente que a ação
de Cristo, exercendo-se num certo ponto do tempo, poderá irradiar-se sobre todos
os outros, e sobre cada um conforme a sua natureza própria. O passado não se comportará
em relação a ele como o futuro, nem tal passado ou tal futuro como tal outro passado
ou tal outro futuro; portanto a roda do tempo não é em toda parte idêntica a si
mesma, como uma roda de veículo - nisto nossa comparação claudica; mas tudo estará,
entretanto, sob a dependência dele.
Abstraindo por enquanto
as diferenças particulares, dizemos: aparecendo Cristo no meio dos séculos - na
plenitude dos tempos, como diz São Paulo, - o passado liga-se a ele sob os auspícios
da esperança, da espera, das preparações; o presente é a posse, e o futuro, volvendo-se
para ele, tomará uma atitude inversa, ligando-se a ele pela lembrança, pelos desenvolvimentos
da sua obra, pelo progresso. Cristo é assim todo de todos, posto que sob modos diversos.
Resta saber por que essa
organização. Mas este porquê é de uma simplicidade que só uma ignorância absoluta
do que é a vida religiosa pode desconhecer.
Há quem imagine que a
religião é toda divina, vinda do alto para nós que a recebemos, sem condição de
reciprocidade, pelo menos inicial. Se ela é assim um puro benefício, não se vê bem
por que não é logo concedida por um Deus bom, por um Deus que não faz acepção nem
de pessoas nem de épocas. Mas isto é raciocinar como crianças.
A religião não é um dom
unilateral; é uma permuta; é uma relação do homem com Deus. E, seguramente, nessa
relação é Deus quem começa; mas, já que o homem deve seguir, cumpre que a iniciativa
de Deus se submeta às condições naturais da vida humana, que implicam desenvolvimento
e, por conseguinte, antecedentes, concomitantes e consequentes; preparação, posse
e utilização; começo, meio e fim. Esta trindade é inevitável, resultado da natureza
profunda de tudo o que nasce no tempo, visto ser da natureza do tempo comportar
o passado, o presente e o futuro.
São Tomás repetidas vezes
explicou quais as razões de psicologia individual e social que se opunham aqui à
confusão das datas, se assim posso dizer, de um Cristo a preceder os antecedentes
de Cristo, de uma lei evangélica não preparada por uma lei judaica, e de uma lei
judaica coincidente com uma lei natural do inicio dos tempos. Não entramos neste
detalhe; porém sustentamos que a nossa Igreja eterna, que se compõe de três elementos:
Deus, o homem, encarado na sua unidade onitemporal, e o Homem-Deus como vínculo,
deve escalonar as suas manifestações conforme as divisões essenciais da duração
humana. Haverá primeiro as preparações, as antecipações da Igreja. Haverá o fato
central, constituído pela vinda de Cristo que, trazendo a Deus em si e representando
o homem chegado ao posto desejado para inaugurar uma obra religiosa perfeita, iniciará
o trabalho propriamente dito da Igreja.
Haverá, enfim, o desenvolvimento,
o progresso de uma obra destinada a transformar o mundo.
Será aqui a história da
Igreja no sentido próprio, embora historiadores tais como Rohrbacher, vindo ao encontro
do pensamento que eu exprimo, façam remontar seus relatos até a Adão e mesmo - conforme
em breve explicarei - até ao dealbar do mundo.
Eis aqui, pois, justificado
e explicado já por uma parte o nosso título: A Igreja antes da Igreja. Cumpre, porém,
precisar.
Partindo do fato de representar
a vinda de Cristo, para o cristianismo, um episódio central e não um inicio, há
razão de nos perguntarmos que condições se impõem a cada um dos dramas desta trilogia:
as preparações da Igreja, o nascimento da Igreja, o desenvolvimento da Igreja.
Os dois últimos atos não
nos interessam neste momento; resta, porém, o primeiro, e, para encará-lo nitidamente,
proponho um exemplo tanto mais próprio para esclarecer o nosso caso quanto, de certa
maneira, faz parte dele.
Todos nós, cristãos ou
simplesmente filósofos espiritualistas, dizemos que a criatura pensante é neste
mundo a razão de ser de todo o trabalho da natureza. Tudo é para os eleitos, diz
São Paulo. A humanidade é um fim em si, dirá Kant, ou, noutros termos, a coisa subordina-se
à pessoa. Sabe-se que Bergson, na sua recente obra As duas Fontes da Moral e da
Religião, retomou à sua conta esta tese.
Justamente por causa dessa
finalidade, e em razão da nossa observação de há pouco, o homem não aparece no inicio,
mas deve ser preparado. Como? Primeira mente sob uma forma remota, pelo estabelecimento
do seu meio, pela elaboração das substâncias que devem assimilar-se à sua vida,
pela organização das forças que ele terá de utilizar e de que a sua vida será, por
um lado, a resultante, e, por outro, a conquista. Como serão precisos séculos para
este trabalho! Começamos a suspeitá-lo; mas só poderíamos admirar-nos disto desconhecendo
a desproporção quase infinita do espírito para a matéria.
Em seguida, a título intermediário
entre o trabalho cósmico e a humanidade constituída, são necessários os lentos progressos
das espécies inferiores, a cera viva de onde jorrará um dia a flama do espírito.
E esse jorramento não se dará sem uma intervenção especial do Criador; será como
que um lampejo novo da Fonte luminosa imanente a este mundo enquanto ele contém
Deus; mas essa obra última nem por isso estará menos implicada numa série de que
ela será o último termo, mormente se, a coisa permitida pela fé tanto como pela
ciência, admitirmos que o corpo do homem foi preparado pela vida antropóide.
Apliquemos o nosso exemplo,
e, ao invés da humanidade em relação ao globo e a tudo o que ele encerra, encaremos
a Igreja em relação à humanidade. É o mesmo caso prolongado, e a lei de desenvolvimento
será a mesma.
Diremos primeiro, e desta
vez em sentido nitidamente religioso, e não somente espiritualista: Tudo é para
os eleito, isto é: Cristo, e o grupo de Cristo, a Igreja, é a finalidade de toda
a história. Nada se agita no mundo senão para promover o reinado dos fins espirituais
da humanidade, que é o trabalho próprio da Igreja. O Discurso sobre a História universal,
a despeito de certas fraquezas inevitáveis a quem se propõe seguir assim os vestígios
da Providência, é, no fundo, não somente magnífico como a eloquência de Bousset,
mas inatacável. Ele não faz senão desenvolver esta antiga afirmação do Pastor de
Hermas: (século II.) "A Igreja foi fundada antes de todas as coisas, e para
ela é que o mundo foi feito".
Ora, se é verdade que
os fins últimos devem governar desde o começo, deve-se dizer, como já o fizemos,
que o trabalho relativo à Igreja, e mesmo o trabalho da Igreja, remonta às origens
do nosso mundo, e do mundo em geral, por que tudo se liga em Deus e porque a preparação
do meio natural do homem faz parte da produção do homem.
Por esta razão é que o
nosso livro religioso, a Bíblia, se abre por um relato da criação: No princípio,
criou Deus o céu e a terra¸ como também a genealogia de Cristo remonta até Adão
e até Deus: Qui fuit Dei. Sem isso, o plano religioso do mundo não seria completo
ao sentido do passado, do mesmo modo que, se não tivéssemos os apocalipses e os
relatos da parusia, o plano religioso do mundo não seria completo em face do futuro.
Num sentido como no outro,
é preciso ir até o limite do criado e até o limiar de Deus, se assim posso dizer,
de tal sorte que Deus, tocado como Providência ao longo de toda a curva do tempo,
seja tocado também, como iniciador e como fim, nas extremidades dessa curva, à partida
e à chegada do impulso universa.
Não quer isto dizer que
os nossos livros sagrados ou os nossos pensamentos religiosos devam preocupar-se
com escrever a história total ou com profetizar o futuro total. A sequência dos
tempos religiosos não precisa ser completa. Não precisa mesmo ser exata do ponto
de vista científico. O seu sentido religioso é que precisa ser exato, e isso requer
apenas uma historicidade relativa, feita de símbolos reais, isto é, de notações
simplificadas, esquemáticas; sacrificando o detalhe à visão de conjunto, pulando
períodos inteiros como a série dos patriarcas na Bíblia, correndo ao fim, que é
manifestar o sentido da vida.
Em razão do que, ver-se-á
a cosmogonia bíblica situar-se numa região mais ou menos alheia à ciência, a história
bíblica só parcialmente satisfazer a ciência, e a profecia bíblica proceder como
por saltos, sem grande preocupação das perspectivas. O que, aqui entre parênteses,
explica como, sem nenhum erro propriamente religioso, podem os primeiros cristãos
crer no fim iminente do mundo. Eles têm na mente o que nós descrevemos: ontem Adão,
hoje Cristo, amanhã reintegração do mundo e Deus; simplificam, e a intensidade com
que vivem essa simplificação faz-lhes parecer mui próximos os elementos dela.
A respeito do passado,
são eles ainda defendidos pela história, que não se deixa estreitar indefinidamente.
Eles a estreitam muito! Mas, a respeito do futuro, não sendo retidos por coisa alguma,
e colocando-se-lhes, por assim dizer, aos olhos a sua visão ardente, eles esperam
a realização do plano num espaço proporcionado a uma vida de homem. É um erro; mas
não é um erro religioso. Eles enredam o fio dos acontecimentos com a ordem histórica
das datas de cumprimento: confusão religiosamente sem importância. São Pedro dirá
a palavra da situação observando que, a respeito de um plano religioso universal,
em que os acontecimentos têm lugares teóricos mais do que propriamente temporais,
mil anos são como um dia e um dia como mil anos. Esta reflexão de uma filosofia
profunda.
Tal é, pois, a primeira
face da nossa comparação. A história da Igreja começa, no mínimo, nas origens da
humanidade, como a história da humanidade começa, no mínimo, nas origens do nosso
mundo.
Digo agora que as fases
das preparações serão as mesmas. Haverá preparações indiretas, conscientes em trabalhar
o gênero humano, como as forças cósmicas trabalharam o globo, de tal sorte que,
quando a verdadeira religião nele nascer, ache meios de fazer sua vida, assimilando
todo o humano que pode favorecer-lhe a obra. Haverá em seguida - ou paralelamente,
visto se tratar aqui menos de dividir durações do que de alinhar coisas - haverá,
digo, preparações remotas ainda, porém mais diretas, nisto que serão religiosas,
do mesmo modo que, sendo a ordem vital, o desenvolvimento da flora e da fauna terrestres
preparava remotamente, mas de certo modo diretamente, o homem. E, assim, diremos
que as religiões antigas anteriores ou exteriores à obra de Abraão preparavam o
Evangelho.
Enfim, do mesmo modo que,
quer lógica quer realmente, conforme as hipóteses, o antropoide preparava a vida
do homem à terra, desta vez a título imediato, assim também o judaísmo de Abraão
a Jesus, preparou Jesus e sua Igreja.
Vê-se o que há diante
de nós em matéria de história. Naturalmente feriremos este assunto apenas rapidamente.
Não insistirei sobre as
preparações remotas da Igreja que consistiam em plasmar o meio humano por um trabalho
de civilização geral, introduzindo elementos de ciência, experiência, de moralidade,
de direito, de arte, de poesia, etc., onde quer que a religião, que utiliza todas
essas coisas, pudesse um dia encontrá-las. Não devemos insistir nisso, já que, em
si mesmas, essas preparações são estranhas à ordem religiosa. São-lhe, no entanto,
preciosas infinitamente como todos os nossos grandes homens têm sabido reconhecê-lo.
Os apologistas antigos,
tais como Justino, Teófilo, Origenes, Basílio, Gregório de Nazianzo, Crisóstomo,
Agostinho, viam nos antigos sábios os análogos seculares dos profetas, isto é, prefaciadores
do Evangelho, como se disse em particular de Platão.
Em Sócrates ou em Heráclito,
essas vítimas da verdade, ousavam eles ver os análogos de Cristo crucificado, quer
dizer, mártires antecipados da ideia cristã preparada de longe pelas suas concepções
geniais. Tudo o que de bom houve no paganismo era, para esses Padres, obra do Verbo,
que se difundia por toda parte antes de se concentrar em Jesus.
Isso era confessar que
as civilizações antigas e todo o trabalho humano na terra foram para o judeu-cristianismo
uma espécie de plasma germinativo, de meio nutriente que, primeiramente, o preparava;
que, em seguida, o serviria, como a química do globo, que, depois de preparar o
homem, continua a servir à subsistência e às invenções deste; com a vida animal,
que o preparou mais de perto, mais de perto também o serve para sua alimentação,
vestuário, transporte, regalo e tantos outros usos.
É o que se deve ver na
palavra de São Paulo: Omnia vestra sunt. Todas as coisas vos pertencem como preparadas
providencialmente para vos servirem, a vós filhos de Cristo e irmãos na sua lei,
não tendo todo o movimento do mundo outra finalidade senão a realização dos fins
superiores que são os fins da Igreja.
Isso é simplíssimo: inútil,
é repisá-lo, e teremos aliás de voltar a esse ponto dizendo de que maneira se fez
a utilização do passado pelo cristianismo. Porém o que mais delicado é de justificar
é o que dissemos em segundo lugar, a saber: que as religiões antigas preparavam,
a seu modo, a Igreja e o trabalho da Igreja.
Muitas vezes, tem-se uma
ideia inteiramente oposta. Isto se concebe: porquanto já não se trata aqui de uma
matéria a utilizar, porém de uma utilização já adquirida, defeituosa, e que, como
parece, para um operário ulterior não pode ser senão um estorvo. Fazer uma boa estátua
com um bloco, é normal; mas fazer uma boa estátua com uma má estátua já desbastada,
para isto é preciso ser um Miguel Ângelo. O autor do David de Florença faz desses
prodígios; mas estes não se repetem muitas vezes, mesmo na sua própria história.
Por isso é que os primeiros
cristãos foram tão duros para as religiões estranhas; bem longe de as chamarem providenciais,
chamavam-nas demoníacas, e, do seu ponto de vista, tinham razão. Mas, tratando-se
um juízo de conjunto, não nos devemos deixar cegar por um ponto de vista, por mais
justo e mais importante que seja na sua categoria. Demoníaco e providencia, isto
não se opõe tanto como se poderia pensar. O demônio também é providencial; só age
segundo a extensão da sua cadeia, e isso mesmo que ele faz pode entrar e entra na
grande corrente que Deus dirige.
No cristianismo, sempre
temos dito que uma religião qualquer é preferível à ausência de religião. É que,
portanto, uma religião qualquer tem valor em relação à nossa, e pode servir-lhe
de preparação. Verdade é que é com a condição de morrer, como uma espécie que se
transmuda noutra, como um vivente que nutre um vivente superior.
Quando o passado fica
aberto no sentido do futuro, prepara-o; quando pretende fechar-se e resistir à absorção,
neutraliza-se, e é nisto que se torna demoníaco; porquanto, resistindo ao bem, trabalha
para o mal. Com a maioria de razão o será se, à sua imperfeição que deveria fazer-lhe
ceder o lugar, se misturam elementos perversos que exigem uma reforma.
É o caso das religiões
antigas. O que elas têm de demoníaco é a corrupção de certas crenças e de certos
ritos impostos aos seus adeptos; é, depois, a sua pretensão de reger definitivamente
por sua própria autoridade a alma humana. Mas nem por isso é menos certo que elas
permanecem úteis, e que, aos olhos da Providência, são etapas. Por mais que recusem
deixar-se sobrepujar, o que elas recusam Deus saberá fazê-lo, e, completada a obra
de Deus, poderemos, como São Paulo, volver-nos para esse passado de imperfeições
e de taras, para reconhecer nele, a despeito de tudo, o si forte allreetent eum:
a procura a que Deus devia corresponder, por conseguinte uma real preparação.
Digamo-lo, pois, sem hesitar:
as próprias religiões falsas foram, no passado, abrigos provisórios para os diversos
rebanhos de Cristo disseminados pela superfície do globo. Havia rebanhos de Cristo;
havia ovelhas isoladas espalhadas por toda a estrada dos séculos, a saber: os que
pertenciam à Igreja interior de que falamos, a isso a que se costuma chamar agora
a alma da Igreja. Onde estavam esses pastos, qual era o alimento deles, senão, interiormente,
a graça, que a ninguém é recusada, mas também, exteriormente, tudo o que à graça
podia servir de preparação e de meio?
Está bem entendido que
os ritos pagãos não conferiam a graça por si mesmos; a ela não conduziam por instituição;
afastavam dela quando tendiam a perverter os costumes; mas podiam também ocasioná-la,
e isso por uma vontade providencial? Como? Primeiramente pelas disposições interiores
que eles favoreciam, de fora, como o símbolo favorece a realidade, a palavra o pensamento,
o sacrifício o amor. Em segundo lugar, pela solidariedade de sentimentos dos sacerdotes
e dos fiéis unidos. Toda associação é criadora, em relação àquilo que vos congrega.
As águas lustrais, os sacrifícios expiatórios, os ritos sublimes da agnação, os
panateneus gregos, as cerimônias matrimoniais ou funerárias, tudo isso era ou em
todo caso podia vir a ser um precioso agente de reforma moral, de misticismo interior,
e assim um meio de salvação.
Não é evidente que tais
grupos religiosos da antiguidade pagã representavam, como ainda representam, a despeito
da sua desastrosa insuficiência, aspectos mui preciosos da verdade religiosa? Negando
tão energicamente a vida ilusória que é a natureza sem Deus, e voltando-se para
o absoluto, não oferecia o budismo uma das metades imensas da verdade? A infelicidade
é que uma só metade de nada serve, para a utilização imediata, se estiver ausente
a sua metade complementar. Voltado para o absoluto, o budismo não soube defini-lo
senão pelo nada, e tornou-se assim uma religião de nada, um esforço puramente negativo,
por consequência perversor, pelo fato de ser visto como um todo. Uma metade de roda
que faz a roda, joga o veículo no chão.
Sempre se pode dizer que,
uma vez absorvido na verdade integral, o ponto de vista do budismo se tornaria vivificante,
do mesmo modo que é bebido nos nossos místicos. O formidável não que esse desprezador
dirigia ao mundo serviria de relevo ao inefável sim evangélico, e, a olhar as coisas
com vistas largas, no próprio plano da Providência, não seria sem importância para
a história humana que isso houvesse existido.
Outro exemplo bem diferente:
o helenismo. Esta alta civilização atingiu por instantes a verdade absoluta, desta
vez na sua forma positiva. O Deus de Platão ou de Aristóteles não está muito longe
do nosso Deus; para reduzi-lo completamente a ele, basta harmonizá-lo consigo mesmo.
Qual foi o erro do helenismo? Antes de tudo foi permanecer uma pura teoria. Ele
só se realizou sob as espécies da beleza, e ainda assim de uma beleza amada até
o vício, escreveu Taine, prova de que o equilíbrio moral, que deveria ter correspondido
ao equilíbrio relativo do pensamento, permaneceu sempre instável. O ideal foi concebido
e permaneceu impotente. O Verbo de Deus irradiava, e refletia-se em pântanos, em
vez de descer a eles, humilde e sublime, com o Viandante evangélico, a fim de purificá-los.
Isso não impede a filosofia
grega de se mostrar, providencialmente, um dos antecedentes mais preciosos do pensamento
cristão, e, quando este aparece, um dos seus maiores recursos. Nós ainda vivemos
dela, e humanamente pode-se dizer que o cristianismo não seria o que é se os Gregos
não houvessem existido.
Assim, alternativamente,
poder-se-ia louvar com louvor parcial cada uma das formas religiosas que o mundo
viu aparecer fora do cristianismo. Até nas religiões mais rudimentares, e provavelmente
mesmo na mais antiga, existe o culto da família, com um valor já muito alto. Sentir
a Deus no lar, ainda quando para isso se houvesse humanizado esse Deus fora de toda
medida, é realmente alguma coisa. Bastará ampliar o pensamento para que o lar universal
presidido por Deus Padre, tendo por irmão mais velho Cristo e por inspirador o Espírito
Santo, se torne precisamente a Igreja.
A certos respeitos, esse
culto doméstico, tão estreito, valia mais do que os alargamentos pretendidos dos
cultos nacionais; porque estes acabavam na política, ao passo que o culto doméstico
permanecia intimo, o que constitui um dos caracteres essenciais da religião. Sob
este ponto de vista, os extremos se tocam; o universal e o intimo vêm a juntar-se,
porque, se o Deus dos Romanos só aos Romanos interessa, o Deus universal interessa
a cada homem, e lhe interessa a título íntimo, visto como a universalidade absoluta
implica a imanência.
Seja lá como for, digo
que em graus diversos todas as formas religiosas do passado colaboravam para o progresso
da alma humana. Neste sentido, alguém pôde dizer que não há religiões falsas, que
há apenas religiões imperfeita: maneira imprópria de se exprimir; porque essas religiões,
inconscientes da sua obra e daquilo que a Providência demandava nelas, afundavam-se
num particularismo atrofiante e corruptor. De sorte que, se seus grupos eram como
que Igreja antecipadas, eram entretanto Igrejas "a latere", ("a seu
lado") abrigos de ocasião, na grande tempestade moral que agitava o mundo.
Se havia nisso coisa melhor do que nada, não havia a tal coisa que, provisória ainda,
mas definida e nitidamente orientada, já não terá senão que seguir adiante, para
desabrochar em perfeição quando soar a hora divina.
De onde virá a grande
corrente de que a nossa Igreja será o desfecho natural?
Natural! Natural não poderá
sê-lo verdadeiramente; porque o fato decisivo que dará nascimento à Igreja, como
o fato que cria o homem infundindo uma alma numa matéria, deverá ser um fato transcendente.
Mas, num caso como noutro, o fato criador vem inserir-se numa série de fatos em
continuidade natural com todas as preparações anteriores.
Para encontrar a primeira
fonte de onde, à sua hora, sairá o rio cristão, cumpre remontar àquele momento decisivo,
posto que muito humilde, em que o "scheik" Abraão, avisado misteriosamente
e um desígnio de Deus sobre ele, de uma missão secular para a sua posteridade -
que ele vê, em sonho, semelhante às areias de ouro que pontilham as praças do céu
- deixa de repente a sua terra Caldeia à frente de um bando de quinhentos ou seiscentos
homens, tomados entre os fiéis de Javé.
As razões dessa fuga são
religiosas. A tribo semítica a que Abraão pertence não é estranha ao verdadeiro
Deus, visto como ele mesmo professa e representa o culto desse Deus; mas nesse momento
ela incide no culto dos Terafins, ou penates, e noutras superstições grosseiras.
Nessa mistura confusa que cedo teria absorvido o melhor no pior, uma escolha providencial
é feita; Abraão é o meio para isto. Ele parte. Vai abrigar a chamazinha pura na
terra isolada de Canaã. A sua religião pessoal fixará o futuro religioso de Israel,
e, por este, o futuro religioso do mundo. Ele será o verdadeiro pai dos crentes,
e sua fuga será como que a decisio seminis, o desprendimento do germe, em relação
ao meio paterno, para uma revolução ulterior.
Reconhecer-se-á aqui o
último termo da assimilação de que quisemos partir para contar as etapas da preparação
da nossa Igreja?
A religião de Israel,
em relação à nossa fé, é o antropóide em relação ao homem. Eu dizia inda há pouco:
é o embrião antes do desabrochar da alma; mas as duas comparações vêm a juntar-se,
se é verdade que as fases da embriogenia reproduzem em grosso, ou em todo caso simbolizam,
as fases da evolução da raça.
O que falta ao embrião
israelita é a alma cristã, que nele será infundida quando o Espírito descer, socializando
o dom pessoal da divindade feito a Jesus, e realizando assim na sua perfeição inicial
a vida religiosa autêntica. Mas a preparação é imediata. Israel é um corpo religioso
apto ao sopro do alto. O que lhe falta à vida espiritual, ele é capaz de recebê-lo,
diferentemente das religiões rígidas ou desviadas, refratárias às reformas.
Não é que os desvios tenham
sido estranhos àquele povo, que só parece ser o eleito a contragosto; povo de cabeça
dura, ou de pescoço teso, como diziam os seus profetas. Mas esses desvios nunca
foram senão os meandros da corrente que aparentemente reflui, mas que nem por isso
deixa de descer o vale, arrastada por uma lei imperiosa.
Constantemente infiel,
Israel constantemente se corrige, é corrigido. Javé o guarda, mesmo quando ele se
esquece de guardar Javé. Ele pensa sepultar o seu Deus no politeísmo ambiente: Deus
ressuscita. E esse Deus tem caracteres que não permitem confundi-lo com as falsas
divindades populares nem com o Deus abstrato dos filósofos. Contra as divindades
dos pagãos, ele tem a sua unidade e o seu caráter moral. Contra o Deus dos filósofos,
teu o seu caráter vivo e criador.
Uno e moral Ele o é pela
própria posição que ocupa, se assim posso dizer. Salvo raras exceções, a antiguidade
parece ter sido dominada pelo pensamento de que os deuses são emanações mais elevadas
do que o homem, porém emanações, todavia, da grande natureza universal. "Uma
coisa é a raça humana, dizia Pindaro, outra é a raça divina; mas uma mesma mãe as
deu à luz a ambas".
Nestas condições, o egoísmo
humano, cuja satisfação depende pretensamente dos deuses, pode sempre esperar corrompê-los
ou dominá-los - corrompê-los, visto terem eles também necessidades e desejos; dominá-los,
visto serem envolvidos por influências superiores, Destino ou Natureza, às quais
o homem poderá dirigir-se para impor sua lei aos acontecimentos fora do esforço
virtuoso.
A magia, que é universal
na antiguidade, salvo em Israel - digo o Israel autêntico, - é a consequência desse
estado de espírito. Com uma fórmula mágica, o homem julga-se apto a dominar a própria
divindade, como com um touro de sangue rico acredita fartá-la até a embriaguez que
não mais lhe pesará os dons.
O Deus de Israel, este
dirá: "Acaso eu como a carne dos touros? Bebo o sangue dos bodes? Se eu tivesse
fome, não to diria, pois meu é o mundo e tudo o que ele encerra... Imaginaste que
me parecia contigo... mas olha: àquele que vela sobre o seu caminho, a esse eu farei
ver a salvação de Deus". (Salmo 40.)
Assim, uma só coisa agrada
a Javé e uma só coisa pode vencer Javé: a obediência à lei do bem, que é a sua própria
lei e o seu único amor, pois ele é o Bem vivo. Quem faz o bem vê vir a si, ainda
quando fosse pelo escuro caminho entrevisto por Jó, a felicidade, flor do bem, o
objeto das pesquisas que o homem só empreendeu a convite do ideal, e que o Ideal
vivo quer satisfazer.
Essas perspectivas, certamente
ocultas aos olhares de muitos em Israel, nem por isso deixam de ser o fundo da alma
religiosa desse povo. Donde a sua superioridade moral - relativa, evidentemente,
porém incontestável - em relação às raças pagãs, e tanto mais notável quanto não
se pode atribuí-la à sua civilização. Lede o código de Hamurabi; que data de uns
seiscentos anos antes da lei de Moisés, e achareis nele o cunho de uma sociedade
muito mais policiada, muito mais sábia. Ora, com o politeísmo, aceita ela a magia
e a imoralidade que as leis judaicas claramente proíbem.
E eu dizia que o Deus
de Israel não está menos distanciado dos deuses abstratos do que dos deuses mendigos
ou mágicos. É um louvor cujo alcance muitos não compreendem, movidos como são por
um intelectualismo inimigo da vida humana. "Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó",
dizia pascal, "e não Deus dos filósofos e dos sábios".
É que, se os deuses populares
estão em baixo, na terra, o Deus dos filósofos está no ar, o que não quer dizer
no alto. Não está em parte alguma, a não ser na fórmula do mundo. E de que serve,
para a vida, o Primeiro Motor, de Aristóteles, ou o Pai das Idéias, de Platão, ou
o axioma Eterno, de Taine? O Deus dos Judeus é um vivente. É transcendente a tudo,
e a tudo é imanente. Muito alto e muito próximo, a sua figura tem uma ingenuidade
popular tão impressionante como a sua sublimidade.
Ele fala no meio da tempestade,
porque é o Deus da natureza. Fala por Moisés ao seu povo, porque é o Deus da história.
Fala à consciência de cada um, porque é o Deus do bem. E com isto não é nem um Deus
naturalista, como os Baals, nem um Deus nacional, como as divindades do Império,
nem o dáimon de Sócrates. É o Deus do infinito, o Deus do coração e o Deus da história
universal. É simplesmente Deus, e manifesta por si só a transcendência da revelação
mosaica.
Os que verdadeiramente
vivem dele estão preparados para o Evangelho, adorando "o Pai de Nosso Senhor
Jesus Cristo", como observa profundamente São Tomás de Aquino. Por isso os
livros deles, e em particular as suas coletâneas de orações, textos religiosos por
excelência, ainda estão em uso edificante entre nós. Os salmos são o fundamento
da nossa liturgia. Neles se acha a mais alta poesia unida à vida interior mais intensa.
Os nossos meios de edificação pelo exemplo são inaugurados de maneira a mais frisante
pelas admiráveis lições morais trazidas pelos livros de Jó, ou de Tobias, pela história
de Betsabé e de Davi, de Suzana, dos três Hebreus na fornalha, etc.
Quanto o culto, este se
eleva em Israel até à instituição prefigurativa, ao invés dos reflexos esparsos
produzidos pelo espelho quebrado dos cultos pagãos. Ora, na prefiguração, o futuro
prefigurado já se acha incluso de certo modo. Sabem-no os nossos artistas que representam
em série contínua, na unidade de concepção de arte que manifesta a unidade de concepção
religiosa, as cenas do Antigo e do Novo Testamento.
Poder-se-á dizer que essas
aproximações se fazem tardiamente, e há alguma coisa a reter desta observação; mas
nem por isso o conjunto do culto hebraico deixa de andar na perspectiva do nosso.
É o imperfeito que se orienta para o perfeito e que pertence ao mesmo gênero, diriam
os filósofos. É a aurora, que pertence ao dia. O paganismo, digo o paganismo piedoso,
é a escura claridade das noites, quando o peso das nuvens ou o peso voluntário do
sono não a escurecem para os nossos olhos.
Unindo os dois, ter-se-á
o ciclo completo das iluminações que preparam as claridades diurnas. Tudo o que
mais tarde poderá vir a ser cristão por incorporação, em toda a amplitude do mundo
antigo já é cristão por antecipação. A nossa Igreja católica, isto é, universal,
mostra-se assim deveras universal, reunindo a amplitude dos tempos sob o imenso
amplexo do seu desenvolvimento multiforme. Aquele que é revela-se, na sua Igreja,
ao mesmo tempo Aquele que foi e Aquele que será.
E o que mais do que tudo
manifesta esse caráter a um tempo envolvente e desenvolvedor, tradicional e progressista,
numa palavra, eterno no curso do tempo, é o profetismo. Nele está a atadura do feixe.
O profetismo na sua dupla forma, interprete do passado e precursor do futuro, é
como a ponte que liga espiritualmente as diversas idades do mundo, que faz a antiguidade,
remota ou próxima, comunicar com as esperanças, imediatas ou longínquas, que o grande
movimento religioso que domina os tempos quer realizar. Eu já disse que o profetismo,
no sentido lato do termo, não esteve ausente do próprio paganismo. Reconheceram
isso os nossos Padres da Igreja. Mas, no sentido próprio, a profecia, que se antecipa
à vida da Igreja e lhe dá como que uma duração retroativa, é apanágio de Israel.
Pelos seus gritos inflamados
e pelos lampejos às vezes fulgurantes do seu pensamento religioso, os profetas de
Israel transcendem a duração como transcendem o seu meio imediato. Atingem a eternidade
e a imensidade onde o Evangelho entender de se colocar. Eles falam ao Homem, o Homem
de todos os tempos e de todas as raças. São os sacerdotes da instituição religiosa
universal, e, quando eles jazem no fundo do passado, olhando para o futuro, as suas
esperanças traçam o caminho que tornarão a subir mais tarde as lembranças, nos interpretes
inspirados da história.
Essas duas correntes de
visões e de apelos são como que as grandes linhas que atravessam todo o teclado,
num sentido ou noutro. Por causa disso, achareis nos profetas um esboço de dogmática,
de moral e de culto espiritual muito superior ao que servia de base às instituições
regulares do povo. A vida religiosa do seu tempo, que é neles o seu máximo, neles
se excede a si mesma por um empréstimo antecipado tomado ao Evangelho. E é assim
que eles são um nexo real, do mesmo modo que suas profecias são um nexo verbal,
entre a antiga e a nova Aliança.
O reino de Deus que eles
preconizam tem por sede as consciências, e o reino de Javé sobre Jerusalém não passa,
por assim dizer, de um símbolo desse reino. Para eles Jerusalém é antes de tudo
a pátria das almas. A vida interior, que será a essência do cristianismo, assume
aos olhos deles uma importância primária; eles se incomodam menos com as sanções
temporais, cientificadas de promessas que sentem obscuramente, mas que, de fato,
são as do Evangelho.
O universalismo politicamente
tão estranho a Israel, introduz-se praticamente neles com a ideia da vocação dos
gentios e do acesso das "Ilhas" (como eles chamam às nações dispersas
de longe) ao território religioso de Israel.
Essa Ilhas longínquas,
quer dizer, o universo, aparecem ao olhar profético, para quem as perspectivas da
história judaica e da história universal se confundem, como dependências da pequena
Palestina onde eles bradam as suas esperanças. E esse juízo não é vão, visto como
o futuro depende do passado que o prepara, visto como a joia, mesmo de valor incomparável
em relação à cadeia, nem por isso deixa de estar suspensa à cadeia. Israel é a cadeia
da joia evangélica; o profetismo é a pérola de espera inserida entre os elos.
Vozes do universo extraviadas
num recanto do universo, vozes do infinito dos tempos localizadas num ponto dos
tempos, os profetas pressagiam e preparam a grande voz que dirá: Eu é que sou a
Luz do mundo. Eu sou o Caminho; sou a Verdade; sou a Vida. Sou a Porta por onde
devem passar todas as ovelhas humanas para irem aos pastos divinos.
Eis que avança, no limiar
dos tempos novos, aquele que, último dos profetas e primeiro dos cristãos - João,
o Batista - será o liame vivo entre os dois mundos. "Preparai, clamará ele,
o caminho o Senhor, tornai retas as suas veredas". Era o que o seu grupo religioso
tinha feito; era o em que haviam colaborado remotamente todos os outros.
E chegado era o momento
em que na sinagoga estreita, como no coração tenso e impotente dos homens, o futuro
do mundo sufocava; mas ele aí achara até então um abrigo, e, sem abalo exaustivo,
não sem crise entretanto - pois todo nascimento é uma crise, - ia passar do período
das longas gestações para o período das manifestações, aguardando a era dos progressos
indefinidos que só a eternidade deve encerrar.
Havendo-lhe todo o passado
trançado assim o berço, havendo-lhe, ai! Talhado a cruz, mas também havendo recolhido
raios de luz para a sua auréola, Aquele que devia vir podia vir.
CAPÍTULO 2 - O NASCIMENTO DA IGREJA
A Igreja, em Deus, é eterna
- primeiro pensamento incluso no Verbo que será um dia o seu chefe, primeiro amor
no Espírito que um dia lhe será a alma.
Em Cristo, o homem universal,
a Igreja é também universal e, por conseguinte, onitemporal. Mas essa existência
que atravessa todos os tempos não se manifesta nelas sempre da mesma maneira. Há
um centro de atração que faz convergir os seus diversos estados para isso a que,
com São Paulo, chamamos de plenitude dos tempos, a saber, a vida histórica de Cristo,
distinta da sua vida intemporal ou de influência.
Antes do seu nascimento,
preparava-se e esperava-se o Cristo; depois, a humanidade vive dEle e desenvolve-lhe
a obra. Assim com a vida religiosa, hoje em dia, não seria o que é se Cristo não
tivesse vindo, assim também a vida religiosa dos séculos antecristãos não teria
sido o que foi se Cristo não devesse ter vindo. E, enfim, já que tudo se subordina
a essa obra, pode-se dizer que Cristo criou a história tanto para o passado como
para o futuro. Sucede como se "no oceano das idades" - como teria dito
o nosso Lamartine, - houvesse caído um imenso rochedo. A ondulação prossegue nos
dois sentidos, e todo o mar vibra, sob a luz repercutida pelos milhões de espelhos
que são as consciências dos homens.
Tal é o ponto de vista
que desenvolvíamos no capítulo precedente, e que nunca se deve esquecer quando se
trata da Igreja. O cristão individual tem toda razão de se lembrar disso, pois também
é homem de todos os tempos, enraizado no Antigo Testamento, desabrochado no Novo,
homem de hoje, de ontem e de amanhã, pelo simples fato de ser da Igreja.
Deixando agora de lado
os efeitos retroativos da vinda de Cristo, temos de lhe estudar os efeitos imediatos,
enquanto aguardamos os seus efeitos ulteriores.
Esta maneira de exprimir-nos
mostra em que sentido se deve tomar o nosso título "O nascimento da Igreja".
Não se trata de um começo absoluto, como se, antes, a Igreja absolutamente não houvesse
existido. De certa maneira, ela existia em alma e em corpo. Em alma, visto como
o Espírito, que lhe faz todo o valor, trabalhava; em corpo, visto como o embrião
judaico, concedido ao banho nutritivo das civilizações religiosas ou seculares do
mundo antigo, era bem autenticamente o seu corpo antecipado.
Não era isso uma razão
para que a Igreja não tivesse de nascer. Nós também nascemos depois de termos vivido
no seio de nossas mães e fincado as nossas origens no coração das gerações.
Cristo, dado ao homem
por uma vontade eterna, vontade que tivera consequências espirituais desde sempre,
e mesmo, não me posso cansar de repeti-lo, consequências históricas, o próprio Cristo,
digo, desta vez ia revestir a existência histórica, surgir das suas preparações
e encetar o futuro.
Foi em Belém, numa manjedoura
de ruminantes, sob um abrigo de natureza em pleno céu, em face de uma planície constelada
de humildes fogos, porém dominada por aqueles outros fogos que Abraão contemplava
como símbolos de sua raça, foi aí que, premido pelo amor, propondo-o Deus e aceitando-o
homem na pessoa de uma pureza e de uma humanidade todo-poderosas, foi aí que o fruto
maduro da história aí irrompeu. O grão do futuro, a esperança alimentada pelos séculos
lá estava, sob a forma de uma criança que uma mãe, fecunda por obra do Espírito
universal, amamentava.
Esse seio de virgem não
era porventura a figura da humanidade em trabalho, elaborando uma comida que o Cristo
coletivo, a Igreja, absorveria em breve, para crescer? Enquanto isso, o minúsculo
Filho do Homem vivia dessa comida, ele primeiro de seus irmãos, diz o Apóstolo,
primeiro a ser nutrido da medula do passado, humanidade nova e antiga por ele só,
a título de Filho do Homem, a título de segundo Adão, mas trazendo em si o que podia
renovar, já que criara, trazendo em si a plenitude da própria divindade.
Por toda parte a humanidade
procurava outrora o seu Deus: nesse dia, se seus olhos pudessem ter-se aberto, ela
o teria contemplado em si mesma. Esse Deus, que a envolvia desde sempre de uma influência
ativa, mas parcial ainda e pouquíssimo reconhecida, furara um ponto "a parede";
(Ezequiel, 8,8.) irrompera a massa humana e, pela deificação pessoal de um de nós,
começava a operar a deificação coletiva.
Os potentados da antiguidade,
quer se chamassem Ptolomeu, Antíoco, Augusto ou mesmo Nero, viam anunciar e saudar
o nascimento deles como o inicio de uma idade áurea, como o penhor de uma felicidade
a vir sobre a terra. Aqui, a verdade substitui-se às ficções, e a idade de ouro
eterna, definida pela síntese de Deus e do homem na religião autêntica, acaba de
achar o seu instrumento substancial. Jesus será o ponto de ligação, o elo intermediário,
semi-humano, semi-divino, que unirá o que se trata de unir. Como repreender-se-á
que ele diga em seguida: "Ninguém vem ao Pai senão por mim", (João, 14,6.)
e reciprocamente: "Ninguém pode vir a mim se meu Pai não o atrair". (João
6,44.)
O nascimento da Igreja
será, pois, de certo modo, o nascimento de Cristo, visto haver identidade solidária
entre o grupo organizado e Aquele que é estabelecido espiritualmente chefe de raça.
"O Estado sou eu", dizia Luiz XIV; com mais verdade poderá Cristo dizer:
a Igreja sou eu; não entendendo isto da sua humanidade individual, mas de todo o
corpo de que a sua humanidade é a cabeça.
Mister se fará apenas
que esse corpo de Cristo, como efetivamente lhe chama São Paulo, esse Cristo desabrochado
em grupo, socializado, ache suas condições definitivas. Até então ele vivia em estado
difuso no paganismo e em estado embrionário no judaísmo: tratar-se-á, como dirá
mais tarde São João, de congregar em um os filhos de Deus dispersos. (João, 11,52.)
Repito, havia filhos de
Deus em toda parte. As Igrejas nacionais ou domésticas ofereciam-lhes abrigos provisórios;
a sinagoga fornecia-lhes uma representação e um ponto de concentração, oficial desta
vez, mas insuficiente, porque unia mal; unia só pouca gente e em condições que não
eram exclusivamente religiosas, já que era preciso filiar-se ao povo, por uma espécie
de naturalização, para se filiar ao culto. Derrubar esse templo para substituí-lo
pelos domínios do Espírito de que o templo cristão será o servo e o símbolo, eis
a obra.
"Vem a hora, diz
o Salvador à Samaritana, em que não será nem sobre esta montanha nem em Jerusalém
que adorareis o Pai. Vós adorais o que não conheceis; nós adoramos o que conhecemos,
pois a salvação vem dos Judeus. Mas vem a hora, já veio, em que os verdadeiros adoradores
adorarão o Pai em espírito e em verdade". (João, 4,21-25.) Achamos aí, em três
tintas justapostas, todo o mapa religioso do mundo: a religião dos pagãos, em que
se erguem templos de ocasião, adoradores daquilo que ignoram; (o Deus ignoto de
São Paulo) a região judaica, onde o edifício salomônico abre suas portas ao verdadeiro
Deus, mas fecha seus muros ao mundo; finalmente a região cristã, onde o templo aberto
ao espiritual, às dimensões do universo, já não passará, materialmente, de um símbolo
e de um auxílio.
Compreende-o a arte cristã
quando, na medida do possível, sintetiza no templo cristão ideal, que é a Catedral,
a criação em todos os seus domínios. O templo eucarístico é tanto mais templo quando
melhor se parece com esse cosmos divino em que toda criatura unida a Cristo adora
em espírito e em verdade.
Vem a hora, diz o nosso
texto e já veio. Que quer isso dizer? Quer dizer que, estando lá Cristo, já veio,
nele, a hora de tudo o que deve ser. Essa hora veio desde Belém. Vem, entretanto,
porque essa existência de Cristo, que inclui em si a obra universal, ainda não se
tornou uma ação e não está coroada pelo dom supremo.
Eis, porém, que Belém
restitui a Nazaré o seu tesouro. Tendo-o visto crescer em sabedoria e em idade diante
de Deus e diante dos homens, (Lucas, 2,52.) Nazaré passá-lo-á a Cafarnaum, a Betsaida,
a Tiberíades e às outras cidades galileias. A Galileia, infiel, cedê-lo-á a Jerusalém,
que o crucificará fora dos muros, como que para simbolizar a universalidade do seu
sacrifício. Enquanto isso, a vida oculta desenrola-se, porque convém que a obra
individual de Cristo se prepare no silêncio e na obscura meditação, como a obra
coletiva que ele enceta na noite dos séculos.
Daí, tal como das profundezas
do silêncio noturno se lança pela manhã o sol, o "noivo eterno" da humanidade
deixará a sombra nupcial para correr a sua carreira.
Como sempre, ele começa
pela provação. Hércules entre o vício e a virtude é símbolo universal. Isento de
toda tendência para o mal, Jesus nem por isso deixa de ser sujeito, como todos,
aos assaltos do mal. O mal, para ele Cristo, seria esquecer-se de que é Cristo,
isto é, homem de todos, e trabalhar para si mesmo. "Faze que estas pedras virem
pães": atira-te do alto do templo, e apare-te o teu Deus; conquista, visando
uma realeza pessoal: tal é a tentação de Cristo.
Mas não! O homem do Reino
de Deus, que é universal, deve guardar para obra universal o poder que dispõe. O
homem do Reino de Deus, que consiste em se unir a Deus, deve consultar a Providência,
em vez de lhe impor seus caprichos. O homem do Reino de Deus, que é interior, não
deve comportar-se como conquistador, como se o Reino fosse deste mundo. O Reino
é neste mundo que lhe impõe as suas condições; é neste mundo como no outro, na terra
como no céu, visto que orienta o destino total; mas não é deste mundo, não detendo
suas ambições sobre os objetos das nossas preocupações temporais e excluindo o mal.
Após essa tríplice prova
simbólica, o tentador é enxotado com a tentação, e a natureza do reino de Deus na
terra, tal como deverá realizá-lo a Igreja, é fixada. Jesus vai pregá-lo. O seu
batismo à beira do Jordão é que lhe dá a sua consagração de pregador.
Escutai-o, diz a Voz,
e sinais visíveis oferecem como que o aparato de uma sagração. Ele foi sagrado pelo
Espírito Santo e pela virtude de Deus diz São Pedro. (At, 10,38.) Essa virtude revela-se
nas pregações de dois anos e meio, mal três, num minúsculo teatro, ao qual se têm
emprestado encantos assaz incertos.
Tem-se sonhado muito sobre
essa Galileia que não ousa mais viver, que se consola de haver perdido o seu Deus
rolando sobre as rochas onde ele pregava ondas de verdura, e retraçando com loureiro
em flor o sulco da sua barca que ia de margem em margem. Mui diversa foi, porém,
a realidade no tempo de Jesus. A pregação do "rabi nazareno" não é a pastoral
que Renan descreveu; é um labor áspero, numa áspera terra, no meio de campônios
secos, supersticiosos, violentos, que após um momento de entusiasmo querem precipitar
o seu profeta do alto de um rochedo, depois fazê-lo rei, depois fazê-lo seu provedor,
depois, que sei? E que acabam por obrigá-lo a ir-se embora com um adeus de maldição.
Não importa. Sabemos que
a literalidade dos acontecimentos tem na vida de Jesus uma importância imensa, mas
no final das contas secundária. Essa vida é um símbolo, símbolo real e ativo, sacramento
cujo alcance excede infinitamente o alcance dos fatos materiais em que se apóia.
O Sermão da Montanha sem dúvida é pronunciado perante algumas centenas de pessoas:
nem por isso deixa de se dirigir ao universo, e é por este ouvido. A semente lançada
sobre os rochedos acha logo de início algumas fendas onde germinar, e o resto ressalta
para ir fecundar a terra.
É notável que Jesus não
tenha procurado sair de seu pequeno país. Confinou-se num espaço que se atravessa
em dois dias de marcha. Seus primos lhe diziam: Se fazes tais coisas, mostra-te
ao mundo!. (João, 7,4.) Era o clamor da evidência. Mas ele não escutava nada dessa
pretensa sabedoria. Abordava o universo por um ponto, sabendo que o fluido divino
saberia passar desse ponto a todos os outros.
O mundo não é assim tão
grande. O verdadeiro obstáculo à ação moral não são as distâncias. Um mínimo de
tempo e de espaço basta ao Salvador para conquistar o tempo e o espaço em toda a
sua amplitude. Um ponto que se move com velocidade infinita ocupa a imensidade,
observa Pascal: é o caso de Cristo exercendo a sua atividade celeste. Um ponto segundo
a extensão, a imensidade como zona de influência.
Os homens tratam de durar
e estendem-se o mais possível, porque têm apenas os seus dias medidos e a sua estatura
para se igualarem à sua obra: Cristo dispõe da estatura de Deus e da duração de
Deus: não necessita estender-se. Ele é, e isto basta; ele diz, e sua palavra acha
o seu caminho por si mesma. A sua vida histórica está para com a sua vida segundo
o espírito em mera proporção infinitesimal. Galileu e pregador de três anos, é o
bastante; todo o plano religioso universal tem aí suas ligações.
O Mestre prega pois, e
o que ele diz é a Boa Nova, assinalando a ideia central da sua obra.
A essência do cristianismo,
sobre ela muito se há dissertado; não é sem razão, conquanto seja às vezes de maneira
a mais desarrazoada. Está aí, com efeito, o tudo da Igreja, visto ser a sua ideia
vital. A ideia vital é o tudo de um vivente; é a lei de toda a sua atividade; a
não ser o caso de desvio acidental, ela torna a achar-se em tudo o que ele faz como
em tudo o que ele é; é a sua "alma". Isso a que chamamos alma, esse princípio
interior da nossa unidade e da nossa orientação ativa, outra coisa não é senão uma
ideia, real e substancial, ideia, dirá Claude Bernard, diretiva de todas as manifestações
da vida.
Na Igreja, segundo a teologia
católica, alma é o Espírito Santo. Mas ainda assim cumpre saber sob que forma o
Espírito Santo entende de se dar a nós na Igreja. Não sucede com essa alma, alma
universal e transcendente a todas as coisas, como sucede com uma alma individual,
que se proporciona exatamente àquilo que ela move. O Espírito Santo nos excede e
acha em nós um mero domínio parcial. Demais, se ele nos penetra, é sem nos absorver,
ao passo que a alma individual absorve na unidade de uma substância indivisa aquilo
que ela anima. Resta, pois, a questão de saber o que é que o Espírito divino quer
de todos nós, constituídos em Igreja, e o que é que nos traz. É isso, propriamente,
o Evangelho.
O Evangelho, a Boa Nova,
é assim chamada a priori, porque um desígnio divino é, por essência e inevitavelmente,
um desígnio de amor. A não ser que o homem o estrague! Mas trata0se aqui do desígnio
primeiro, e a este nível, não intervindo nenhuma defecção, o amor e a felicidade
só se separam se, entre os dois, desfalecesse o poder.
E qual é a boa nova anunciada?
É que o homem, desde sempre, foi chamado à intimidade divina; que esse desígnio,
longamente desconhecido, vai ser reatado e acha seu cumprimento decisivo na pessoa
de Cristo "princípio" e "pedra de ângulo", "caminho, verdade
e vida". (Cf. João 8,25; Mt, 21,42; João, 19,6.) Trata-se, pois, ao mesmo tempo,
de uma intenção divina e de um fato divino; trata-se, em consequência, de uma ação,
de uma lei, de um sistema de meios, e, necessariamente, de um ambiente apropriado
à fecundidade do fato, à aplicação da lei, à utilização dos meios, à realização
da intenção inicial.
No tempo, o advento de
Jesus abre a fase definitiva do reino de Deus; o seu segundo advento deve encerrá-lo,
julgar-lhe os efeitos e eternizar-lhe os fins.
Jesus traz o levedo que
fará fermentar a massa humana; cultiva um campo onde brotará também joio; lança
uma rede que apanhará peixes bons e maus, enquanto não vem a separação. E isto quer
dizer que ele se propõe, e poupa as liberdades.
Quanto ao essencial, a
saber, espiritualmente - pois Deus é Espírito e suas obras são, antes Ed tudo, obras
de espírito, - o reino de Deus está em nós desde que nos demos a Deus e à obra de
Deus sem restrição pecaminosa. Historicamente, visivelmente, o reino de Deus será
estabelecido desde essa primeira geração, (Mt 24,34.) porquanto o grão será semeado,
Cristo provado, a sociedade fundada, o Espírito difundido e os sinais fornecidos:
ressurreição de Jesus, ruína de Jerusalém e abolição do antigo reino provisório.
Para entrar no reino,
o que antes de tudo é necessário, por oposição ao judaísmo carnal, são as disposições
do coração. Importa primeiro compreender-se a si mesmo, ter consciência da sua natureza
real e completa. "Reconhece, ó cristão, a tua dignidade", dirão os nossos
Padres. Em seguida, é preciso rematar-se, seja como indivíduo, seja como grupo.
Enfim e desde o inicio, a fim de se compreender deveras e de se realizar plenamente,
o homem é chamado a ultrapassar-se para entrar em sociedade intima com o Pai, o
Filho e o Espírito.
Compreender-nos é sabermos
que, nascendo na terra, somos um ser de essência celeste: homo coelestis; (1Cor
14,47.) que, sujeito ao tempo, somos um ser de eternidade.
Realizar-se, rematar-se,
é, como indivíduo, dirigir o seu desenvolvimento no sentido daquilo que faz alcançar
o seu fim, e, já que somos celestes, desenvolver em nós o celeste; já que somos
feitos para a eternidade, preparar em nós a eternidade, preferindo a todos os valor
que perecem no tempo os valores eternos: Homens carnais, não busqueis o pão que
perece, mas o pão que fica para a vida eterna. (Jo 6,27.) E, como grupo, realizar-se
é elevar-se até à consciência da sua unidade e tirar daí as consequências: amor
mútuo, amor organizado, justiça fraterna que superabunde em relação à justiça dos
pagãos e em relação à pretensa fraternidade, que não passa de uma coesão dos nossos
pós. Pai, que eles sejam um como nós. Como tu, Pai, estás em mim e eu em ti, sejam
eles também um em nós. (Jo 17,11 21.)
Enfim, ultrapassar-se,
por uma vida em comum com seu Princípio, é aceitar a graça e merecer-lhe o crescimento.
Se alguém me ama, meu Pai também o amará, e nós viremos a ele e faremos nele a nossa
morada. (Jo 14,23.) Porém primeiro, se vós me amais, observai meus mandamentos.
(Jo 14,15.) E por isto sobretudo, por isto essencialmente, se reconhecerá que sois
meus discípulos, se vos amardes uns aos outros. (Jo 13,35.)
Essa habitação misteriosa
do divino em nós, juntos, esse renascimento em Deus de todo o grupo humano, é que
prepara e permite a ascensão inaudita de um pequeno ser ao contato imediato do seu
Princípio, e essas sublimes intuições que são o fundo da vida celeste prometida.
"A vida eterna é que eles te conheçam, a ti único Deus verdadeiro, e Aquele
que enviaste". (Jo 17,3.)
Mostrar tudo isso, em
minúcia, nas palavras de Jesus - sentenças, discursos ou parábolas, - não temos
que vagar para tanto; mas, pelos nossos apóstolos, pelos nossos Padres e pelos nossos
teólogos, sabemos que nelas se acha a substância disso.
Dissemos que o passado
tinha feito prevê-lo e olhe preparara o desabrochar: por isso Jesus se refere muitas
vezes ao passado, embora assinalando as diferenças. Faz ressaltar o que há de bom
nos meios pagãos, exaltando o publicano virtuoso e o Samaritano caridoso. Abstém-se
de condenar a lei, dizendo que vem apenas aperfeiçoá-la. Superior a Moisés, nem
por isso deixa de lhe ser o continuador, e, se pode levá-lo mais longe, é que o
coração duro dos homens foi amolecido lentamente pela penosa experiência da sua
impotência. Agora, o progresso vai declarar-se. O que o mundo pagão autorizava,
Jesus condena; o que Moisés concedia à dureza dos corações, Cristo recusa-o.
A ação divina no mundo
é de uma continuidade que a sua matéria condiciona e perturba frequentemente, mas
que tende a subir. Já que hoje os tempos estão maduros pra uma transformação profunda,
cumpre organizar os méis desta. Faz-se mister uma alma nova aos humanos, ei-la:
O Espírito do Evangelho. Mas, para que essa alma trabalhe, é preciso, como dissemos,
que organize para si um corpo. Sucedendo ao corpo plasmático das antigas organizações,
ao corpo embrionário constituído pela sinagoga, torna-se necessário agora um corpo
religioso que corresponda à idade perfeita das revelações, à vida plena da grande
obra. É esse corpo que vamos ver brotar sob a ação humilde, harmoniosa e pejada
de imenso porvir que devemos agora contemplar.
Quando se diz que Jesus
Cristo fundou a Igreja, há quem peça para ver, no tempo dele, um grupo religioso
semelhante ao nosso, diferindo apenas pela amplitude. Teremos de dizer até que ponto,
filosoficamente, essa concepção é falsa. A Igreja, nos seus primórdios, tem apenas
delineamentos; porém faz-no-los vez no próprio dia em que a ideia nova vital é lançada
na sua matéria consciente.
Jesus faz-se reconhecer;
fala, e a sua influência, que é uma lei de vida, apossa-se da matéria ambiente na
medida em que essa matéria está preparada para recebê-lo. "Vem!" diz ele,
e a pessoa vem. (Mt 8,9; Mc 10,21; Jo 1,46.) Ou mesmo, como no caso de Madalena,
de Nicodemos, nada havendo ele pedido, acorre-se, reconhecendo nele o ideal que
se procurava. Assim as substâncias que o turbilhão vital arrasta colocam-se sob
a lei da alma.
A alma espiritual introduzida
no mundo por Jesus vai assim, por atração, por conaturalidade, constituir para si
um corpo. Ninguém vem a mim, dizia o Salvador, se meu pai não o atrair. Que é essa
atração do Pai, se não é Deus vivo nas almas sob a forma de um apetite sobrenatural
que ele provoca, e que em seguida saberá satisfazer, quando essas almas tiverem
reconhecido em Cristo o meio de realizarem o que procuravam?
Essa atração interior
constitui rapidamente a Jesus um grupo de aderentes, homens e mulheres, em número
bastante grande, entre os quais emergem e se distinguem, nomeadamente escolhidos,
setenta ou setenta e dois discípulos. Digo nomeadamente, embora nenhum catálogo
autêntico nos tenha chegado; mas a cifra setenta (ou setenta e dois segundo os manuscritos)
é dada por Lucas, (lc 10, 1.) e alguns nomes sobreviveram, como Barnabé ou Sóstenes.
Um terceiro grupo mais
restrito e especialmente eleito será o dos Doze, entre os quais Pedro, Tiago e João
parecem formar ainda uma seleção. Enfim, Pedro revela-se como o chefe, o centro
de unidade para o futuro, quando o centro eterno, Cristo, se tornar invisível.
Ora, Jesus toma bem cuidado
de dizer aos que terão um papel no Estado espiritual por ele construído, que Ele
os escolhe, e não apenas os recebe por uma espécie de acessão passiva. (João 15,16.)
Assinala assim a sua intenção, que é de lhes conferir um poder social. Intenção
que aliás se revela em múltiplas palavras assaz conhecidas, palavras que não deixam
dúvidas senão aos que dúvidas procuram.
E que a sociedade que
ele assim funda não seja uma sociedade particular, porém a cidade universal das
almas, é o que já assinala simbolicamente essa cifra doze, que corresponde às doze
tribos, isto é, à humanidade religiosa provisória, ao novo Israel, à Igreja incoativa
de que falamos, e também a cifra setenta, ou setenta e dois, que correspondia, segundo
a tradição judaica, ao número das nações da terra, a que o Evangelho concerne. O
próprio Jesus faz ressaltar esse simbolismo, prometendo aos Doze uma glória que
ele figura por doze tronos, julgando as doze tribos de Israel. (Mt 19,28.) Julgar
as doze tribos de Israel no fim dos tempos, é julgar o mundo, havendo-se este, graças
à Igreja universal saída da sinagoga, tornado o prolongamento religioso de Israel.
Mil vezes tem-se feito
notar que esses fundamentos da obra cristã, os apóstolos, não são uns letrados,
uns filósofos, ou pessoas importantes nos seus grupos; são pessoas de pouca importância.
Não que haja nisso o menor exclusivismo democrático; o Evangelho não é propriedade
dos pequenos mais do que dos grandes; não se deixará que ele seja açambarcado por
ninguém; mas, se - pelo espírito ou pela situação - devem os grandes ser mais tarde
incorporados ao organismo constituído, é útil que eles próprios não sejam constituintes,
para não parecerem usurpar o papel assimilador que pertence à ideia vital.
O estabelecimento da Igreja
toma assim o seu ponto de partida. Simples lineamentos, mas com um espírito ativo
e com centros de ação organizadora, que já se coordenam numa espécie de encéfalo,
na pessoa de Pedro. É o embrião no inicio do desenvolvimento. Jesus experimenta-lhe,
por assim dizer, a vitalidade e convida-o a tomar por si mesmo a consciência dela,
confiando aos Doze, até aqui instruídos pouco a pouco, missões que servirão de prelúdio
à conquista do mundo. Que isso esteja prenhe de todas as realizações e de todas
as organizações ulteriores, fá-lo Jesus ver, e assinala simultaneamente a unidade,
a significação transcendente e o futuro da sua obra numa circunstância que figura
entre as mais solenes da história cristã.
Era em Cesárea de Filipe.
Julgando chegada a hora de se declarar completamente, Jesus pergunta de repente
aos Doze, depois de fingir interrogá-los sobre o estado da opinião pública no tocante
à sua pessoa: E vós, quem dizeis que eu sou? A esta pergunta inopinada, é Pedro
quem se levanta e quem, com o entusiasmo pronto que está na sua índole, mas, quanto
ao fundo, inspirado de mais alto, exclama: Tu és o Cristo, o filho do Deus vivo.
Feliz és tu, declara-lhe
o Salvador, feliz és tu, Simão Bar-Jona! - e lhe declina os seus nomes de homem
para convidá-lo a compreender que o que se passou nele não é do homem. - Não foram
a carne nem o sangue, quer dizer, a educação doméstica ou a intuição humana, ainda
quando trabalhasse sobre os dados que lhe fornece o espetáculo de uma vida divina,
não foram a carne nem o sangue que te revelaram estas coisas, porém meu Pai que
está nos céus. É preciso a intervenção dos céus para a palavra de fé tal como ela
vem à autoridade em vista do grupo. Porquanto foi em vista do grupo, e como que
já em seu nome, que Simão falou inspirado do alto.
Logo lho declara Jesus,
e sua réplica é ao mesmo tempo uma espécie de recompensa pessoal e de definição
da Igreja: E eu te digo: Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja,
e as portas do inferno não prevalecerão contra ela. Falar assim não é fundar a Igreja
num trocadilho, como levianamente disseram alguns; é dar o seu emprego natural a
um nome simbólico atribuído desde o início a Simão, conforme o costume judeu, quando
Jesus lhe disse, escolhendo-o: Tu que te chamas Simão filho de Jonas, chamar-te-ás
Kephas, quer dizer, Pedro, ou Rochedo. (Jo 2,42.)
Portanto: Tu és Pedro,
e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja. A ideia de uma construção regular
e durável é aqui nitidamente afirmada. Não se trata de uma assembléia de acaso,
formada de próximo em próximo, mas de uma obra fundada que subsiste. E as portas
do inferno não prevalecerão contra ela. As portas do inferno, quer dizer, as potências
da morte, que triunfam de tudo o que é humano, que se fecham, indiferentes e fatais,
sobre tudo o que a natureza ou o homem sós põem a lume; quer dizer, ainda, as potências
do mal, de que Satanás é o tipo, e cujas cidadelas se erguem em face da cidade do
bem. A Igreja não sucumbirá a nenhum desses ataques; a Igreja não morrerá, e seu
fundamento, a sé de Pedro, durará tanto quanto ela. Tal é a promessa.
"Fato curioso, observa
Henri de Tourville, o desse homem da Galiléia, que não teve em sua pessoa nada de
extraordinário, e a quem um amigo, aldeão de Nazaré, usando do mundo e do futuro
como senhor, por sua simples autoridade e com uma palavra colocou no pináculo da
história e à frente da humanidade".
Na continuação do texto,
a função de chefe é figurada pelas chaves, insígnia do intendente ou mordomo de
palácio. Dar-te-ei as chaves do Reino dos céus, isto é, o poder de admitir ou de
rejeitar os fiéis. No Apocalipse, é o próprio Jesus quem traz as chaves de Davi,
como Grão Mestre do Reino de Deus. Aqui trá-las-á, por procuração o seu discípulo
chefe, primeiro porteiro do Reino.
Esse reino evidentemente
é a Igreja, visto que Jesus acrescenta: Tudo o que ligares na terra será ligado
no céu, e tudo o que desligares na terra será desligado no céu. Esse poder de ligar
e de desligar, que significa permitir ou proibir, é relativo às ações ou às coisas,
assim como o poder de admitir ou de rejeitar é relativo às pessoas. Assim, o magistério
de fé indicado pela primeira declaração do Mestre, (como aliás por muitas outras
palavras) e o magistério governamental implicado na segunda, são claramente definidos.
Tinhamos razão de dizer
que um tal fato é central no estabelecimento evangélico da Igreja; ele serve de
base à obra, com a sua forma hierárquica claramente centralizada, é necessária à
ação espiritual predita. Tudo, partindo de uma Encarnação para se adaptar à natureza
carnal ao mesmo tempo que espiritual do homem, tudo deve envolver em seguida no
visível, e não no espiritual puro, isto é, no invisível. O que deve ser visto é
a humanidade nova agrupada em torno de Cristo, redimida, unida ao Pai com sua própria
unidade, animada pelo Espírito. Isso não é possível sem uma organização social,
sem uma representação, sem uma diversidade de funções exprimindo a diversidade humana
na unidade, à maneira de um corpo. E, como um é que manifesta melhor um, do mesmo
modo que, no ponto de partida, tudo se concentra na unidade de Cristo, concebe-se
que a representação principal de Cristo seja por sua vez unitária.
Donde a eleição de Pedro,
ponto de partida do Papado, Jesus não mencionou expressamente sucessão; mas criou
o papel; mais tarde, como agora, bem forçoso era fosse esse papel desempenhado.
O próprio Jesus coloca a duração de sua Igreja na dependência do Rochedo sobre o
qual a funda, e di-la perpétua. Pode-se, pois, pensar que, se desde o início ele
assim não houvesse disposto, isso se teria espontaneamente estabelecido mais tarde,
bem longe de ser um desvio posterior, como pretendem alguns, e um plágio da autoridade
romana.
Quando ao magistério sacramental,
este resulta de outras declarações não menos precisas, das quais dentro em pouco
encontraremos a principal.
Mas, antes das palavras
supremas e antes do supremo apelo ao futuro, a instituição da Igreja necessita,
no presente, de uma consagração dolorosa.
Os pactos sociais da antiguidade
selavam-se sempre por um sacrifício. Por isso dizia-se: ferir uma aliança, matar
uma aliança: ferire foedus, mactare foedus. Um sacrifício mais alto deve aqui intervir,
porque a aliança entre Deus e o homem, em mira a fundar essa vida em comum que é
a Igreja, requer da parte do homem um esforço de ascensão e de purificação que não
pode ter lugar sem dor. O Filho do Homem assume-lhe o encargo coletivo, e acha-se
preso por sua obra numa espécie de engrenagem onde deve necessariamente sucumbir.
Nos confins de todos os
mundos, entre o passado e o futuro, entre a terra e o céu, entre a matéria e o espírito,
entre a culpabilidade e a justiça, deve ele ser esmagado e sacrificado pela aproximação
temível que ele tem por missão promover.
O passado não quer perecer;
o futuro tem dificuldade de nascer; toda passagem renovadora é acompanhada de conflitos;
todo nascimento é uma crise.
A matéria não quer ceder;
o Espírito desarranja-a nas suas combinações e nas suas esperanças; ela vai resistir,
e resistirá a ponto de Pascal poder dizer: Jesus estará em agonia até o fim do mundo.
A sua agonia presente será causada pela resistência imediata de um meio corrupto,
símbolo bem indicado daquilo a que o Salvador chamava o mundo.
Quanto ao céu e à terra,
estes não podem juntar-se e unir-se senão no crisol do amor - amor reparador, em
relação a um passado carregado de responsabilidades e de misérias; amor inspirador,
prestimoso e vencedor em relação ao futuro.
Ora, esse amor deve ser
visível e para sempre indiscutível. Ninguém ama mais, disse o próprio Jesus, do
que aquele que dá a vida por seus amigos. (João 15,13.) Em Cristo martirizado, Deus
e o homem dar-se-ão reciprocamente essa prova. O homem morrerá por seu Deus; um
Deus morrerá por seu Deus; um Deus morrerá pelo homem. Desse duplo selo do Testamento,
o rótulo da cruz será o quirógrafo. Em hebraico, a língua do passado religioso;
em grego, língua da civilização temporal; em latim, língua do poder viril e conquistador
do Romano, poder-se-ão ler os perdões e as munificências celestes, as retribuições
generosas e os esforços de uma criatura assim prevenida pelo amor.
Grandezas de carne, grandezas
de espírito e grandezas de caridade, consoante a divisão célebre de Pascal, unificar-se-ão
assim na caridade superabundante e mortal. O passado, sublevado em tempestade, por
mais que julgue quebrar e suprimir o que considera ser antagonista, não fará senão
desprender violentamente da árvore humana o grão de futuro que é Cristo, e, sepultando-o
numa terra que ele próprio contribui para tornar fecunda, graças aos cuidados de
uma Providência mais forte do que as suas cóleras preparará as futuras germinações.
Foi o que repetidas vezes
Jesus procurou dar a compreender aos seus. Se o grão de trigo caído em terra não
morre, dizia-lhes ele, fica só; mas, se morre, dá muitos frutos. (João 12,24.) Cumpre
dizê-lo, a esse pensamento eles eram refratários. O próprio Pedro, a despeito das
suas declarações proféticas, antes por causa mesmo dessas declarações, cujo sentido
profundo lhe escapava, Pedro exclamara um dia: Longe de ti isso, Mestre! E o mestre,
voltando-se, lhe dissera: Retira-te de mim, Satanás, tu me serves de escândalo.
(Mt 16,23.) Ele reencontrava no discípulo o Tentador dos seus primórdios, que o
excitava a subtrair-se indene e glorioso a uma obra essencialmente mortal. Então,
insistindo no sentido da sua profecia, o Salvador especificara: É necessário que
o Filho do Homem sofra muito, e seja morto, após o que ressuscitará ao terceiro
dia. (Lc 9,22.)
Efetivamente, cumprido
o rito, consumado o sacrifício e fornecida a prova, Cristo não tem razão para ficar
no túmulo. Convém que saia dele, provando, pelo seu domínio póstumo sobre a morte,
o seu domínio anterior, e em consequência o caráter generoso da sua paixão. Dou
minha vida para retomá-la, disse ele, e ninguém ma rouba; mas dou-a eu mesmo; tenho
o poder de dar e o poder de a retomar. (Jo 10,17.)
Tendo-a, pois, retomado
após o silêncio misterioso dos três dias, ele retoma ao mesmo tempo a sua obra.
A sua morte era um simples episódio. Longe de ser um fim, era o verdadeiro começo,
visto que, indispensáveis como são as utilidades que dela virão, não se podia verdadeiramente
começar senão depois desse aparente fim de tudo.
Eis que de novo Jesus
aparece e fala. Quarenta dias de sobrevivência correspondem aos quarenta dias do
deserto, enquanto ele preparava a sua missão. Então ele jejuava, privando-se de
um alimento necessário. Agora, come sem mais ter fome, liberto das misérias mortais,
porém querendo condescender e provar.
Os quarenta dias do deserto
foram a transição entre a vida oculta e a vida ativa; os quarenta dias de sobrevivência
serão a transição entre a vida individual e a vida de Cristo em seu "corpo"
social. O Cristo individual mostra-se assim desaparecendo, voltando ao espiritual
completo, e, se a sua vida terrena foi o último passado, se a sua morte foi o instante
solene dos nascimentos, a sua sobrevivência é o primeiro futuro. O caminho doravante
está aberto a uma obra que ele concebeu como Deus, aceitou em nome de todos como
homem, e iniciou como síntese viva dos dois princípios que agora se trata de fazer
agir.
Após a dupla lição de
coisas da cruz e do túmulo glorioso, os discípulos estão maduros para uma colaboração
consciente e efetiva. Jesus lhes fala como a quem de ora em diante pode ouvir. O
Espírito virá, que lhes confirmará tudo. Mas desde já ele, Jesus, lhes põe nos ouvidos
palavras cujo som não mais poderá extinguir-se. Diz-lhes: "Todo poder me foi
dado no céu e na terra. Ide, pois, e ensinai todas as nações, batizando-as em nome
do Padre, do Filho e do Espírito Santo, e ensinando-as a guardar tudo o que vos
mandei. E eis que eu estou convosco todos os dias até o fim do tempo". (Mt
28,18.)
A presença misteriosa
de que o Salvador aqui fala entende-se de várias maneiras. É a presença eucarística;
é a presença interior pela graça que o Espírito Santo traz. Mas é também a presença
social por procuração. Porquanto, tomando à parte Simão Pedro, Jesus lhe reitera
solenemente os seus poderes. Diz-lhe: "Apascenta minhas ovelhas, apascenta
meus cordeiros". (Jo 21,15.)
O serviço da palavra de
Deus pelos apóstolos e seus sucessores; a administração do batismo, o sacramento
da entrada, que coloca o cristão na trilha de todos os outros sacramentos; o exercício
da autoridade por um grupo que tem por chefe claramente designado Pedro e sua sequência
sucessora; (já que isso deve durar até o fim do tempo) tudo isso acha-se, pois,
determinado. E tudo isso é a Igreja.
Alguns têm dito que essas
palavras tão claras não pertencem à história, por nos virem de Cristo ressuscitado,
o que, sem dúvida, no pensamento deles, quer dizer: de um Cristo de sonho. Mas Cristo
ressuscitado é para nós coisa mui diversa de um sonho. Já não é mais, se se quiser,
um ente histórico no sentido pleno do termo, já que a sua vida, doravante transcendente,
escapa às leis do que se agita no tempo; mas é um ser historicamente agente, visto
que se manifesta por fenômenos reais, insertos na trama da história, e que nela
produzem efeitos. Aliás, as mesmas coisas ouvimos da boca de Cristo vivo temporalmente,
e nenhuma razão permite pô-las em dúvida.
A Igreja nasceu, pois,
realmente. Nascida era ela desde sempre no seu Cristo-Deus. Nascida era em Belém
no seu chefe homem e Deus. Nasceu de ora em diante em si mesma como sociedade organizada
de uma organização inicial, mas positiva. Estreia humildemente; é bem o pequenino
rebanho de que falou o divino Mestre. (Lc 12,32.) Mas a esse rebanhozinho ele prometeu
um reino. O reino dilatar-se-á pouco a pouco na terra, segundo a lei de desenvolvimento
progressivo que foi a do mundo antigo, mas com um elemento novo, perfeito em si,
posto que indefinidamente perfectível em nós.
E o reino assim regido,
ao mesmo tempo que preparará o futuro da raça, salvará, alma por alma, aqueles que
quiserem submeter-se às suas leis. Procriará eleitos para encher o céu. O Reino
dos céus terrestre: tal será o nome da Igreja "militante". O Reino dos
céus puro e simples: tal será o nome da Igreja "triunfante". Um dia, eles
se juntarão, quando Aquele que vai partir voltar, desta vez liame definitivo entre
as duas séries de fatos que dividem a vida do homem: fatos temporais, fatos eternos;
fatos materiais, fatos espirituais; fatos do passado e do presente, fatos do futuro.
É a segurança que, para
acabar, mensageiros celestes dão aos Doze, depois que a nuvem de luz lhes furtou
aos olhos o Senhor que sobre ao céu, sobre o horizonte de Jerusalém e do mundo.
Mas, antes, a série dos
tempos religiosos deve desenrolar-se ainda sobre este solo. Os apóstolos e a Igreja
têm de cumprir a sua missão do tempo: recrutar adeptos ao plano divino, regê-los,
e, para isso, organizar-se, progredir, defender-se, estabelecer a obra no coração
do tempo, e prossegui-la. É o que os veremos empregar-se com uma atividade e um
êxito que evidentemente parecerão exceder o homem, tão eficaz será o Espírito deixado
como sucedâneo divino por Aquele que acabava de pôr termo à sua presença visível.
O Espírito! O Espírito
do Cenáculo com suas línguas de fogo, com o seu vento violento, com os seus dons
e os seus presságios, dele se pode dizer que pela sua vinda, o seu coroamento à
obra de fundação da Igreja. Realiza-lhe a Confirmação.
A ascensão e a sediação
à destra do Padre rematam e levam ao perfeito a divina Pessoa dada à Igreja com
"cabeça"; libertam-na da sua mortalidade e das suas outras fraquezas voluntárias:
assim o corpo místico vem ao perfeito pelo dom integral do Espírito e pelas graças
sociais do Cenáculo.
Como essas graças são
o efeito dos méritos de Cristo, só são outorgadas na sua plenitude após o acabamento
da obra meritória e da sua consagração celeste. Era por isto que Jesus dizia: "Se
eu não for, o Paráclito não virá a vós; mas, se eu for, vo-lo enviarei". (Jo
16,7.)
Ele vem. E não se pode
negar que não haja nisso um milagre psicológico de primeira ordem. É o Espírito
que torna de repente viris e clarividentes aqueles homens tão pueris, dantes tão
inconscientes a respeito das realidades de que durante três anos foram circundados
e que lhes fizeram o efeito de um mistério turvo; a respeito d'Aquele com quem viveram
e a quem até o fim, de certo modo, não conheciam; (Jo 14,9.) a respeito da obra
e da sua significação verdadeira, da vida e da morte de Cristo que por tantos lados
foram para eles um escândalo, da sua própria ressurreição, que os deixou deslumbrados,
esmagados de espanto, mas do que lucidamente convencidos; a respeito, enfim, do
seu próprio papel, ainda tão mal julgado, tão mal aceito, e da parte deles objeto
de tanto temor.
Eles têm agora a intuição
de tudo. A breve irradiação de Cesareia de Filipe, não seguida de efeitos a ela
proporcionados, seguida de uma negação, tornou-se em Pedro, e solidariamente nos
outros, uma claridade sem trevas. Tantos ensinamentos, estímulos e preceitos docilmente
recebidos, porém mal assimilados e mal harmonizados, unem-se num feixe. Empolga-os
uma certeza que, deles, os pusilânimes de ontem, vai fazer uns heróis e uns conquistadores.
É uma transformação radical. A alma deles iluminada poderia dizer como Paulina em
Polieucto:
Vejo, sei, creio estou
livre de ilusões.
E essa fé ardente, prática
e comunicativa é a que vai transmitir-se; é a que já se manifesta na multidão ambiente,
onde um vasto lance de rede testemunha a sua força; é a fé da Igreja recém-nascida;
é a nossa. E é o Milagre da Igreja na sua consumação inicial.
Este termo inicia torna
sempre, porque a Igreja está sempre no seu começo, como tudo o que é do Espírito.
Mas enfim, tudo aqui é consumado em preparação se tudo começa como realização. Pela
descida do Espírito Santo sobre os Apóstolos, a Boa Nova evangélica pode, como o
fará São Paulo, definir-se plenamente "a virtude de Deus para a salvação dos
que crêem". (Rm 1,16.) Os homens de todos os tempos terão parte nela em razão
dos Doze assim investidos. A própria vida futura ficar-lhes-á a dever. Esses homens
vêm a seu tempo, de um futuro eterno. Sem dúvida eles mesmos têm pensamentos mais
humildes; obedecem; mas com toda certeza grande lhes é a esperança.
Eles esperam, como Abraão,
pela cidade de fundamentos sólidos de que Deus é o arquiteto e o construtor, (Hb
11,11.) e, se, nesta nova fase do trabalho, eles não verificam mais do que o patriarca
o efeito definitivo das promessas, sabemos que eles o viram e saudaram de longe.
(Hb, 13.)
CAPÍTULO 3 - OS PRIMEIROS DESENVOLVIMENTOS
DA IGREJA
Quando se aborda a delicada
questão do desenvolvimento religioso, tal como ele deve revelar-se e efetivamente
se revela na Igreja, fica-se em presença de três tendências intelectuais - para
não dizer três sistemas - dos quais dois representam extremos, deixando lugar, como
sempre à via média, por onde atenta e tranquilamente se comprar em caminhar a sabedoria.
A primeira concepção:
a Igreja, nos seus primórdios, era ou devia ser o que é hoje, salvo a amplitude.
Segunda concepção, situada
no outro extremo: nos seus primórdios a Igreja não era e não devia ser nada do que
é hoje; veio a sê-lo por força dos homens e das circunstâncias, por acidente, diria
um filósofo, semelhante à bola de neve que engrossa rolando, corre para a direita
e para a esquerda, e agrega a si os calhaus da estrada.
Terceira concepção, que
se vai reconhecer, pois não podíamos deixar de explorá-la antes de defini-la - e
sem ela tudo não teria passado de dispersão e acaso nos pensamentos que, pelo contrário,
nos pareceram ligar tão fortemente os fatos da história; - a Igreja, nos seus primórdios,
era um germe definido, e a este título, sob este aspecto, perfeitamente idêntica
ao que é hoje. Como se eu dissesse: o frango é o ovo; o carvalho é a glande; porquanto,
do ponto de vista da espécie, de um ou de outro só sai aquilo que deve sair, aquilo
que portanto nele se achava contido de antemão.
De que maneira ou de que
outra? Decidi-lo-emos dentro em pouco; mas isso aí se acha em todo caso, certa e
mui determinadamente; as circunstâncias exteriores não farão senão dar à ideia vital
ensejo de se revelar o que é; as direções particulares, assim tomadas, darão ao
produto último uma fisionomia em relação às circunstâncias atravessadas e as influências
que elas comportam, mas sempre sob o governo da ideia vital, que detém todo o essencial.
Por aí se pode ver que,
quanto à opção há pouco proposta, procedemos à maneira de Platão, que dizia com
boa graça: "Quando me pedem optar entre duas coisas, faço como as crianças,
tomo-as ambas". Tomamos, com efeito, as duas opiniões precipitadas, completando-as
e corrigindo-as uma pela outra.
Nos seus primórdios, a
Igreja era o que é hoje? Exatamente, mas no estado envolvido, como que um germe.
Nos seus primórdios, a Igreja não era nada, ou quase nada, do que ela é hoje? Realmente!
Absolutamente não o era no estado desenvolvido, no estado de fenômeno histórico
manifestado, evoluído; era-o, todavia, da outra maneira.
Esta decisão, ousarei
dizer, aclara o debate tanto quanto ele pode aclarar-se, o que não significa completamente.
Porquanto restaria definir o que é essa existência em germe com que queremos mimosear
a Igreja. Confessarei, mesmo, que este o fundo do debate; porque ninguém estaria
disposto a negar, em princípio, que, em relação à nossa, a Igreja de São Paulo seja
uma espécie de germe. Somente quando se quer precisar, diverge-se e, ao olhar bem
a coisa, a divergência parece porvir de uma diferente concepção filosófica daquilo
que se entende por germe.
Há quem imagine que um
germe é propriamente a coisa a obter, salvo a estatura. Era a ideia de Anaxágoras,
com suas partes similares, ou mínimas, pretenso ponto de partida das gerações. É
o que a imaginação popular concebe, quando de bom grado imagina, num ovo um franguinho
invisível, numa bolota num carvalho minúsculo com galhos dobrados, como um guarda-chuva
em repouso na sua capa.
Mas isso é uma ideia de
criança. Não é de admirar que, aplicada à Igreja por um subentendido inconsciente,
ela pareça colocar-nos em má postura para com a história. Com efeito, ela nos obriga
a achar na Igreja primitiva o que nela não se acha: um organismo diferenciado, munido
de tudo o que hoje chamamos essencial, senão mesmo do acessório a que estamos acostumados.
Como se devêssemos achar nessa igreja inicial, desempenhando o papel das partes
mínimas de Anaxágoras, um pequeno cardinalato ou uma pequena congregação do Índex.
Felizmente, esta concepção
a ninguém se impõe. Não é assim que Deus cria. Na natureza, ele nos mostra como
procede isso. Analisai um grão, mesmo que seja ao microscópio, e nele não achareis
uma arvorezinha. Não há nele nem galhos, nem folhas nem flores, nem, com maioria
de razão, frutos; se os houvesse, sendo esses próprios frutos embriões de árvores,
forçoso seria contivessem outros frutos, que por sua vez conteriam outros, e assim
sem fim.
Mas num germe não há nada
de tudo isso. O que há, mormente logo no início, é uma virtude preformativa, que
se apóia em condições materiais definidas, mas definidas sobretudo como poder, e
não como realização obtida. Um ímpeto orgânico não é um desdobramento.
E que é então, com precisão?
Grato ficaríamos a quem o dissesse. A esse pensador, a ciência poderia votar uma
coroa mural: ele teria sido o primeiro a escalar a fortaleza de um grande mistério.
Toda a natureza repousa nesse poder de desabrochamento, que se revela ocultando-se,
como a própria Divindade.
Resignemo-nos. Mas é bastante
dizer: a Igreja desenvolve-se através dos tempos como esses objetos de natureza
que conhecemos, aos quais não opomos objeções, dos quais somos - entendo: os viventes.
E isso significa duas
coisas que, dizia eu, corrigem uma pela outra as opiniões extremas. Isso significa
que a Igreja é caracterizada, desde o início, segundo todos os caracteres íntimos
que nela se revelarão mais tarde na forma histórica: assim o ovo ou o grão de uma
certa espécie contém em si as características completas dessa espécie. E, por outra
parte, isso significa que a Igreja, no início, não possui, nem precisa possuir,
as formas históricas com que a agraciará o futuro: assim o ovo não contém nem bico,
nem patas, nem penas.
Mister se fará, pois,
que no curso da sua longa vida, se introduza constantemente na igreja o novo. Mister
nunca se fará, porém, que nela se introduzam novidades. Esta distinção absolutamente
não é verbal. É capital em toda a medida do possível. A nossa Igreja sempre viu
um abismo entre essas duas coisas.
A novidade é o elemento
estranho que permanece estranho, que se justapõe e não se assimila, porque é incapaz
disto, ou porque a questão nem sequer se apresenta, de vez que o todo não passa
de um magma sem ideia vital. Se a Igreja crescesse assim, seria a bola de neve de
inda há pouco, a qual na partida quase nada absolutamente tem daquilo que terá mais
tarde.
O novo é o elemento estranho
que se assimila, porque é assimilável, porque era chamado ou aceito antecipadamente
por propriedades concordantes com as suas, e porque lá estava, pois, contido em
oco, se assim posso dizer, antes de fornecer o cheio. Assim os elementos cedidos
à planta pelo ar, pela água e pela terra a ela se incorporam, e entram sob a sua
lei de vida, deixando-a, pois, à sua essência.
A esta luz, abordaremos
o exame dos fatos.
Eis os Doze agrupados
em torno de Pedro, que, como a crítica cada vez mais reconhece, é mui verdadeiramente
o personagem principal (princeps) da primitiva Igreja.
Como consequência da sua
designação e como inicio da sua missão, Pedro foi o primeiro a ver Jesus ressuscitado,
o primeiro a crer e a comunicar a sua fé aos outros. É por proposta dele que Judas
é substituído, para que o número das testemunhas esteja completo, em acordo com
o simbolismo universalista observado quando falávamos do estabelecimento da Igreja.
(At 1,13.) Ele é que será o porta-voz de todos perante o Grande Conselho. (At 4,
8.) Relatando este último episódio, (At 5,29.) dizem os Atos: "Pedro e os apóstolos",
fórmula evidentemente intencional. Até o fim continuar-se-á a dizer: Pedro, o Rochedo,
nome simbólico, como se sabe, ao passo que os outros sobrenomes dados pelo próprio
Jesus não sobrevivem, e embora esse nome absolutamente não esteja em uso nos meios
hebraicos ou helênicos.
O grupo apostólico, com
o das mulheres galileias, de que Maria, mãe de Jesus, é o vínculo, reuni-se num
hyperôon, câmara alta que dá para um terraço, à moda oriental.
Em volta desse primeiro
círculo, um segundo se estabelece, composto dos convertidos de Jerusalém: cerca
de cento e vinte pessoas, no momento da morte de Jesus. Pela sua primeira pregação,
Pedro agrega três mil. (At 2,41.) E em volta deles um terceiro grupo vai logo constituir-se:
os Helenistas, cujo caráter particular muito contribuirá para o desenvolvimento
ulterior da Igreja, ao mesmo tempo que para o seu êxito exterior. Estes dois efeitos
condicionam-se um ao outro. Conquistando o que lhe é assimilável, o cristianismo
toma consciência de si, como o vivente se desperta a si mesmo reagindo sobre o que
seu meio lhe traz. A vida é um círculo.
O grupo de que eu falo
difere muito, pelo espírito, dos Judeus de Jerusalém. Os Helenistas são Judeus,
porém Judeus transplantados, que vivem ou viveram em terras de civilização greco-romana.
A sua língua é o grego, em vez do aramaico ou do hebraico. A sua cultura e costumes
são hauridos na gentilidade, em vez de terem permanecido locais. Eles são fiéis
ao judaísmo, porém o encaram mais largamente. Donde, entre os Judeus formalistas
de Jerusalém, a tendência para considerá-los como conformistas um pouco suspeitos,
às vezes mesmo como traidores. E, inversamente, como sempre, tendência da parte
dos Helenistas a olharem os Hebreus intransigentes como espíritos estreitos e casmurros.
Quando o Evangelho se
apresenta a uns e outros, aceito com um mesmo coração - pois aqui falamos dos convertidos,
- nem por isto é julgado com um mesmo espírito. Os Hebreus vêem nele sobretudo uma
reforma judia, e a ele se agregam como outros se agregam aos Essênios ou aos Fariseus.
Os Helenistas saboreiam-lhe melhor a novidade, e puxarão no sentido de São Paulo,
quando vier a grande crise.
Um incidente de vida diária
serve de ocasião à ampliação do quadro religioso constituído pelos Doze, e essa
ampliação produz-se no sentido universalista, porque assim o quer o ímpeto evangélico.
Havendo-se elevado no
grupo dos Helenistas uma queixa porque, dizem eles, suas viúvas são desprezadas
nas distribuições cotidianas - e sem dúvida eles viam nisso uma parcialidade que
lhes chocava o senso católico tanto e mais do que os seus interesses, - os Doze
lhes fizeram justiça sob forma a mais elevada e significativa. Estabelecem diáconos,
para presidirem às particularidades da vida comum, e escolhem estes indiferentemente
dos grupos. É marcar uma etapa na constituição da hierarquia. É, ao mesmo tempo,
afastar-se do princípio de uma religião nacional.
Na pessoa de Estevão -
e o caso de Estevão será em breve legião - o papel de diácono vai forrar-se do de
teólogo e apologista. Assim, insensivelmente, por meios de vida, opera-se uma diferenciação;
a árvore cresce.
Os Doze, muito explicitamente,
reservam-se o testemunho; Estevão e seus semelhantes encarregar-se-ão de sistematizar
e de concluir. Estes dois papéis subsistirão. Enquanto o Apóstolo ou o sucessor
de Apóstolo - bispo, papa, representante da tradição apostólica tomada como tal
- testemunha e diz: este é o ensino de Cristo, o teólogo acrescenta: eis aqui, a
meu juízo, o que dele se pode concluir, como se pode compreendê-lo, em que sistema
de idéias se pode fazê-lo entrar; e o apologista diz: eis como se pode defendê-lo.
É coisa inteiramente diversa. Dogma e teologia, dogma e apologia não se confundem.
Na época de que falamos,
o dogma é chamado atestação. "Atestar", ou "falar a palavra do Senhor",
é até então o papel dos Doze. Um pouco mais tarde, estabelecer-se-á entre os diáconos
e os apóstolos uma dignidade intermediária: os Anciãos, ou Presbíteros, que terão
voz deliberativa com os Doe e os ajudarão a reger o rebanho.
Nesse termo Presbítero,
ou Ancião, de onde virá o termo sacerdote, acha-se inclusa uma filosofia. O sacerdote,
na Igreja Católica, historicamente é o representante do passado; e é um ancião,
ainda quando seja jovem, sendo, como é, o representante dos apóstolos e do Cristo
histórico, cuja ação ele prossegue através do tempo. E, misticamente, é o representante
não já somente da antiguidade cristã unida ao seu Cristo, mas do céu, quer dizer,
da antiguidade absoluta, ou eternidade. Dessarte, ele é o ancião por excelência,
o mais velho de todos.
Como se vê, a ampliação
faz-se, mas a partir do centro, e sem nada tirar à ação do centro. É uma lei da
vida que, quanto mais a diferenciação orgânica se amplia, tanto mais as funções
centrais, em vez de cederem, assumem importância e mostram a sua necessidade. Pio
XI necessita de autoridade muito mais do que São Pedro.
Aquilo que não vive esfarela-se
ampliando-se; aquilo que vive concentra-se, porque então a diferenciação é obra
de um princípio que procura revelar-se mais completamente, e não dissolver-se. Se
a dissolução ameaçasse, logo um movimento de concentração enérgico, excessivo se
preciso fosse - o excesso é melhor do que muito pouco quando se trata de viver -
restabeleceria a unidade comprometida.
Em todas as épocas da
história este duplo caráter aparece na vida da Igreja: larga expansão em todos os
sentidos, e, de repente, horror quase medroso, ou cólera, ante toda novidade. Foi
este o último caso que observamos sobre Pio X, por ocasião da crise modernista.
Queriam ampliar a vida e o pensamento católicos num sentido de dissolução assinaladíssimo,
hoje evidente aos olhos de toda crítica sincera. A autoridade central reagiu. É
possível que a vaga em retorno tenha ido, em alguns, mas longe do que fora mister;
mas agora o equilíbrio está restabelecido, até nova crise.
No início em que estamos,
o perigo é antes no outro sentido, e um modernista no sentido católico do termo,
Paulo, é quem, sem se separar da autoridade dos Doze, pelo contrário, apoiando-se
nela de maneira mais explícita, mas tirando-lhe o sentido humano, para além daquilo
que ela até então compreendera da sua missão, imprime à nossa Igreja o surto mais
decisivo que ela tenha recebido e seguido não somente nos primeiros tempos, mas,
pode-se dizer, em todos os séculos.
Seja qual for a diligência
que um humano possa fazer no curso de sua existência longa e acidentada, ele nunca
fará uma semelhante à do dia do seu nascimento, quando, abandonando dolorosamente
o meio interior em que vivia, corta as suas amarras e confia-se a uma natureza que
ele ainda não sabe materna.
Muito tempo será ainda
preciso para que a criança cesse de se volver para sua mãe em atitudes de naufrago,
com gestos quase brutais, como se quisesse retornar às suas antigas condições de
vida e fugir deste mundo, que a espanta, enquanto não a apaixona.
Esses gestos reencontram-se
no nascimento da nossa Igreja. Paulo é o parteiro enérgico que clama o ar livre
para a criança. Pedro é o pai que não somente consente, mas que quer e tem, de forma
muito real, a iniciativa, visto ser ele quem fala com autoridade. Tiago de Jerusalém,
o "irmão do Senhor", será o tio virtuoso, que por certo é benevolente
para com a vida nova e para com os jovens doutores do progresso, mas cujo olhar
é entretanto para o passado, como também as complacências. Quando Paulo vem a Jerusalém
contar, com alegria, a difusão do Evangelho entre os Gentios, Tiago escuta e aplaude;
mas, virando-se para o seu caro grupo de Judeus, acrescenta: "Bem vês, irmão,
quantos milhares de judeus creram, e todos são zeladores da lei". (At 21,17-21.)
O centurião Cornélio foi
o primeiro Gentio a tornar-se cristão sem incorporação ao judaísmo. O relato dos
Atos que narra a sua conversão e batismo é uma das pátinas mais tocantes e mais
elevadas que se possam ler. (At 10.) Ora, é Pedro quem o admite, tanto é verdade
que na Igreja nada se faz sem a autoridade. Torna-se, porém, necessária uma visão
para decidi-lo. Ele consente, com um espanto que só a sua admirável caridade consegue
vencer: "Agora, diz ele, reconheço que Deus não faz acepção de pessoas; mas
que em toda nação lhe é agradável aquele que o teme e pratica a justiça". Era
uma descoberta! Por trás do centurião, via acaso Pedro a humanidade que corria para
Cristo? E porventura o "duc in allum", ao largo! Ao largo! Que Jesus um
dia lhe diria, estaria alerta no seu coração? Sim, mas a sua vista fraca só captava
desse futuro aquilo que dele era preciso para a ação imediata.
Paulo, este, verá imediatamente
largos horizontes; lançar-se-á a eles com uma paixão que fará dele o general do
Verbo, "dux verbi". (At 14,11.) A sua cultura, a um tempo judaica e um
tanto helênica, as suas aptidões filosóficas, a sua experiência, o caráter impressionante
da sua conversão, o fato de haver ele sido, no inicio, um perseguidor violento,
dão-lhe uma grande força. Sua alma de fogo e suas graças eminentes farão o resto.
Em face das conversões
pagãs, ele não dirá como que em tom de escusa o que Pedro disse à assembléia dos
irmãos, ao voltar de Cesárea onde batizou Cornélio: "Podia eu opor-me a Deus?".
Mas sim, num entusiasmo cuja expressão perde aos nossos olhos a sua tonalidade brilhante,
precisamente porque somos nós os beneficiários dela, exclamará: Eis que segundo
Cristo não há mais nem Judeu nem Gentio, nem Grego nem bárbaro, nem mulher nem homem,
nem escravo nem livre, porque não sois mais do que uma só pessoa em Cristo. (Gl
3,28; Cl 3,11.)
A gente não imagina quantas
noções tais palavras subvertiam nos homens daquele tempo. Na cabeça deles, era todo
mundo antigo que ruía. Isso se parece com o discurso daquele que viesse um dia dizer,
talvez: Não há mais nem Franceses nem Alemães, nem Ingleses nem Russos, nem Japoneses
nem Americanos, nem Italianos nem Tchecoslovacos; não sois mais do que uma só pessoa
em humanidade.
A assembléia, de Jerusalém,
onde sob a presidência de Pedro, por iniciativa de Paulo e com a alta autoridade
moral de Tiago, se reúne o primeiro dos nossos concílios, consagra esta situação.
Aí fica combinado que não se imporá aos cristãos o fardo da lei judaica, nem muito
menos a circuncisão, sinal de incorporação política. Fato duplamente decisivo. Ressalta
dele que o judaísmo é reconhecido forma transitória do movimento religioso autêntico,
forma doravante ultrapassada: êxodo moral que lembra o de Abraão deixando o seu
território caldeu. E, em segundo lugar, proclama-se que a religião definitiva, a
de Jesus, é transcendente às organizações temporais, alheia às questões de raça,
de nacionalidade, de sexo ou de condição, católica em suma.
A catolicidade de direito
datava de Cristo, homem universal; datava dos profetas messiânicos; datava do berço
da humanidade; mas a catolicidade oficialmente reconhecida data do concílio de Jerusalém.
A partir desse dia, é operado o corte com o passado. Nascida da sinagoga, e parecendo
fazer corpo com ela como a árvore com o rochedo cuja silhueta ela continua sobre
o céu, a Igreja manifesta a sua autonomia; a árvore estende os galhos para que as
aves do céu possam vir.
Vê-las-emos acorrerem
em multidão. Mas, para que elas achem a sua vida e o seu abrigo debaixo da sombra,
cumpre que os botões ainda fechados desabrochem em palmas verdes. Contemplemos um
pouco essa primavera da nossa Igreja. Tudo nela é modesto como na humilde e potente
alquimia do vergel; mas o ouro dos frutos está contido no chumbo resistente da terra;
vê-lo-emos revelar-se em riquezas novas enquanto o sol do Espírito brilhar no nosso
céu.
A decisão do concílio
de Jerusalém parecia clara; era o realmente, porém os espíritos são sempre mais
complicados do que as fórmulas. Expulsai o natural, e ele volta a galope. Expulsai
um preconceito pela porta, e ele se introduz pela janela. O episódio moral que motivara
a reunião e que parecia regulado completamente, reproduz-se pouco depois sob forma
nova, sofrivelmente insidiosa.
Admitir-se-ão os pagãos
à vida cristã sem se lhe imporem as observâncias judaicas: eis o que está convencionado.
Vai-se, porém, colocá-los no mesmo pé que os outros? Em Jerusalém, o povo está habituado
às categorias. Há os prosélitos da Porta que só transpõem o primeiro recinto do
Átrio; os prosélitos da Justiça, naturalizados e incorporados; e, nos dois extremos,
os Judeus autênticos e os Goim ou impuros estrangeiros. Não se poderiam fazer duas
categorias de cristãos, os verdadeiros, os puros, isto é, os Judeus ou judaizantes
circuncidados, e os outros, isto é, os Gentios convertidos mas não incorporados
ao judaísmo?
A comunidade de Jerusalém
não se presta muito a essa divisão, porque nela os Gentios são uma minoria inteiramente
insignificante, pouco em condições de reclamar o seu direito, e sem dúvida não se
capacitando da significação geral do seu caso. Mas a comunidade de Jerusalém enxameou
depressa; os seus primeiros pregadores fizeram maravilha, e especialmente em Antioquia
Paulo e Barnabé estabeleceram uma comunidade florescente, composta em grande parte
de pagãos convertidos. Lá, o problema apresenta-se com toda clareza, como um problema
social.
Ora, mui naturalmente
os partidários da distinção em duas categorias propuseram que o seu sistema tivesse
aplicação à refeição dos ágapes. O banquete fraternal comportará dois serviços:
os dos Judeus ou cristãos de primeira linha; e o dos Gentios, cristãos de segunda
zona.
Tendo vindo visitar a
comunidade de Antioquia, Pedro deve tomar partido e figurar numa das mesas. Opta
primeiro sabiamente, em conformidade com as suas próprias palavras no concílio.
Mas, ante as reclamações dos seus compatriotas, cede. Paulo é forçado a intervir
para obrigá-lo a pôr suas ações em harmonia com a sua doutrina. A ordem não deixa
por isso de triunfar. A direção do futuro está tomada. Não se deixará dividir-se
o corpo de Cristo. O símbolo da unidade, a Eucaristia, não se prestará a uma interpretação
particularista. A senda judaica é decididamente abandonada, e, enveredando positivamente
pela grande estrada humana, vai a Igreja poder organizar-se deveras, desenvolvendo
aos poucos o que nela está latente.
Três direções paralelas
impõem-se a esse desenvolvimento. A crença, o governo, o culto exigem uma expansão
progressiva conforme às exigências aumentadas da vida nova. O tempo provê a isso
com uma regularidade que trás constantemente ao espírito a mesma imagem: o ímpeto
natural dos seres.
As crenças do inicio eram
substancialmente o que são hoje. A nossa teoria do germe que contém na partida,
tudo o que dele sairá - sem o conter, mas contendo-o entretanto, a saber, em potência
de futuro, e não em ato explícito, - aplica-se a cada aspecto da vida católica tanto
quanto ao conjunto.
O Símbolo dos Apóstolos,
que não data dos apóstolos, mas que lhes exprime a crença tal como ressalta dos
primeiros documentos, faz-nos ver que é que se vive então. Não insisto nisto. Porém
muitas precisões sobre a natureza do Deus-Trino, sobre a pessoa e o papel de Cristo,
sobre o plano religioso do mundo, sobre a própria Igreja, ainda estão por precisar.
A autoridade, que decide
à medida que os casos se apresentam, como se vê nos Atos e nas Epístolas, como se
verá mais tarde nos concílios, tão laboriosamente preparados, a autoridade, digo,
instrui-se nas suas próprias decisões, como um grão inteligente se instruirá em
se olhar crescer, só imperfeitamente sabendo o que ele traz em si mesmo. Por isso,
mesmo ao olhar da autoridade, que é a cabeça mas que não é o corpo todo, há um desenvolvimento,
uma instrução dogmática da Igreja.
Ademais, a superedificação,
como se exprime São Paulo, (epoikodomé) isto é, a teologia, de que já falei, elabora
suas teses, e algumas iluminam largamente os horizontes da fé. O próprio São Paulo
contribui para isso com um poder construtivo e uma penetração de que não há muitos
exemplos.
Não posso entrar na minúcia
das doutrinas, a qual nos arrastaria a longe demais. A história dos dogmas é um
assunto denso, que aliás não é o nosso, visto estar entendido que nós salientamos
o milagre, não narramos.
O que nos interessa é
notar até que ponto, em semelhante matéria, eram fáceis os desvios. As heresias,
isto é, as escolhas arbitrárias nas doutrinas correntes, ao invés da aceitação exclusiva
daquilo que pode quadrar com o depósito revelado, seja por modo de identidade, seja
como desenvolvimento natural ou legítima interpretação: tal é o perigo. Desde o
início mostra-se ele temível. Muitos lhe sucumbem. Paulo repreende-os com sua virulência
maternal, Pedro com gravidade, e João, acostumado às grandes imagens, fala das profundezas
de Satanás, prestes a tragar os que não sabem manter-se nas alturas de Jesus Cristo.
Nem por isso deixam eles
de dizer, uns e outros: "Convém que haja heresias". (1Cor 11,19.) E, sem
dúvida, na boca deles isso é a expressão de uma fatalidade; mas essa fatalidade
é também uma providência. Reagindo contra a introdução de um corpo estranho, o organismo
religioso toma consciência de si mesmo; reconhece os seus verdadeiros elementos,
pessoas e coisas, e assim se afirma. Ademais, nunca sendo o erro mais do que uma
verdade desviada rejeitando o agente que o utiliza, provando assim a um só tempo
a universalidade de uma doutrina que não exclui senão o mal, e a sua unidade sob
a forma de uma ideia vital.
Resta o perigo de intoxicação
pela admissão irrefletida de germes mórbidos. Esse perigo é tanto maior quanto é
rudimentar a organização da Igreja, e quanto uma grande liberdade individual se
desenvolve nela. Os oradores, os inventores de noções têm nela uma influência fácil,
e os abusos da inspiração pessoal correm o risco de pôr a conta do Espírito Santo
as piores divagações.
Para remediar essa situação,
mister se faz necessariamente reforçar a autoridade central. Por isso, são os mesmos
os documentos que denunciam heresias e que nos mostram em flagrante os primeiros
desenvolvimentos da hierarquia católica.
A hierarquia inicial,
já lhe enumeramos os elementos; encarnam-na os Doze com Pedro à frente; os diáconos
prolongam-na; entre os dois, os Anciãos, ou Presbíteros, partilham-lhe as atribuições
sob controle.
É para notar que essa
organização, todavia tão rudimentar, nem sempre tem todos os seus efeitos. Pedro
está longe de representar o papel disso a que chamamos o Papa; confunde-se as mais
das vezes com os Doze, e nós salientamos esta expressão: Pedro e os Apóstolos, que
frisa a um tempo o primado e a pouca diferenciação que ele adquiriu.
Mais tarde, o bispo de
Roma não será também imediatamente o Primaz universal de hoje. Quase que é só no
século III ou no IV que o primado papal é nitidamente diferenciado, e ainda aí se
está muito longe da manifesta supremacia atual. "Quando o homem está numa idade
muito tenra, diz graciosamente o P. Clérissae, a voz é indistinta; porém, quanto
mais o organismo se desenvolve e se robustece, tanto mais a voz se torna expressiva
e assume o tom pessoal. É essa toda a razão e toda a história do exercício, progressivo
mas, desde o início, formal e contínuo, da autoridade papal na Igreja".
Da mesma maneira, no grupo
primitivo os Doze não têm a situação disso a que hoje chamamos bispos. São ao mesmo
tempo mais e menos do que bispos. Mais, porque o contato direto com o Senhor, cuja
virtude eles conservam, lhes dá autoridade aos olhos de todos, e portanto estende
o poder de cada um deles a todas as comunidades, em vez de ficar localizado, como
hoje, numa Igreja particular. Menos, porque, sendo intensa a vida comum e pouco
numerosos os problemas práticos, não se sente a necessidade de uma administração
regular. A autoridade é discreta e as iniciativas muito grandes.
Num organismo social,
quando a ideia vital em toda parte é ativa, realizando espontaneamente as finalidades
que são a razão de ser dos órgãos diretivos, esses já não têm motivo para impor
a sua especialidade. A autoridade perde por outro tanto a sua razão de ser, e isso
vige na medida daquilo que o bem social exige ou ainda não exige. Numa aldeia em
que toda a gente varre a frente da casa, não há necessidade de limpeza pública;
mas esta é necessária numa grande cidade, porque os serviços de uma cidade excedem
a competência e o poder dos particulares, ainda quando estes forem atentos como
os outros ao bem comum. Assim, na Igreja, o desenvolvimento da autoridade segue
o desenvolvimento do grupo e das crescentes necessidades do grupo.
Os bispos por excelência,
os Doze, foram instruídos por Cristo; mas, uma vez ampliado o rebanho, mister se
lhes torna um prolongamento de presença e de ação; vinda a morte, mister se lhes
torna uma sucessão. O episcopado corresponde a essa necessidade. Episcopoi, isto
é vigias a respeito da doutrina e da vida católica, os bispos, cuja instituição
remonta à primeiríssima geração, são pois as testemunhas da dupla expansão da Igreja
segundo o espaço e segundo o tempo.
Muito tempo será necessário
para que as sés episcopais sejam estabelecidas na sua forma atual. Em certos lugares,
o episcopado é exercido por vário, como por uma espécie de capítulo. Em muitos documentos,
bispos, sacerdotes, apóstolos são termos que parecem confundidos. E sem dúvida é
preciso discernir o que corre por conta da linguagem figurada, e também do que corre
por conta dos termos coletivos, como quando dizemos os padres, para designar todo
o clero de uma diocese, com o bispo à frente. Mas parece, mesmo, que flutuação nas
expressões corresponde a uma certa flutuação das realidades. Digo isto sob o ponto
de vista administrativo.
Ademais, vestígios de
episcopado unitário fazem-se reconhecer em toda parte, ainda quando fosse só sob
a forma de uma presidência mais ou menos importante, esboço do claro primado espiritual
que será mais tarde o nosso episcopado.
Naturalmente, os primeiros
de todos os bispos são estabelecidos diretamente pelos Apóstolos. Na segunda fase,
são estabelecidos pelos discípulos imediatos dos Apóstolos, como Tito e Timóteo.
É sempre a lembrança do Senhor que reina; sente-se o contato dela por meio desses
primeiríssimos elos da cadeia das graças.
Na geração seguinte, enfraquecendo-se
as recordações pessoais, a coletividade entra em jogo. As nomeações são feitas pelos
bispos da província que se acham mais próximos, geralmente três, "com o sufrágio
do povo", diz São Clemente, quer dizer, sem dúvida, um voto consultivo. Todavia,
quando o povo inspira pouca confiança e se trata justamente de reconduzi-lo por
uma boa escolha, prescinde-se dele: a prova de que a constituição da Igreja nos
seus primórdios não é democrática, como por vezes se tem pretendido.
Desde o primeiro concílio
geral, (Niceia, 325) a eleição do bispo deve ser confirmada pelo metropolita; isto
é, por uma autoridade central tornada nitidamente preponderante em seu domínio.
Muito mais tarde, enfim, estando a centralização concluída e todos os órgãos da
Igreja diferenciados, o poder de confirmação passará à Santa Sé, e o povo será excluído
da eleição, por causa do caráter político que o seu voto assume, quando o sopro
religioso dos primeiros tempos está acalmado.
Tal é o ponto de partida
da hierarquia, tal o da doutrina. Quanto ao culto, vemo-lo começar e orientar-se
segundo as mesmas leis. Nos primeiros dias, copia-se a sinagoga. Jesus praticara-lhe
os ritos. Instituiu outros; mas do passado ao futuro, a transição deve ser natural,
isto é, insensível.
As pessoas reúnem-se,
pois, à maneira judia, particularmente no dia de sábado. Reza-se em comum; lê-se
a Sagrada Escritura; participa-se dos ágapes, refeição frugal que tem lugar à noite,
como na véspera da morte do Senhor, e que termina também pela eucaristia. Enfim,
eles vivem juntos uma vida mística capaz de nos parecer hoje muito extraordinária,
mas que o fervor do estado nascente faz então achar mui natural. Isso a que chamamos
os carismas, ou dons do Espírito Santo, como o dom de profecia, de cura, o discurso
de sabedoria ou de interpretação, etc., são manifestações correntes.
Insinuam-se nisso muitos
abusos, como se pode ver pelas admoestações dos Apóstolos e pelas precauções com
que eles cercam essas escapulas do sentimento religioso interior. Porém as almas
haurem aí grandes recursos: alimentam a sua fé e inflamam o seu entusiasmo, efeitos
bem necessários para resistir à invasão do mundo pagão e à ameaça permanente do
martírio.
Quando a Igreja cresce,
essas maneiras de viver, essencialmente intimas, dissipam-se pouco a pouco. No século
II, elas ainda são correntes, como o testemunha Irineu o filósofo. No século III,
rareiam; no IV, já não passam de uma reminiscência; declara-o Eusébio. A regularidade
social sucede às espontaneidades transbordantes, e, se o Espírito não se revela
menos, fá-lo de maneira menos exterior. Os dons cedem um pouco às virtudes, e os
carismas à caridade.
Mesmo quanto à Eucaristia,
os abusos e as dificuldades práticas levarão a reduzir, e depois a suprimir, os
ágapes preparatórios. Se conservará somente o essencial: a consagração do pão e
do vinho e o seu uso sacramental, até que mais tarde as mesmas considerações induzam
a suprimir a participação no cálice.
As reuniões fazem-se primeiro
em casas particulares, especialmente em câmaras altas, grandes peças do andar superior
de que já falei. Só mais tarde haverá igrejas, e este termo, aliás, só a partir
do século III será empregado para designar edifícios do culto.
No início, havia interesse
religioso em que o culto não tivesse local oficial, a fim de bem lhe assinalar a
interioridade, por oposição ao culto judeu que não podia passar sem o Templo. Nossos
templos, os nossos, são símbolos e servos, dissemos; nós não somos escravos deles.
O pequeno rebanho constituído
por cada grupo de fiéis mantém-se, pois, unido em torno do báculo apostólico. Eles
se reúnem à noite, em lembrança da Ceia do Cenáculo, mas sem dúvida também em razão
das ocupações do dia. Ademais, a noite é favorável aos surtos místicos, e as nossas
primeiras comunidades são costumeiras neles.
A sua reunião prolonga-se,
não raro, pela noite. A do sábado, ou "sabbat", é seguida de uma liturgia
que tem lugar pela manhã. É assim que se estabelece a passagem do sábado para o
domingo, que muito cedo se torna o dia do Senhor.
Do mesmo modo, a Páscoa
judia transforma-se em comemoração da Paixão e da Ressurreição de Jesus, com o simples
inconveniente de acarretar discussões, por causa da divergência das datas.
Finalmente, o centro de
atração religiosa dos cristãos, como dos Judeus, é primeiramente Jerusalém. Mas
já que diferença! Para os Judeus, Jerusalém era o Templo; para os cristãos, é sobretudo
o Calvário e a Câmara alta. Os Judeus sentiam-se ligados ao Sinédrio; os cristãos
à comunidade dos Apóstolos, onde Pedro exerce o primado, onde as inspirações místicas
parecem vir sobretudo de Tiago, o Irmão do Senhor.
Esse centro cedo se deslocará.
A mãe não retém sempre o filho. Tendo conquistado a sua autonomia, a Igreja assinalará
essa autonomia por um estabelecimento que deixará a Jerusalém o simples papel de
antepassado. Roma propõe-se para recolher a sucessão do Oriente, como o zênite o
sol liberto das brumas matinais.
E, para provar que aqui
é realmente uma Providência que vela, a ruína de Jerusalém e a dispersão da sua
comunidade ocorrem justamente no momento em que Roma tem tudo o que é de mister
para lhe recorrer a herança, tudo, inclusive uma auréola de mártir em torno de uma
tiara sangrenta. É em 66 que principia a crise de Jerusalém; é em 64 que a cabeça,
virada para baixo, do apóstolo Pedro deixa cair a tríplice coroa que deve brilhar
na fronte dos seus sucessores.
Tal é, largamente indicada,
a curva que toma a sua partida a evolução secular da Igreja. A continuação não fará
senão revelar o melhor a direção imposta por um Pensamento senhor dos acontecimentos
e dos homens, mas que dispõe deles suavemente, como diz a Escritura, posto que se
estenda fortemente de uma extremidade à outra. (Sabedoria 8,1.)
Vida da Igreja, precisamente
por ser uma vida, não procede de fora, mas de dentro. O Espírito de a dirige não
lhe é exterior; vive nela, e é o mesmo que é imanente à história universal e à natureza
total. Nada de admirar que tudo isso se encontre em sínteses harmoniosas e progressivas.
O vivente "Igreja"
cresce sozinho. Cresce lentamente, com a colaboração de todo o seu meio, como o
dizíamos do germe, ao qual o próprio Evangelho o compara. (Mc 4,31.)
Não se lhe pode fazer
disso uma objeção, como se a Igreja fosse uma obra de acaso. Este ponto de vista
racionalista é tão estreito quanto o ponto de vista materialista, que só quer ver
no nascimento de um animal um mero encontro de átomos, sob pretexto de que isso
se faz sozinho, sem que ninguém vá dispor os membros no seio da mãe.
O próprio fato de realizar-se
isso sozinho, deve-se concluir que há aí um princípio interno. Assim também, a fabricação
da Igreja por si mesma com a colaboração do meio, é a prova de que a Igreja tem
por princípio interno o Espírito de seu Cristo permanecido ativo nela. E é este
o milagre.
O princípio vital chamado
alma só pode revelar-se por tal organismo possuidor de tais caracteres: é por isso
que ele se dá esses caracteres. Assim também, o Espírito divino comunicado aos homens
por Jesus só pode manifestar-se na e pela Igreja tal como ela é, e ele o prova dando-a
a si próprio, fabricando-a para si peça por peça, com movimento contínuo, sem nenhum
plano definido antecipadamente em qualquer dos humanos que dela participam, e, no
entanto, de tal sorte que no fim o resultado se mostre adequado à intenção inicial,
o corpo adequado à alma, o meio ao fim, a rede universal à pesca universal que o
Salvador propõe.
Para exprimir o caráter
vivo, auto-evolutivo, e no entanto transcendente da nossa Igreja, reconhecendo que
ela pode formar-se sozinha, após assente que ela traz a Deus em si, poder-se-ia
utilizar com o esplendor a palavra familiar de La Fontaine:
Petit Poisson deviendra
grand, Pourvu que Dieu lui prête vie... (O peixinho virá a ser grande Desde que
Deus lhe empreste a vida)
CAPÍTULO 4 - AS PRIMEIRAS CONQUISTAS
As primeiras conquistas
da Igreja coincidem com o seu nascimento. Todo nascimento é uma conquista da idéia
vital sobre um meio sempre resistente por um lado, passivo por outro, socorredor
também, mas com a condição de que esse socorro seja socorrido, de que o germe ativo
ajude a natureza a ajudá-lo, visto que toda vida é uma permuta e gira em círculo.
Mais tarde, como o nascimento
terá sido um crescimento começado, o crescimento não passará de um nascimento continuado;
as condições dele serão as mesmas.
Todavia, há diferenças
acidentais que são interessantes de considerar. O estado nascente tem graças particulares
tanto em história religiosa como em química.
A primeira graça é uma
atividade devoradora que se parece com a febre, e que é saúde ao máximo, de vez
que a nova vida corre para a existência plena como o nada correria para o ser, se
soubesse a sua miséria infinita e a divindade daquilo que é.
A criança cresce num mês
mais do que crescerá depois em dez anos. A sua vida está toda tendida para aquisições
sem as quais ela mesma nunca existiria. É bem o nada que corre para o ser. Assim
a Igreja tende para a sua própria constituição por conquistas iniciais que em verdade
são uma criação, tão relativos são esses termos nascimento, começo ou crescimento,
de que somos obrigados a servir-nos.
A Igreja, divina, começou
em Deus desde a eternidade. Humana, começou desde sempre também, mas desta vez o
sempre do tempo, nisto que suas preparações remontam ao início da história do mundo.
Por ocasião do êxodo de
Abraão, a Igreja começou de novo pela separação do seu germe hebraico.
Em Belém, começou na Pessoa
por assim dizer única, que é corpo humano-divino.
A Paixão levou ao máximo
a significação e a eficácia do fato, e nela a Igreja se renovou como o meio-dia
renova o dia. Por isto dizemos, na linguagem mística, que Cristo esposou a humanidade
na cruz, dando assim nascimento à Igreja.
Em Cesárea de Filipe,
no momento da entrega dos poderes, mesmo antes, no dia da vocação dos Doze, e mais
tarde à beira do Lago, após a Ressurreição, no momento da Missão dos Apóstolos,
a Igreja começou como realidade social inserida na história.
No Cenáculo, ela foi confirmada
nesse inicio pela descida do Espírito Santo e pelas graças de difusão universal
que a acompanham.
No concílio de Jerusalém,
ela começou em razão de se haver distinguido nitidamente do judaísmo, o que pudemos
comparar à ruptura do cordão vital.
Em certo sentido, pode-se
dizer que ela começa sempre, visto como é nova toda vida que acaba de sofrer uma
mudança, e visto como, humanamente, a Igreja muda sem cessar, sempre obrigada e
intimada a retomar seus destinos.
No ponto em que estamos,
falando das primeiras conquistas, devemos dizer: a Igreja começa, nisto que assimila
elementos que contribuirão para estabelecer seus quadros completos, para formar
seus órgãos. A este respeito, o nosso estudo atual coincide com o precedente. Não
pudemos falar de desenvolvimento sem subentender o crescimento, e, falando de crescimento,
veremos aí um desenvolvimento. Todavia, isto é outro estudo.
A primeira propaganda
em favor da Igreja foi feita na Galiléia, pelo próprio Salvador. Poder-se-ia dizer
que ela redunda num fracasso, se fracasso foi haver colhido os Doze Apóstolos. Quando,
no fim do ano, o lavrador colhe apenas com que semear o seu campo para o ano seguinte,
está triste; mas não perdeu seu tempo. O Salvador terá assim enceleirado a sua semente,
embora, mesmo mais tarde, depois do esforço dos obreiros evangélicos, o "Ai
de ti, Corozaim, ai de ti, Betsaida" e a sentença "Ninguém é profeta em
sua terra" devam conservar seus efeitos. Haverá cristãos da Samaria, cristãos
da Judéia; não haverá comunidade galiléia, salvo os doze.
E é sempre o mesmo pensamento.
Jesus não procurou ser bem sucedido por si mesmo. A sua ação pessoal não parece
ter para ele interesse especial, a não ser para preparar o futuro. O que os outros
fizerem, será ele ainda quem o fará; a sua ação histórica é mero germe.
Em Jerusalém, a situação
é inteiramente outra. Após a hostilidade que os eventos da Paixão tragicamente revelam,
produz-se uma reviravolta popular que os relatos da Ressurreição explicam sem dificuldade.
O fato anunciado tivera lugar. O grande argumento que será o fundo da pregação apostólica
sustenta-a desde o inicio. Tornado a subir ao céu pelo seu poder, Jesus prova que
de lá descera, e que portanto é ele quem tem as palavras de vida eterna. (Jô 6,69.)
Não que as oposições não
se façam logo sentir; teremos de narrá-las; mas uma certa reserva das autoridades
poupa entretanto o jovem rebento evangélico, ainda fraco demais para a tempestade.
Gamaliel dizia ao Sinédrio: "Se essa obra vem dos homens, perecerá por si mesma;
mas, se vem de Deus, não a podereis destruir". (At 5,39.) Não se podia raciocinar
melhor, e o cristianismo aceitava-lhe o augúrio.
A difusão do Evangelho
tem lugar primeiro "in loco", como as semeaduras que se produzem pela
queda do grão no solo. É um dos processos da natureza. Os insetos acrescentam a
isso o seu papel de carregadores, e o vento, por seu turno, dissemina. O vento,
aqui, seria a perseguição, e as colaborações viajoras seriam as excursões apostólicas.
"In loco", os
meios de conquista ampla não faltavam. Jerusalém prestava-se muito a isso. Cidade
de pouca importância no mundo, de modo algum comparável a Éfeso, a Antioquia, e
a fortiori a Roma, era admirável como foco de propaganda judeu-cristã. Para poupar
a transição e passar harmoniosamente da Judéia ao universo, como do antigo ao novo
Testamento, não havia nada melhor do que essa cidade a um tempo cosmopolita e judia.
Estamos lembrados de que
a inscrição da cruz, documento administrativo, era redigida em três línguas, e que
isso significava, como hoje na Bélgica ou na Suíça, a divisão da população em vários
grupos étnicos. A versão hebraica dirigia-se à gente da terra que falava o hebraico
ou o aramaico. O latim visava a guarnição romana, e a colônia assaz numerosa que
não podia deixar de cercá-la. O grego convinha aos que chamamos de Helenistas, isto
é, os judeus de origem que habitavam as colônias gregas do Oriente: Síria, Egito,
Acaia, Mesopotâmia, Capadócia, Ásia, Chipre, etc., onde quer que a dispersão lançara
os filhos de Israel.
Jerusalém era, com isso,
uma cidade universitária e sacerdotal, toda de escolas e sinagogas, tendo por potentados
doutores e sacerdotes, por população principal devotos e peregrinos. A população
fixa era de cerca de setenta mil almas; mas, por ocasião das grandes festas, mais
de um milhão de peregrinos acampavam na cidade ou nos arredores, e depois, tornando
a partir, difundiam ao longe, por toda parte, as idéias da cidade doutoral e o perfume
da cidade santa.
Essas condições eram excelentes.
O Evangelho aproveitá-las-á largamente. Desde a sua primeira pregação, Pedro conquista
três mil almas. Após a cura do paralítico na porta Bela, os Atos computam cinco
mil. O Salvador tivera razão de dizer: "Aquele que crê em mim fará também as
obras que eu faço, e as fará maiores". (Jô 14,12.) Os lances de rede do nosso
pescador de homens são verdadeiramente milagrosos.
É verdade que, em geral,
é essa uma gente sem importância social, daqueles de quem os Sinedritas diziam:
"Quanto a este povo, que não conhece a lei, não passam de uns malditos".
Mas esses amaldiçoados pelo formalismo estagnado, pelo orgulho e pela presunção
sabichona, é que serão os primeiros benditos do Evangelho eterno.
Eu já disse que não há
nisso nenhum exclusivismo. Vê-lo-emos amplamente. Mas estréia-se, e, como o dirá
São Paulo com um orgulho às avessas que reserva ciosamente tudo ao céu, "Deus
escolheu as coisas loucas do mundo para confundir os sábios. Deus escolheu as coisas
fracas do mundo para confundir os fortes. E Deus escolheu as coisas vis do mundo,
aquelas que se desprezam, aquelas que não são nada, para reduzir a nada aquelas
que são, a fim de que nenhuma carne se glorifique diante de Deus". (1Cor 1,27.)
Desde esse momento, e
em razão do que eu disse do caráter cosmopolita de Jerusalém, em razão da perseguição
de Estevão, que dispersa e que semeia ao longe os fiéis da Cidade Santa, em razão
também do zelo ardente que se manifesta por toda parte, nessa primavera espiritual
da Igreja todas as regiões próximas, as províncias da Arábia, da Síria, da Cilícia,
da Galácia, da Capadócia, da Bitínia e do Ponto, da Ilíria e da Dalmácia, têm em
breve suas comunidades florescentes. Antioquia, em particular, torna-se como que
uma nova metrópole, como que uma Roma provisória.
Não está longe a Roma
verdadeira. Quanto o cristianismo houver plantado nela a sua tenda, o seu proveito
novo e decisivo, será achar-se por esse fato no coração do mundo; ele terá apenas
que seguir as pulsações deste, terá, como ele, de lançar por todos os canais geográficos
e administrativos secularmente preparados o seu sangue e a sua alma. O Império está
tão fortemente centralizado, estende-se a tão longe, que uma religião romana é facilmente
universal. Seja-o! dir-se-á, e a história, sem se perturbar, completando esse vago
esquema, salientando todas as circunstâncias de fatos, de pessoas, de meios, explique-o,
sem ir julgar-se obrigada a apelar para o "milagre".
Com efeito! Tomadas de
um certo prisma, as nossas próprias observações precedentes e as que lhes vamos
aditar podem servir de argumento em favor do caráter natural, naturalíssimo em aparência,
da difusão evangélica.
Onde quer que filhos de
Israel vivessem longe da sua terra e longe do Templo, constituíam uma sinagoga.
Reuniam-se nela para o sábado; liam nela a Bíblia, que um dos assistentes comentava.
Se algum estrangeiro notável lá se achava, convidavam-no a dizer o seu pensamento
a propósito do texto, diríamos hoje a fazer uma homilia ou a pregar. Orava-se em
comum, e em seguida as pessoas ocupavam-se dos negócios da comunidade local, dos
negócios espirituais primeiros, e depois dos outros.
Os apóstolos cristãos
aproveitam-se mui simplesmente dessa organização. Sabem que a salvação vem dos Judeus,
como disse o Salvador, mas que sai deles. Chegando a uma terra nova, atacam-na pela
sinagoga. Dirigem-se à cerimônia do sábado; falam; começam por Moisés e terminam
por Jesus, servindo-se, como degraus, das profecias cada vez mais explícitas. O
plano religioso do mundo faz o plano da sua pregação.
Achando a sua obra preparada
pelo conhecimento do verdadeiro Deus, pelos símbolos da lei judaica e pelas esperanças
messiânicas, eles se apóiam nisso. Quando tornam a partir, infalivelmente uma pequena
comunidade é estabelecida, separada da judiaria local, tendo à sua frente, sob o
governo longínquo deles, os presbíteros que eles lhe colocaram à frente.
Os Helenistas assim convertidos
dirigir-se-ão doravante não já somente aos seus iguais, mas aos pagãos, e o método
do Mestre terá sido obedecido: primeiro as ovelhas da casa de Israel, depois as
ovelhas que não são deste redil, mas que importa que sejam reconduzidas, a fim de
que haja um só rebanho e um só pastor (MT 10,6; Jo 10,16.)
Muitíssimas vezes, consideráveis
são os grupos assim formados; por vezes também são exíguos: que importa!. "Onde
quer que haja trÊs, aí há uma Igreja", Dirá Tertuliano; ubi três, ibi Ecclesia.
A grande idéia da unidade em Cristo, da fraternidade que não teme as distâncias
porque se coloca fora do espaço e do tempo, embora prontinha a agir no espaço e
no tempo, essa idéia solda uma cadeia que nada mais quebra. Os apóstolos entretém
nela o fluido por contatos tão freqüentes quanto possível. Quando preciso, suprem-nos
as suas cartas; elas são atos apostólicos e atos de governo.
Deste último ponto de
vista, Jerusalém conserva a sua preeminência. A conquista não se torna anarquia.
O mais ardente dos missionários, Paulo, volta lá como que para se retemperar na
fonte. Diz que quer estar seguro de não haver pregado no ar, in vanum. E não é para
os Doze coletivamente que ele se dirige, é para Pedro. (Gl 1,18.) Especifica que
só viu o próprio Tiago ocasionalmente; não viu nenhum outro; mas passou quinze dias
com Pedro, porque tem o sentimento de que lá é o centro da tradição, e de que já
ele escreveria a fórmula lapidar: Ubi Petrus, ibi Ecclesia; onde está Pedro, aí
está a Igreja.
Assim iniciada, a conquista
cristã não tem mais razão de parar até a conversão do mundo, suposto que esse mundo
de livres humanos consinta nisso. Não sucede com o fermento evangélico como sucede
com um desses poderes limitados, qual a alma humana, que organizam sua matéria própria
e deixam a outros princípios o cuidado de organizar alhures. A alma cristã é o Espírito
de Cristo, Espírito universal, alma de toda alma, destinada a renovar, a criar de
novo toda criatura pensante que o quer realmente. "Envia o teu Espírito, dissera
o profeta, e eles serão criados, e renovarás a face da terra". (Sl 103,30.)
Os primeiros apologistas
tiveram a percepção desse esforço criador desde que, decorridos dois ou três séculos,
puderam olhar de longe e do alto a corrente de vida que se derramara sobre o mundo.
E não era uma imaginação. O crítico dos tempos modernos não pode senão entrar-lhes
no sentimento. "A impressão que tiveram os Padres do século IV, um Arnóbio,
um Eusébio, um Agostinho, de que a fé se propagara de geração em geração com incompreensível
rapidez, essa impressão, escreve Harnack, ainda subsiste com justa razão. Setenta
anos após a formação em Antioquia da primeira comunidade de pagãos convertidos,
Plínio descreve com as expressões mais fortes a expansão do cristianismo na longínqua
província de Bitínia, e já vê ameaçada, nessa região, a existência dos outros cultos.
Setenta anos mais tarde, a questão pascoal mostra-nos uma confederação das Igrejas
cristãs que se estende desde Lião até Edessa, e que tem seu centro em Roma.
Setenta anos mais, e o
imperador Diocleciano declara preferir suportar um rival em Roma a suportar um bispo
cristão. Apenas setenta anos se passam, e a cruz é fixada nos estandartes romanos"
Estas palavras do grande
crítico não significam que, no seu pensamento, a propagação da Igreja seja propriamente
milagrosa. O que realmente pretende é que, no final das contas, as coisas se passaram
como deveriam passar-se. Mas há aí um equivoco que talvez venhamos a dissipar dentro
em pouco. Quando se fala em difusão milagrosa do Evangelho, nem sempre se sabe bem
exatamente o que se diz, e, quando ela é contestada em nome da natureza das coisas,
nem sempre fica sabendo isso melhor.
Por enquanto, consigno
o fato. Desde o fim do primeiro século, o cristianismo está difundido por toda parte
no Oriente. Pelo fim do reinado de Marco Aurélio, aos cento e cinqüenta anos de
idade aproximadamente, ele está difundido em todo o Império: Gália, Espanha, Germânia,
África, Egito, Eufrates, e além. "Somos apenas de ontem, exclama Tertuliano,
e já enchemos todo o vosso Império: as cidades, as ilhas, as praças fortes, os municípios,
as assembléias, os próprios acampamentos, as decúrias, o palácio, o senado, o fórum.
Só vos deixamos os templos". Este último dito não é sem ironia!
Pelo ano 170, um apologista
pode afirmar que os cristãos são mais numerosos do que os Judeus. Cristo saiu do
seu presépio, e a sua Igreja sobrepuja a sinagoga. Enxertada numa minúscula história,
a sua obra desde esse momento fez ligação com a história universal.
O caráter dessa conquista,
do ponto de vista social, é importante de notar. Logo no início, a conquista é popular.
Mui depressa torna-se uma conquista do escol, e, daí, parte um novo movimento de
conquista popular, para uma penetração mais completa da multidão, onde o paganismo
local e doméstico resiste longo tempo.
Pode-se dizer que o escol
do mundo civilizado se aliou ao cristianismo desde que o cristianismo foi verdadeiramente
conhecido, isto é, no início do século III. Até aí, ele permanecia enterrado sob
os preconceitos; não o olhavam, e nem ele mesmo nem seu Deus tinham feito coisa
alguma para que o olhassem.
Cem anos após esse período,
todos os grandes nomes da civilização eram cristãos. Eram nomes de bispos. Chamavam-se
Basílio, Gregório de Nazianzo, Gregório de Nissa, João Crisóstomo, Jerônimo, Ambrósio,
Agostinho. Era o triunfo intelectual, na persistência do triunfo popular.
Porém, é mais fácil reconduzir
um gênio ou um coração simples, quando escutam, do que um inconsciente entregue
a rotinas e a superstições seculares. A massa propriamente dita está entregue À
inconsciência. A sua conquista lentamente obtida será, pois, a última obra; fechará
o círculo de expansão. Religião dos simples; religião do escol social; religião
de todos: tais serão as etapas.
E o dilema subsiste: fatalidade
histórica ou vontade providencial? Deus ou natureza?
Deus ou natureza, digo
eu! Deus e natureza, talvez? Deus na natureza; Deus fazendo uma síntese do que ele
é e do que nós somos, para formar o que ele quer que sejamos?
Se tal fosse a solução,
haveria aí ao mesmo tempo milagre e realíssima evolução histórica.
É o que vamos ver.
No momento em que o Evangelho
se propunha ao mundo civilizado, o meio greco-romano tinha saído da crise de livre
pensamento que sofrera havia dois séculos. Augusto acreditara concorrer para isso
poderosamente; mas a sua ação oficial quase não havia provocado - diretamente pelo
menos - senão hipocrisias e literatura banal. Esnobismo religioso e culto político
ou administrativo, era tudo o que podia sair de uma iniciativa demasiado interesseira
para ter uma ação profunda.
Entretanto, enquanto Jesus
pregava nas margens do Lago, enquanto São Paulo vinha perorar no Areópago, produzia-se
uma imensa efervescência religiosa. Aquilo a que se chamou o sincretismo, amálgama
de doutrinas em que se uniam o Oriente e o Ocidente, atingia seu auge. Havendo a
filosofia provado o seu vazio, e ainda não estando proclamada a grande plenitude,
o homem enganava a sua fome com os cultos de Ísis, de Baco-Dionísios, ou da Grande
Mãe, com os passes de Simão o Mago,ou de Apolônio de Tiana, e com as adivinhações
caldaicas ou as feitiçarias tessalonicenses.
Valia isso mais do que
o livre pensamento? Sim e não. Isso se passava mais em baixo, e a este título valia
menos. Mas isso também era mais humilde e valia mais porque fechava menos os caminhos
do que o orgulho suficiente do racionalista. "É bom ser cansado e fatigado
pela inútil procura do verdadeiro bem, escreveu Pascal, a fim de estender os braços
ao libertador".
O gênero humano fatigava-se
assim em vãs procuras que tinham ao menos a vantagem de deixar o problema formulado,
em vez de supô-lo resolvido pela negativa. Nessa efervescência, os ritos sublimes
e as práticas obscenas misturavam-se; a exploração impudente e o devotamento profundo,
o misticismo contemplativo e o charlatanismo caricato vizinhavam: "Quem quer
morrer a si a fim de renascer?", dizia o sacerdote de Ísis. "Quem quer
saber o dia da morte do seu proprietário?" clamava aos escravos descontentes
o astrólogo caldeu.
Morta a religião oficial,
morto o diletantismo cicerônico, morto o epicurismo, procurava-se outra coisa. Os
homens apaixonavam-se e extraviavam-se. Lançavam-se a fundo, com o inconveniente
apenas de soçobrarem na alucinação, no ridículo ou no vício "soi-disant"
religioso.
A razão desse movimento
parece dupla. Razão negativa: a usura "sur place" do livre pensamento,
que nunca vai longe. Razão positiva: a chegada profusa de todos os cultos do universo
ao ponto em que a civilização greco-romana se ostenta. O Império fortemente centralizador,
auxiliado por meios de comunicação até então desconhecidos, faz do meio mediterrâneo
uma cuba onde tudo se precipita para fermentar.
Os cultos de outrora eram
estritamente locais; a pátria e a religião confundiam-se: volta-se atrás dessa estreiteza,
e consente-se em alargar paralelamente as concepções temporais e os pensamentos
religiosos. Ao mesmo tempo que Roma deixa de ser propriedade exclusiva dos Romanos,
com maioria de razão deixa Júpter Optimus Maximus; com maior razão ainda, segundo
as idéias do tempo, Zeus para os Helenos ou os Baals para os Sírios. A religião
universal vai aproveitar esse espírito acolhedor.
O mesmo sucederá com a
religião íntima constituída igualmente pelo Reino de Deus, ou religião do coração.
A política dos Imperadores desgostou da vida pública dos cidadãos. Quase já não
há, para se envolverem nela, senão os arrivistas e os criados rasteiros. As almas
nobres procuram onde refugiar-se; mas que outro refúgio têm elas probabilidade de
encontrar senão elas mesmas, único asilo, numa sociedade fora dos eixos, para quem
deveras deseja viver?
Mas aí, no seu coração
que ele escuta bater, o homem desanimado do exterior arrisca-se a só ouvir soar
o vácuo. Se o divertimento, no sentido de Pascal, lhe é vedado por um meio hostil
ou nulo, que poderá realmente achar na vida interior uma alma profunda, na ausência
de alimento que a possa sustentar?
O pessimismo lá está pertinho.
O taedium vitae, o tédio de viver, é a doença desse tempo. Os próprios moralistas
incitam a ela pelas suas declamações desiludidas e pela ostentação do seu pesar.
Os suicídios multiplicam-se. Tal é o termo das soberbas doutrinas que haviam ensinado
a contentar-se consigo e achar a felicidade nos bens que nascem de si. "Ut
sis contentus temetipso et ex te nascentibus bonis", escrevia Sêneca antes
de abrir as veias. Sobre o que, Pascal, verificando que esses pensadores acabam
por aconselhar, em palavras ou em fato, àqueles a quem este mundo não contenta,
deixarem-no sem trombeta., escreve com a sua ironia cruel: "Oh! Que vida feliz,
de que a gente se livra como da peste!".
Procura-se, pois. O "si
forte attrectent eum,, se se pudesse atingir a Deus!" assume em muitos uma
significação trágica, e na massa um sentido que raramente tivera no curso da história,
se jamais o tivera. Na paz e na prosperidade romanas germina o sentimento de que
nada basta, e procura-se levantar o tampo azul sob o qual a frágil humanidade se
consome de insuficiência, desde que as necessidades da vida e a febre de agir já
não a angustiam mais.
"Oh! Se os céus pudessem
abrir-se!" exclamara Platão. O mundo grita também. Grita como um surdo, e é
bem o caso de dizê-lo; porque mesmo o que de Deus se ouve só na consciência, ele
o ouve mal; São Paulo censurar-lho-á com dureza. Mas o que o ouvido do homem não
ouviu, (1Cor 2,9.) isto é, o dom de Deus secreto e livre, se ele podia ainda menos
ouvi-lo, não deixava de esperá-lo sem o saber.
Quando ele se elevava
a meia altura para o Olimpo, não achava aí senão divindades decorativas, ou vícios
personificados, ou então Imperadores, dos quais alguns se chamavam Calígula ou Nero.
Havia razão de fugir para longe dessa região pretensamente etérea, porém na realidade
mais baixa o que a outra. Quem abriria o largo do céu para a descida de Deus e para
a subida das almas?
Compreende-se o efeito
que numa sociedade assim feita devia produzir o Padre Nosso que estais no Céu, e
também a pregação de um Deus humano ao mesmo tempo que transcendente, como Cristo,
de uma doutrina de pureza, de generosidade e de amor com o Evangelho. Uma terra
que tinha tamanha sede devia beber avidamente o orvalho divino da cruz. Os largos
gritos que dela desciam achariam um eco bastante largo também para abalar poderosamente
todas as almas. Não se haveria de rir disso como se ria de Juno confusa ou de Baco
ébrio.
O fracasso do sincretismo
redundou duplamente no triunfo do cristianismo: pelas suas insuficiências morais
ou racionais, e pelos seus bons lados, que eram uma preparação. O lado mau foi perder-se
na heresia e desvaneceu-se por si mesmo.
Em suma, tal como era,
esse meio compósito foi para o desenvolvimento do cristianismo nascente o que foi
o meio úmido e quente da época carbonífera, pai das gramíneas gigantescas.
Ao que, de novo nos dizem:
Pois bem! Então está tudo explicado, e não há aí milagre.
Mas a tal observação muito
há que dizer.
Mostrei o cristianismo
abrindo a sua carreira à maneira da criança, que cresce em algumas semanas, dizia
eu, como mais tarde não o saberá fazer em dez anos. Mas, se a criança assim cresce,
é porque há nela alguma coisa; há esse não sei quê que uma palavra vazia recobre:
a vida! Que é então a vida? Não sei, mas o que bem sei é que, para explicar o crescimento
da criança, não basta me dizerem que há à volta dela tudo o que é preciso para crescer,
que a temperatura é boa, o meio é são; que ao lado há uma ama, há leite, pão, um
assoalho livre para ela ensaiar os primeiros passos, e em seguida todas as estradas
abertas para ela correr. A vida é uma assimilação a partir de um germe, e o germe,
o germe caracterizado, definido, ativo numa linha dada, evolutivo segundo uma certa
fórmula, e já contendo na sua definição o essencial daquilo que ele deve vir a ser,
isto é que é a explicação verdadeira.
Se o cristianismo não
tivesse achado todas as condições necessárias ao seu desenvolvimento, não se teria
desenvolvido, e é por isso, aliás, que Deus lhe prepara essas condições; provê a
elas pelo curso ordinário dos fatos, sem que haja ainda aí que falar de milagre.
É uma providência, eis tudo. Mas, houvesse Deus assim disposto tudo, ou, para falar
uma linguagem profana, houvesse a história fornecido o meio ideal de um tal desabrochar,
restaria ainda achar e definir o germe de vida.
Que é essa força invisível
que une o grupo de barqueiros, que lhes anima a palavra e dá a esta uma eficácia
sobre-humana? Que é essa chama que corre no colmo, consoante a comparação do Salmista,
e que provoca um incêndio maravilhoso? A humanidade era uma lenha seca? Bem! Mas,
se sobre a lenha seca lançais apenas outra lenha seca, isso se amontoa; se lhe lançais
água, ela apodrece. Onde está aqui o fogo?
"Forçoso era que
algo se houvesse passado", diz Claudel. Forçoso é também que algo se passe
ainda, que alguma coisa de efetivo subsista, uma sobrevivência real, coisa diversa
de um passado extinto, que, por mais formidável que fosse, apesar de tudo interessaria
apenas a memória, e por si só não explicaria aquilo que, pense-se o que se pensar,
se deve realmente chamar um soerguimento do gênero humano.
Concedemos tudo quanto
a Igreja achava de socorros no seu meio de desabrochamento; mas esses socorros eram
passivos, se assim posso dizer, e bem longe, ainda, que ela só achasse socorros.
O cristianismo tinha contra
si uma multidão de obstáculos: suas humildes origens humanas; suas ligações com
o judaísmo, facilmente desprezado pelos pagãos; a sua pregação da cruz, que era
ridícula a um ponto impossível de nos representarmos hoje. O patíbulo divino está,
para nós, cercado de uma auréola; então ele era o vil pelourinho, reservado aos
malfeitores de baixa extração e aos escravos.
O exclusivismo insolente
de que a nova religião dava prova amotinava contra ela não somente as religiões
oficiais ou públicas, mas também, o que era muito mais grave do ponto de vista da
sua penetração das massas, as pequenas religiões locais e os cultos íntimos cuja
ação tenaz da vida privada daquela época as lousas funerárias e os papiros mágicos
nos revelam.
Questões econômicas juntavam-se
aqui ao obstáculo religioso. Os cleros de toda natureza, os estatuários, os ourives,
que formavam uma corporação poderosa, tal como São Paulo perceberá em Éfeso, todos
os comerciantes e artífices que viviam do paganismo deviam resistir com a cólera
do interesse ameaçado ou com a aspereza da fome. Sabemos até onde vão semelhante
resistências.
Não faltarão as perseguições,
que no fundo serão úteis, porque suscitarão os altos entusiasmos de que falei; mas,
quando os entusiasmos são a tal preço e tão numerosos, seria fácil demais considerá-los
como simplíssimos. Vemos nisso um milagre de graça, e o objetante sincero não dirá
facilmente o que nisso vê. É certo, em todo caso, que as perseguições deterão no
limiar muitos hesitantes. Os heróis não são multidão. E, acima de tudo, a perseguição
interior que a verdade move contra os instintos desviados, contra as tendências
desenfreadas por um longo relaxamento moral, tem o perigo de afugentar aqueles que
mais necessário é atrair, de fazer fracassar aquilo que é mais capaz de ter êxito.
É esse sempre o grande
obstáculo. Será esse o obstáculo eterno. A Igreja tem vivido em todos os tempos
no meio das contradições, e, no fundo, não é outra coisa; e por essa razão, as contradições
dos seus primórdios devem ter sido tanto maiores quanto ela como nunca ameaçava
e ainda não adquirira com que se defender.
O cristianismo, poder-se-ia
dizer, tinha contra si aquilo mesmo que tinha a seu favor, porquanto o seu valor
sem par não podia utilizar-se senão à custa de sacrifícios, de renúncias que o estado
geral da natureza humana, e mais ainda as circunstâncias do seu próprio inicio,
queriam heróicas.
A Igreja conseguiu tudo
isso, por quê? Porque, se os seus destinos pareciam assim circunvalados numa contradição
inelutável, exigindo a sua grandeza o impossível, e anulando-lhe esta impossibilidade
praticamente a grandeza, havia no circulo fatal um corte; o elo tinha um engaste.
O divino inseria-se nas aparências humanas contraditórias, e Deus sabe conciliar
tudo, tornando possível, pela sua presença nas almas, o que impossível seria em
razão da sua presença demasiado exigente nos fatos.
A transcendência do objeto
é aqui vencida pela transcendência do sujeito embebido de Deus. E dupla será a efusão
do Espírito anunciado por Cristo: na Igreja, para torná-la divina e por conseguinte
humanamente inacessível tanto quanto útil, tanto quanto atraente; fora da Igreja,
para vencer amorosamente o coração dos predestinados, homens ou povos, e pô-los
ao nível daquilo que salva.
Sem a sua graça imanente,
a Igreja não seria o que é, inaceitável humanamente tanto quanto indispensável.
Sem a graça imanente às almas sobre as quais ela age a Igreja debalde seria o que
é, visto que não aceitariam.
De sorte que o milagre
aqui - pois em verdade há milagre - é aquele que Santo Agostinho fala quando diz:
A conversão de um pecador é coisa mais difícil do que a ressurreição de um morto.
E esse milagre é duplo na sua unidade, interior e exterior à Igreja. Do milagre
exterior à Igreja, interior às almas e que as dispõe para o Evangelho, dissemos
o que dele pode exprimir-se, e é no fundo o segredo de cada consciência. Do milagre
interior da Igreja, que faz da Igreja um objeto divino, há sinais que não escaparam
aos homens daquele tempo. Eles valem sempre; mas nós estamos acostumados com eles
e temos outros obstáculos; eles, os homens daquele tempo, tinham o olhar novo, e,
em vez de obstáculos, tinham atrações. Por isso foram impressionados até se renderem.
Primeiramente a doutrina,
a que poderíamos chamar um milagre de luz, tanto a sua coerência e a sua adaptação
a todos os casos humanos bastam para lhe fazer a prova. Admiravelmente rica, ela
pode resumir-se em algumas palavras quanto ao essencial; a salvação em Deus Pai,
por Cristo mediador, conjunta e eternamente. Misturada ao humano, ela é capaz de
renová-lo a fundo, confirmando-o com a sua autoridade e engrandecendo-o infinitamente
com o seu contributo. Ela está ao alcance de todos; os pardais podem beber nela
e os elefantes banhar-se, dirá Gregório Magno. Síntese de vida, ela entra em relação
fecundante com tudo. Atrai e retém por toda sorte de razões. O sábio vem a ela por
causa dos seus arcanos, o simples por causa da sua lucidez; o autoritário por causa
das leis que ela dita, e a alma mística porque ela excede toda a lei.
Como quer que a loucura
da pregação, como diz Paulo, (1Cor 1,21.) e a sabedoria de Deus que a ela se mistura,
abordem a alma por diferentes lados, em ambos os casos Deus se fará reconhecer a
ela.
O universalismo que atribuímos
ao Evangelho e que faz dele uma religião primitiva restaurada, um judaísmo aperfeiçoado
e uma religião inteiramente nova, dará a impressão de que ele julga a história universal,
a contém e a explica, o que é a verdade. Os grandes espíritos acharão nessa consciência
universal, tornada consciência cristã, uma suma atração.
Aliás, por si mesmo se
concebe que, se a doutrina atrai, é sobretudo na medida em que se encarna nos fatos.
Filosofias, têm-se visto tantas! Bem se querem ver outras ainda; mas depois de examiná-las
curiosamente, torna-se a colocar o "bibelot" na sua vitrine.
A vida! A vida! Eis o
que converte. É a força interior do Espírito; é a corrente divina, que, passando,
arrasta o que lhe é semelhante. Aquele que pode dizer: "Para mim, viver é Cristo",
(Fp 1,21.) esse conduz os homens a Cristo. A verdade irradia na virtude. Ora, a
Igreja, nesse momento, mostra bastante virtude para deslumbrar as consciências mais
exigentes.
Notável é que os próprios
apologistas não sejam convertidos pelas apologias dos seus antecessores, mas pela
vida cristã que se lhes impõe à consciência. Uma vez cristãos, eles fazem o que
sabem fazer e explicam o porquê daquilo que os conquistou; mas o fervor que eles
põem nisso e a sua própria participação na vida religiosa que pregam têm mais influência
do que os seus dizeres. Há nisto uma lição para os modernos apologistas.
A constância dos mártires
parece ter sido o argumento mais empolgante dessa graça imanente da Igreja. A serenidade
deles diante da dor, por causa do que eles tinham sob o olhar interior e do que
diziam ter no coração, impressionava infinitamente as almas religiosas. A vida com
Deus era, pois, uma realidade? Podia fazer superabundar de alegria no meio das tribulações?
(2Cor 7,4.) Eternizando o mesquinho ser humano, dava ela então razão àquele que
dizia: "A nossa vida é no céu, conversatio nostra in coelis"? (Fp 3,20.)
E, nessas condições, a própria morte podia ser então um ganho: "e mori lucrum"?
(Fp 1,21.) Marco Aurélio, o filósofo, não compreendeu nada disso; talvez o trono
o afastasse demais da humilde vida nova; porém os que viam de perto, ou que não
tinham os olhos vendados por um sistema, compreenderam.
A vida com Deus tinha,
nos primeiros cristãos, um reflexo que não podia deixar de ferir os olhares. Viver
com Deus era para eles viver juntos em Deus. Ora, num mundo em que mais do que nunca
se podia dizer: o homem é um lobo para o homem, homo homini lúpus, esta vida em
comum na caridade não demonstrava uma irrupção do céu na terra? "Eles se amam
quase antes de se conhecerem", dizia o pagão Cecílio. Sem dúvida! As pessoas
se conhecem antecipadamente quando habitam em Deus por Cristo. "O fundador
deles, escrevia Luciano, meteu-lhes na cabeça que eles são todos irmãos". (Luciano,
A Morte de Peregrinus, 13.) Zombava disso, e de que era que ele não zombava? Mas
outros sentiam essa imantação e agregavam-se à vida divina.
Tanto mais quanto essa
caridade cristã não era puramente sentimental; era organizada; era uma vida em comum
que criava todas as virtudes sociais, e antes de tudo a virtude social por excelência:
a justiça. A justiça das palavras, justiça dos contratos, justiça das relações domésticas,
políticas ou econômicas, era esse o tronco no qual florescia isso que correntemente
chamamos caridade. Sustento das viúvas e dos órfãos, cuidado dos doentes, socorro
aos indigentes, visita dos prisioneiros, hospitalização dos viajantes, sepultura
dos mortos, vinham em supererrogação e constituíam uma espécie de culto estreitamente
entremeado ao culto. "Os doentes são o tesouro da Igreja", dizia São Lourenço.
Os pagãos desviados não eram desta opinião; mas "a alma naturalmente cristã"
era, e reconhecia sua pátria naquela reunião de irmãos.
Quanto aos políticos clarividentes,
estes também poderiam ter visto, naquele grupinho nascente, o início evidentíssimo
de uma ordem social nova. Por pouco que irradiasse nas instituições do futuro, a
justiça fraterna não podia deixar de fazer fundir, no fogo da caridade, assim os
grilhões dos oprimidos como os cetros brutais dos sátrapas.
A nova religião limitava
os poderes do Estado erguendo diante dele a consciência, isto é, o indivíduo, isto
é, o Direito do homem. Atacava a escravidão: coisa impressionante entre todas, impressionante
sobretudo ao olhar do homem moral, porque procedia moralmente, abordando o social
pela raiz, sem nenhuma revolução destrutiva, sem sequer formular a questão teoricamente,
contente de inserir nos corações o princípio da sua solução. Era o Febo divino que
triunfaria de Bóreas, o vento das palavras ou o furação das violências.
Pode-se fazer notar que
a atração exercida pela nova doutrina, em razão da sua beneficência, sobre as mulheres
e os escravos, ajudou muito a sua propagação. A influência moral da mulher é imensa,
uma vez assegurado o seu devotamento efetivo, e os escravos preceptores muito podiam
para cristianizar as novas gerações.
Da ordem social nova assim
engrenada, as comunidades cristãs, onde o espiritual se misturava ao temporal ainda
não diferenciado, já ofereciam um esboço. As cristandades funcionavam como pequenos
Estados, ao mesmo tempo que como famílias, como tribunais, como agências de colocação,
sindicatos, caixas de socorros. Permutavam, de uma religião a outra, as notícias
e os bons ofícios, os conselhos fraternais e, se preciso, as admoestações. Nelas
a autoridade não passava de um serviço, as classes de um sistema de degraus para
derramar sem abalo aos bens comuns, que só eram propriedade do céu.
Em suma, tanto quanto
o permite a fragilidade humana - pois havia aí misérias - realizava-se essa divinização
da vida que é a essência do Evangelho. E os pagãos, acostumados às belas máximas
abandonadas (Probitas laudatur et alget, dizia Juvenal, a virtude é louvada e enregela-se)
estavam estupefatos. E os que, dentre eles, aguardavam o reino de Deus, como o velho
Simeão, acorriam.
Lacordaire escreveu: "A
humanidade crê em Deus porque o vê agir". Tal é a explicação literal da conquista
religiosa de nossos pais. Acrescentando, entretanto, que eles não teriam crido em
Deus a agir fora, se, com o seu consentimento, Deus não houvesse agido neles. Mas
Deus agia em toda parte. Decidira renovar a face da terra. E nesse milagre de Deus
difundido absolutamente não se opõe ao caráter humano, e à continuidade histórica
da sua obra.
Esses bons críticos que,
no intuito de afastarem aqui o milagre, procuram razões humanas, e as acham, não
desconfiam até que ponto são pouco filósofos. É certo que, pesado tudo, a Igreja
devia desenvolver-se como fez, e isso por motivos observáveis. Porém o observável
às vezes tem fontes que não o são, e que, não fazendo parte do complexo das causas
naturais, invocam uma causa sobrenatural.
Se se dissesse: um homem
desarmado, em face de um leão, deve ser devorado pelo leão, exprimir-se-ia uma coisa
simplíssima. Mas isso não serviria para provar que o leão é miraculosamente forte
em relação ao homem? Ora, esse miraculosamente, que aqui não passa de uma metáfora,
para o cristianismo era uma realidade. O mundo greco-romano, em face da Igreja,
devia ser conquistado pela Igreja; era fatal; mas por quê? Porque a Igreja, em relação
a ele, era uma força irresistível. É nessa força que, aos nossos olhos, reside o
milagre, porque, conhecendo pela experiência de todos os tempos a força do homem,
nós nos dizemos: é uma força de Deus.
O milagre não consiste
em não sei que manejo dos acontecimentos por alguma mão exterior. Aqui não há nada
de exterior, mesmo que fosse Deus; porquanto o próprio Deus está dentro. O seu Espírito
é que é a alma da Igreja, e esse Espírito é bastante poderoso para vencer o mundo,
que ele penetra igualmente, e que livremente aciona. "Tende confiança, dissera
o Salvador, eu venci o mundo". (Jô 16,33.) Mas esse poder, como todo poder
anímico, exerce-se por dentro; dentro da Igreja, dentro das almas, e utilizando,
não fazendo senão orientar, o que as almas e o mundo apresentam de recursos.
Há nisso o mesmo qüiproquó
que na oposição do vitalismo e da interpretação físico-química dos elementos vitais.
O vitalismo diz: "Há uma força vital que dirige, contém e, se preciso, combate
as forças físico-químicas". E o sábio responde: Não conheço essa força; toda
ação ou reação orgânica é mensurável, e depende da observação físico-química. Um
filósofo intervém e diz: É verdade; no corpo há física e química, a título executivo;
mas a finalidade orgânica vem-lhe da alma.
O milagre do organismo
animado é que ele utiliza tudo, até mesmo o que parece estranho ou hostil, para
realizar a sua idéia diretora. Mister se faz apenas que ele seja bastante forte,
do contrário aquilo que poderia nutri-lo o mata. Ora, nada matou a Igreja; tudo
lhe serviu. Mas, se nada a matou, a razão disso não está numa proteção exterior
- salvo os milagres particulares, que não se trata de negar; mas falamos do conjunto.
- E o que lhe serviu não sérvio em razão de piparotes exteriores. A verdade é que
o Espírito de Cristo, vivendo nela, imprimia aos seus elementos humanos uma direção
e uma impulsão vital capazes de vencer as hostilidades do meio, de captar as forças
úteis, de animar os elementos neutros, e dessarte, de incorporar a si o mundo. É
um milagre isso; é o milagre da vida, e, na espécie, o milagre de uma vida divina.
A Encarnação, que criou
o gênero humano-divino; o Espírito de Deus, que penetra o Cristo homem, e por ele
o núcleo primitivo da Igreja; esse mesmo Espírito que pela graça trabalha a matéria
exterior a assimilar, e que, circulando do sujeito ao objeto, do objeto ao sujeito,
dá testemunho a si próprio e serve a si mesmo: tal é o milagre.
Para assimilar o mundo
e a vida, ao menos tanto quanto eles a isso queriam prestar-se, era preciso um germe
igual ao mundo e à vida; era preciso o Homem universal: Cristo; e o Homem universal
só é universal pelo Espírito que o penetra e que é o Espírito universal: o Espírito
Santo.
As profundezas do homem
e da vida do homem, assim como a amplitude do espaço e do tempo que os mede, não
podiam ser envolvidas e conquistadas pela Igreja senão com a cumplicidade, digamos
melhor, pelo trabalho do eterno, universal e supremo vivente: Deus.
CAPÍTULO 5 - A IGREJA E AS CIVILIZAÇÕES
ANTERIORES
Se é verdade que Cristo
é o centro e não o começo da história cristã; que tudo gravita em torno dEle - o
passado para prepará-lo, o presente para recebê-lo, o futuro para utilizá-lo; de
tal sorte que a obra inteira seja sem corte, realizando a palavra de São Paulo:
"Tudo é para os eleitos", - se esse plano religioso do mundo é o verdadeiro,
manifesta é a consequência. Cristo deverá vir no momento em que mais necessidade
se tem dele e em que dele mais se pode aproveitar.
Isso supõe que a sua época
será ao mesmo tempo rica e pobre: rica em recursos e pobre em realizações; pobre
também em esperança, se fosse abandonada a si mesma. E isso dá a prever que a obra
cristã consistirá, não em desdenhar o passado, desdenhando-se de si mesma, visto
como ela reina sobre o passado tanto como sobre o presente e sobre o futuro, - e
tão pouco em copiar o passado, em subordinar-se a ele, em servi-lo, o que seria
uma inversão dos papéis; mas em fazê-lo realizar seu fim. Para isso, deverá ela
apoiar nele a sua obra histórica assim como, para crescer, o vivente se nutre daquilo
que o solo produz. Não se há de esquecer, aliás, que andar é repelir para trás o
solo em que a gente se apoia, e que nutrir-se é destruir o alimento enriquecendo-se
da sua substância.
Esta concepção a priori
precisa ser confrontada com os fatos, para se ver, primeiro, se os fatos a comprovam;
e, em seguida, como.
Foi de moda, outrora,
ver em Cristo e nos primeiros obreiros da sua obra não sei que iniciados que, quais
abelhas diligentes, teriam recolhido o suco das tradições, o pólen das organizações
anteriores, para com eles sabiamente comporem esta cera e este mel: a Igreja e o
Evangelho. Toda originalidade e toda transcendência seriam assim recusadas à religião
de Jesus; ela seria um ensaio de sistematização partindo de dados adquiridos; não
seria mais a Boa Nova, o Dom de Deus. Já não haveria "milagre".
Assim tal qual, esta concepção
está morta hoje em dia; nenhum crítico, por pouco sério que seja, ousaria sustentá-la.
Tudo nos demonstra que os primeiros obreiros do Evangelho foram estranhos à cultura
que semelhante ecletismo suporia; que de modo algum pensaram nisso.
Ao próprio Jesus os puros
críticos não emprestam, tão pouco, essas intenções, que destoam de tudo o que se
sabe dele. Quanto a nós, é evidente que ainda muito menos dispostos estamos a semelhante
atitude. Sabemos que não foi assim, por fora, adventiciamente ou por colheita de
elementos estrangeiros, que Jesus se propôs compor sua obra; foi por dentro, pelos
meios da vida, e a partir de um germe divino.
Esse germe, que ele trazia,
é o seu Espírito, cuja comunicação é simultaneamente intelectual, pelo dogma, e
prática, sob a forma de sentimentos, de moções, de meios essenciais de ação. Tal
era a alma do seu grupo. Isso é que era o "vinho novo", que, dizia ele,
não se devia conservar em odres velhos. Por essa expressão, ele mostrava bem a que
ponto era estranho às vistas do ecletismo. Fazia coisa inteiramente nova, que era
ao mesmo tempo coisa eterna, nisto que todo o passado colaborara nela a titulo de
preparação, nisto que todo o presente devia servir-lhe de meio nutriente e todo
o futuro de matéria para seus progressos. Nunca seria de mais repetir estas coisas.
Portanto, se há semelhanças
- e as há numerosas - entre a religião de Jesus e as religiões do passado, não é
por empréstimos que cumpre explicá-las primeiro, é por esta consideração simplíssima:
que as religiões antigas foram criadas pelo instinto para corresponderem às necessidades
do homem, às suas aspirações e às suas reflexões em face do destino. Na medida em
que instintos, aspirações ou juízos estavam desviados, as antigas religiões foram
também desviadas, e uma religião divina, como o cristianismo não devia assemelhar-se
a elas; mas onde quer que as necessidades fossem reais, que as aspirações fossem
legítimas e as reflexões sensatas, as religiões concluíam acertadamente, e a religião
definitiva devia assemelhar-se-lhes nisso, embora excedendo-as, visto como as suas
reflexões, hauridas de lá de cima, transcendem a amplitude sempre limitada de um
olhar de homem.
É preciso capacitar-se
de que, em religião, o divino é precisamente o mais humano, não tendo a religião
outro papel senão rematar a vida do homem, mesmo quando a excede. O divino autêntico
deve, pois, coincidir parcialmente com o humano autêntico, e isso não será um empréstimo,
mas um encontro, motivado por um mesmo ponto de partida e por uma finalidade comum.
Deus dá o pão supersubstancial;
os homens procuram fabricar o outro, e nem sempre têm falhado na sua fabricação.
Deus dá a água que jorra até a vida eterna; mas já havia outras águas. Os que bebiam
delas ainda tinham sede; ver-se-á bem isto pela solicitude deles quando jorrar a
fonte divina; porém, mesmo assim, eles tinham achado nelas refrigério.
Destarte se explicam os
traços comuns que com tanto comprazimento têm sido salientados - no intuito de fazer
deles objeções - entre o cristianismo e o budismo, as religiões persas, gregas,
Roma,as, etc., como se não fosse um elogio, em relação a uma religião que se pretende
sem lacuna, o dizer-lhe: Não esquecestes este e aquele valor descoberto antes de
vós por outras religiões. Chamem ao cristianismo, tanto quanto quiserem, "um
microcosmo religioso"! É um grande louvor.
Todavia, historicamente
esta resposta não é suficiente; pois não negamos que tenha havido empréstimos essenciais,
empréstimos destinados a constituírem a religião, ao invés de servi-la. Por isto
teremos de tornar à questão das utilizações do paganismo pela religião cristã. Mas,
por enquanto, temos de repetir uma segunda forma da opinião, que faz do cristianismo
um fruto natural do passado e do presente religioso a que sucedeu.
Muitos, com efeito, afastando
os disparates que fariam de Cristo e dos apóstolos uns ajuntadores de noções e de
devoções esparsas, nem por isso deixam de dizer que, para se formar, a Igreja herdou
- apenas sem o saber, e sem o saberem os seus iniciadores - aquilo que aquela época
compósita, cuja fisionomia exata tentamos dar mais acima, continha.
O cristianismo não passaria
de um dos movimentos espontâneos de renascimento religioso que se ensaiavam no tempo
de Jesus, e Jesus não teria feito senão determinar a cristalização num certo ponto,
em certas formas, formas que aliás se alteraram, ao que dizem, pela influência dos
cultos que não tinham sido bem sucedidos no mesmo esforço, e que ele entendia de
suplantar.
Esta teoria tem por si
os traços comuns que aproximam o cristianismo dos estados de espírito reinantes
no momento em que ele nasceu, e das doutrinas ou dos ritos próprios às religiões
ambiente. É assim que o universalismo e a interioridade, que figuram entre os sinais
mais característicos do cristianismo, já se fazem adivinhar no sincretismo, que
representa o meio imediato em que a Igreja teve de se formar.
Basta, porém, olhar nisso
para verificar que essas tendências, se podiam servir para preparar as almas, de
modo algum podiam, por si mesma, sugerir-lhes os pontos de vistas cristãos, porque
destes àqueles há um abismo.
Bem verdade é que no tempo
de Jesus os cultos outrora locais tendem a universalizar-se. Parecem agora abertos
a todos. São-no realmente, salvo o mitraísmo. Mas é somente pelo seu lado exterior,
o lado menos religioso; poder-se-ia dizer nada religioso; porque o exterior nada
é, se não manifesta uma alma.
As bacanais, as procissões
delirantes da Grande Mãe, em que os eunucos triunfam entregando-se a transes de
epilépticos: eis o que se franqueia a todos. Desde que se trata da vida interior,
mística e verdadeiramente moral, recai-se na estreiteza da iniciação. Considera-se
como ímpia uma manifestação comum da doutrina e dos divinos arcanos. O número é
uma profanação. O exclusivismo faz parte das alegrias do iniciado, neste mundo e
no outro.
Os partidários da mentepsicose,
pouco numerosos relativamente, ainda têm esta pálida desculpa de só desprezarem
a multidão provisoriamente; ela renascera mais perto de nós, se disto for digna,
e subirá algum dia ao Olimpo onde as nossas alegrias estão bem próximas. Mas os
que terminam na morte o ciclo das preparações religiosas não se mostram lá muito
universalistas, quando dizem equivalentemente: Que se arranje a multidão humana!
Aproximei isso destas
grandes palavras: "Ide e ensinai todas as nações, ensinando-lhes tudo o que
eu vos mandei"; "Não se acende a lâmpada para escondê-la debaixo do alqueire";
"Não há nada oculto que não deva ser manifestado"; "O que eu vos
digo ao ouvido, pregai-o de cima dos telhados": e verificareis a diferença.
Correlatamente, a tendência
universalista do sincretismo comportava uma tendência para a interioridade, tendência
que as religiões políticas das épocas anteriores desprezavam. Neste sentido, havia
grande progresso. A salvação do Estado cedendo à preocupação da salvação da alma;
o indivíduo imortal suspeitando o seu valor e, a despeito de monstruosas aberrações,
elevando-se à ideia de sacrifício: aí já era o excelente. Os mistérios assinalavam
esse estado novo da opinião religiosa. Mas julgai de perto essas manifestações,
e capacitar-vos-eis da ilusão que haveria em aproximá-las da vida interior tal como
compreendeu o misticismo cristão. A aparência de certos termos pode enganar; a realidade
é muito menos nobre.
Que é que se pede ao iniciado
para participar dos favores místicos? A pureza, o que poderia fazer crer por isto
se entende o que o Evangelho entenderia. Mas, lendo melhor, percebe-se que se trata
de coisa inteiramente diferente. Em matéria de pureza, pede-se-vos não serdes nem
"ímpio", nem "celerado"; é uma boa precaução contra as batidas
policiais ou as raízes de objetos piedosos; mas como pureza interior é pouco, quando
se pensa que a profissão de cortesã permite à iniciada conservar o que seus sacerdotes
chamam de "mãos puras".
Mais tarde, a iniciação
do cristianismo já desenvolvido levará essas religiões a macaquearem o nosso misticismo;
elas chamarão seus deuses - coisa nova - os "guardiães da alma e do espírito",
e as suas inundações de sangue de touro serão consideradas como tendo o efeito do
batismo; mas, por seu próprio movimento, essas religiões não levam à vida interior;
a pureza de que elas falam na sua catártica é uma pureza legal, semelhante à do
Judeu que não comeu porco e está com as mãos limpas.
Notai que, entre os Judeus,
esse formalismo, pelo fato de se substituir à ideia moral, era uma degenerescência;
di-lo bastante o Salvador. Aqui, é o caso normal. Não se trata de deplorar as próprias
faltas e de converter o próprio coração, mas de tomar um banho que vos liberta das
lamas da existência à maneira de uma lavagem mecânica.
A pureza pagã é uma medida
prudente contra as doenças, as enfermidades precoces, os acidentes, os desarranjos
de mente e do corpo vindos dos deuses descontentes. E descontentes por quê? De modo
algum porque o nosso coração está longe deles - o que, de resto, merecia às vezes
louvor! - mas porque certos atos ou certas omissões nos tornaram para eles um objeto
de horror.
Consegue-se dobrar os
deuses por meio de encantações materiais. Para isso não basta uma consciência fiel;
é preciso uma voz justa. O bárbaro, que não sabe pronunciar o grego, é excluído
pela mesma razão que o ímpio ou o celerado. Assim traz o ritual. Tudo isso é pura
magia, e não religião ou moral.
Apresso-me a observar,
como já mais de uma vez o fiz, que essas críticas atingem as religiões antecristãs
tomadas em si mesmas, e não sempre, e em tudo, os SUS fiéis cultos. É por isso mesmo
que, aparecendo-lhes o cristianismo, eles se precipitam nele em multidão. A partir
desse momento, a situação inverte-se, e, em vez de serem superiores à sua religião,
eles serão esmagados pelo novo ideal, a ponto de se declararem servos inúteis, mesmo
após heróicos esforços. Mas não se trata de indivíduos, trata-se dos próprios cultos
e daqueles que os vivem tais como eles são. Esses acham-se entregues a práticas
em que a magia ocupa um lugar inteiramente absorvente. Corre-se a toda parte para
lhes ter o duvidoso lucro; mas isto mesmo prova que não lhes dá senão um mero sentido
supersticioso. Não contente com a própria religião, pratica-se a dos outros, porque
não se sabe de quem é que se pode ter necessidade.
Não vale por dizer que
a Divindade verdadeira, a que vê o coração, vos ficou alheia?
Conhece-se um certo Faventino
que, no seu epitáfio, se gaba de ser ao mesmo tempo áugure da velha religião romana,
Pai e arauto sagrado no culto do sol invicto, (Mitra) arquibúcolo no culto de Baco,
hierofante de Hécata, e sacerdote de Ísis. A gente pensa nesses magnatas da finança
que fazem parte de trinta ou quarenta administrações.
E, quando os deuses tão
ecleticamente desservidos dão mostra de resistir às súplicas dos seus fiéis, pretende-se
possuir meios de forçá-los: prova nova da nulidade moral desses ritos. Não é, porventura,
escandaloso que certas fórmulas ou simplesmente a invocação de um nome secreto,
coloquem o poder de Deus à disposição do fiel, sem que a retidão de intenção entre
nisso pelo que quer que seja? Que outra coisa é então esse Deus, se não é um daqueles
Olimpianos de Homero que uma fatalidade domina, ainda quando se chamasse Júpiter,
e que pode enganar-se ou enganar, a quem se pode enganar, a quem se pode forçar,
se, por uma hábil manobra, se lhe consegue virar o poder?
A Igreja está tão pouco
disposta a imitar esses ritos pretensamente santificadores, que os afasta com horror,
acusando-os, pela boca de Paulo, de só terem a "satisfazer melhor a carne",
(Cl 2,20-23.) sem dúvida em razão do fim todo carnal colimado ao submeter-se a eles,
mas também, o que não parece lá muito duvidoso, por não sei que sadismo de sensibilidades
"détraquées", como o indicam as estranhas histórias edificantes contadas
nos Mistérios. Só se fala aí de violência e de luxúria, e, diz Gaston Boissier,
"verdadeiramente parecia haverem-nas reservado para o segredo dos mistérios
porque quase não se podia exibi-la em plena luz", essa plena luz que via tantas!
"Bem aventurados
os corações puros, porque verão a Deus": é o contraste absoluto entre o cristianismo
e essas falsas purezas legais.
Se desses pontos de vista
gerais passássemos à minúcia, ainda muito menos justificada acharíamos a pretensão
de fazer sair o cristianismo do meio compósito em que nasceu.
Não basta dizer, por exemplo:
a morte e a ressurreição
do deus fazem parte de vários cultos; os ritos da iniciação assemelham-se ao batismo;
os repastos sagrados pelos quais se comunga com Dionisios ou com Mitra são como
que uma cena eucaristia; o iniciado de Átis come a carne de um animal divino e bebe
o sangue do touro sagrado para se identificar com seu Deus; Orfeu e Cristo são aproximados
pelos próprios primeiros cristãos; a linguagem ritual é às vezes idêntica no cristianismo
e alhures, tal, por exemplo, o "refrigério" desejado aos mortos, o qual
se julgaria tirado dos cultos de Ísis; o ascetismo cristão e o ascetismo pagão têm
parentescos manifestos; os carismas, ou manifestações do Espírito, lembram os transes
místicos dos cultos gregos ou orientais; a disciplina do arcano, ou proibição de
revelar fora tais crenças ou práticas cristãs, é um caso particular nos Mistérios;
os catecúmenos e os batizados
representam os profanos e os mistes, etc.;
Tudo isso não basta para
demonstrar uma filiação entre o cristianismo e cultos anteriores e contemporâneos.
Uma multidão de confusões
insinuam-se nas aproximações estabelecidas. Há umas autênticas, e daqui a pouco
direi a razão disso; porém a maioria são superficiais ao ponto de aproximarem apenas
uma máscara de um semblante ou um retrato de uma caricatura. De sorte que, se não
se tomar cuidado, salientando-as incide-se nesses "mais ou menos" que
são uma espécie de trocadilho, como sucedeu a esse grande erudito que é Salomão
Reinach, em punição dos "parti pris" que fizeram do seu Orpheus o último
dos panfletos inspirados pela questão Dreyfus.
Para todos, por exemplo,
é certo que a ceia eucarística, que se quereria fazer sair das divagações mitológicas,
se apresenta historicamente como uma continuação da Páscoa judia, seu símbolo claramente
invocado pelo próprio Jesus, e que portanto não há sombra de empréstimo, mas sim
desenvolvimento voluntário, aliás transcendente, visto como a Páscoa judia era e
sabia que era um símbolo, ao passo que a Páscoa cristã é uma realidade.
A liturgia da missa é
igualmente judia: é a cerimônia do "sabbat", na sinagoga, simplesmente
aplicada às novas concepções e às realidades novas. Isto por aí mesmo se compreende,
dada a composição dos primeiros grupos cristãos, que eram judeus e mui longe ainda
de quererem ir buscar o que quer que fosse aos cultos pagãos. "Que pode a luz
ter de comum com as trevas?, dizia São Paulo, que acordo é possível entre Cristo
e Belial?"
A gente se pergunta também
o que é que a morte de Jesus sob Pôncio Pilatos, em plena claridade histórica, e
consignada por Tácito nos seus Anais, pode ter de comum com a morte de Átis, da
qual se confessará que é bastante dizer: é um símbolo. Os que a ela se uniam misticamente,
assim bem o entendiam, pelo menos os melhores. Os que refletiam poderiam ter dito
ao seu deus, tão pouco edificante e tão longe de toda realidade histórica:
Bem creio, cá entre nós,
que não existes.
E, isso dizendo, ter-lhes-iam
feito honra.
Quanto à ressurreição,
é historicamente, e não misticamente, que ela faz parte do sistema cristão, especialmente
no seu ponto de partida. Ela é o grande fato, a prova irrecusável, pela qual os
Doze "se fazem degolar", dirá Pascal, como por uma coisa que eles viram,
que demonstra a missão de seu Mestre, e que portanto é para a doutrina deles um
fundamento de realidade, e não um símbolo.
Acrescentemos que o símbolo
de que se fala, os apóstolos cristãos não o conhecem provavelmente no inicio; eles
quase não o apreciarão, vendo nesses pretensos mistérios meros "contos de velha".
(I Tm 4,7.) Que significa, destarte, a ideia de empréstimo? Não se pede emprestado
a símbolos, fossem eles sublimes - e com a maioria de razão se são julgados pueris
- coisa com que afirmar historicamente e de que morrer. (A sei dos Naassênios, é
verdade, ousou confundir Átis com Jesus; mas com isso só excitou o horror e a risada
cristãs.)
E assim sucede com tudo
o mais. Tomais uma após outra todas as semelhanças que se procuram salientar: ou
elas são inventadas, ou se mostram muito mais ainda diferenças, porque o seu espírito
é inteiramente outro; e que é o gesto ou a palavra sem espírito? Este é que é a
verdadeira realidade religiosa. De sorte que, depois de haver mostrado os cristãos
e os pagãos agindo em comum desta ou daquela for,a dizendo isto ou aquilo, nada
mostrastes, se diversa é a alma das palavras e das coisas.
Em toda a extensão da
sua vida comum com as civilizações pagãs, a alma da Igreja cristã mostra-se antagonista
a fundo, e não devedora. No início, ela se opõe às imitações mesmo mais inocentes.
E isto, repito, não quer dizer que não haja aí pontos comuns. Deve haver. Mas há
diversidade de espécie, porque há diversidade de origem, diversidade de espírito
inspirador, diversidade de fim. A Igreja é inconfundível.
Estabelecido isto, resta
ver como, tendo feição própria, a Igreja utiliza sem pestanejar tudo o que o passado
lhe legou, tudo o que o presente lhe oferece, e antecipadamente se adapta a tudo
o que o futuro lhe promete.
A caducidade religiosa
do mundo, por ocasião do advento do Salvador, era bastante semelhante ao húmus que
se amontoa, sobe as juncadas de folhas mortas, ao pé dos veteranos da floresta.
Inerte por si mesmo, o húmus aguardava apenas um germe para irromper em brotos novos.
A Igreja não tinha, pois que trazer tudo. Trazia a essência cuja definição fornecemos,
alma permanente que ela deveria para sempre salvaguardar, mas que seus primórdios
encarnavam num corpo rudimentar, destinado a progredir em todos os sentidos: doutrinalmente,
praticamente, administrativamente, já que o tempo e o meio natural condicionam tudo
o que vive.
Fidelidade a si mesma
e intransigência no que respeita à sua essência íntima; mas também plasticidade
e adaptação utilizadora a respeito de um meio providencialmente destinado à sua
vida: tais são os dois deveres da Igreja. O segundo é menos necessário, se se quiser;
mas essas questões de grau no indispensável não têm nenhum interesse prático.
S. Paulo chama as doutrinas
pagãs, leigas ou religiosas, os elementos deste mundo; (Gl 4,3.) quer dizer, sem
dúvida, as letras do alfabeto ou os rudimentos de palavras com que se constrói o
discurso. São elementos; conservam o seu valor de elementos; só são rejeitados se
pretendem ser por si só o discurso. Se consentem na absorção, são louvados e utilizados.
A razão fundamental pela
qual a Igreja tem essa aptidão e assim procede, é que, divina, isto é, filha do
Criador de todas as coisas, é irmã de todas as coisas; é fundada na natureza, e
admite a natureza não somente nos seus elementos profanos, mas também nos seus elementos
morais e religiosos, que não são menos natureza do que o resto. É essa, para ela,
um sinal de catolicidade, "nota" da sua verdade e da sua origem divina.
"Só a igreja, escreveu Newman, conseguiu rejeitar os elementos maus sem rejeitar
os bons, e fazer entrar na unidade da sua síntese coisas que em qualquer outra parte
são incompatíveis".
A Igreja utiliza, assim,
principalmente três coisas: o senso do sublime, tirado do Oriente; o senso do belo
e do razoável, especialidade dos Gregos; o senso do justo e do útil, próprio à civilização
romana.
O Oriente chega à Igreja,
para lhe enriquecer as concepções, por um canal todo indicado: a Bíblia. A civilização
judaica, nas suas épocas clássicas, já era uma síntese depurada do Oriente religioso
e uma síntese aproximada, já sofrivelmente rica, do Oriente político, filosófico
e social. A dispersão, pondo o judaísmo em contato com as outras raças, amplia-o
e, uma vez assimilado ao cristianismo, torna-o mais apto ao papel de nutrício que
ele é chamado a desempenhar por sua parte, a respeito da vida nova.
O Oriente infiltra-se
assim nas veias da Igreja como um sangue quente e brilhante cujo encarnado se reconhece
facilmente hoje mesmo. Os espíritos estreitos a quem chocam os nossos ritos pomposos,
as nossas tiaras e as nossas formulas por gosto enfáticas, acham nisso matéria para
censura: mas o cristão desprendido de si pensa nos séculos e nas raças com que é
solidário, na unidade feita de diversidades que a vida católica realiza, e sente-se
ufano de aderir a uma sociedade integralmente humana.
Não menos úteis à vida
da Igreja deviam ser os maravilhosos contributos da civilização grega. Eram-no ainda
mais a certos respeitos. A filosofia, tão necessária para sistematizar a doutrina,
para torná-la coerente com o espírito, proveitosa à investigação e defensável a
respeito de adversários bem armados, da Grécia é que virá.
Separada da religião,
ou posta a serviço de religiões falsas, pueris ou insuficientes, a filosofia não
tinha servido de nada para a vida. Só dava o incerto, não assegurava da verdade
e ainda menos da sua realização prática. Nada de trilha humana traçada, unicamente
especulações, porque a autoridade faltava, se não faltavam o saber e a eloquência.
Aquele que puder dizer: "Eu sou o caminho, a verdade e a vida" estará
em condições de fazer a filosofia atingir seu escopo como faz atingir seu escopo
tudo o mais. "Restaurar tudo em Cristo", a filosofia terá o benefício
desta palavra, e aquele que nem sequer lhe pronunciou o nome, aqueles que posteriormente
falam uma língua de aduaneiros e de barqueiros, serão os verdadeiros salvadores
dela.
Na época de Jesus, o classicismo
está em via de dissolver-se nas loucuras místicas ou míticas em moda. Bem longe
dos espíritos claros da Hélade, uma quantidade de pretensos pensadores degeneram
no mágico, no curandeiro banal e no adivinho. Pelo órgão daqueles a que nós chamamos
seus Padres, seus Doutores, a Igreja recolhe as tradições de Sócrates, de Platão,
de Aristóteles; completa-as e compreende-as por assim dizer, melhor do que eles
próprios, nisto que leva a fundo aquilo que eles apenas haviam esboçado, endireita
o que eles haviam deformado, harmoniza com verdades novas o que eles tinham deixado
sem nexo. Mais tarde, fá-los-á reinar, com seus êmulos, em face da sua própria apoteose
simbólica, no próprio palácio do Vaticano.
A Disputado Santíssimo
Sacramento, de um lado, e a Escola de Atenas, do outro, decorando a Stanza della
Segnatura, interpretam o "selo do pescador" como uma aceitação de todo
o humano incorporado a todo o divino, para que Deus seja tudo de todos, e de tudo.
Não é segredo para nós
que a Revelação é a salvação da razão, e que a luz que ilumina todo homem que vem
a este mundo, se tem o seu foco divino no pensamento evangélico, sabe reconhecer-se
também nos achados dos homens. De uma religião nada sistemática em si mesma, e de
uma filosofia (a de Aristóteles) arreligiosa no fundo, mas em que o pensamento grego
atingia o ponto culminante da sua força e da sua luminosa harmonia, a Igreja, representada
pelo maior de seus doutores, fará a Suma Teológica, a obra filosófica mais religiosa
e a obra religiosa mais filosófica que jamais tenha aparecido.
O que eu digo da filosofia
aplica-se, sem que seja necessário demorarmo-nos nisto, a todos os aspectos, tão
variados, da civilização helênica. A arte de nossas catacumbas e de nossas basílicas
outrora não é senão a arte grega, degenerada, é verdade, mas aceita tal qual, e
admitida ao batismo, enquanto aguarda ser confirmada, alimentada com o sangue de
Cristo, absolvida de suas taras, casada com a divina Esposa, à qual dará esta gloriosa
filha: a arte cristã. Prova de que o Espírito criador, servido pelo gênio do homem,
não é menos artífice de beleza do que de prosperidade em qualquer domínio, de verdade
e de virtude.
Enfim, eu disse que ao
gênio romano a Igreja toma emprestado o seu espírito de governo, o seu senso do
legal, a sua capacidade de reger a um tempo larga e firmemente as realidades humanas.
O direito canônico, desde o inicio, enceta a larga curva que ainda não está fechada,
que nunca o estará; sem pestanejar, vai buscar as suas mais precisas determinações
à ciência jurídica de Roma. Submete-as, bem entendido, à sua matéria e aos seus
fins - às vezes não o bastante, talvez: mais de uma vez, ao longo da história, notar-se-iam
reminiscências da dureza romana a respeito de súditos regidos pela lei de amor;
mas, no conjunto, a utilização segue sempre a mesma regra: envolvimento assimilador,
entrada de tudo sob uma lei de vida que se endereça a tudo, querendo fazer realizar
seus fins o homem todo.
Por si mesmo se concebe
que a recíproca devia também ter lugar. O direito canônico influenciou todos os
pensamentos jurídicos da nossa era; ele olhava de mais alto, e, daí, a mais profundo:
devia-se recorrer a ele para julgar das maiores causas. Pena é não se fazer isto
ainda mais nestes nossos tempos de dispersão de espírito!
E, se se trata dos elementos
propriamente religiosos encontrados pela Igreja no momento do seu nascimento e no
curso dos seus primeiros desenvolvimentos, já não sucede com eles inteiramente o
que sucede com os produtos da civilização geral. Os empréstimos, aqui, reclamam
prudência. É preciso não se expor a incorporar germes mórbidos, e aquilo mesmo que
mais tarde será nutriente pode ser mórbido no estado nascente.
Já lembrei que o primeiro
cuidado da Igreja deve ser diferenciar-se, a fim de se definir. Uma vez bem reconhecido
o que ela é, poderá ela entregar-se sem perigo a um trabalho de adaptação, em mira
a um enriquecimento dos seus quadros.
É no começo do século
II que a Igreja, conquistando todo o escol social, tem com que se fazer julgar tal
como é, e pode pois tranquilamente apropriar-se de elementos úteis sem se arriscar
a ver-se confundir com cultos doravante vencidos. Nesse momento, aliás, estando
encerradas as perseguições, a dilatação da Igreja e o seu estabelecimento pacífico
criam necessidades novas, que os contingentes estranhos ajudarão a satisfazer.
É assim que Gregório,
o Taumaturgo, seguido nisso por todos os seus colegas, introduz em Neo-Cesareia
costumes religiosos tirados do paganismo, mas que, bons em si mesmo, em todo caso
indiferentes, podem adaptar-se às crenças cristãs. Festas, banquetes simbólicos,
datas consagradas por longos usos são batizados, após serem cuidadosamente expurgados
ou explicados. Dá-se com eles o que se dá com os edifícios religiosos dos pagãos,
que são mudados de destinação, conservando-se. A intolerância necessária mostra-se
assim isenta de fanatismo e de mesquinha impertinência. Ao mesmo tempo ostenta-se
a liberdade do espírito religioso a respeito dos ritos acessórios, quando no paganismo
o rito é tudo, e a interioridade ad libitum.
A liturgia acha, assim,
como progredir no sentido da amplitude e do senso estético. A clareza majestosa
e a bela ordenação gregas juntam-se à vida interior de que a Igreja tem o monopólio.
O exterior poderá corresponder ao interior; o gesto secreto assumirá a amplitude
de um gesto de multidão, para que a Igreja também ore, e pelo seu corpo tanto quanto
pela sua alma.
A terminologia sagrada
segue um movimento paralelo: vemo-la enriquecer-se de termos figurados tirados da
poesia antiga, veiculados por meio de religiões rejeitadas, mas não inteiramente
perversas. Os exorcismos solenes, as lustrações de água benta, as velas, as túnicas
brancas, as procissões à imitação dos Panateneus, tiram daí sua origem.
A Festa de Natal, que
faz coincidir o nascimento de Jesus com a festa do Sol invicto, (Natalis invicti)
lembra a cristãos recentes que o Senhor deles, nascendo em Belém, é que é o verdadeiro
sol dos homens.
Agir assim não é pactuar,
é ligar-se a tradições purificadas, a utilidades psicológicas ou sociais, a recordações,
a valores de arte que, já não sendo veneno, se tornam alimento. O que os povos mais
artistas ou mais religiosos do universo tinham achado não podia ser inteiramente
vão. Não eram esses os odres velhos, o vestido velho em que o remendo novo do Evangelho
não devia ser cosido; era o receptáculo eterno dos sentimentos humanos; era a veste
de natureza que não se podia tirar fora sem dilacerar o homem, sem mutilar a história,
que representa as etapas da vida do homem.
Essa adoção dos costumes
pagãos, regulada com prudência, permitiu a utilização dos sentimentos e instintos
que sustentavam os cultos locais; com isso, ela fornece À penetração evangélica
uma grande força. O culto dos mortos, o culto dos demônios ou espíritos dos mortos
que tinham sido piedosos, o culto dos protetores domésticos: penates, lares, genius,
etc., representavam as mais antigas devoções conhecidas, e por isso as mais tenazes.
Expulsá-las sem substituí-las era difícil, e aliás não se devia. O culto dos santos
e dos mártires lá estava para auxiliar a substituição; ele compensava no espírito
das multidões a perda das pequenas divindades populares. Quando se tira a uma criança
a chupeta, ela depressa se consola se em lugar da chupeta lhe dão pão.
É bem conhecido o caso
daquele bispo do Gévaduan, de que Gregório de Tours fala na sua Glória dos Confessores.
Após vãos esforços para desarraigar o culto idolátrico do monte Helànus, que consistia
em atirar oferendas numa lagoa e em se lhe banquetear nas margens para se tornar
favoráveis os seus gênios, teve ele a ideia de fundar no lugar um oratório a Santo
Hilário de Poitiers, com suas relíquias. Os campônios afluíram, e aquilo que atiravam
no lago consagraram-no de então por diante às caridades do novo santuário.
Isso se fazia mais ou
menos em toda parte, e mui sensatamente, pensem o que pensarem alguns. O culto dos
nossos santos, bem compreendido, não é a idolatria que o protestantismo pretende;
significa intercessão, união universal dos homens em Cristo e solidariedade nesse
Vínculo, isto é, depois da ideia de Deus, a mais alta das idéias religiosas. Digamos
melhor, ele evoca toda a religião, se o encararmos do lado do homem.
Produziram-se abusos;
produzem-se ainda; a veneração e a adoração nem sempre foram bem distinguidas, mormente
no inicio, por homens rústicos, e o egoísmo mais de uma vez invadiu o terreno dos
sentimentos religiosos; mas isso não era culpa da Igreja. A grande construtora constrói;
admite o risco. Paris espiritual não se constrói, tão pouco, num dia. Antes de exigir
de todos a perfeição cristã, era preciso ligar as massas ao princípio cristão.
Melhor não posso concluir,
nem acentuar uma última vez o caráter assimilador, ao mesmo tempo que separador,
atribuído à nossa Igreja, senão por estes textos de um dissidente que podemos plenamente
fazer nossos:
"A religião cristã,
diz Harnack, apresentou-se desde o começo com um caráter de universalidade em virtude
do qual pôs seu cunho sobre a vida inteira, com todas as suas funções, com suas
alturas e profundezas, seus sentimentos, seus pensamentos, seus atos. Só afastou
a desonra e o pecado. Construiu-se com tudo o que ainda era capaz de viver, e isso
graças ao seu poder de organização. Fora dela, quebrou tudo; em si mesma, tudo conservou.
Podia isso, porque - sem dúvida ninguém o dizia e ninguém o sabia, mas cada alma
piedosa o realizava em si mesma - porque, considerada na sua essência, era alguma
coisa de simples, digamos antes de universal, ou católico, que podia unir-se a todos
os coeficientes, que os reclamava mesmo".
Duvido que qualquer autor
católico tenha apresentado um argumento de apologética interna mais impressionante
e em termos mais fortes.
"Ela, continua Harnack,
permaneceu exclusiva, atraindo entretanto a si todo elemento estranho que tinha
um valor qualquer. Foi por este sinal que ela venceu; pois sobre tudo o que é humano
- eterno ou transitório - ela colocou a cruz, e desde então submeteu tudo ao além".
Donde esta conclusão naturalíssima:
"Se o houvessem traduzido (o cristianismo) perante um tribunal, para lhe perguntarem
com que direito admitira tantas novidades, (e acrescentarei: pilhara tantos adversários)
ele teria respondido: Não sou culpado; só fiz desenvolver os germes que haviam sido
depositados em mim desde o inicio da minha existência".
É bem e sempre a mesma
imagem, a mais expressiva das que se podem aplicar à Igreja. A Igreja é um germe
que se desenvolve às expensas do seu meio, vivendo do seu meio sem lhe pertencer
nem se comprometer nele.
Intransigência e plasticidade
são os seus dois caracteres complementares; eles explicam toda a sua história; explicam
mui primeiramente o seu início.
O que, nas possantes evoluções
que lhe compõem o destino, se transforma, não é ela - ou, pelo menos, as suas transformações
são as do grão, que evolui na mesma essência; - o que se transforma, verdadeiramente,
é aquilo que ela vive, sendo uma desnaturação enriquecedora a condição imposta seja
ao que for para ter acesso à substância.
Ela absorve e não é absorvida.
Só aceita as luzes terrenas como matizes de transição para conduzir ao seu sol ou
para acompanhar o seu sol - sublime halo que o astro divino, seu centro, irisa nas
nuvens da nossa atmosfera; claridade suave que transforma em joias as agulhinhas
de gelo do nosso ar e tamisa no entanto o esplendor obcecante; clarão difuso, clarão
cambiante, que leva a irradiação mais longe e coloreia de beleza terreal a inacessível
vibração da pura luz dos céus.
"Instaurar tudo em
Cristo", em Cristo socializado que é a Igreja; divinizar assim tudo o que é
do homem e humanizar tudo que é de Deus: este é o programa. É ao que tendem todos
os empréstimos que, sem que jamais se esgote o seu poder e envolvimento e de vivificação,
o Evangelho eterno fez e há de fazer à eterna e universal civilização.
CAPÍTULO 6 - A IGREJA EM FACE DOS CÉSARES
A Igreja em face dos séculos
antigos para se prender neles, em face de si mesma para se constituir, em face do
seu meio natural para nele se apoiar, para se distinguir dele na medida necessária
e com isso conquistá-lo: tal é a visão de que até aqui penetramos os nossos olhares.
A que reservávamos para
sob este título: A Igreja em face dos Césares, deve mostrar-nos a obra de Cristo
em luta com as potências deste mundo de que ela mais poderia ter que temer, se algo
de sobre-humano não estivesse nela, prontinho a medir-se com o humano levado ao
máximo - e armado - representado por esta palavra tradicional: César. Insistindo
sobre o sentido ampliado, e de alguma sorte simbólico, deste termo, poder-se-ia
dizer: a Igreja não esperou estar em face dos Césares para experimentar César. Um
César domestico faz-se ver apressado, desde o tempo de Jerusalém, a zombar da familiazinha
heróica, depois de lhe haver matado o Mestre.
A Paixão foi antes de
tudo um crime judeu; o Império só indiretamente tomou parte nela, trazendo-lhe uma
cumplicidade administrativa, se assim posso dizer, cobrindo com sua assinatura uma
sentença imposta por outros. A Paixão continua sob as mesmas responsabilidades enquanto
o judaísmo continua sendo a moldura política do cristianismo nascente. Nascida na
cruz do Rei dos Judeus, a Igreja aí fica. Predisse-o o Salvador: "O servo não
está acima do amo". "Se eles assim trataram a lenha verde, que farão da
lenha seca?". (Jo 13,16; Lc 23,31.)
Sob Herodes Antipas, João
Batista e Jesus pereceram. Sob Agripa 1º, Estevão, Tiago, filho de Zebedeu, e Tiago,
o irmão do Senhor, perecem por sua vez. Outros são flagelados. No ano 34 aproximadamente,
a perseguição é bastante forte para dispersar o rebanho - que, como vimos, aproveita
isso para enxamear, especialmente em Antioquia.
As razões da atitude adotada
pelo sinédrio para com a seita nova não são todas elas religiosas, nem judias. A
política romana já entra aí por alguma coisa. Acaso Caifás não disse, perfidamente
é certo, mas apoiado em aparências plausíveis: "É melhor que morra um homem
do que todo o povo?". Desde esse momento, pois, temiam-se dificuldades da parte
dos Romanos. A sinceridade religiosa e a independência ardente dos discípulos de
Cristo fazem deles uns perturbadores, ao olhos de uma administração já sobrecarregada
de querelas e maçada com as combinazioni judaicas.
Quando, pelo fim do século
I, o êxodo da Igreja for consumado, Jerusalém destruída e todo poder político de
Israel abolido, as pequenas dificuldades locais cederão à grande tormenta cujas
causas temos de dizer.
Em principio, entre os
Antigos, o homem que pratica uma religião diversa da do seu país está em situação
daquele que se põe a serviço dum exército estrangeiro ou que muda de pátria. Mas
a fusão dos Estados ou suas combinações políticas, por meio do direito de cidade
diversamente praticado, leva a compor, em religião como em tudo o mais. Estabelece-se
uma larga tolerância, que não é um progresso religioso, que é um ceticismo disfarçado
nos dirigentes e uma superstição agravada nos outros. Os que crêem na pluralidade
dos deuses não se incomodam com a existência de mais alguns. Desde que o interesse
e o instinto social se acham postos a coberto, a introdução de divindades novas
excita apenas uma curiosidade benévola, ou um sorriso indiferente, ou um vago temor
reverencial.
Num sistema mitológico
complicado, em que os censos são sempre provisórios, há sempre uma porta aberta;
ninguém se admira de ver passarem a ele divindades novas - que aliás muitíssimas
vezes só são novas de nome. Que importa seja Deméter chamada Ísis pelos Egípcios
e introduzida em Roma sob esse vocábulo estrangeiro, como uma filha que volta a
habitar na casa dos pais depois do casamento?
Os judeus e os cristãos
têm princípios inteiramente outros e estados de espírito inteiramente diversos.
Aos olhos deles, a Divindade não é um patrimônio nacional, nem tão pouco - menos
ainda - uma confederação indeterminada em número e em forma. O Deus deles é Deus;
os outros são meros demônios ou sonhos, cujo culto é pura impiedade e puerilidade,
excitando sucessivamente ou ao mesmo tempo a risota e a indignação virtuosa.
Compreende-se a reação
hostil que tais concepções devem provocar, e a solidariedade que deve estabelecer-se
entre os cultos pagãos mais divididos, quando se trata de troçar semelhante intolerância.
Plínio e Tácito chamam os judeus uma raça célebre pelo seu desprezo dos deuses,
e que considera como profano tudo o que os outros têm como sagrado. Em regime pagão,
e dada a confusão permanente do espiritual com o temporal, isso quase não se perdoa.
Todavia, acha-se jeito
de arranjar-se finalmente com os judeus. A não ser que se tornem cidadãos romanos,
caso em que as dificuldades sobrevém e se resolvem de diversas maneiras assaz arbitrárias,
eles beneficiam da tolerância geral. As perseguições consistem pra eles, as mais
das vezes, em imposições de tributo. O dinheiro é o preço da sua liberdade. Tudo
se compra junto a gente para quem o espiritual é antes de tudo negócio temporal,
negócio de Estado. A irreligião só é perseguida a título de anarquia: já não se
é anarquista quando se paga para a administração da ordem. Os judeus tornam-se excelentes
servidores de Júpiter Capitolino, desviando em proveito dele o didracma que os Ben-Israel
pagavam ao Templo antes da destruição do santuário. Vespasiano, em todo o caso,
assim decide.
Mas o cristianismo não
é por muito tempo confundido com sua mãe, a sinagoga. Mãe desnaturada, esta retoma
muitas vezes à sua conta o papel de Judas. Interesseira, odienta, ela não quer ligar
a sua sorte política à de gente que a abandona cada vez mais, que goza dos seus
privilégios e a compromete pelos seus excessos de zelo. Sucede serem judeus os primeiros
a denunciar os cristãos às autoridades romanas.
Isso não é muito necessário.
Para desvantagem deles, cedo se discerne gente tão extraordinária como esses cristãos.
O seu gênero de vida separado, intenso e tão oposto ao século, expõe-nos às represálias
de sentimentos melindrados e de malevolências exacerbadas por toda sorte de interesses
comprometidos. Toquei neste último ponto a propósito das conquistas da Igreja.
Calúnias atrozes circulam.
Os ritos mais sagrados, que se julga bom manter secretos por prudência, tornam-se
por esse fato ocasião de acusações infames. Os ágapes noturnos são convertidos em
saturnais capazes de fazer corar as saturnais; a eucaristia vira antropofagia: é
uma criança que degolam para comerem.
Essas invenções odiosas
e tolas acham crédito junto às massas como nos nossos dias o anticlericalismo. Deus
sabe o que se chega a fazer engolir, mesmo alhures! Conheci um astrônomo persuadido
da existência de uma comunicação subterrânea entre um convento de homens e um convento
de mulheres, em seu país. Haviam-lhe dito isso. Sem dúvida haviam colhido isso nos
astros. Gente mui grave, como Tácito, como Suetônio, são os astrônomos daquele tempo.
(Cf. Tácito, Anais, 15,44.) Consideram os cristãos como dignos de todos os castigos,
por motivo político sem dúvida alguma, mas também por causa de vícios privados acreditados
sobre a autoridade dos dizem. O dicuntur e o ferunt dos Romanos não têm menos poder
do que os nossos parece, dizem.
Essas calúnias são bastante
espalhadas para que São Justino diga que consagra a sua apologia "àqueles a
quem o gênero humano inteiro odeia e persegue". O gênero humano é o mundo romanizado
que eu descrevi, e é certo que nossos primeiros pais, com suas ideias tão diferentes
em tudo, tão definidas, tão nobremente intransigentes, devem fazer aí uma figura
difícil de olhar a sangue-frio. Ou as pessoas se rendem, ou se opõem, o que quer
dizer que ou são hostis ou são odiadas, sem matizes intermediários.
Pensai que a vida social,
impregnada de paganismo, é quase impossível aos fiéis. Viver é apostatar: não há
senão esquivar-se ou morrer - a não ser que se vença. Os nascimentos, os casamentos,
as festas de família, os atos da vida agrícola: semeaduras, colheitas, vindimas,
tudo, na ordem privada, serve de pretexto a atos religiosos: libações, incenso oferecido
aos deuses ou banquetes mais ou menos rituais. Quando vos convidam à sua mesa, num
dia de festa, escrevem-vos, como achamos num papiro do século II: Tomai lugar "à
mesa do Senhor Serápis, a 16 do mês".
Caráter semelhante têm
os divertimentos populares. As instituições civis e militares supõem juramentos
religiosos; as funções inauguram-se ou correm risco de inaugurar-se de maneira ritual.
Recusar-se a tudo isso, é irritar o gênero humano em grau verdadeiramente insuportável.
E a misantropia complica-se
aqui de rebelião, visto como, ao mesmo tempo que se recusam as ações cotidianas,
recusa-se a participação nos serviços públicos, que têm o caráter de um dever. Todos
os cultos cedem ante a vida romana; todos com ela se acomodam fácil ou respeitosamente;
só o cristianismo se enrija: convida a que o quebrem.
Por outro lado, a sobriedade
das suas crenças faz os cristãos passarem como racionalistas aos olhos de pessoas
que porfiam em complicar e em subtilizar. A ideia nítida que eles têm o Deus uno
fá-los passar por ímpios - como Sócrates, - nisto que o Deus que eles adoram só
parece definir-se pela negação dos outros. Afirmar uma coisa sobre mil não é, "grosso
modo", negar tudo? Desprezar o panteão inteiro, salvo um Deus, é uma impiedade
manifesta. É bem ruim o caso dos cristãos.
É tão ruim o caso deles,
que eles são acusados de maneira a não acharem saída senão para o túmulo. A tolerância
romana, tão ampla, tão universal até então, chega a dizer: sede tudo que quiserdes,
menos cristãos.
A partir de que época
o cristianismo é considerado juridicamente como religio illicita, não se sabe bem.
Isso pode ser muito cedo. Em todo caso, no tempo de Tarjano (98-117) a questão não
se presta mais a dúvida. O simples fato de ser cristão basta ao juiz. Não há necessidade
de articular outra acusação. Magia, incesto, infanticídio, lesa-majestade ou sacrilégio,
todas estas imputações absurdas ou atrozes com que o povo os agrava já não têm mais
que se justificar no pretório. "Que é que recitais nas vossas tabuinhas? Clama
os juízes o veemente Tertuliano. Fulano, cristão? E por que também não: e homicida?"
Poder-se-lhe-ia responder: é inútil; os cristãos, como tais, estão fora da lei do
Estado, lei que é religiosa ao mesmo tempo que política, porque é política.
Isso não é de admirar.
E será abusivo? Sim, evidentemente, em si, visto que se persegue a verdade. Ao invés
de sacrificar o cristianismo a um dogma social inferior, a atitude correta seria
escutar, convencer-se, visto haver de quê, e render-se. Mas isso de maneira alguma
prova que tal magistrado, tal imperador não possa estar, ele "subjetivamente",
muito em regra com a sua consciência.
O cristianismo instaura
uma revolução: deve esperar pela sorte dos revolucionários, isto é, pela oposição
não somente das pessoas mal intencionadas, mas também dos homens de ordem no sentido
estrito do termo, dos conservadores e dos sectários políticos que ele não tiver
conseguido imediatamente converter. Quando os homens de ordem são Nero ou Domiciano,
devem-se ver coisas piores!
Coisa surpreendente: é
sob um sapientíssimo imperador, Marco Aurélio, que os tempos se tornam os mais duros
para o cristianismo. As cenas horríveis e gloriosas dos mártires de Lião, as de
Cartago, datam do fim desse reinado. Há para isso razões gerais e razões locais;
porém os preconceitos do Imperador, tanto mais inextirpáveis quanto são refletidos,
a recusa de examinar os fatos, pois a teoria acalma a consciência, a aplicação cega
das leis do império, devem entregar os cristãos, sob esse imperador, aos rigores
de uma serenidade sem entranhas. Só depois desse alto filósofo, e, ó ironia! Sob
um dos imperadores mais odiosos que Roma teve, Cômodo, é que a tranquilidade volta.
Para compreender isso,
importa observar que, a respeito de semelhante problema, os imperadores não são
tudo. Um imperador nunca é tudo. Mesmo um Estado centralizado ao máximo, a centralização
só relativa pode ser. Entre nós, a sorte do pequeno editor ou do funcionário não
depende tanto do governo como do prefeito, dos "comitês" locais, do deputado,
até mesmo de um intrigante sem mandato. A política local pesa sobre o indivíduo
mais do que a política geral do Estado, e o tirante é mais de temer do que o tirano.
Quando há contra vós,
notadamente, isso a que se chama "as leis existentes", nunca estais em
segurança, porquanto, tivesse o poder central intenção de deixar dormir o instrumento
de suplício, desde o momento que ele não pode ou não quer suprimi-lo, a gente se
arrisca sempre a ver o cutelo desprender-se, mesmo quando a mão dele permanece inerte.
Portanto, mesmo com bons
imperadores, os cristãos vivem sob a ameaça constante, e, periodicamente, sob a
ação do martírio. Quando César esquece a razão de Estado ou acha nela motivo de
tolerância, o que sucede, nem por isso nossos pais deixam de ficar sendo uma caça
perseguida, em todo caso disponível, visto como não merece aos olhos de quem quer
que seja, no mundo político, a menor benevolência. Ao primeiro sobressalto de ódio
popular, graças ao menor incidente local, ou em razão de uma malevolência individual
um pouco poderosa, tudo é posto novamente em questão, e a morte trabalha.
Isso explica suficientemente
os fatos até o fim do século II. Depois, intervém um elemento moral inteiramente
novo: o medo. As pessoas se lembram das palavras de Domiciano: "Eu preferiria
suportar um rival em Roma a suportar um bispo cristão". Semelhante sentimento
mostra o quanto está mudada a situação entre a Igreja cristã e o Império. A Igreja
tornou-se uma potência. A arrogância serena de um Marco Aurélio ou a segurança de
um Adriano já não são admissíveis. A Filosofia acaba de mostrar o que vale. O sincretismo
religioso desacredita-se, e, sob os olhares da autoridade romana, o rebanho de Cristo
estende-se de maneira a mais inquietadora. O tempo vai chegar em que o perseguido
de ontem será o vencedor; o leãozinho, que fora tomado como caça vulgar, mostrar-se-á
o "leão de Judá" e pulo irresistível. Antes disso, deve ser tentado o
esforço supremo.
Tentam-no, e a perseguição
de Diocleciano, a que se chamou a era dos mártires, datando a 9 de Agosto de 284,
é o ponto culminante desse período.
Não se põe nela, aliás,
grande continuidade; procede-se por acessos. Quanto ao resultado, este dá razão
à palavra de Tertuliano, tão ousada, tão consciente do milagre na sua forma mais
trágica, senão mais alta: "Sanguis martyrum sêmen christianorum; o sangue dos
mártires é semente de cristãos".
Cumpre relembrar as leis
dessa germinação cruenta, dizer por que as crueldades dos Césares resultam às avessas,
como é que não descoroçoam o lealismo dos cristãos, mas do que nunca afeiçoados
ao Império à medida que dele sofrem, e que atitude enfim sabem guardar heroicamente
homens em quem o ódio devia produzir naturalmente o ódio, mas em quem, ao contrário,
produz o amor e o triunfo social do amor.
CAPÍTULO 7 - A IGREJA EM FACE DOS CÉSARES
As razões do triunfo dos
vencidos, na luta desigual da Igreja com o Império, são antes de tudo de ordem sobrenatural.
Aqui, como também quando se tratava de um extraordinário crescimento - as duas questões,
ademais, são conexas - não se pode afastar o milagre. Quem quer que pense nisso
com o sentimento do real e do possível humano parece dever consentir nisto. Não
é necessário e não é eficaz, aqui, raciocinar; basta ver, mas ver com os olhos da
alma.
Todavia, o sobrenatural
tem seus meios naturais, que nem por isso são as suas causas; ele segue uma marcha;
para agir num plano superior ao homem, toma seus pontos de apoio no homem. Há, pois,
razão para inquirir das causas humanas que intervieram aqui, o que redunda em perguntar
que caminhos seguiu a Providência em favor do seu miraculoso.
Bem parece que as razões
de vitória devem ser buscadas antes de tudo nos sentimentos que a perseguição excita,
quer nos expectadores generosos - e isto, já o dissemos - quer nos próprios perseguidos.
Milagre de generosidade em ambos os casos, milagre de graça, com a cooperação da
natureza.
Os que desdenham os sentimentos,
ligando orgulhosamente toda a marcha do mundo a sistemas políticos, ou, baixamente,
a fatalidades econômicas, recebem aí um desmentido. O martírio, dominante dos sentimentos
inebriados e cantantes da alma cristã primitiva, desempenha um papel capital na
harmonia pautada por Cristo; e, admitido o ponto de partida, concebe-se que essa
harmonia seja destinada a expandir-se em ondas cada vez mais longas no concerto,
embalde dissonante, deste mundo: "O exemplo da morte dos mártires nos toca,
escreveu Pascal, porque são nossos membros".
O martírio é o heroísmo
do amor, e, após as nítidas declarações do Salvador, o amor aparece como o centro
da doutrina e a pedra de toque da prática. "Ninguém tem maior amor do que aquele
que dá a vida por seus amigos": esta palavra do Mestre, que ele aplicou a si
mesmo, aplicam-na a si os verdadeiros cristãos. Prontinhos a lhe provarem o sabor
delicado e áspero, eles haurem nelas esse sentido do supremo que favorece o estado
nascente de todos os grandes movimentos humanos, e, com maioria de razão, de uma
obra antes de tudo divina.
Do ponto de vista da "salvação",
isto é, do êxito pessoal da vida, de que nenhum de nós tem o direito de se desinteressar,
visto que a vontade providencial coincide aqui com o mais decisivo interesse, visto
que cada um recebeu o encargo de si mesmo antes de ser encarregado de outrem - deste
ponto de vista, digo, pessoal, mas não egoísta, o martírio é o meio por excelência.
Ele une a Cristo na morte, e portanto na vida ao máximo, constituindo um ato último,
de todos os mais vital; e por isso mesmo nos une a Cristo na sua ressurreição, já
que, para nós como para ele, a morte é uma mera passagem.
A teoria do batismo de
sangue, que é primitiva, e que parece ser considerada no início como uma evidência,
estabelece o candidato ao martírio na segurança de uma glória celeste imediata e
fá-lo repudiar o medo. "Não temais os que matam o corpo e depois nada mais
têm a fazer", disse o Senhor. Esse sublime "nada mais", esse "depois
disso" dizem muita coisa sobre o desdém daquilo que passa em relação àquilo
que fica. Que é matar o corpo, se não é libertar a alma, que os seus pecados passados
e os seus receios de futuro oprimiam?
Tem-se o direito de pensar
que a glória humana religiosamente encarada, isto é, como uma nobre emulação para
o bem e como uma alegria de, a título de herói, existir no pensamento de seus irmãos,
na lembrança perpétua da Igreja, não é estranha a esse apetite de morrer. Chama-se
aos mártires os bem-aventurados, os benditos, os atletas, os magnânimos. Invocam-nos;
eles conferem indulgências por meio do bilhete de paz; (libellus pacis) conservam-se
os seus restos mortais; visitam-se-lhes os túmulos; erigem-se altares sobre suas
ossadas; celebram-se-lhes os aniversários; poesias, como as de Pindaro sobre os
atletas dos jogos, eternizam esses atletas da alma. Tudo isso torna-se um apelo
magnífico aos grandes corações.
O amor ao risco, de que
nos têm falado eloquentemente, e de que um esporte novo, como ontem a aviação, basta
para exaltar os vôos mais belos do que os de engenhos toda via admiráveis, acha
aí matéria bem diversa. A cada instante e como pelo efeito de um contágio irresistível,
vêem-se guardas de prisão ou algozes juntar-se ao rebanho de suas vítimas, e declarar
que também querem morrer.
Essa persuasão de que
morrer é um lucro, quando é por Cristo, torna mais fácil sem dúvida a nossos pais
o cumprimento, mesmo nessas circunstâncias extremas, do preceito evangélico: Amai
os vossos inimigos; fazei bem aos que vos perseguem. Quando, no dizer dos Atos,
(At 5,41.) os apóstolos sofreram o suplicio do flagelo, logo no inicio do seu ministério
em Jerusalém, "lá se iam alegres por terem sido julgados dignos de sofrer o
opróbrio pelo nome de Cristo". Quando se nutrem tais sentimentos, a cólera
já não tem lugar; pensa-se tranquilamente no algoz; pensa-se nele tristemente, pelo
seu erro, se é de boa fé, e, no caso contrário, pelo seu crime.
Os dois casos aqui se
apresentam, e não o ignoram os cristãos. No conjunto, estes atribuem a resistência
do mundo ao poder de Satanás, artífice de malícia e de erro no meio dos homens.
Estes últimos são vítimas dele, antes de serem seus colaboradores. É, pois, sobre
ele que se faz recair a detestação. Digamos mais simplesmente, como o dirá mais
tarde Agostinho: o cristão odeia o mal amando quem o faz.
César, isto é, o Estado,
se beneficia desse sentimento. Sente-se que ele é escravo do Maligno, já que a idolatria
- essencialmente diabólica para nossos pais - é a lei social; mas ama-se a César
como criatura de Deus, de Deus que fez os governos, tendo feito os povos; ama-se
como benfeitor temporal, visto como, fora da religião, ele protege e desenvolve
a vida coletiva, de que os cristãos não entendem de se abstrair. Ama-se também a
César instintivamente, como se ama o seu meio natural, o seu berço ampliado, a sua
pátria de corpo e de alma.
Daí esse lealismo, que
é bem impressionante em homens perseguidos de morte, e que não se desmente. São
Paulo disse: "Submeta-se toda alma aos poderes superiores, pois não há poder
que não venha de Deus... Aquele, pois, que se opõe aos poderes resiste à ordem de
Deus". (Rm 13,1.) É verdade que ele assim falava num período de calma; mas
era no dia seguinte às atrocidades de Nero, e o epistoleiro incomparável poderia
ter visto sua página iluminada pelas tochas vivas em que se consumiam seus irmãos.
Pedro, por seu turno, repete: "Temei a Deus, honrai o rei", (1, Pedro
2,17.) esse rei que ia crucificá-lo.
Tertuliano faz notar que
nunca os cristãos estiveram metidos nas sedições; que jamais os conspiradores, os
Albinos, os Cássios, os Nigros, os tiveram por cúmplices. "César, escreve ele
fortemente, é mais César para nós do que para os outros romanos, tendo sido, como
foi, constituído César por nosso Deus". (Tertuliano, Apologeticum, 33.) Estas
são grandes palavras; são e serão sempre de tradição na Igreja.
Mas isso não impede que
se seja oprimido pelo Império romano como por um poder satânico ao mesmo tempo que
divino. Ele é divino como emanado d'Aquele que tudo rege, e como executor das suas
vontades relativas à ordem social; é satânico porque mistura à justiça de suas exigências
políticas a injustiça das suas pretensões religiosas e dos seus furores.
Estes dois pontos de vista
são em toda parte reconhecíveis na atitude cristã das origens. A ele se liga uma
teologia que causa estranheza a certos espíritos e que, no entanto, é das mais racionais.
De um lado se diz: obedecei aos chefes políticos por causa de Deus; em certas circunstâncias
se diz: "é melhor obedecer a Deus do que aos homens". (At 5,29.) Isto
não se contradiz. Há objetos a cujo respeito a consciência individual está ligada
a Deus por intermédio do poder social. Outros há em que ela mesma é juiz, sentindo
Deus dentro - como é o caso da lei natural - ou encontrando-o numa autoridade de
ordem à parte, como a autoridade religiosa, que o representa diretamente, sem ter
de passar pelo estado.
Essas competências diversas
fazem a diversidade da atitude cristã. Onde quer que César seja juiz, obedece-se
a César. Onde quer que a consciência seja juiz, obedece-se à consciência. E esse
dualismo é tanto mais acentuado quanto há aí uma oposição mais completa entre o
que a consciência exige e o que é reclamado abusivamente por um poder opressor,
que nem por isso decaiu dos seus direitos.
A política cristã sabe
assim conciliar tudo: o indivíduo e o Estado, Deus e o homem, insistindo no sentido
do estado quando este está apegado aos seus deveres e é respeitador dos seus limites,
e pendendo para o lado da consciência quando o Estado abusa, e exige fora do direito.
Este último termo da alternativa é o que nos ocupa; é por isso que essa época de
sofrimento e de ardor é o ponto de partida histórico disso a que se tem chamado,
depois, os direitos do homem. O indivíduo imortal, filho de Deus e cidadão da cidade
eterna, erguendo-se humildemente em face das forças coletivas que a palavra César
representa aos nossos olhos, foi o cristianismo primitivo quem criou essa grandeza.
Não a conhecia a antiguidade.
As suas idéias covardes sobre a natureza do ser humano e sobre os seus destinos
não lhe permitiam fazer dele outra coisa senão uma abelha subordinada à colméia,
ou um pato selvagem elemento do triângulo enterrado no céu azul. Exceder em relação
ao seu grupo; fazer bando à parte no espiritual e reservar o seu "quanto a
mim" mesmo no caso em que o espiritual parece tocar no temporal e por este
motivo interessa uma autoridade ciosa e exclusiva, é uma ideia que se não tolera
numa sociedade ou materialista ou, em todo caso, mal segura dos porvires humanos,
como é o caso de toda a antiguidade.
Se o homem não passa de
um átomo pensante, destinado a desvanecer-se amanhã no grande todo em cuja obra
a vida efêmera colabora, quem ousará conceber que esse serzinho se erga contra o
todo representado pelos poderes sociais, e diga "não" ao que fica, ele
que passa? Ao que é quase infinito em amplitude, em relação ao que ele pode justificar
de existência? Dir-se-á a esse vermezinho: Submete-te! Se a tua consciência protesta,
deixa-a formar pela consciência do grupo, que não é menos teu educador do que tua
fonte, visto que dele emanaste em corpo e alma.
Diversamente sucede na
hipótese espiritualista, e sobretudo cristã. Sucede mesmo, direi, ao inverso, visto
como então já não é o indivíduo que passa, é o grupo; já não é o indivíduo que é
pequeno, é esse corpo social constituído de nossos pós, vivificado por um tempo
pela vibração de nossas almas, mas que deve esboroar-se mais cedo ou mais tarde,
no mínimo quando o planeta arrefecido rolar, féretro triste, em volta do seu sol
inútil, contemplando-o as almas de longe, do alto de sua glória.
A dignidade do indivíduo,
tal como o cristianismo concebeu e impôs ao mundo, é fundo da política moderna,
na medida em que esta é ciosa do progresso e não sonha com retrogradações opressivas.
Logo no inicio, não parece
esperar-se semelhante conversão do mundo. O pequenino rebanho, tão heróico espiritualmente,
ainda não sonha com uma ação política de que a sua vida espiritual seja a alma.
A grande máquina romana parece dever durar sempre e oprimir sempre os eleitos. É
uma condição a que as pessoas se submetem como a uma vontade providencial. Faz-se
o melhor que se pode para ser um bom cidadão, sendo cristão; mas se, apesar disso
ou por causa disso, é preciso sofrer, sofre-se, e se é preciso morrer, morre-se.
Faz-se como quando se tratou de gozar saúde por dever e se cai doente. Os que suportam
melhor a doença são os mesmos que melhor sabem usar da saúde. Assim os cristãos
fiéis às leis e os melhores servidores do Império, como dizem incansavelmente os
apologistas, são os mais resignados a esse paradoxo atroz que faz deles uns pretensos
revoltosos.
Só mais tarde, quando
a sociedade cristã toma corpo e nela se introduzem elementos pertencentes a todos
os setores, ao exercito, à política, à magistratura, tanto quanto ao povo, que forneceu
os primeiros subsídios, só nesse momento, isto é, a partir do século III, surgem
esperanças novas.
Desde o tempo de Marco
Aurélio, um Meliton sonhava com uma espécie de aliança entre o cristianismo e o
Império, encarregando-se o primeiro, em troca de uma proteção sincera, de fornecer
ao segundo os valores morais que aumentariam imensamente a prosperidade. Orígenes
retoma este tema uns cinquenta anos depois, com muito mais razão de alimentar esperanças,
o que não impede que ele mesmo, torturado em 249, por ocasião da perseguição de
Décio, possa perceber que os tempos ainda não estão maduros.
Pode-se mesmo imaginar
que tais estados de espírito não entram por pouco na recrudescência das perseguições.
Porque o que, no fundo, eles oferecem ao Império é lhe infundirem uma alma nova.
Ora, o Império não quer saber disto. A sua alma lhe basta. Ele crê que ela corresponde
às suas origens e ao seu fim. A Igreja, se o orgulho dele lhe permitisse levá-la
em conta, parecer-lhe-ia aos que estão contentes com este mundo que fecham os ouvidos
aos gritos de apelo que nos vêm de lá de cima
A Igreja não é deste mundo,
e por esta razão age sobre este mundo a fundo, tentando arrancá-lo a si mesmo para
fazê-lo chegar a mais alto do que ele. Para isto é preciso abalar-lhe as raízes.
É a epopéia do Cedro na Légende dês siècles:
Et frissonnant, brisant
Le dur rocher de marbre,
Dressante ses Brás ainsi
qu'um vaisseau ses agres,
Fendant la vieille terre
aicule dês forêts,
Le grand cèdre, arrachant
aux profondes crevasses
Son trone, et as Racine,
et ses ongles vivaces,
S'envola comme un sobre et formidable oiseau.
E, trêmulo, quebrando a dura rocha marmórea,
Erguendo os braços qual
nau que ergue os seus maçames,
Fendendo a vetusta terra
avoenga das matas,
O grande cedro, arrancando
às rachaduras fundas
O tronco, e a raiz, e
as suas unhas vivazes
Evolou-se qual ave lúgubre
e formidanda.
Isso vai bem nos poemas;
mas quando se trata da vida de um Estado, as raízes existem, o solo também, e o
selvícola, César, é sempre tentado a bradar, como João no poema:
Joveaux Venus, laissez
La nature tranquille. (Recém-vindos, deixai tranquila a natureza.)
Mas sim! O paganismo,
aos seus próprios olhos, é "natureza".
Não importa; a perturbação
salutar lançada nos Estados pagãos, primeiro pela existência e depois pela ação
social da Igreja, terá o seu resultado. Despertando as consciências retas, agrupando-as,
a Igreja criará um Estado no Estado. No espiritual, entende-se! Porque no temporal
seria uma grave censura; nós não somos separatistas. Mas no espiritual, é verdade;
um grupo cristão num Estado pagão ou paganizante, é um Estado no Estado, e esse
Estado, mais ativo se é fiel à alma que traz, tende a encerrar o outro, a envolvê-lo
com sua influência para enriquecê-lo de seus dons, para que, tendo posto à frente
das suas preocupações "O reino de Deus e a sua justiça", tudo o mais lhe
seja "dado por acréscimo".
É o que o mundo novo,
que vai suceder ao Império, experimentará pouco a pouco, no positivo, e também,
ai! Quanto a contra prova. Mil desfalecimentos, de fato, limitarão constantemente
os efeitos de uma política cristã difícil de conceber após o longo reinado dos preconceitos,
mas difícil ainda de aplicar a uma matéria sempre parcialmente rebelde. É por isso
que as lutas que acabamos de descrever não cessarão com as circunstâncias em que
as vimos desenrolar-se. Elas são de todos os tempos. E, como já várias vezes insinuei,
há outros Césares em luta com a Igreja que não os soberanos ou os ditadores; os
poderes coletivos também intervém, e esses imensos poderes anônimos que são as civilizações.
Em toda parte onde a Igreja
encontra isso a que o seu Fundador chamava o mundo, isto é, não somente as potências
do mal, mas o que praticamente dá no mesmo, de ver que as culturas humanas pretendem
orgulhosamente bastar-se, os laicismos de todos os jaezes, quer se abriguem nas
Sorbonas, nos tribunais, nas bancas, nas oficinas ou nas escolas, quer inspirem
os sistemas filosóficos, sociais, econômicos, literários, artísticos, etc., a Igreja
ergue-se como adversária, porgue vê em conflito o temporal e o eterno, o insuficiente
e o Único Necessário. Então, é a batalha; em todo caso, é a divisão, visível ou
latente. "A procissão - Escreve Ernesto Hello - passa levando a cruz, e as
criaturas dividem-se à sua passagem. As criaturas dividem-se e nem sempre sabem
que é a cruz que as divide".
Não importa, o mundo não
está acabado, e a esperança é sempre possível. O reino de Cristo, por mais combatido
que seja, subsiste. O que os seus inícios nos fizeram é ver ampliado sob nossos
olhos e pode aguardar com confiança o futuro.
A que ponto chegamos sobre
isto? E que testemunho traz o tempo atual em favor da Igreja cristã, consideradas
as suas aquisições e as suas carências, as suas provações e as suas necessidades?
É a nossa última questão.
CAPÍTULO 8 - A IGREJA EM FACE DO TEMPO
PRESENTE
"Deus fez no meio
de nós uma obra que, desprendida de qualquer outra causa e só dele dependendo, enche
todos os tempos e todos os lugares". (Bousset, Oração fúnebre de Ana de Gonzaga.)
É nestes termos que Bousset julga poder apresentar aos seus contemporâneos a Igreja
eterna. Ele sabe que a Igreja reivindica como fundamento os milagres evangélicos,
e que esta manifestação exterior serve como que de selo ao ato do nascimento dela.
Mas, depois que esses milagres a fundaram e a sustentaram no seu crescimento, no
seu surto de conquista, e na sua resistência aos poderes, ela própria pretende,
como manifestação exterior também do mesmo Deus, o mesmo brilho que por ela como
por eles se faz reconhecer.
Nisso, ela não os suplanta,
continua-os, visto como eles já estão nela. Com eles ela revela o divino no homem.
Ela é uma síntese de milagres e um milagre a mais.
Propriamente, esse milagre
novo consiste na existência entre nós de um organismo social humano-divino e que
leva uma vida humano-divina, mostrando portanto Deus em sociedade com o homem e
o homem em sociedade com Deus.
Esse organismo, nos seus
primórdios, no momento em que todo recém-nascido exerce o mais poderosamente a sua
força assimiladora, deslumbra o mundo pagão. A sua unidade, a sua constituição já
forte, a evidência do seu fermento intenso, a vida do Espírito nela, brilhavam,
e às almas chamadas e predestinadas persuadiam de que a sua pátria ali estava. Como
dissemos, isso fez mais para a conversão do mundo do que os milagres particulares
relatados nos Atos. Esses "sinais" apagavam-se, de alguma sorte, ante
o sinal por excelência.
Hoje em dia, embora o
trabalho do Espírito seja menos visível, em compensação são mais visíveis os seus
resultados. E a Igreja pretende que esse sinal baste, normalmente, para convencer
uma alma atenta e reta. Não nos podemos admirar disto. Se Deus age deveras em cooperação
com o homem, e com o homem social, que evolve no visível, isso deve ver-se. Que
Deus seja aqui como em toda parte o "Deus oculto" a título de causa invisível
em si mesma e que quer ser discreta, isso não impede que fenômenos em que ele desempenha
um papel essencial não possam deixar de revelar a sua presença, se já o coração
o procura.
É preciso para isso o
coração, porque sempre, nas coisas morais, é requerido este ponto de partida, e
porque, aliás, sendo a fé uma graça, semente de vida eterna, não se vê que, para
se revelar, possa o Bem soberano assim oferecido desprezar as disposições morais
de quem se abeira dele. Assente, porém, isto, a convicção deve ser possível, ou
melhor, normalmente falando, a negação impossível. "É impossível que os que
amam a Deus d e todo o seu coração desconheçam a Igreja, tão evidente é ela",
escreveu Pascal.
A vida divina da Igreja
faz-se reconhecer, a quem quer vê-la, pela sua perpetuidade e pelos seus caracteres.
A Igreja é a eternidade no tempo, e a eternidade é simultaneamente uma perpetuidade,
pois envolve o tempo, e uma superioridade de natureza em relação às nossas durações
mutáveis. As durações igualam os seres. Nossas durações, as nossas, são durações
fragmentárias e reduzidas às nossas medidas; a duração de Deus é imutável e infinita
no seu ser, que é o do próprio Deus. Se, pois, Deus vive deveras com o homem na
terra, graças à encarnação continuada e socializada, a vida assim constituída será
dotada conjuntamente de uma perpetuidade indefectível e de uma superioridade relativa
sempre, visto que o homem faz parte dela, mas suficiente para indicar que o homem,
aqui, não está só; que o Autor de seu ser retomou a obra na sua base, para levá-la
mais alto.
Perpetuidade, dizemos
primeiro. Para quem sabe ver, há aí um fato surpreendente. Pela sua própria definição
e pelas suas próprias declarações mil vezes repetidas, a Igreja é obrigada a ser
perpétua. Estranha obrigação essa. O profeta que assim se enfeita com o futuro arrisca-se
cada hora a ser desmentido. Por isso o adversário, sentindo o lado fraco que contra
a instituição e a doutrina uma tal pretensão lhe oferece, apressa-se, ele, a profetizar
a morte da Igreja, a declarar iminente essa morte, a mostrá-la, já assente, por
assim dizer, nos seus pródomos certos.
A tática é boa. Não há
maneira mais segura de arruinar moralmente a Igreja, de que lançar o descrédito
sobre toda a sua duração, do que provar-se se provasse - que essa duração terá um
termo. Se a Igreja deve morrer, ela nada é. Se a Igreja está não somente no tempo,
o que deve ser, porém é súdita do tempo, é que está abandonada ao tempo assim como
tudo o mais, e não está suspensa à eternidade. Por outros termos: se a Igreja morrer,
se morrer numa data qualquer antes do fim do homem - e o homem, em verdade, não
morre-, é que ela é humana somente, é que não é humano-divina, é que não é o que
pretende ser, e para encurtar razões, é que não é nada.
Mas a Igreja não se perturba
com esse perigo, e já há dois mil anos que escuta calmamente os que a ameaçam dele.
Passado tal não seria uma garantia do futuro? Creram-no grandes historiadores, impressionados
não somente com o fato, mas com o estado d'alma que o acompanha, com essa prodigiosa
certeza por entre tantos reveses, com essa tranquilidade no curso e de períodos
históricos movimentados em extremo, diversos e fecundos em surpresas.
Uma tal força psicológica
é por si só um fenômeno surpreendente. Um poder tão seguro de si mesmo e do seu
futuro, tão decidido no que faz e tão pouco inquieto com as contradições, com os
ataques, com os obstáculos, com todas as ciladas que, entretanto, com a sua vasta
experiência, ele sabe armadas sob os passos de todas as instituições: é um desafio.
Que audácia o pretender assim fazer exceção sozinho!
E, não há dizer, o fato
responde; sempre respondeu ao sentimento que a nossa Igreja tem dele, como se esse
sentimento houvesse partido do próprio fato. A Igreja circula entre os acontecimentos
como o sonâmbulo à beira do telhado. O sonâmbulo não cai, guiado que é por um espírito
interior, numa feliz ignorância do perigo que tangencia. Acordai-o, tirai-lhe a
sua inconsciente segurança, feita de certeza vital: ele está perdido. Assim a Igreja
se perdesse a sua fé. Porém não a pode perder. O seu Espírito interior a um só tempo
lhe comunica o sentimento da sua perenidade e lhe dá em toda parte segurança de
si.
A Igreja entende sobreviver
a tudo o que pretende ser o futuro, e já enterrou muitos dos que lhe meditavam ou
aguardavam a perda. Tempestades não lhe têm faltado; mas os tornados no oceano e
as tempestades de areia do Saara não afetam a estabilidade da terra. A Igreja esposou
a terra; ela é a própria terra encimada pela cruz, a terra viva, santificada por
uma Presença invisível, e ela não tem medo. Um dia, a terra morrerá, mais numa apoteose
que a Igreja diz sua. Ela não teme esse acontecimento, espera-o. Do lado de cá,
profeta de si mesma, projetando o que ela é sobre o que amanhã será, a Igreja diz:
O futuro é meu, porque em mim está esse futuro já adquirido com Aquele que o regula.
O tempo não me contém; eu, a Igreja, é que contenho o tempo, pelo meu Espírito,
seu princípio eterno. Beber na taça do tempo a duração eterna é a sorte de todo
aquele que adere a mim e comunga com a minha alma secreta.
Muitas coisas me fazem
sofrer, mas nenhuma me desconcerta nem me inquieta. A adversidade retempera-me.
Um fracasso significa
para mim: recomeça; como um êxito significa: prossegue. Por cima da cabeça de meus
inimigos e para além dos obstáculos, eu olho uma finalidade visível a mim, mas tão
exigente que eu não posso desviar dela meus olhares nem minha marcha. Completar
meu Cristo na terra, o Cristo coletivo, a assembléia universal a que ele chamou
seu corpo: é esse o meu trabalho. Trabalho de todos os tempos, sem dúvida! E é por
isso que eu não morro.
Quer se arrazoe, quer
se desarrazoe sobre isso, a força íntima assim manifestada tem algo de único. Supõe,
ao que parece, no invisível, fora das nossas durações indecisas e fugazes, uma cumplicidade.
Procura-se a explicação
disso num iluminismo feliz da nossa fé, e, por outra parte, em contingências históricas
cada uma das quais se presta a explicações naturais. Está bem. Mas o iluminismo
da Igreja é muito positivo; a ingenuidade não é coisa dessa avó, que sabe aonde
vai, e que impressiona o observador justamente pela certeza imperturbável do que
faz.
Explicação indigente é
o menos que aqui possa dizer-se. Na verdade, a explicação é nula; por quanto, se
a misticidade pode realmente ter seus desvios, a Igreja, que controla a misticidade
com um rigor severo, deve ser chamada sobremística, e escapa ao perigo porque deve
prevê-lo. Ela não sonha; a sua certeza é serena; é bem em pleno despertar e de posse
de toda experiência humana que ela diz: Há em mim algo de sobre-humano; eu, que
assisto ou presido a tantas mortes, sei que não morro.
Quanto às contingências
históricas, estas existem. Não se trata de negar as causalidades inerentes a uma
vida que está na terra, embora não proceda unicamente da terra. Cada um dos casos
apresentados por essa extraordinária história é suscetível de explicações que se
afiguram suficientes, e que o seriam, tomado à parte esse caso. Mas o que assim
se não explica é a repetição indefinida de contingências semelhantes e semelhantemente
previstas, de tal modo que a instituição que lhes é objeto possa dizer tranquilamente
que elas se repetirão sempre, sem que nada, até agora, desminta.
Difícil é, nestas condições,
fugir à observação de Pascal: "E tudo isso se faz pela força que o predissera".
A predição não é muito menos extraordinária que o fato. O fato confirma a predição.
Digamos que há aí um só fato ao mesmo tempo espiritual e histórico, profético e
efetivo. E segue-se que a explicação da Igreja, quanto à sua perpetuidade, está
na própria Igreja. A Igreja é o vivente imortal que seu Cristo predisse ao constituí-la;
ela recebeu a imortalidade com o ser, e é por isso que afronta o tempo; é por isso
que, por assim dizer, devora os ferozes acontecimentos feitos para devorá-la, e
prossegue através de tudo os seus destinos tranquilos. Isso não são hábitos de homem.
Ademais, quando se fala
de perpetuidade a respeito de uma sociedade religiosa, não se trata de uma perpetuidade
exclusivamente política ou administrativa. Isso seria uma mera conservação de quadros.
Para que a Igreja seja verdadeiramente perpétua, é preciso que se conservem, como
fazendo parte dela mesma, e sem alteração essencial: o seu pensamento, isto é, o
seu dogma; a sua prática, isto é, a sua moral e a sua liturgia; a sua organização,
isto é, o seu sacerdócio e os chefes do seu sacerdócio - bispos, representantes
dos Doze, Papa, sucessor de Pedro, e lugar-tenente de Cristo. É tudo isso que não
deve perecer.
E quantas ocasiões para
que isso tenha perecido! Pode-se dizer que tudo é ocasião para isso; porque o histórico
se move no acidental. É clássico este adágio: Em história, tudo resulta sempre diversamente
do que se previra. De sorte que, se não houvesse aí um princípio interno de indefectibilidade,
de continuidade, tudo iria sempre a esmo, quer dizer, ao aniquilamento sem remédio;
os dogmas desvanecer-se-iam em opiniões de indivíduos e de grupos; (como no protestantismo)
a prática moral e os sacramentos, a autoridade e as disciplinas mais essenciais
teriam a mesma sorte; nada resistiria dessa contextura imensa, que, ao contrário,
idêntica a si mesma vemos atravessar assim os séculos como os azares.
Todas as religiões têm
mudado profundamente e têm-se esmigalhado em seitas: a Igreja de Jesus Cristo é
fiel à sua tradição unitária, memória onde - sem prejuízo das adaptações que são
o sinal da vida e que o serviço exige - se acham consignadas uma vez por todas as
confidências de Deus à humanidade e as criações da sua graça.
Bem longe que o tempo
deteriore a Igreja, ao contrário, ele lhe traz constantemente materiais novos; aumenta-lhe
todos os órgãos e diferencia-os, sem prejudicar a ideia vital. Quem lê hoje São
Paulo reconhece nele a sua fé, a sua regra de vida, a sua prática ritual, o seu
sacerdócio, a sua organização essencial; mas que riqueza aumentada! Que adaptação
sempre mais perfeita aos problemas novos! Que manifestação obtida para o que o grão
continha! Já não é mais o "grão de mostarda", é verdadeiramente a grande
"árvore".
E, se há crises e atrasos,
falhas no funcionamento, não há razão para nos admirarmos; é a parte do homem. Jesus
Cristo prometeu Jesus Cristo prometeu à sua Igreja uma duração indefectível; não
lhe prometeu uma saúde indefectível; ela tem as suas doenças, "que não levam
à morte". Cabe a nós fazer que ela melhore, pois a saúde, a nossa de fiéis
e chefes é que proporciona a dela. Mas não se precisa de nós para que ela viva;
ou, pelo menos, se de certa maneira a vida dela depende de nós, o Senhor dos corações
aí está para que não falta o "restinho" em que Israel pode subsistir,
reserva dos tempos melhores e penhor do triunfo eterno.
Observarei que a vitalidade
da Igreja, condição da sua perenidade, é visível hoje mais do que nunca, primeiro
porque o seu desenvolvimento interno está mais adiantado, a sua diferenciação aumentada
ao mesmo tempo que a sua unidade reforçada, (duplo sinal característico do progresso)
o seu surfo de penetração no coração das raças desdobrado com vigor novo; mas também
porque, por esse mesmo fato e em ração de circunstâncias históricas providenciais,
o princípio católico se manifesta mais independente de tudo o que não é ele.
Uma substância reconhece-se
melhor quando é isolada. Os concluíos do Império constantiniano, o equilíbrio ofensivo
do Sacerdócio e do Império, a aparência de misto político constituído pelo poder
temporal, tudo isso pereceu. A Igreja é pura; pode-se ver o que ela é. E que é ela?
É isso mesmo: um poder espiritual independente e que, a despeito das aparências
superficiais que eu assinalo, sempre o foi. E pensar-se-á que isto não seja nada?
Augusto Comte via nisso um fenômeno de primeira grandeza, depois de reconhecer aí
uma condição de futuro da sociedade humana. A lua suspensa à noite no céu claro
já não nos admira, porém KEPLER, Newton, Laplace ou Poincaré passaram anos a calcular
esse equilíbrio delicado, irmão de um sono tranquilo.
A Igreja - tem-se acaso
pensado nisto? - é a única sociedade religiosa assim independente que jamais se
haja mostrado na humanidade. Não seria isto um prodígio? É um prodígio nisto que
uma sociedade espiritualmente independente deve ter em si tudo o que uma autarquia
dessa espécie exige para sobreviver, para não se misturar com coisa alguma de dissolvente,
para se não deixar absorver por coisa alguma de envolvente ou de insinuante, e assim
manter no mundo um poder alheio ao mundo, como seria em física um corpo liberto
das forças cósmicas, inacessível às influências que tudo transformam.
As "autarquias econômicas"
de que nos falam agora, onde é que se realizam? Unicamente lá onde a natureza proveu
a isso, dando ao grupo que a ele aspira tudo o que é preciso à sua vizinhança e
sem temor da vizinhança. Se a Igreja pode ser e é uma autarquia espiritual perfeita,
é que portanto tem em si, a título independente e garantido contra toda alteração,
contra todo desvio, tudo o que uma vida religiosa perpétua e universal comporta.
Deve ela poder ir a toda parte sem se misturar em parte alguma; ocupar-se de tudo
e influir em tudo sem que nada a contamine; durar sempre sem que à falta de uma
condição temporal - entendo entre as que são alheias ao seu próprio funcionamento
- possa deixá-la cair. Pese-se um tal requisito.
No curso das idades, acontecimentos
não têm faltado para porem à prova essa alta independência e para aboli-la. Ela
sempre se mostrou superior a eles. Os poderes têm feito tudo para captar essa força
e para escravizá-la; as lutas épicas em razão disso por ela sustentadas são bastante
conhecidas: ela tem-se saído delas constantemente vitoriosa. Agora, todos querem
tratar com ela; e ela se presta a isso; porque, se ela é independente de todos quanto
à sua vida, entende de não ser independente de ninguém quanto à ação; quer dizer
que está disposta a uma colaboração universal. Mas, se às vezes os que tratam com
a Igreja o fazem no velho espírito de envolvimento de que eu falava, ela tem com
que desmanchar e desmancha todos esses ardis terrenos. Aos vorazes, poderá ela abandonar
algumas penas de suas asas; mas não interromperá o seu voo.
Em pequenos círculos inteligentes,
porém míopes, as pessoas deixam-se levar a dizer que "Musolini meteu no bolso
Pio XI", que "Hitler repete a história", etc. Isso são palavras pouco
sérias. Elevem-se antes esses tais à contemplação deste espetáculo: um soberano
sem Estados, investido - por quem? - de um poder ante o qual o universo se inclina,
que diz sim, que diz não aos mais poderosos como aos mais pequenos, e que da minúscula
"Cidade", território de teoria, quase irrisório se a irradiação dele não
fosse tão solene, marca encontro para o futuro, sobre documentos autênticos, a tantos
poderes que a ele não corresponderão.
Quanto durará Mussolini?
Quanto Hitler? Quanto os regimes e as combinações políticas que temos sob os olhos?
não sei; mas o Papa aí estava de tal forma antes deles, que, sem se arriscar, pode-se
dizer que aí estará depois deles e depois dos que lhe aguardam a herança. Todas
essas sortes de poderes têm passado, estendendo a mão a Pedro para engodá-lo, para
utilizá-lo; eles têm passado, e Pedro fica. Há aí um princípio de vida, sem dúvida,
e no entanto cumpriria dizer qual.
A independência, que é
um indício de força e, nas condições em que a Igreja a manifesta, de força propriamente
sobre-humana, essa independência poderia conceber-se sem ação conquistadora? Vimos
essa ação nos seus primórdios; foi fulminante. É normal que hoje em dia o seja menos,
e sabemos o motivo; porém ela é mais evidente do que nunca. O reflorescimento missionário
é mesmo assinalado, na ora atual, por um caráter extremamente impressionante e por
um grande alcance de futuro: entendo a sua catolicidade intrínseca, se assim posso
dizer, pelo acesso de todas as raças de homens ao sacerdócio e ao episcopado católicos,
até aqui mais ou menos reservados, não de direito, por certo, mas de fato, só à
raça branca.
No interior dos nossos
grupos cristãos, a multiplicação das obras católicas deixar-nos-ia estupefatos,
se soubéssemos ver. Poderíamos nós supor o menor começo delas, ou mesmo o antegozo,
se não fora a Igreja? Não entendo dizer que a Igreja faça tudo; às vezes faz-se
melhor do que ela; mas foi ela quem lançou tudo; o que ela mesma não faz, procede
dela quanto à origem primeira e quanto às influências que sofre: emulação, concursos,
exemplos.
Diversas tanto quanto
as necessidades espirituais e temporais do homem, diversas tanto quanto a vida,
a que é que se podem comparar as obras de criação ou de inspiração católica? Noutras
partes há reflexos delas: da Igreja vem a luz. Há migalhas esparsas: nela está o
pão.
Por certo! Muito mais
haveria ainda por fazer do que o que a Igreja faz. Somos impacientes, e mui sinceramente
podemos ficar impressionados com as lentidões seculares da Igreja mais do que com
a sua ação secular. Mas, além de, aqui, intervirem as liberdades, e os acontecimentos,
e os meios resistentes, não nos deveríamos precatar contra uma confusão dos valores
e das escalas que os medem? Não é no absoluto, é comparativamente que convém julgar,
quando se pede à experiência a resposta a esta pergunta: a Igreja é da mesma natureza
que as outras potências deste mundo, ou de natureza superior?
No absoluto, tudo é lento
daquilo que se move através do humano. O próprio Deus deve evitar os métodos "catastróficos",
inimigos da sua sabedoria, que é "número, peso e medida". A Igreja, agente
da Providência, e bem decidida a com ela se manter em contato, a não precedê-la,
procura nos fatos passo a passo seguidos os vestígios de seu Deus, e é assim que
ela marcha. A gente apressada censura-lhe isso: mas a gente apressada é a mais apta
a perder o tempo que a gente calma utiliza em toda a extensão. A Igreja realiza
milagres de atividade precisamente porque não se apressa, não compromete nada, nunca
se obriga ao recuo, olha longe e sem impaciência no sentido do futuro; em suma,
porque conduz a ação temporal num espírito superior ao tempo.
Falar-nos-ão de tantas
misérias na Igreja? Consinto, contanto que se acrescente: e tanta santidade. Pode-se
desconhecer a força santificante e purificadora da Igreja sob suas duas formas essenciais:
a forma mística e a forma educativa ou moral?
Misticamente, a vida sacramental
sublima, purifica e arrasta à obra boa uma multidão de corações. Cristo tem um império
ao qual nem de longe qualquer império deste mundo pode ousar comparar-se. A despeito
da carne, do mundo e de Satanás, três potências adversas. Ele obtém de seus fiéis
efeitos de virtude e de ação espiritual que os meios antecristãos ou não cristãos
não podem pensar em conhecer; ou, se a eles chegam, devem-no ainda a Ele pelos caminhos
desviados que havemos descrito.
Mesmo onde quer que a
lei cedeu, aquilo que subsiste de vida sacramental: batismos, primeiras comunhões,
casamentos, ritos funerários, cerimônias públicas e privadas, ainda conserva uma
armadura tal qual a uma civilização indecisa; o futuro aí está em expectativa, e
bem longe que só haja nisso um legado do passado. Muito errados andaríamos em subestimar
esses "restos".
Moralizadora, a Igreja
o é em nome do céu e em vista do céu; mas o terreno de onde se alça o voo para o
céu é a terra. O Reino de Deus é temporal, dizíamos, precisamente porque é eterno.
Por isso a Igreja é uma educadora de atenção sempre vigilante, e de psicologia admirável,
de experiência consumada, utilizando todos os recursos da alma e da vida, envolvendo
esta toda, como se, gerado por ela, o cristão nunca acabasse de nascer, e lhe vivesse
no amplo seio.
Um dos mais altos e dos
mais preciosos caracteres da Igreja, como educadora, é a sua arte de tirar o bem
do mal. Ela reergue o pecador e não o desanima; sem pactuar, longe disto! Ela sabe
compadecer-se e compreender. Salva e utiliza assim uma multidão de valores que uma
sociedade sem alma abandona às forças do mal, e depois rejeita.
Quem dirá o de que assim
se privam grupos talvez muito apressados em denegrir e em combater neste ponto a
vida católica! Os grandes pecadores que se tornaram santos, e obras como Betânia,
o Bom Pastor, ou Nossa Senhora da Caridade, ou as simples capelanias de prisões,
sem falar de tantos outros sinais, deveriam no entanto fazer refletir. A Igreja
faz beleza com as fealdades, e com a força revirada das paixões faz energias puras.
Pedro, sobre o Lago, pede a Jesus para afastar-se dele porque ele é um pecador;
mas a Toda-Pureza não tem destes pudores hipócritas; ela só se afasta convidando,
como uma mãe diante do filho que tropeça, e todo o surto do arrependimento chama
o homem para sobre o coração dela.
Não se quer que a santidade,
que o poder santificador da Igreja prove a sua divindade, porque, primeiro, ao gosto
do censor não há bastante bem nela, e há demasiado mal. Objeção tal não surpreende;
fá-la muitas vezes a si mesmo o crente, e grande necessidade tem então de se lembrar
da advertência de seu Senhor: "Bem aventurado aquele que se não escandalizar
de mim". (Mt 11,6.) Mas no fundo desta dificuldade, como de muitas outras,
há simplesmente isto: Exige-se que a Igreja seja humana ou divina, à escolha; não
se quer que ela seja o que é; humana e divina, conjuntamente, com todas as consequências.
Se uma vez se consente nesta última situação, compreende-se que, pela sua divindade,
deve haver na Igreja grandes efeitos de Graça, e bem cego quem os não vê; mas, pela
sua humanidade, deve ela oferecer também todas as misérias humanas, digo todas,
visto haver nela todo o homem.
Quanto mais humanidade
há na Igreja, tanto mais divindade deve nela haver para que ela sequer subsista;
porém, quanto mais divindade há, isto é, sabedoria, respeito do homem, cuidado de
deixar à obra um cunho de livre esforço e de responsabilidade, tanto mais imperfeições
e taras devem nela encontrar-se.
Sem dúvida, poderia acontecer
que esta última condição, a só olhar a ela, abolisse a primeira, e que de alguma
sorte o humano afastasse a Deus. Mas isto é uma suposição inteiramente gratuita.
A malícia do homem não iguala o poder de Deus. A Igreja tem em si, quando preciso,
com que se reformar de dentro, mediante reconcentração do seu Espírito em individualidades
que bem se devem chamar providenciais, embora em aparência nascidas do acaso, já
que, à maneira da providência eterna, surgem sempre. Sempre o acaso, isto não será
a providência?
Quanto a recusar a hipótese,
exigindo o divino puro, sob pena de absolutamente não mais ver a Deus, isto é ditar
a Deus o seu proceder. Melhor é, sem dúvida, fazer por dentro este gesto simplíssimo,
a bem dizer profundíssimo e por isto quase heróico, de se inclinar perante Deus.
Então, a objeção se esvai.
Pode ela, é verdade, dar
lugar a outra. A santidade, na Igreja, não provaria a sua divindade, porque tudo
o que se vê é explicável pelo homem. Mas na realidade, como observava Santo Agostinho,
é mais difícil fazer um santo ou converter um pecador do que ressuscitar um morto,
o que não é obra de homem. A despeito da audácia de uma tal fórmula, pode-se dizer
que é tão difícil fazer um santo como fazer um Deus: um raio de sol ou um sol não
são obra semelhante? É ao contato de Deus e do homem que a santidade jorra; reconhece-o
um puro filósofo, como Bergson, e é esse, reconhece-o ele mais ou menos também,
um dom especial da Igreja. A conclusão está bem próxima.
A santidade da Igreja
é divindade latente. Brilha em certos pontos, em certas vidas, brilha amplamente,
embora menos sensivelmente para a desatenção, no funcionamento geral da obra. Santidade
concentrada ou santidade difusa, santidade brilhante ou humilde santidade, é sempre
Deus que aflora, esse Deus que a humanidade procurava, que o seu capricho fabricava,
e que um dia irrompeu nela mesma. Perguntava Santo Agostinho: "Que vale Juno
em face de uma velhinha que é uma fiel cristã?". Não é preciso mais do que
estar atento a tudo isso para vê-lo; mas é preciso olhá-lo com os olhos da alma,
e não com o espírito só.
Tendo-o reconhecido, e
tendo-se capacitado de que, para a Igreja, fazer cristãos quer dizer humanos completos,
em Deus, e juntos, bem pronto se está para confessar que a Igreja e a civilização
são solidárias, de tal sorte que o milagre religioso vem aqui ao encontro do fato
humano e nele se reforça.
Não se ignora, conquanto
às vezes se goste de esquecer ou se esqueça por inadvertência, o que a Igreja fez
no passado. Nenhum historiador recusaria dizer que ela, a Madre Igreja, foi quem
carregou nos joelhos a civilização moderna. Mas o que ela fez no passado, está armada
para fazê-lo muito mais ainda, desenvolvida como jamais o foi; rica de funções,
de pessoal e de obras: capaz de atingir, de alto a baixo da escala dos espíritos,
das situações sociais e das almas, todos os elementos humanos em busca de progresso
e de felicidade.
O gênio moral que habita
a Igreja é o fermento animador e o sal conservador das civilizações. O sentido da
vida, as leis do indivíduo, da família, dos grupos profissionais e especialistas
de qualquer especialidade, da sociedade nacional e internacional, com todos os seus
meios psicológicos e místicos, no terreno moral, fazem parte do seu depósito. Ela
nos ajuda a adaptá-los às circunstâncias diversas. A sua ciência moral é uma consequência
do seu dogma, e a sua maternidade goza do dom de conselho.
"Alma das nações",
como dizem os Papas da Idade Média, ela pode fornecer aos nossos grupos, no espiritual,
todas as suas normas de ação e todas as impulsões que os guiam. Ela consolida o
reinado das leis, fazendo-as partir da Razão divina e ir ter aos seus juízos; humaniza-as
banhando a justiça no amor. Aos fatos de autoridade ela dá por princípio a autoridade
serviço público da parte de Deus; aos fatos de subordinação dá a obediência ao poder
como a Deus; aos fatos individuais que preparam a matéria social dá a vida depósito
divino e atividade em marcha para Deus. Estão aí bases firmes.
A construção poderá em
seguida inspirar-se nas largas vistas de governo que são as da Igreja. A Igreja
é eminentemente democrática quanto à definição e à apreciação dos seus valores sociais;
canoniza os santos e não os chefes, os humildes virtuosos e não os fortes. É, entretanto,
aristocrática pelas suas Igrejas particulares que os bispos governam, e é monárquica
em razão de Cristo e da sua representação visível, o Papa. Pode assim dar modelos
de governo a todos os Estados, como lhes dita seus fins supremos.
O sentido social é nela
tão forte que o cidadão, comungando na sua larga vida, hauriria nela um espírito
cívico em harmonia com o que seria então a sua vida espiritual. Numa grande cidade
de que a gente gosta, a gente se sente confirmado a um tempo no seu sentimento social
e na sua personalidade; oceano e remeiro harmonizam-se; no seio da Igreja universal
animada de caridade e agrupada em torno de Cristo, cada um se tranquiliza na sua
própria força e na força coletiva; é um em si e um com todos; sente a humanidade
dentro e fora, com Deus em toda parte.
Como então, em particular,
a eucaristia, que é como que a encarnação de Cristo em todos nós, poderia não nos
unir? Grande é a inconsciência humana; todavia, não se podem negar os vastos efeitos
desse sacramento no conjunto das sociedades cristãs. Não seria preciso mais do que
fidelidade para reforçar essa ação e combater o esfacelamento, os antagonismos criados
no corpo social pelo choque dos sentimentos e dos interesses, privados dos seus
limites e do seu freio. É certamente no dogma, na moral e no culto católicos que
o acionamento desse freio e o sentido desses limites são incomparavelmente mais
bem assegurados.
Afirmando o Deus vivo,
e pondo-nos com ele em vida comum; reintegrando-o, se assim posso dizer, em todas
as suas funções, em relação a tantas religiões e filosofias que o dissolvem - Deus
criador, Deus legislador, Deus providência, Deus justo e remunerador, Deus amor,
- o catolicismo está em força para estabelecer a criatura na sua consciência e na
sua solidez interior, nas suas atividades autênticas e nas suas relações verdadeiras.
É o fundamento da vida que doravante é firme.
Trata-se da vida internacional,
que a civilização deve considerar hoje em dia como por assim dizer idêntica a si
mesma? A Igreja é competente pra isso tanto em relação ao princípio como do ponto
de vista dos meios de realização. Pode-se dizer que, aos olhos da Igreja, a sociedade
internacional é o fim dos Estados, a título de síntese humana em Deus e em Jesus
Cristo, na razão que nos liga e no destino sobrenatural que são agora obra dos melhores!
Penetre em toda parte e impregne tudo a cidade cristã, "alma das nações",
e a cidade universal está feita.
A comunidade internacional
é para a Igreja um fim, pela boa razão de que é um começo, e de que sempre os princípios
e os fins se correspondem. É da comunhão dos homens em Deus e em Cristo que tudo
parte na vida católica. Se tudo parte disso no empreendimento e na intenção, a isso
não deve tudo chegar na execução? Unidade espiritual, unidade moral, unidade jurídica,
unidade política sob uma forma qualquer: pode isto dissociar-se sempre? Abordando
o homem na sua unidade, o homem total, a Igreja ao pode deixar de querer a livre
realização, pelo homem, do cosmos humano, como pela sua providência Deus realiza
o cosmos universal.
O grande obstáculo à união
dos povos está, de um lado, na materialização das almas, que multiplica as competições
pela partilha das riquezas deste mundo, e, de outro, nos desvios do próprio ideal,
que muitíssimas vezes se extravia, ou se particulariza, ou se exacerba. O exemplo
das guerras de religião ou de prestígio aí está para nos mostrar que o idealismo
nem sempre trabalha pela paz. Talvez que a catolicidade tenha aqui censuras a se
fazer. Porém, fiel ao seu princípio de justiça e de amor, elevando e unificando
ao mesmo tempo os homens, como a gente se aproxima em galgando um píncaro, a Igreja
tem tudo o que é preciso para preparar o futuro do verdadeiro gênero humano, da
sociedade humana definitiva.
Em suma, a Igreja em toda
parte faz dominar o espírito, e, por via de consequência, a unidade de espírito,
ligando-nos ao Espírito supremo. Ora, é uma verdade essencial, por demais desconhecida
das nossas febres "soi-disant" realizadoras, que todo trabalho civilizador
tem origem no espírito. As simples técnicas, sabemos o que delas se faz; elas dão
força à barbaria tanto quanto aos valores humanos. Das nossas multidões materializadas
tendem elas a fazer uma massa de indivíduos que, espiritualmente, já não são pessoas.
A Igreja desejaria fazer deles pessoas sagradas, de boa mente diria com Bergson:
deuses.
E não é essa uma razão
para que ela despreze as técnicas. Nunca a ouviremos maldizer das invenções, das
organizações, das máquinas, dos processos e dos engenhos quase milagrosos que, pelo
contrário, ela gosta de glorificar benzendo-os. Porém ela sabe e repete que todos
esses valores, servos do espírito, e do espírito santificado, não o substituem;
os efeitos deles dependem deste mais do que deles mesmos; pois sem ele, através
da ruína do homem, eles só redundam no nada de si. Dividem o indivíduo de si mesmo
corrompendo-o; dividem-no de outrem pela inveja, mesmo quando já não é pela necessidade.
Não se diga, pois, que
por sua missão a Igreja, suposto que faça um trabalho útil, só o destine à salvação
eterna. É verdade que a Igreja tem este escopo e não tem segredos para a organização
deste mundo; mas a organização deste mundo depende dela porque depende dos homens,
e, nos homens, depende justamente dessas virtudes, desses valores morais que os
devem conduzir à salvação eterna.
"As coisas que vemos
não foram feitas de coisas que se vêem", diz a Epístola aos Hebreus. (Hebreus
11, 3.) A civilização visível tem fontes invisíveis; reside nos corações; a forma
dos nossos pensamentos, dos nossos desejos, das nossas ações individuais, das nossas
relações, das nossas reações mútuas em todas as ordens e em todos os cenários será
a forma dela. A Igreja, que age sobre tudo isso na medida em que se lhe é fiel,
trabalha em tudo, se bem que por si mesma se mantenha fora dos nossos trabalhos.
Ela é a eternidade no tempo, dizemos nós incessantemente, a eternidade que anima
o tempo, sem que a meçam os nossos relógios.
Nos nossos dias de perturbação
e de progressos materiais em tão violento contraste, não é inútil relembrar estas
coisas. O mundo moderno é um instrumento admirável, mas desafinado; os sons individuais
persistem belos e possantes, porém a música peca.
Muitos não veem a cauã
dos nossos males e atribuem-na a algum erro de método ou de organização. Pelam para
os peritos, e muitas vezes estes procuram simplesmente meios para favorecer e exasperar
a loucura dos homens. Sem dúvida há em nós defeitos de organização, defeitos de
método; mas por detrás disso, e pela razão mesmo de haver isso, há outra coisa.
Há os apetites desencadeados, uma febre absurda de vida a toda velocidade, como
de quem se persuade de ter apenas um curto instante para gozar. Há os nossos laços
afrouxados pela ausência das virtudes sociais: justiça, amor, que por sua vez dependem
das nossas virtudes individuais.
Tornando-nos bons, nós
nos tornamos um bem de todos; a solidariedade, que se estabelece pela boa vontade
mútua, não é então uma cadeia de elos ocos, assume valor ao mesmo tempo que coerência.
De nada serve estar ligado a outrem se nada lhe trazer de benéfico! - talvez infligindo-lhes
taras! - nem amar o próximo como a si mesmo, tal como o quer o Evangelho, se nada
se tem de si que amar.
Abdicação ou absurda presunção,
isto é, abdicação retardada e cataclisma: tal é a alternativa imposta a um mundo
que recusa as leis da vida e que, por uma extensão que o fato consagra tanto quanto
a fé atesta, recusa as suas próprias leis sobrenaturais.
A medida que o sentimento
de Deus e o sentimento da nossa unidade espiritual em Deus, tal como a concebe e
a organiza Igreja, se vai enfraquecendo, vê-se proporcionalmente baixar o sentimento
dos homens da unidade interior e da comunidade moral. Não há mais, dentro e fora,
senão forças esparsas ou bloqueadas para fins utilitários. Não há mais senão funções.
É em Deus criador que
se acham originariamente a ideia do homem, a ideia da humanidade, a ideia do universo,
território e matéria de civilizações: é aí que cumpre reencontrá-las, e o caminho
normal dessa ascensão, desse retorno espiritual, é a Igreja. O olhar para a matéria
vem depois. O estatuário pensa em bloco; mas pensa primeiro na forma de arte da
estátua e na forma do monumento que ele decora.
É por isso que Cristo
homem, iniciador e chefe permanente da Igreja, Cristo na sua pessoa e na doutrina
que a exprime propondo-a, é o ponto de partida ideal da civilização; a sua perfeição
domina-a toda desde as mais antigas idades; ela é sua regra também para o futuro.
Graças ao Homem-Deus, a Igreja casa em si o ideal e o real, o terrestre e o celeste.
Obriga segundo Deus e convida segundo o homem, cuja imagem autêntica apresenta;
é assim inspiradora perfeita do trabalho humano, e o seu socorro mais eficaz. É
preciso céu e terra para a germinação do que quer que seja, planta ou homem.
Por seu turno, esses espelhos
vivos de Cristo que se chamam os santos são, em nome dele, modelos e agentes de
civilização que se não deveriam desconhecer. Que não deve a humanidade a homens
como São Paulo, Santo Agostinho, São Bernardo, São Francisco e São Domingos, Santo
Inácio e São João Batista de La Salle, São Francisco de Sales e São Vicente de Paulo?
O que eles trazem nem sempre é brilhante e mensurável a título imediato; mas é um
trabalho de fonte, e na medida em que a fonte lhes recebe a mensagem, torna-se,
por igualdade de valor inato ou técnico, um elemento de verdadeira civilização.
Os chefes de estado que
foram santos, como São Luís, ou chefes militares como Sonis, como Foch, filósofos
como Alberto Magno e São Tomás de Aquino, artistas como Haydb, sábios como Linné
ou Newton, não foram sublimados, em igualdade de gênio ou de poder, pela sua fé
ativa e pela retidão da sua vida? Assim, generalizando, uma sociedade cristã é sublimada
em todos os seus valores de civilização temporal, além da salvaguarda proporcionada
ao que constituía esse fundo.
Felizmente, resta-nos
muito daquilo que a Igreja verteu nas almas de nossos pais. A nossa civilização
é um lençol d'água cuja superfície mostra uma triste escuma que terá sempre suas
camadas inferiores; mas entre as duas, circula uma corrente pura e forte, formada
das altas consciências cristãs e dos herdeiros, talvez inconscientes, do passado
cristão.
É por isso que não há
razão alguma para desesperar; mas é preciso despertar os dorminhocos e reconduzir
os transviados, para que o milagre de Deus no meio de nós não seja vão, justamente
no momento em que a sua oportunidade e as suas possibilidades de manifestação mais
se patenteiam.
Quanto mais a humanidade
dura, tanto mais necessidade tem daquilo que lhe permite tomar valor, começando
por se desprender de si mesma. Quanto mais tempo há, tanto mais empréstimos à eternidade
se fazem mister; quanto mais humanidade há, tanto mais divindade se torna mais necessária
hoje do que nunca. Cumpre que ela nos batize, se não somos batizados, que nos confirme,
nos faça comungar juntos e com Deus, nos ordene, nos perdoe também, nos case de
um casamento puro e fecundo com a natureza santificada, e, se preciso, visto que
as nações e as civilizações morrem, nos unja antes da paz do túmulo e da vinda a
lume dos séculos novos...
Mas também, sempre mais
necessário, a Igreja está sempre mais disponível. Ela é forte; pode carregar as
desventuras do mundo e suas culpas, tanto quanto as suas virtudes e as suas venturas.
Quer se queira quer não,
deve-se pois convir que as suas afirmações relativas a si mesma são justificadas;
ela é "o estandarte levantado sobre as nações" de que fala o Concílio
de Trento, e pelo qual a construção divina se reconhece. Só o dogma da Igreja explica
o fato da Igreja. Fora isso, não há explicação pertinente. A gente dos primeiros
séculos estava segura disso. Quando sucede duvidarmos disso, é que nossos olhos
estão menos frescos. Deus queira que acontecimentos mais graves não nos refresque,
mostrando-nos tragicamente aquilo que nos falta depois que acreditáramos tê-lo.
Nossos pais, mais humildes, compreendiam que não o tinham.