quarta-feira, 29 de novembro de 2017

Considerações sobre a Infância de Jesus


PRIMEIRA PARTE
Considerações sobre a Infância de Jesus


CONSIDERAÇÃO 1
O VERBO ETERNO SE FEZ HOMEM.

         Vim trazer o fogo à terra; e que desejo, senão que ele se inflame? (Lc 12,49.)

         Os judeus celebravam uma festa chamada Dia do Fogo em memória do fogo com que Ne-emias consumou a vítima oferecida a Deus, quando ele voltou com seus compatriotas do cativeiro da Babilônia. A festa do Natal deveria também, e com muito mais razão, chamar-se Dia do Fogo, porque nesse dia um Deus veio ao mundo sob a forma duma criancinha para atear o fogo do amor no coração dos homens.

         Vim trazer o fogo à terra, disse Jesus Cristo, e o trouxe de fato. Antes da vinda do Messias, quem amava a Deus sobre a terra? Ele era apenas conhecido numa pequena região do mundo, isto é, na Judéia; e mesmo lá, quão poucos eram os que o amavam no tempo da sua vinda! No resto da terra, uns adoravam o sol, outros os animais, as pedras ou criaturas mais vis ainda. Mas, depois da vinda de Jesus Cristo, o nome de Deus se espalhou por toda parte e foi amado por muitos. Desde então os corações abrasaram-se das almas do divino amor, e Deus foi mais amado em poucos anos do que nos quatro mil aos que decorreram depois da criação.

         Muitos cristãos costumam preparar com bastante antecedência em suas casas um presépio para representar o nascimento de Jesus Cristo. Mas há poucos que pensam em preparar seus corações, a fim que o Menino Jesus possa neles nascer e repousar. Sejamos nós desse pequeno número: procure-mos dispor-nos dignamente para arder desse fogo divino, que torna as almas contentes neste mundo e felizes no céu.

         Consideremos neste primeiro dia que o Verbo Eterno justamente para esse fim, de Deus se fez homem, para inflamar-nos de seu divino amor. Peçamos a Nosso Senhor Jesus Cristo e a sua Santíssima Mãe nos iluminem sobre esse mistério, e comecemos.

1

         Peca nosso pai, Adão. Ingrato para com Deus, do qual recebera tantos benefícios, revolta-se contra Ele e transgride a sua lei comendo do fruto proibido. Em conseqüência Deus vê-se obrigado a expulsar imediatamente o homem do paraíso terrestre e a privá-lo e a seus descendentes, no futuro, do paraíso celeste e eterno, que lhes havia preparado para depois desta vida temporal.

         Ei-los pois condenados a uma vida de sofrimentos e de misérias, e excluídos para sempre do céu. Mas também, para falarmos a nosso modo como Isaías, eis que Deus parece afligir-se e queixar-se. E agora, diz ele, que me resta no paraíso, agora que perdi os homens, nos quais achava as minhas delícias? Mas, meu Deus, vós que possuis no céu tão grande multidão de serafins e outros anjos, como podeis sentir tão vivamente a perda dos homens? A vossa felicidade não é perfeita sem eles? Sempre fostes e sempre sois feliz em vós mesmo. Que pode pois faltar à vossa felicidade, que é infinita?

         Tudo isso é verdade, responde o Senhor, como o faz dizer o Cardeal Hugo, explicando o texto citado de Isaías; tudo isso é verdade, mas, perdendo o homem, penso que perdi tudo, que nada mais me resta; as minhas delícias eram estar com os homens, e eu os perdi; ei-los condenados a viverem longe de mim para sempre!...

         Mas como pode Deus dizer que os homens são as suas delícias? - Ah! responde Santo Tomás, é que Deus ama o homem, como se o homem fosse seu Deus, e como se não pudesse ser feliz sem o homem. São Dionísio ajunta que, devido ao amor que tem aos homens, Deus parece fora de si mesmo. Há um provérbio que diz que o amor põe fora de si aquele que ama: Amor extra se rapit.

         Não, disse Deus, não quero perder os homens; haja um Redentor que satisfaça por eles à minha justiça, e os resgate das mãos de seus inimigos e da morte eterna que mereceram...

         Aqui São Bernardo, contemplando esse mistério, julga ver uma contenda entre a Justiça e a Misericórdia de Deus. - Estou perdida, diz a Justiça, se Adão não for punido. - Estou perdida, diz por sua vez a Misericórdia, se o homem não obtiver perdão. O Senhor põe fim a essa contenda: "Morra um inocente, diz ele, e salve-se o homem da pena de morte, em que incorreu."

         Na terra não havia esse inocente. Então, disse o Padre Eterno, já que entre os homens não há quem possa satisfazer a minha justiça, qual dos habitantes do céu descerá para resgatar a humanidade? Os anjos, os querubins, os serafins, todos calam-se, ninguém responde. Só responde o Verbo Eterno e diz: Eis-me aqui, mandai-me. Meu Pai, uma pura criatura, um anjo, não poderia oferecer a vós, Majestade infinita, uma digna satisfação pela ofensa recebida do homem. E mesmo que vos quisésseis contentar com uma tal reparação, pensai que até esta hora nem os nossos benefícios, nem as nossas promessas e ameaças puderam decidir o homem a amar-nos.

         É que ele não sabe ainda a que ponto o amamos; se quisermos obrigá-lo a amar-vos infalivelmente, eis a mais bela ocasião que possamos ter: eu, vosso unigênito Filho, encarregar-me-ei de resgatar o homem perdido, descerei à terra, tomarei um corpo humano, morrerei para pagar a pena que ele deve à vossa justiça; esta será assim plenamente satisfeita e o homem se persuadirá do nosso amor para com ele.

         Mas, pensa, meu Filho, responde o Padre Eterno; pensa que, se te encarregares de satisfazer pelo homem, terás de levar uma vida cheia de trabalhos e dores. - Não importa, eis-me, mandai-me... Pensa que terás de nascer numa gruta, que será estábulo de animais; que depois terás de fugir para o Egito a fim de escapar das mãos desses mesmos homens que procurarão, desde a infância, tirarte a vida. - Não importa, mandai-me... Pensa que, voltando do Egito, terás de levar vida extremamente penosa e abjeta como auxiliar dum pobre artífice. - Não importa, mandai-me... Pensa enfim que, quando apareceres em público para pregar tua doutrina e te manifestar ao mundo, terás sim discípulos, mas serão pouquíssimos; a maior parte dos homens te desprezará, te tratará de impostor, de mago, insensato, samaritano e não deixará de perseguirte, enquanto não e fizer nos mais ignominiosos tormentos e suspenso num patíbulo infame.

         - Não importa, mandai-me...

         Lavrado o decreto de que o Filho de Deus se faria homem para ser o Redentor do gênero humano, o Arcanjo Gabriel foi enviado a Maria. A humilde Virgem consente em tornar-se a Mãe de Deus e o Verbo Eterno se faz carne. Eis pois Jesus no seio de Maria; e entrando no mundo, ele diz com a mais profunda humildade e inteira obediência: Meu Pai, já que os homens não podem aplacar vossa justiça por suas obras nem por seus sacrifícios, eis-me aqui, o vosso Filho unigênito, revestido da carne humana, e pronto a expiar as faltas humanas por meus sofrimentos e por minha morte. Assim o faz falar São Paulo: Entrando no mundo, diz: Não quiseste hóstia, nem oblação, mas me formaste um corpo... E eu disse: Eis-me que venho... para fazer, ó Deus, a tua vontade. (Hb 10,5.)

         Assim, pois, por nós míseros vermes e para ganhar o nosso amor, é que Deus quis fazer-se homem. Sim, isso é de fé, como a Santa Igreja o proclama: "Por nossa causa e para nos salvar, ele desceu do céu..., diz ela, e se fez homem". Sim, um Deus fez isso para nos obrigar a amá-lo.

         Quando Alexandre Magno venceu o Dario e se apoderou da Pérsia, para cativar o afeto daqueles povos, se vestiu à moda deles. O nosso Deus empregou, de certo modo, o mesmo meio para cativar os corações dos homens: tomou a sua semelhança e mostrou-se ao mundo feito homem. Quis assim mostrar até aonde ia o seu amor a nós: O amor de Deus nosso Salvador apareceu a todos os homens. (Tt 2,11.)

         O homem não me ama, parece dizer o Senhor, porque não me vê; vou mostrar-me a ele e conversar com ele, e assim me fazer amar. Ele foi visto sobre a terra, disse o profeta, e viveu familiarmente com os homens. (Baruqui 3,38.)

         O amor de Deus pelo homem é imenso, e o foi desde a eternidade: Eu te amei com amor eterno, diz-nos ele, e por misericórdia te tirei do nada. (Jr 31,3.) Mas esse amor não se manifestara em toda a sua incompreensível grandeza. Apareceu realmente quando o Filho de Deus se fez ver sob a forma duma criança reclinada sobre palha num estábulo. Foi então que, como diz o Apóstolo, se manifestou a bondade, a ternura, ou, segundo o texto grego, o amor singular do nosso Deus Salvador aos homens. (Tt 3,4.) Deus já havia mostrado o seu poder criando o mundo, observa São Bernardo, e sua sabedoria governando-o. Na encarnação do Verbo, porém, manifestou a grandeza de sua misericórdia. Antes que Deus aparecesse sobre a terra revestido da natureza humana, continua o mesmo Santo, os homens não podiam fazer-se uma justa idéia da bondade divina. Por isso ele se encarnou a fim de descobrir aos homens toda a extensão de sua bondade.

         E de que outro modo poderia o Senhor provar ao homem ingrato a sua bondade e amor? Desprezando a Deus, diz SÃO Fulgêncio, o homem separara-se dele para sempre. Mas não podendo mais o homem voltar-se para Deus, o Senhor veio procurá-lo sobre a terra. Santo Agostinho havia já expressado o mesmo pensamento: "Como não podíamos ir ao nosso celeste médico, ele dignou-se vir a nós".

         Quero atraí-los, disse o Senhor, e uni-los a mim pelos laços do amor. (Oséias, 11,4.) Os homens cativam-se pelo amor; os sinais de afeto que recebem são como cadeias que os prendem e os forçam por assim dizer a amar a quem os ama. Fazendo-se homem, o Verbo Eterno nos deu a maior prova possível de amor com o fim de ganhar os nossos corações e de ser por eles amado com ternura, disse Hugo de São Vítor.

         Foi justamente isso que quis dar a entender nosso Salvador a um devoto religioso franciscano, o Padre Francisco de São Tiago, coo se narra no Diário franciscano de 15 de dezembro. Jesus mostrou-se-lhe várias vezes sob forma dum belo Infante. Como o servo de Deus procurasse retê-lo perto de si, o Menino sempre fugia, pelo que o piedoso sacerdote se queixava amorosamente. Um dia o divino Menino apareceu-lhe novamente, mas dessa vez empunhava cadeias de oiro, para lhe dar a entender que vinha com a intenção de prendê-lo e de ficar preso a ele para não mais se separarem. Encorajado com isso, o religioso tomou as cadeias, prendeu os pés do amável Menino e estreitou-o contra o coração. Desde então creu ver sempre em seu coração o Menino Jesus feito seu prisioneiro de amor. O que Nosso Senhor fez nessa circunstância com seu piedoso servo, ele o fez cm todos os homens, quando se encarnou.

         Por esse prodígio, de caridade quiz de certo modo fazer-se nosso cativo e prender ao mesmo tempo os nossos corações pelos laços do amor, conforme já havia predito por Oséias: "Atraí-os para mim com vínculos próprios de homens, com os vínculos da caridade".

         De diversos modos, diz SÃO Leão, havia Deus beneficiado o homem. Jamais, porém, manifestou melhor o excesso de sua bondade para conosco do que enviando seu unigênito Filho para nos resgatar, ensinar o caminho da salvação e proporcionar a vida da graça. Então, assim se expressa o Santo, "ele saiu dos limites ordinários de sua ternura, quando, na pessoa de Jesus Cristo, a Misericórdia desceu aos pecadores, a Verdade se apresentou aos desviados, e a Vida veio em socorro dos que estavam mortos".


         Santo Tomás pergunta porque a Encarnação do Verbo se diz obra do Espírito Santo: Et incarnatus est de Spiritu Sancto. É certo que todas as obras de Deus chamadas pelos teólogos Opera adi' extra, isto é, que têm por objeto as criaturas, pertencem às três pessoas divinas. Por que então a Encarnação é atribuída só ao Espírito Santo? A principal razão, alegada pelo Doutor Angélico, é que todas as obras do amor divino são atribuídas ao Espírito Santo, que é o amor substancial do Pai e do Filho; ora, a obra da Encarnação foi o puro efeito do amor imenso que Deus tem ao homem. Isso quis significar o profeta dizendo que Deus viria ao lado do meiodia, expressão que designa, segundo o Abade Ruperto, o grande amor de Deus para conosco. Também Santo Agostinho afirma que o Verbo Eterno veio ao mundo, principalmente a fim que o homem soubesse quanto Deus o ama.

         E segundo São Lourenço Justiniano, "jamais Deus fez resplandecer aos olhos dos homens a sua adorável caridade, como quando se fez homem".

         Porém o que mais faz conhecer o amor divino para com o gênero humano, é que o Filho de Deus veio buscá-lo, quando este dele fugia. É a isso que alude o Apóstolo quando diz falando do Verbo divino: Não tomou a natureza dos anjos, e sim a carne dos filhos de Abraão. A palavra apprehendit, empregada aqui, observa São João Crisóstomo, significa que ele se apoderou do homem à maneira de quem persegue um fugitivo a quem quer prender. Sim, Deus desceu do céu como para prender o homem ingrato que dele fugia, como se lhe dissesse: "Homem, vê quanto te amo; desci do céu à terra expressamente para te buscar. Porque foges de mim? Pára, ama-me; não fujas mais de mim que tanto te amo".

         Deus veio pois procurar o homem perdido; e a fim de melhor lhe testemunhar o seu amor e movê-lo a amar enfim Aquele que tanto o tinha amado, o Senhor quis, ao manifestar-se-lhe pela primeira vez, aparecer sob a forma duma tenra criancinha reclinada sobre a palha. "Felizes palhas, mais belas do que as rosas e os lírios! exclama São Pedro Crisólogo; que terra afortunada vos produziu? e que felicidade é a vossa por haverdes servido de leito ao Rei dos céus! Ah! continua o Santo, sois bem frias para Jesus, porque não podeis acalentá-lo na gruta úmida, onde ele Treme de frio; mas sois para nós fogo e chama, pois que acendeis em nossos corações um incêndio de amor que todas as águas dos rios não poderiam apagar".

         Não bastou ao amor divino, diz Santo Agostinho, ter feito o homem à sua imagem, quando criou nosso primeiro pai Adão; quis fazer-se à nossa imagem para resgatar-nos. Adão comeu do fruto proibido por instigação da serpente, que dissera a Eva que lhe bastaria provar desse fruto para se tornar semelhante a Deus, quanto à ciência do bem e do mal. Eis porque o Senhor disse então: "Adão se fez como um de nós". (Gn 3,22.) Deus falava assim por ironia, e para censurar a Adão a sua temeridade; "mas nós, observa Ricardo de São Vítor, depois da Encarnação do Verbo, podemos dizer com verdade: Eis que Deus se fez como um de nós". "Considera esse prodígio, ó homem", exclama Santo Agostinho: "O teu Deus se fez teu irmão", tornou-se semelhante a ti; fez-se filho de Adão como tu, revestiu-se a mesma carne, tornou-se passível e mortal como tu. Podia tomar a natureza angélica.

         Mas não, preferiu unir-se à tua própria carne, a fim de satisfazer à justiça divina com uma carne vinda de Adão pecador, embora isenta de seu pecado.

         E disso se gloriava chamando-se repetidas vezes o Filho do homem, e autorizando-nos assim a chamá-lo nosso verdadeiro irmão.

         Um Deus fazer-se homem é um abaixamento incomparavelmente maior do que se todos os príncipes da terra e todos os anjos e todos os santos do céu, sem excetuar a Mãe de Deus, se abaixassem ao ponto de não serem mais do que um fio de erva ou um pouco de fumo. Pois que a erva, o fumo, bem como os príncipes, os anjos e os santos são criaturas, enquanto que da criatura a Deus a distância é infinita. - Mas, observa São Bernardo, quanto mais esse Deus se humilhou fazendo-se homem por nós, tanto mais fez conhecer a grandeza de sua bondade. Também o Apóstolo exclama que o amor de Jesus Cristo para conosco é tal, que nos constrange e força extre-mamente a amá-lo.

         Ah! se a fé não nos desse a certeza, quem poderia jamais imaginar que por amor dum verme da terra como é o homem, um Deus se fez verme da terra como o homem! Se acontecesse, diz um piedoso autor, que passando pela estrada pisásseis casualmente um verme e o matásseis, e que alguém, vendo-vos ter dele compaixão, vos dissesse: Se quereis restituir a vida a esse pobre verme, deveis primeiro tornar-vos como ele, e depois abrindo-vos as veias, banhá-lo em vosso sangue; - que responderíeis? - Que me importa, diríeis certamente, que o verme ressuscite ou fique morto, que eu tenha de procurar a sua vida com a minha morte? Essa seria com mais razão a vossa resposta, se se tratasse não dum verme inocente, mas duma Víbora ingrato que, depois de beneficiado por vós, vos tentasse tirar a vida.

         Mas se, não obstante isso, levásseis o amor ao ponto de sofrer a morte para restituir a vida a essa malvado reptil, que diriam os homens? E se esse animal salvo assim pela vossa morte tivesse raciocínio, que não faria por vós? Mas Jesus Cristo fez isso por ti, mísero verme da terra; e tu ingrato tentaste muitas vezes tirar-lhe a vida, e os teus pecados o teriam matado realmente, se ele ainda estivesse sujeito à morte. Tens sido mais vil a respeito de Deus do que o verme a teu respeito! Que importava a Deus que ficasses ou não no pecado, presa da morte e da condenação segundo o teu mérito? E esse Deus teve tanto amor por ti que, para livrarte da morte eterna, primeiro se fez verme como tu, e depois para salvarte quis derramar todo o seu sangue e sofrer a morte que merecias.

         Sim, tudo isso é de fé: O Verbo se fez carne, diz São João, e amou-nos ao ponto de nos lavar em seu próprio sangue. (Ap 1,5.) A Santa Igreja, ao considerar a obra da Redenção declara-se aterrada. E ela não faz senão repetir as palavras do profeta, a exclamar: Senhor, eu ouvi a tua palavra, e temi; tu saíste para a salvação do teu povo, para o salvar com o teu Cristo. (Habacuque, 3,2-13.)

         Santo Tomás tem pois razão de chamar o mistério da Encarnação o milagre dos milagres; milagre incompreensível, em que Deus mostra o poder de seu amor pelos homens; pois que, de Deus que é, esse amor o faz homem, de Criador, criatura nascida duma criatura, diz São Pedro Damião; de soberano Senhor, simples servo, de impassível, sujeito às penas e à morte. É assim que, segundo a palavra da Santíssima Virgem, ele fez brilhar o poder de seu braço. São Pedro de Alcântara, ao ouvir uma vez cantar o Evangelho que se reza na terceira missa de Natal: In principio erat Verbum, etc., contemplando esse mistério ficou de tal modo inflamado de amor para com Deus que em êxtase se elevou nos ares e, embora distante, foi levado para diante do Santíssimo Sacramento. E Santo Agostinho dizia que se não saciava nunca de considerar a grandeza da bondade divina na obra da redenção dos homens.

         É sem dúvida por causa da grande devoção que ele tinha a esse sublime mistério, que o Senhor lhe mandou escrever sobre o coração de Santa Maria Madalena de Pazzi estas palavras: E o Verbo se fez carne.

2

         Quem ama, não ama senão para ser amado; assim, diz São Bernardo, Deus que tanto nos amou, só quer de nós o nosso amor. Dirigindo-se depois a cada um de nós, ajunta: "Homem, qualquer que seja, viste o amor que Deus te mostrou fazendo-se homem, sofrendo, morrendo por ti; quando é que Deus verá por experiência em tuas ações o teu amor a ele?"

         Ah! ao ver que um Deus se quis revestir da nossa carne, levar vida tão penosa, e padecer morte tão cruel por nós, cada homem deveria arder de amor para com esse Deus tão amoroso. Oxalá romperas tu os céus, e desceras de lá! Os montes se derreteriam diante da tua face; as águas arderiam em fogo. (Is 64,1.) Meu Deus, exclamava o profeta antes da vinda do Messias, dignai-vos descer do céu, tomar a natureza humana e habitar entre nós! Vendo-vos os homens feito como um deles, as montanhas se derreterão, aplanar-se-ão para eles todos os obstáculos, todas as dificuldades, que os impedem de observar os vossos preceitos e os vossos conselhos; e as águas arderão em fogo: a chama que acendereis nos corações penetrará nas almas mais glaciais e as abrasará de amor por vós!

         E de fato, depois da encarnação do Verbo, que belo incêndio de amor divino se viu resplandecer em tantas almas generosas! Desde que Jesus Cristo veio habitar entre nós, Deus foi certamente mais amado pelos homens num só século, do que o fora durante os quarenta séculos que precederam a sua vinda. Quantos jovens, nobres e até monarcas renunciaram às riquezas, às honras e à dignidade régia, retiraram-se ao deserto ou ao claustro, e abraçaram uma vida pobre e desprezada a fim de melhor mostrar a Deus o seu amor! Quantos mártires caminharam jubilosos e sorridentes aos tormentos e à morte! Quantas tenras virgens recusaram a mão dos grandes do mundo e derramaram seu sangue por Jesus Cristo a fim de retribuir de alguma maneira a um Deus que quis encarnar-se e morrer por seu amor!

         Sim, tudo isso é verdade; mas consideremos agora o que nos deve fazer chorar. Tem-se visto igual maneira de agir em todos os homens? Têm todos procurado corresponder a esse grande amor de Jesus Cristo? Ah! a maior parte lhe pagou e ainda paga com ingratidão. E tu, meu irmão, dize-me: qual tem sido o teu reconhecimento para com um Deus, que tanto te amou? Tens-lhe sempre agradecido? tens considerado o que significam as palavras: um Deus feito homem e morto por ti?

         Um homem que assistia uma vez a missa sem devoção, como fazem tantos, não fez nenhum sinal de reverência ao ouvir dizer no fim: "E o Verbo se fez carne". O demônio deu-lhe uma rude bofetada dizendo: "Ingrato, lembramte que Deus se fez homem por ti, e tu nem te dignas inclinarte? Ah! se Deus tivesse feito outro tanto por mim, eu lhe ficaria grato eternamente".

         Dize-me, cristão, que mais poderia Jesus Cristo fazer para merecer o teu amor? Se o Filho de Deus tivesse de salvar da morte a seu próprio Pai, que mais poderia fazer do que abaixar-se ao ponto de tomar carne humana e sacrificar sua vida para resgatá-lo? Digo mais: Se Jesus Cristo fosse um simples homem e não uma pessoa divina, e quisesse por qualquer prova de afeição obter o amor de seu Pai, poderia ele fazer mais do que fez por ti? E se um dos teus servos tivesse dado o seu sangue e sua vida por amor de ti, não te prenderia o coração e te obrigaria a amá-lo ao menos por gratidão? E porque é que Jesus Cristo, mesmo dando por ti a sua vida, não conseguiu ganhar o teu amor?

         Ah! se os homens desprezam o amor divino, é porque não compreendem, digamos melhor, não querem compreender que felicidade é possuir a graça de Deus, a qual, segundo a expressão do Sábio, é um tesouro infinito, e faz amigos de Deus aos que dela gozam. (Eclo 7,14.) Os homens estimam e procuram o favor dum príncipe, dum prelado, dum rico, dum sábio, até dum desclassificado na sociedade; e há infelizes que não fazem caso da graça de Deus: renunciam-na por uma fumaça, um prazer brutal, um pouco de terra, um capricho, um nada.

         E tu, caro irmão, que dizes? queres ser também do número desses ingratos? Se Deus não te satisfaz, diz Santo Agostinho, vê se podes encontrar algo que valha mais. Vai, pois, procura um príncipe mais benfazejo, um protetor, um irmão, um amigo mais amável, e quem te tenha amado mais do que Deus; procura alguém que, mais do que Deus, te possa fazer feliz nesta vida e na outra.

         Quem ama a Deus nenhum mal tem a temer; pois Deus assegura que não pode deixar de amar a quem o ama; e quando alguém é amado por Deus, que temor poderá ter? É assim que falava Davi: O Senhor é minha luz e minha salvação, a quem pois temerei? E as irmãs de Lázaro contentaram-se em dizer ao Senhor que seu irmão estava enfermo, pensando: Jesus o ama e isso basta; Ele não podia deixar de ir em seu auxílio e curá-lo.

         De outro lado como pode amar a Deus quem despreza o seu amor? Ah! resolvamo-nos uma vez a pagar com amor a um Deus que tanto nos tem amado. Peçamos-lhe sem cessar nos conceda o grande dom de seu amor. Segundo São Francisco de Sales, é essa a graça que devemos desejar e pedir mais que toda outra graça, porque com o amor divino obtemos todos os outros bens como no-lo assegura o Sábio. Eis por que Santo Agostinho dizia: "Amai e fazei o que quiserdes". Quem ama a alguém foge de tudo que o possa desgostar e procura agradar-lhe sempre mais. Assim quem ama verdadeiramente a Deus nada faz que o possa desagradar, mas aplica-se a fazer o possível para lhe causar prazer.

         Para obtermos mais depressa e mais seguramente esse precioso dom do divino amor, recorramos Àquela que mais amou a Deus, digo, à Santíssima Virgem Maria sua Mãe: o seu coração era tão inflamado de amor por Deus, que os demônios, no dizer de São Bernardino de Sena, não ousavam aproximar-se dela para tentá-la. Ricardo ajunta que os próprios Serafins podiam descer do céu para aprender de Maria o modo de amar a Deus. E já que o coração de Maria era sempre todo abrasado do divino amor, continua São Boaventura, ela comunica o mesmo fogo a todos os que a amam e dela se aproximam, tornando-os semelhantes a ela.

         (Quem deseja ajuntar a estas considerações algum exemplo atinente à devoção do Menino Deus, pode escolher-se um dos que damos no fim das Meditações.)

“Afetos e Súplicas”

         "Ó fogo que sempre ardes, abrasa-me". Ó Verbo encarnado, fizestes-vos homem para acender em nós o fogo do amor divino; como pudestes pois encontrar tanta ingratidão nos corações dos homens? Nada poupastes para vos fazer amar por eles; sacrificastes o vosso sangue e a vossa vida. Como pois resistem eles a tanta bondade? Ignoram o que fizestes por eles? Ah! eles sabem e crêem que por amor deles descestes do céu para vos revestir da carne humana, vos sobrecarregar de suas misérias, viver entre dores e padecer uma morte ignominiosa. Como pois passam sua vida sem sequer pensar em vós? Amam os parentes, amam os amigos, amam até os animais. Se deles recebem qualquer sinal de afeto, procuram remunerá-los; só a vós não testemunham nem amor nem reconhecimento. Mas ai de mim, gemendo sobre a ingratidão dos homens, acuso-me a mim mesmo de haver sido mais do que os outros culpado para convosco.

         Mas a vossa bondade me encoraja.

         Com tanta paciência me tendes suportado, a fim de me perdoar e abrasar no vosso amor, contanto que me arrependa e vos ame. Sim, meu Deus, quero arrepender-me e me arrependo de toda a minha alma de vos ter ofendido; quero amar-vos de todo o meu coração. Confesso, meu Redentor, que meu coração já não merece ser aceito por Vós, porque vos abandonou para se apegar às criaturas; mas vejo que o quereis ainda apesar de sua indignidade: eu vo-lo consagro e vo-lo dou com toda a minha vontade. Inflamai-o pois todo inteiro de vosso santo amor e fazei que doravante não ame outra coisa fora de vós, bondade infinita, digna dum infinito amor. Amo-vos, meu Jesus, amo-vos, soberano Bem, amo-vos, único amor de minha alma. Ó Maria, minha Mãe, que sois a Mãe do belo Amor, obtende-me a graça de amar o meu Deus; é de Vós que o espero.

CONSIDERAÇÃO 2
O VERBO ETERNO DE GRANDE SE FEZ PEQUENO.

         Nasceu-nos um Menino e foi-nos dado, um filho. (Is 9,6.)

         Platão dizia que o amor atrai o amor: Magnes amoris, amor. Daí o provérbio citado por São João Crisóstomo: Se queres ser amado, ama. De fato, o mais seguro de cativar-se o afeto duma pessoa, é amá-la e dar-lhe a entender que é amada.

         Mas, Jesus meu, essa regra, esse provérbio é para os outros, para todos os outros e não para vós. Os homens são gratos para com todos, menos para convosco. Não sabeis o que mais fazer para testemunhar aos homens o amor que lhes tendes; nada mais vos resta a fazer para conquistardes o coração dos homens. E quantos são os que vos amam? Ah! a maior parte, digamos melhor, quase todos não só não vos amam, mas nem sequer vos querem amar. Ainda mais: vos ofendem e desprezam.

         Queremos também nós ser do número desses ingratos? Oh! não, que não o merece esse Deus tão bom, tão amante que, sendo grande, e duma grandeza infinita, quis fazer-se pequeno para ser amado por nós. - Peçamos a Jesus e Maria nos esclareçam.

1

         Para se compreender qual foi o amor que determinou a um deus fazer-se homem e criancinha em favor dos homens, seria preciso ter uma idéia da grandeza de Deus. Mas que homem ou que anjo poderia compreender a grandeza divina que é infinita?

         Segundo Santo Ambrósio, dizer de Deus que ele é maior que os céus, que todos os reis da terra, que todos os santos é fazer-lhe injúria, como seria injuriar a um príncipe o dizer que ele é maior do que um calamo de erva ou uma mosca. Deus é a grandeza mesma, e toda a grandeza é apenas uma mínima parcela da grandeza de Deus.

         Considerando essa divina grandeza, convencido de sua absoluta incapacidade para compreendê-la, Davi exclamou: "Senhor, onde encontrar uma grandeza comparável à vossa?" De fato, como poderia uma criatura, cuja inteligência é finita, compreender a grandeza de Deus, a qual não tem limites: Grande é o Senhor, cantava o mesmo profeta; ele é digno de todo o louvor, e sua grandeza é infinita. - Não sabeis, disse Deus aos judeus, que eu encho o céu e a terra? De sorte que para falarmos segundo o nosso modo de entender, não passamos de atomozinhos imperceptíveis nesse imenso oceano da essência divina. Dizia o apóstolo: "Nele temos a vida, o movimento e o ser".

         Que somos nós em relação a Deus? Que são todos os homens, todos os monarcas da terra, e mesmo todos os santos e todos os anjos do céu diante da infinita grandeza de Deus? Somos menos que um átomo relativamente ao mundo inteiro; e para falarmos como Isaías, todas as nações são na presença de Deus como a gota d'água suspensa no bordo do vaso, como o peso que faz pender apenas a balança; e todas as ilhas não são senão um pouco de pó; numa palavra, todo o universo é diante dele como se não existisse.

         Ora esse Deus tão grande se fez criança, e para quem? Por nós: Nasceu-nos um Menino, disse ainda Isaías. Mas para que fim? Santo Ambrósio responde: "Fez-se pequeno para nos tornar grandes; quis ser envolvido em paninhos para nos livrar das cadeias da morte; desceu à terra a fim de que pudéssemos subir ao céu".

         Eis pois o Ser imenso feito criança; Aquele que os céus não podem conter, ei-lo enfeixado em pobres paninhos, e deitado num presépio estreito e grosseiro, sobre um pouco de palhas que lhe servem de leito e de travesseiro! São Bernardo exclama: Vinde ver um Deus que pode tudo, preso em paninhos de sorte a não poder mover-se; um Deus que sabe tudo, privado da palavra; um Deus que governa o céu e a terra, necessitando ser carregado nos braços; um Deus que nutre todos os homens e todos os animais, precisando dum pouco de leite para viver; um Deus que consola os aflitos, que é a alegria do paraíso, e que chora, que geme e que procura quem o console!

         Em suma, diz São Paulo que o Filho de Deus vindo à terra se aniquilou a si próprio. E por que? para salvar o homem e para ser por ele amado. "Meu divino Redentor, exclama São Bernardo, na medida que vos abaixastes fazendo-vos homem e criança brilharam a misericórdia e o amor que nos mostrastes a fim de ganhar os nossos corações".

         Embora os Hebreus tivessem claro conhecimento do verdadeiro Deus que se lhes manifestara por tantos milagres, não estavam satisfeitos. Queriam vê-lo face a face. Deus achou o meio de contentar também esse desejo dos homens. Tomou a natureza humana e tornou-se visível a seus olhos, diz São Pedro Crisólogo. E para melhor se insinuar aos nossos corações, continua o mesmo Santo, quis mostrar-se primeiro como uma criancinha, porque nesse estado ele devia parecer-nos mais grato aos nossos afetos. Sim, acrescenta São Cirilo e Alexandria, ele se abaixou à humilde condição duma criancinha a fim de se tornar mais agradável aos nossos corações. Era esse, com efeito, o meio mais próprio para se fazer amar.

         O profeta Ezequiel tinha pois razão de dizer, ó Verbo encarnado, que a época da vossa vinda à terra devia ser o tempo do amor, o tempo dos que amam. E com efeito por que outro motivo Deus nos amou tanto e nos deu tantas provas de seu amor, se não para ser amado por nós? Deus só ama para ser amado, diz São Bernardo. Aliás o Senhor mesmo o declarou desde o início: E agora, ó Israel, que é o que o Senhor teu Deus pede de ti, se não que o temas... e o ames. (Dt 10,12.)

         Para obrigar-nos a amá-lo, Deus não quis confiar a outrem o negócio de nossa salvação, mas quis fazer-se homem e vir resgatar-nos em pessoa. São João Crisóstomo faz uma bela observação sobre a expressão de que se serve São Paulo ao falar desse mistério; Ele nunca tomou a natureza dos anjos, mas tomou a carne dos filhos de Abraão. Porque, pergunta ele, não diz o apóstolo simplesmente que Deus se revestiu da carne humana, mas que a tomou como que à força, segundo a significação própria do vocábulo Apprehendit? E responde: disse assim por metáfora, para explicar que Deus desejava ser amado pelo homem, mas o homem lhe voltara as costas e não queria reconhecer o amor que Deus lhe tinha. Eis por que desceu do céu e tomou um corpo humano para se fazer conhecer e amar, como que à força, pelo homem ingrato que dele fugia.

         É por isso que o Verbo Eterno se fez homem, e é também por isso que Ele se fez criança. Ele poderia apresentar-se sobre a terra como homem feito à semelhança do nosso primeiro pai Adão, mas o Filho de Deus preferiu mostrar-se ao homem sob a forma duma graciosa criança, a fim de ganhar mais depressa e com mais força o seu coração. As crianças são amáveis por si mesmas e atraem o amor de quem as vê. O Verbo divino fez-se menino, diz São Francisco de Sales, a fim de conciliar o amor de todos os homens.

         Ouçamos São Pedro Crisólogo: "Não é por ventura desse modo que deveria vir a nós Aquele que queria banir o temor e fazer reinar o amor? Que alma haverá tão feroz que se não deixe vencer pelos encantos dessa criança? que coração tão duro que se não enterneça à sua vista? e que amor não exige Ele de nós? Assim pois quis nascer Aquele que queria ser amado e não temido". O Santo Doutor nos faz compreender que, se o divino Salvador quisesse, vindo ao mundo, fazer-se temer e respeitar pelos homens, ter-se-ia apresentado sob a forma dum homem perfeito e cercado da dignidade régia.

         Mas, como procurava apenas ganhar os nossos corações, quis aparecer no meio de nós como uma criança, e como a criança mais pobre e humilde, nascida numa fria gruta entre dois animais, colocado sobre a palha num presépio, sem lume e envolta em paninhos insuficientes para defendê-la do frio: Assim quis nascer Aquele que queria ser amado e não temido! Ah! meu Senhor e meu Deus, quem pois vos obrigou a descer do trono dos céus, para nascerdes num estábulo? Foi o amor que tendes aos homens! Quem vos arrancou da dextra do Pai Eterno, onde estais assentado, e vos deixou numa vil manjedoura? Vós que reinais sobre a abobado estrelada, quem vos estendeu sobre a palha? Quem do meio dos anjos vos fez residir entre dois animais? Foi o amor.

         Vós abrasais os serafins, e tremeis de frio! Vós sustendes o céu, e é preciso que vos levem nos braços! Vós nutris homens e animais, e tendes necessidade dum pouco de leite para vos sustentar! Vós sois a felicidade dos Santos, e eu vos ouço chorar e gemer! Quem pois vos reduziu a tão grande miséria? foi o amor: Assim quis nascer Aquele que queria ser amado, e não temido!

         Amai, pois, almas cristãs, exclama São Bernardo, amai essa criança que é tão amável! "Grande é o Senhor, merece louvo-res infinitos; pequeno é o Senhor, merece infinitamente nosso amor". Sim, diz-nos ele, esse Deus era desde toda a eternidade, como o é ainda agora e sempre, digno de todo o louvor e respeito por sua grandeza, como já cantou Davi: Grande é o Senhor, e muito digno de louvor. Hoje porém que o vemos feito menino, necessitado de leite, sem se poder mover, tremendo de frio, vagindo, chorando, procurando quem o pegue, aqueça e console; Ah! como é amável e caro aos nossos corações. O Senhor é pequeno e excessivamente amável!

         Devemos adorá-lo como Deus, mas o nosso amor deve igualar à nossa veneração para com um Deus tão amável e tão amante.

         "Uma criança, observa São Boaventura, gosta de achar-se entre crianças, no meio de flores e nos braços dos que a amam". Se quisermos comprazer ao divino Infante, quer dizer o Santo, devemos tornar-nos crianças com ele, isto é, simples e humildes; levar-lhe flores das virtudes, mormente as da mansidão, da mortificação, da caridade; tomá-lo e nossos braços com amor.

         "Que queres mais, ó homem, acrescenta São Bernardino de Sena, que esperas ainda para te dares sem reserva a teu Deus? Considera as penas que Jesus sofre por ti; vê com que amor esse terno Salvador desceu do céu para te procurar. Não ouves os seus gritos, os seus vagidos infantis? Apenas nascido, dirige-se a ti escuta com ele te chama com seus vagidos: Ó alma a quem amo, parece dizerte, eu te procuro; é por amor de ti, para obter o teu amor que vim do céu à terra".

         Ó Deus, os próprios animais, quando lhes fazemos algum benefício, quando lhes damos alguma coisa, mostram tanto reconhecimento! Vem a nós, obedecem-nos a seu modo como sabem, testemunham-nos alegria ao ver-nos. E nós, como podemos ser tão ingratos para com Deus, que se deu a nós, que desceu do céu à terra, se fez menino para nos salvar e ser de nós amado? Amemos pois o Menino de Belém! exclama o seráfico São Francisco. Amemos a Jesus Cristo que com tanto empenho procurou ganhar os nossos corações!

2

         Se amamos a Jesus Cristo, devemos amar o nosso próximo, mesmo os que nos ofenderam. O Messias foi chamado, por Isaías, o pai do século futuro. Ora, para sermos filhos dum tal Pai, devemos amar os nossos inimigos e fazer bem aos que nos fazem mal. É o Senhor mesmo quem nos declarou: Amai os vossos inimigos, fazei bem aos que nos fazem mal. É o Senhor mesmo quem nos declarou: Amai os vossos inimigos, fazei bem aos que vos odeiam..., para serdes filhos do vosso Pai. Ele mesmo, aliás, deu-nos o exemplo dessa caridade quando pediu a seu Pai celeste perdoasse aos que o crucificavam.

         Quem perdoa a seu inimigo, diz São João Crisóstomo, não pode deixar de obter o perdão de seus próprios pecados. Isso até nos é garantido por uma promessa divina: Perdoai, e vos será perdoado. - Um religioso que aliás não levara vida muito exemplar, deplorava seus pecados na hora da morte, mas com muita confiança e alegria, pois dizia que jamais havia tomando vingança. Ele queria dizer: É verdade que ofendi a Deus; mas o Senhor prometeu perdoar aos que perdoam a seus inimigos; eu sempre perdoei aos que me ofenderam, devo pois estar seguro de que Deus perdoará também a mim.

         E falando em geral do que concerne a todos, como pode-mos recear não obter o perdão de nossos pecados, quando pensamos em Jesus Cristo? Não foi para reconciliar os pecadores com Deus que o Verbo Eterno se humilhou ao ponto de revestir-se da natureza humana? Não vim chamar os justos, disse ele, mas os pecadores. Digamos-lhe pois com São Bernardo: "Sim, Senhor, abaixando-vos assim por nós, mostrastes até onde se estendeu a vossa misericórdia e a vossa caridade par conosco". E tenhamos confiança, como nos exorta Santo Tomás de Vilanova com as palavras: "Que temes, pecador? se te arrependeres de teus pecados, como te condenará aquele Senhor que morre para não te condenar? E se queres voltar novamente à sua amizade, como te repelirá aquele que veio do céu para te procurar?"

         Não tema pois o pecador que não quer mais ser pecador, mas quer amar a Jesus Cristo; não se apavore mas confie. Se detesta o pecado e procura a Deus, longe de se afligir, alegre-se, como a isso o convida o Salmista. O Senhor protesta que quer esquecer-se de todas as ofensas dum pecador que se arrepende: Se o ímpio fizer penitência, já me não recordarei de todas as suas iniqüidades. E para nos inspirar ainda mais confiança, nosso divino Salvador se fez menino. "Quem temeria aproximar-se duma criança?" pergunta Santo Tomás de Vilanova. As crianças nada têm de terrível, respiram só doçura e amor.

         As crianças, diz São Pedro Crisólogo, não sabem encolerizar-se; se lhes acontece irritarem-se, facilmente se acalmam. E de fato, basta apresentar às crianças uma fruta, uma flor, fazer-lhes uma carícia, dizer-lhes uma palavra afetuosa. Perdoam logo e esquecem todas as ofensas a elas feitas.

         Também, acrescenta Santo Tomás de Vilanova, uma lágrima, um sentimento de arrependimento basta para aplacar o Menino Jesus. Vamos pois lançar-nos a seus pés, conclui ele, agora que esse bondoso Mestre depôs sua Majestade divina e se oferece a nós sob a forma duma criança para dar-nos coragem e nos atrair a ele.

         São Boaventura diz igualmente que o Filho de Deus se apresenta aos nossos olhos como uma criança cheia de doçura e misericórdia, para nos liberar do medo que nos poderia causar o pensamento de seu poder e justiça. Ó Deus de misericórdia, ajunta Gerson, ocultastes vossa sabedoria suprema sob as aparências duma criancinha a fim que ela nos não acuse de nossos pecados! Ocultastes a vossa justiça no abaixamento a fim que ela nos não condene! Ocultastes o vosso poder na fraqueza a fim de que ela nos não puna!

         São Bernardo por sua vez faz esta reflexão: Quando Adão pecou, ouviu a voz de Deus, que o chamava dizendo: Adão, onde estás? e ficou tomado de pavor: Ouvi a vossa voz, respondeu e tive medo. Mas o Verbo Eterno, aparecendo sobre a terra como homem, nada mais tem que inspire temor. Por isso o Santo exorta-nos a banirmos dos corações todo sentimento de temor: "O vosso Deus, diz ele, desta vez procura-vos não para vos punir mas para vos salvar". O Deus que devia punirte fez-se menino; a sua voz já te não espanta, porque a voz dum menino pequeno, sendo voz de prantos, inspira antes compaixão do que temor; não podes já temer que Jesus Cristo estenda as mãos para castigarte, pois que sua terna Mãe as retém e encerra em paninhos.

         Alegrai-vos, pois, ó pecadores, exclama SÃO Leão: o nascimento de Jesus é a aurora de alegria e de paz. - Ele é chamado por Isaías o Príncipe da paz. Jesus é Príncipe, não de vingança contra os pecadores, mas de misericórdia e de paz: constituiu-se Mediador de paz entre Deus e os pecadores. Se não podemos pagar a justiça divina, diz Santo Agostinho, o Pai Eterno não pode desprezar o sangue de Jesus Cristo, que satisfaz por nós.

         O célebre duque Afonso de Albuquerque, transpondo os mares, viu um dia o seu navio no risco de dar contra os escolhos. Julgava-se já perdido, quando, percebendo uma criança que chorava, a tomou nos braços e erguendo-a para o céu exclamou: "Senhor, se eu não mereço ser atendido, atendei ao menos os prantos desta criança inocente, e salvai-nos". Terminada a prece, a tempestade acalmou-se e desapareceu o perigo. - Sugamos esse exemplo, nós, miseráveis pecadores.

         Temos ofendido a Deus; merecemos ser condenados à morte eterna; com razão quer a justiça divina ser satisfeita. Que te-mos a fazer? Desesperar? Oh! não: ofereçamos a Deus essa terna criancinha que é o seu Filho, e digamos-lhe com confiança, se não podemos expiar as ofensas que vos temos feito, lançai os olhos sobre o divino Infante, que geme, que chora, que treme de frio sobre a palha nesta gruta; Ele satisfaz por nós e vos pede misericórdia. Se não merecemos o perdão dos nossos pecados, considerai os sofrimentos e as lágrimas do vosso Filho inocente, que o merece por nós e vos pede misericórdia.

         Esse meio de salvação é precisamente o que Santo Anselmo nos indica. Ele diz que Jesus mesmo, querendo nos não ver perdidos, encoraja a quem se acha réu diante de Deus nestes termos: "Pecador, toma ânimo; se tuas iniqüidades já te fizeram escravo do inferno e não tens meio de te livrares dele, toma-me, oferece-me a meu Pai; assim escaparás à morte e te salvarás. Será possível imaginar-se maior misericórdia?" pergunta o Santo Doutor. A Mãe de Deus ensinou o mesmo à Irmã Francisca Farnese. Colocou-lhe nos braços o Menino Jesus e disse-lhe: "Eis o meu Filho; aproveitate dele oferecendo-o muitas vezes a Deus".

         E se quisermos estar ainda mais seguros do perdão, reclamemos a intercessão dessa augusta Mãe, que é todo poderosa junto de seu divino Filho para obter o perdão aos pecadores, como ensina São João Damasceno. E como razão, porque, segundo Santo Antonino, as preces de Maria junto dum Filho que tanto a quer e deseja vê-la honrada, têm o valor de ordens. É isso que faz dizer a São Pedro Damião, que quando a Santíssima Virgem vai pedir a Nosso Senhor em favor de algum de seus servos, ela parece antes mandar que pedir: "Vós vos aproximais do trono de Jesus, não só para lhe suplicar, mas para em certo sentido lhe dar ordens, e antes como Rainha do que como serva, porque, para honrar-vos, o vosso Filho nada do que lhes pedis vos recusa". Também São Germano ajunta que Maria, em virtude da autoridade materna que exerce, ou, para melhor dizer, que exercera outrora sobre a terra a respeito de seu divino Filho, pode impetrar o perdão aos maiores pecadores.

“Afetos e Súplicas”

         Ó doce, ó amável e santo Menino, tudo fizestes para vos fazer amar dos homens. Basta dizer que de Filho de Deus vos fizestes Filho do homem, e que quisestes nascer não só como todos os outros filhos dos homens, porém mais pobre e mais humilhado que todos os outros, escolhendo para habitação um estábulo, e para leito um pouco de palha! Quisestes mostrar-vos a nós, a primeira vez, nessa humilde e tocante condição de criança, para começar a ganhar os nossos corações desde o vosso nascimento. E depois continuastes, durante toda a vossa vida, a dar-nos provas sempre maiores de vosso amor, até morrerdes exsangue e desonrado num patíbulo infame! Donde vem pois a ingratidão dos homens para convosco? Tampouco vos conhecem, e menos ainda vos amam! Ó meu Jesus, quero ser do pequeno número destes últimos. É verdade que no passado eu vos desprezei e, esquecendo o vosso amor, só procurei satisfazer-me, sem fazer conta de vós e de vossa amizade.

         Mas hoje vejo o mal que fiz, sinto dor e arrependimento de todo o coração.

         Caro Infante, meu Salvador, perdoai-me pelos méritos de vossa santa infância. Amo-vos, meu Jesus, e vos amo tanto que, mesmo que todos os homens se separassem de vós e vos abandonassem, eu vos prometo de vos não deixar jamais, ainda que tivesse de perder mil vezes a vida. Estas luzes e esta boa vontade que agora tenho vós mas destes. Agradeço-vos, meu amor, e vos peço mas conserveis com vossa graça. Mas conheceis a minha fraqueza e as minhas infidelidades passadas. Por piedade não me abandoneis; do contrário tornar-me-ei pior do que antes. Permiti que meu pobre coração vos ame, ó divino Infante. Este coração outrora vos desprezou, mas hoje está todo enamorado de vossa bondade.

         Ó Maria, gloriosa Mãe do Verbo encarnado, não me abandoneis vós que sois a Mãe da perseverança e a dispenseira das graças. Ajudai-me e ajudai-me sempre. Com o vosso socorro, ó minha esperança, confio ser fiel a Deus até a morte.

CONSIDERAÇÃO 3º.
O VERBO ETERNO DE SENHOR SE FEZ SERVO.

         Aniquilou-se tomando a forma de servo. (Fl 2,7)

         São Zacarias, considerado a grande misericórdia de nosso Deus na obra da redenção dos homens, teve razão de exclamar: Bendito seja o Senhor, o Deus de Israel, de visitar seu povo e de resgatá-lo... a fim que, livres de todo o temor e libertados da mão de nossos inimigos, pudéssemos servi-lo... Sim, bendito seja para sempre o Senhor nosso Deus, que se dignou descer à terra e fazer-se homem para resgatar os homens; a fim que livres das cadeias do pecado e da morte, pelas quais os inimigos nos conservavam presos, pudéssemos sem temor e na liberdade dos filhos de Deus, servir e amar o Senhor nesta vida, para depois irmos possuí-lo e gozar eternamente de sua presença no reino bem-aventurado, fechado aos homens até esse dia, mas aberto enfim por nosso Salvador.

         Todos nós éramos então escravos do inferno. Mas que fez o Verbo eterno, nosso soberano Senhor, para libertar-nos dessa horrível escravidão? De senhor se fez servo. - Considere-mos a grande misericórdia e o amor imenso que Deus nos testemunhou com esse prodigioso benefício; mas antes peçamos a Jesus e Maria que nos iluminem.

1

         Deus é o senhor de tudo o que existe e pode existir no universo. Quem poderia contestar a Deus o soberano domínio sobre todas as coisas, sendo ele o criador e conservador de tudo? No seu vestido, à ilharga, trás escrito. Rei dos reis e Senhor dos senhores, diz São João. (Ap 19,16.) Sua realeza não está somente escrita no seu vestido mas também à sua ilharga, o que quer dizer, segundo Maldonado, que Ele é rei por natureza. Os monarcas da terra tem uma autoridade e uma majestade emprestada, de que os revestiu, por mero favor, o Rei supremo que é Deus; mas Deus sendo Rei por natureza não pode deixar de ser Rei e Senhor do universo.

         Ora, esse Monarca supremo reinava sobre os anjos do céu e sobre todas as criaturas, mas não reinava sobre os corações dos homens. Os homens gemiam miseravelmente sob a escravidão do demônio. Sim, antes da vinda de Jesus Cristo esse tirano infernal fazia os homens prestarem-lhe honras divinas. Ofereciam-lhe incenso e sacrifícios, e não contentes de lhe imolarem animais, chegavam a sacrificar-lhe os seus próprios filhos e a sua vida. E que lhes dava em retorno esse inimigo cruel? como os tratava? Atormentava-lhes o corpo com extrema barbárie, cegava-lhes o espírito, conduzia-os por um caminho de dor à morte eterna.

         O Verbo divino desceu à terra para abater esse tirano, e para livrar os homens da infeliz escravidão em que se achavam, a fim de que, saindo das trevas da morte, e sacudindo o jugo odioso que carregavam, pudessem conhecer o verdadeiro caminho da salvação e dedicar-se ao serviço de seu verdadeiro e legítimo Senhor, que os amava como pai, e que, de escravos de Lúcifer, queria fazê-los seus filhos diletos: A fim de que libertados de todo o temor e arrancados das mãos de nossos inimigos sirvamos ao Senhor.

         Isaías predissera que nosso divino Redentor destruiria o império que o demônio exercia sobre os homens: Quebrastes o cetro de seu exator. (Is 9,4.) Por que o profeta chama de exator ao demônio? Porque, diz São Cirilo, esse bárbaro senhor costuma exigir dos pobres pecadores, que são seus escravos, enormes tributos de paixões desregradas, ódios e afeições más, que formam outras tantas cadeias de que se serve para os prender com mais força a seu jugo e para os flagelar. Nosso Senhor veio pois à terra para arrancar-nos das mãos desse cruel inimigo. Mas como? Que meio empregou para nos libertar? Ei-lo, responde São Paulo: Existindo na forma (ou natureza) de Deus, não julgou que fosse uma rapina o ser igual a Deus; mas aniquilou-se a si mesmo, tomando a forma de servo, tornando-se semelhante aos homens. (Fl 2,6-7.)

         Era o Unigênito de Deus, igual a seu Pai, eterno como seu Pai, todopoderoso como seu Pai, imenso, infinitamente sábio e feliz, soberano senhor do céu e da terra, dos anjos e dos homens como seu Pai.

         Todavia por amor do homem humilhou-se ao ponto de tomar a forma de servo, revestiu-se da carne humana, e tornou-se semelhante aos homens. E como estes por seus pecados se tornaram escravos do demônio, tomou a natureza humana para os resgatar satisfazendo com suas dores e sua morte à justiça divina e tomando assim a pena que os homens mereciam. - Ah! se a fé nos não desse a certeza disso, quem poderia jamais esperar? quem o poderia sequer imaginar? Mas a fé nos ensina e nos garante que esse sumo e supremo Senhor se aniquilou tomando a forma e a natureza de servo.

         Uma vez revestido dessa humilde forma, o Redentor quis começar desde a infância a despojar o demônio do império que tinha sobre o homem, como o predissera Isaías com as palavras: Põe-lhe um nome que signifique: Toma depressa os despojos, faze velozmente a presa. (Is 8,3.) Era anunciar, observa São Jerônimo, que Jesus Cristo ia pôr fim ao reino de Satanás. Assim para nos livrar da tirania do inferno, diz o venerável Beda, Jesus declara-se servo logo ao nascer e como tal se porta. Quer ser inscrito entre os súditos de César e pagar o censo. No desejo de satisfazer desde então as nossas dívidas por seus sofrimentos, ei-lo, exclama São Zenão, que toma se detença os sinais da escravidão: deixa-se enfaixar em paninhos que o privam da liberdade e representam as cadeias de que um dia será carregado pelos algozes para ser conduzido à morte. Ei-lo depois que se submete e obedece toda a sua vida a uma humilde virgem, a um homem.

         Ei-lo mais tarde, como servo na pobre morada de Nazaré, empregado por Maria e José, ora a desbastar a madeira que José devia trabalhar, ora a recolher os fragmentos para o fogo, ora a varrer a casa, a buscar água, a abrir ou a fechar a oficina. Como Maria e José eram pobres e obrigados a viver de seu trabalho, nota São Basílio, Jesus Cristo para exercer a obediência e demonstrar-lhes respeito, devido aos superiores, procurava tomar parte em suas fadigas na medida das forças dum menino da sua idade. Um Deus que serve! Um Deus que varre a casa! Um Deus que trabalha! Ah! um só desses pensamentos deveria bastar para nos inflamar e consumir de amor!

         Quando Nosso Senhor se pôs a pregar o seu Evangelho, fez-se servo de todos, declarando que não viera para ser servido, mas para servir os outros. (Mt 20,28.) Segundo Cornélio a Lápide, isso equivale a dizer que Ele queria ser o servo de todos os homens.


         E no fim de sua vida, ajunta São Bernardo, "não contente de haver tomado a forma de servo e de haver obedecido como tal, quer ainda parecer servo mau e como tal ser castigado, a fim de pagar a pena devida aos pecados que nos tinham feito escravos do inferno.

         E finalmente, diz SÃO Gregório de Nissa, "o Senhor do universo, qual súdito que só sabe obedecer, submete-se à iníqua sentença de Pilatos, e entrega-se às mãos de bárbaros carrascos que o atormentam e crucificam". E isso que São Pedro exprimiu com as palavras: Entregava-se àquele que o julgava injustamente; (1, Pd 2,23.) e de fato, acrescentou o mesmo apósto-lo, como um escravo que sofre sem resistência um castigo merecido, não amaldiçoava quando o amaldiçoavam; sofrendo não ameaçava. assim, em seu inefável amor por nós, esse Deus quis obedecer como se não passasse dum simples servo; e essa obediência Ele a levou até à morte e até a uma morte cruel e infame: morreu na cruz. Ele obedeceu não como Deus, mas como homem, como servo, cuja forma e natureza tomara.

         Sublime foi a caridade de São Paulino que se fez escravo para resgatar o filho duma pobre viúva. Mas esse devotamento, que excitou a admiração do mundo, que é comparado ao nosso Redentor? Ele era Deus e, a fim de nos resgatar da escravidão, das mãos dos demônios e da morte que nos era devida, fez-se servo, deixou-se carregar de cadeias, deixou-se pregar na cruz, onde quis finalmente deixar a vida num oceano de humilhações e de sofrimentos! "Para que o servo se tornasse Senhor, diz Santo Agostinho, Deus quis fazer-se servo".

         A Santa Igreja tem pois razão de exclamar: "Ó prodígio de misericórdia! ó inapreciável efeito do amor divino! para resgatardes o escravo, entregastes o Filho!" Sim, ó Deus de majestade infinita, tanto amor tivestes ao homem, que para resgatar esses servos rebeldes, quisestes entregar à morte o vosso unigênito Filho! - Mas, Senhor, pergunta Jó, que é o homem, esse ser tão desprezível, tão ingrato para convosco, par que o eleveis tão alto, e o honreis e o ameis (Jó 7,17) como o fizestes? Dizei-me, meu Deus, que vos importam a salvação e a felicidade do homem? Dizei-me: por que tanto o amais de sorte que o vosso coração parece não ter outra preocupação que de amá-lo e fazê-lo feliz?

2

         Regozijai-vos, pois, almas fiéis, que amais a Deus e que esperais nele; regozijai-vos. Se é grande o dano que nos veio do pecado de Adão e sobretudo dos nossos pecados, Jesus Cristo o compensou com usura resgatando-nos: Onde abundou o pecado, diz o apóstolo, superabundou a graça. "Pela graça de nosso Redentor, diz SÃO Leão, ganhamos mais do que perdemos pela malícia do demônio". E Isaías havia predito que, por meio de Jesus Cristo, o homem receberia de Deus benefícios superiores aos castigos devidos aos seus pecados. Essa é a interpretação de Adão, citado por Cornélio a Lápide. Também Nosso Senhor disse: Eu vim proporcionar ao homem uma vida mais abundante e melhor do que aquela da qual o pecado o havia despojado. O dom de Deus excedeu o pecado, (Rm 5,15.) escreveu o apóstolo.

         Isto é: grande foi o pecado do homem; porém maior é o benefício da redenção, a qual, diz igualmente o Salmista, não é somente um remédio suficiente, mas ainda superabundante.

         O sacrifício da vida do Homem - Deus excede imensamente todas as dívidas dos pecadores, como se expri-me Santo Anselmo. Eis porque a Santa Igreja chama feliz a culpa de Adão: Feliz culpa que nos valeu um tal e tão grande Redentor! É verdade que o pecado obscureceu nosso espírito relativamente ao conhecimento das verdades eternas, e introduziu em nossa alma a concupiscência, essa tendência para os bens sensíveis e proibidos pela lei de Deus.

         Mas, devido aos méritos de Jesus Cristo, que poderosos meios temos para adquirir as luzes e as forças de que temos necessidade a fim de vencer todos os nossos inimigos e praticar todas as virtudes! Os sacramentos, o sacrifício da missa, a oração apoiada nos méritos do divino Salvador, oh! que armas para triunfar de todas as tentações! Que força podemos tirar delas para correr, para voar no caminho da perfeição! É certo que com esses mesmos meios que são dados a todos nós, se santificaram todos os Santos da nova lei. A culpa é pois nossa se deles não tirarmos proveito.

         E quantas ações de graças não devemos dar a Deus por nos ter feito nascer depois da vinda do Messias! Que acréscimo de bens não temos recebido vindo ao mundo após a redenção operada por Jesus Cristo! Abraão, os patriarcas e os profetas quanto não desejaram ver aparecer o Redentor que esperavam! E eles não o viram! Violentaram, por assim dizer, o céu com seus suspiros e súplicas: Ó céus, exclamavam, deixai cair o vosso orvalho e enviai-nos o Justo, (Is 45,8.) para aplacar a cólera de Deus, que nós não podemos aplacar, nós que somos pecadores. Senhor, enviai-nos o Cordeiro dominador da terra, (Is 16,1.) o Cordeiro sem mancha que, imolando-se, satisfará por nós a vossa justiça, e assim reinará sobre os corações dos homens, que vivem miseravelmente sob a escravidão do demônio. Senhor, mostrai-nos a vossa misericórdia, e dai-nos o Salvador que prometestes. (Sl 84,8.)

         Apressai-vos, ó Deus de bondade! apressai-vos a fazer brilhar sobre nós a vossa misericórdia, concedendo-nos o objeto principal de vossas promessas, Aquele que nos deve salvar.

         Esses eram os gritos e os suspiros dos Santos antes da vinda do Messias, e apesar disso foram privados, durante o espaço de quatro mil anos, da felicidade de o ver nascer. Nós, sim, tivemos essa ventura. Mas que fazemos? Como sabemos tirar proveito? Ah! saibamos amar esse amável Redentor, agora que Ele já veio, nos livrou das mãos de nossos inimigos, nos resgatou a custo de sua vida da morte eterna que temos merecido, nos abriu o céu, nos deu tantos sacramentos e tantos outros meios para o servirmos e amarmos em paz nesta vida, e para depois o possuirmos na eternidade! "Ó minha alma, diz Santo Ambrósio, serias muito ingrata se não amasses a teu Deus que quis ser envolvido em paninhos para ter livrar das cadeias do inferno, que se fez pobre para te comunicar suas riquezas, que se tornou fraco para te fortalecer contra teus inimigos, que quis sofrer e chorar para lavar teus pecados com sus lágrimas!"

         Mas, ó Deus, quão poucos foram os que, tocados de reconhecimento por tanto amor, tem amado fielmente seu Redentor! Que digo? Após tanta misericórdia e amor, a maior parte dos homens tem ousado dizer a Deus: Senhor, não vos quere-mos servir; queremos antes ser escravos do demônio e condenados ao inferno do que ser vossos servos. - É o Senhor mesmo que lhes exprobra essa ingratidão e esses ultrajes: Rompestes os meus laços e dissestes: Não vos serviremos. (Jr 2,20.)

         Que dizes, meu irmão, qual tem sido a tua conduta? Não és do número desses infelizes? Mas, dize-me: vivendo longe de Deus e sob o jugo do demônio, tens estado contente? Tens achado a paz? Ah! não pode falhar a palavra do Senhor: Porque não serviste ao Senhor teu Deus com gosto, servirás a teu inimigo na fome, na sede, na nudez e numa extrema miséria. (Dt 28,47.) Vê pois como te tem tratado esse tirano cujo jugo preferiste ao de teu Deus. Ele te fez gemer nas cadeias da escravidão, na pobreza, na aflição, na privação de toda a consolação interior.

         Mas levantate, falate Deus, agora que ainda é possível desfazerte dessas cadeias de morte que te prendem. Desata as cadeias do teu pescoço, cativa, filha de Sião. (Is 52,2.) Depressa enquanto é tempo, rompe teus laços, pobre alma, que voluntariamente te tornaste escrava do inferno; quebra esses horríveis nós que te retém para arrastarte ao suplício eterno, e vem a mim; deixate prender por minhas preciosas cadeias, que são cadeias de amor, cadeias de paz, cadeias de salvação. (Eclo 6,31.)

         Mas de que modo se ligam as almas a Deus? Pelo amor, que o apóstolo chama vínculo perfeito. (Cl 3,14.) Enquanto a alma se contenta com andar pelo caminho do temor servil e só se abstém do pecado por medo dos castigos, está sempre em grande perigo de recair. Mas quem se prende a Deus pelo amor, está certo de que o não perder jamais enquanto não cessar de amá-lo. Eis por que é preciso pedir sem cessar a Deus o dom de seu santo amor e repetir continuamente esta prece: Senhor, conservai-me preso a vós; não permitais me separe jamais de vós e do vosso amor. Quanto ao temor, o que deve-mos mais desejar e pedir a Deus, é o temor filial, o de desgostar o nosso bom Senhor e Pai.

         Recorramos também a nossa Mãe. Peçamos sempre à Santíssima Virgem Maria nos obtenha a graça de amarmos só a Deus, e de nos prender de tal forma a seu divino Filho pelos laços do amor, que o pecado nos não possa mais separar dele.

“Afetos e Súplicas”

         Ó meu Jesus, no vosso amor por mim e a fim de me livrar das cadeias do inferno quisestes fazer-vos servo, não só de vosso Pai eterno, mas ainda dos homens, e mesmo dos algozes, e levastes a obediência até ao sacrifício de vossa vida; e eu, por qualquer miserável satisfação, por um prazer envenenado, quantas vezes tenho sacudido o jugo do vosso serviço e me tenho tornado escravo do demônio! Maldigo mil vezes esses momentos funestos em que abusei de minha liberdade ao ponto de desprezar a vossa graça, ó Majestade infinita! Perdo-ai-me, vo-lo peço, e ligai-me com as doces cadeias do amor, com que vos conservais estreitamente unidas as almas que vos são mais caras. Amo-vos, Verbo encarnado, amo-vos, meu soberano Bem. Não desejo senão amar-vos, e não temo outra coisa que ver-me privado do vosso amor. Ah! não permitais me separe mais de vós.

         Eu vos conjuro, meu Jesus, por todos os sofrimentos de vossa vida e de vossa morte, não permitais que me afaste de vós no futuro.

         Não permitais que me separe jamais de vós; não permitais que me separe jamais de vós. Ah! meu Deus, após todas as graças que me tendes prodigalizado, depois de me terdes perdoado tantas vezes, após as luzes que me concedeis neste momento em que me convidais tão docemente a amar-vos, se fosse ainda tão infeliz de vos dar as costas, como poderia ainda esperar o perdão, e não temer ser neste mesmo instante precipitado ao fundo do inferno pela mão da vossa justiça? Ah! repito-o, não permitais, não consintais que de novo me separe de vós.

         Ó Maria, meu refúgio, tendes sido para mim até agora a feliz Mediadora junto de Deus; fizestes que Ele me esperasse tanto tempo e me perdoasse com tanta misericórdia! continuai a socorrer-me: fazei que eu morra, e que morra mil vezes antes que perca ainda uma vez a graça de Deus.

CONSIDERAÇÃO 4
O VERBO ETERNO DE INOCENTE SE FEZ RÉU.

         Consolai-vos, meu povo, consolai-vos, diz, vosso Deus. (Is 40,1)

         Antes da vinda do Redentor, gemiam todos os homens, miseravelmente aflitos, sobre a terra. Eram todos filhos da cólera, e não havia quem pudesse aplacar o Senhor justamente irritado por seus pecados. Isso fazia chorar o profeta Isaías: Eis, dizia ele a Deus, eis que estais irritado... Não há ninguém... que se levante para reter vosso braço vingador. (Is 64,5-7.) Ele falava verdade: um Deus tinha sido ofendido pelo homem, e este, não passando de mísera criatura, não podia expiar com nenhuma pena sua a ofensa feita a uma Majestade infinita. Era necessário um outro Deus para satisfazer em seu lugar à divina justiça. Mas esse outro Deus não existia; não pode haver mais de um Deus. De outro lado o ofendido não pode satisfazer a si mesmo pela ofensa recebida. Assim a nossa desgraça era irremediável.

         Mas, consolate, ó homem, diz o Senhor por Isaías. Consolai-vos, sim, consolai-vos, meu povo..., pois os vossos males estão terminados. (Is 40,1.) Deus mesmo achou o meio de salvar-vos contentando ao mesmo tempo a sua justiça e a sua misericórdia: Eilas que se dão o ósculo da paz, segundo o Salmista. (Sl 84,11.) Como se realizou essa maravilha? O Unigênito de Deus se fez homem, tomou a forma do pecador e, encarregando-se das dívidas do homem, satisfez plenamente por eles à justiça divina pelos sofrimentos de sua vida e por sua morte. Por esse meio, a justiça e a misericórdia receberam ao mesmo tempo tudo o que reclamavam.

         Assim para livrar os homens da morte eterna, Nosso Senhor Jesus Cristo se despojou de certo modo da sua inocência. De inocente se fez réu; isto é: quis aparecer como pecador. Sim, a isso o reduziu o seu amor por nós. Vamos considerar esse grande mistério; mas antes, peçamos a Jesus e Maria nos iluminem para que o façamos com fruto.

1

         Que era Jesus Cristo? Era, responde-nos o apóstolo, santo, inocente, sem mancha. (Hb 7,26.) Era, digamos ainda melhor: a santidade personificada, a inocência, a pureza, pois que era verdadeiro Filho de Deus, verdadeiro Deus como seu Pai, e tão caro a seu Pai que, nas águas do Jordão, seu Pai declarou ter encontrado nesse Filho todas as suas complacências. Ora, esse Filho amado, querendo livrar os homens de seus pecados e da morte a eles devida, que fez? Apresentou-se a seu Pai para tirar os nossos pecados. (1, Jo 3,5.) Ofereceu-se para satisfazer pelos homens; e então o Pai Eterno, diz São Paulo, o enviou à terra para se revestir da carne humana e se tornar em tudo semelhante aos homens pecadores. (Rm 8,3.)

         O apóstolo ajunta: Pelo pecado (cometido pelos judeus contra Jesus Cristo) Ele condenou o pecado (que reinava) na carne, o que significa, segundo a explicação de São João Crisóstomo e de Teodoreto, que Deus condenou o pecado a perder o império que tinha sobre os homens condenando à morte seu divino Filho, que, embora revestido de carne aparentemente manchada de pecado, não era menos santo e inocente.

         Assim, para salvar os homens e para ver ao mesmo tempo sua justiça satisfeita, Deus condenou seu próprio Filho a uma vida penosa e a uma morte cruel! - É isso verdade? É um artigo de fé. São Paulo nos assegura com as palavras: Deus não poupou seu próprio Filho, mas o entregou por todos nós. (Rm 8,32.) E Jesus Cristo mesmo o declarou: Deus amou de tal modo o mundo, que lhe deu seu Filho unigênito. (Jo 3,16.) Célio Rodígino narra num certo Dejótaro que sendo pai de vários filhos, e querendo deixar toda a herança a um filho que ele preferia a todos os outros, cometeu o bárbaro crime de degolar a estes últimos. Deus fez justamente o contrário: sacrificou seu dileto Filho, o seu Unigênito, para salvar criaturas desprezíveis e ingratas. Pois Deus amou de tal modo o mundo que entregou seu unigênito Filho!

         Meditemos bem estas palavras de Nosso Senhor: Deus amou de tal modo o mundo. A palavra de tal modo lá está, diz São João Crisóstomo, para exprimir a grandeza desse amor. Como? Digna-se um Deus amar os homens, miseráveis vermes da terra, que levaram até à revolta a sua ingratidão para com Ele? E ama-os ao ponto de dar por eles seu unigênito Filho! Não entregou por eles um de seus servos, ajunta o Santo Doutor, não um anjo, nem um arcanjo, mas o seu próprio Filho, o seu unigênito Filho, a quem ama como a si mesmo. Esse Filho Ele o deu, e como? Pobre, humilhado, abandonado de todos, entregou-o às mãos dos algozes, para ser tratado como um malfeitor e pregado num patíbulo infame! - Ó graça, ó força do amor de Deus, exclama aqui São Bernardo.

         Ah! quem se não enterneceria ao saber que um rei, para libertar um escravo, se viu constrangido a dar a morte a seu filho único, ao objeto de todas as suas afeições, a um filho que amava como a si mesmo? Se um Deus o não tivesse feito, quem poderia, exclama São João Crisóstomo, quem poderia superá-lo ou imaginá-lo?

         Mas, Senhor, parece uma injustiça condenar à morte um filho inocente para salvar o escravo que vos ofendeu. Segundo a razão humana acusaríamos certamente de enorme injustiça o pai que fizesse morrer o filho inocente, para livrar indignos ser-vos da morte devida a seus crimes. É a reflexão de Salviano. Mas não houve injustiça na conduta divina, porque o Filho mesmo se ofereceu a seu Pai para pagar as dívidas dos homens. Foi imolado porque Ele mesmo quis, diz Isaías. Eis pois Jesus que se sacrifica voluntariamente por nós, como vítima de amor. Ei-lo semelhante a um tenro cordeiro sob a mão do tosquiador; e embora inocente submete-se, sem abrir a boca, a todos os opróbrios, a todos os tormentos que os homens lhe infligem: Como um cordeiro diante do que o tosquia, guardará silêncio e não abrirá sequer a sua boca, continua o profeta. (Is 53,7.)

         Eis enfim o nosso amantíssimo Salvador que, para nos salvar, quer padecer a morte e todas as penas que temos merecido: Verdadeiramente Ele tomou sobre si as nossas fraquezas, e ele mesmo carregou com as nossas dores. (Is 53,4.) Levado ao desejo de garantir a salvação dos homens, diz São Gregório de Nazianzo, ele não recua diante dos suplícios feitos para os maiores criminosos.

         E quem pôde fazer isso? pergunta São Bernardo. Qual foi a causa desse prodígio: um Deus que morre por suas criaturas! Fê-lo o amor de Deus pelos homens. O Santo considera nosso amável Salvador no momento em que se deixou prender e ligar pelos soldados no jardim de Getsêmani, como narra São João: Prenderam a Jesus e o ataram: "Senhor, exclama ele, que há de comum entre vós e as cordas?" Senhor, diz ele, eu vos vejo atado como um criminoso por essa gentalha que vos quer conduzir à morte! Mas, ó meu Deus, que tendes a fazer com as cordas e as cadeias? As cadeias são para os malfeitores e não para vós, que sois inocente, que sois o Filho de Deus, a inocência e a santidade mesma. A isso replica São Lourenço Justiniano: As cordas que arrastaram Jesus à morte não foram as cordas com que os soldados o amarraram, foi o seu amor pelos homens.

         "Ó caridade, exclama ele a seguir, quão forte é o teu vínculo que pôde prender um Deus!"

         Lançando em seguida seus olhares sobre a injusta sentença de Pilatos, que condena Jesus à cruz depois de o haver declarado várias vezes inocente, São Bernardo não pode reter as lágrimas e assim se dirige ao Salvador: Ah! Senhor, ouço esse juiz iníquo que vos condena a morrer na cruz! Mas, que mal fizestes? que crime cometestes para merecer suplício tão cruel e tão infame reservado aos mais hediondos facínoras? Ah! entendo, meu Jesus, continua ele, entendo qual é o vosso crime; é o excesso do vosso amor pelos homens. Sim, é antes esse amor do que Pilatos, que vos condena à morte; pois que vós mesmo quisestes morrer para pagar a pena devida aos homens.

         Ao chegar ao tempo de sua Paixão, nosso divino Redentor suplicou a seu Pai o glorificasse logo aceitando o sacrifício de sua vida: E agora, meu Pai, glorificai-me. (Jo 17,5.) "Mas como! exclama admirado São João Crisóstomo, chamais glória vossa uma Paixão e uma morte, acompanhadas de tantas dores e humilhações?" E lhe parece que Jesus lhe responde: "Sim, no meu amor pelos homens, tenho por glória sofrer e morrer por eles".

2

         Dizei aos pusilânimes: Tomai ânimo e não temais; eis que vosso Deus trará a vingança e as represálias. Deus mesmo virá, e vos salvará. (Is 35,4.) Não temas, pois, diz o profeta, já não desconfieis, pobres pecadores. Como podeis temer não serdes perdoados quando o Filho de Deus desce do céu para vos salvar, e com o sacrifício de sua vida paga a Deus o que a sua justa vingança tinha direito de exigir por vossos pecados? Se as vossas ações são insuficientes para aplacar a cólera divina, eis que a aplaca esse Menino que vedes deitado sobre palha, a Tremer de frio, a chorar. Com suas lágrimas Ele aplaca Aquele a quem ofendestes. "Não tendes razão de vos afligir, ajunta São Leão, por causa da sentença de morte pronunciada contra vós, pois que hoje nasceu-vos Aquele que vos trás a vida".

         E Santo Agostinho: "Eis um dia de doçura para os penitentes: hoje apagou-se o pecado; que pecador poderia ainda desesperar de sua salvação?" Se não podeis prestar à justiça divina a satisfação que lhe deveis, eis que Jesus a oferece em vosso lugar: começou a fazer penitência por vós nessa gruta, continuará essa obra de caridade durante toda a sua vida, e a consumará na cruz, pregando toda a sua vida, e a consumará na cruz, pregando nela, como diz São Paulo, o decreto de vossa condenação para o apagar com seu sangue: Cancelando o quirógrafo do decreto que nos era desfavorável, que era contra nós, e o aboliu inteiramente, encravando-o na cruz. (Cl 2,14.)

         Diz o mesmo apóstolo que, morrendo por nós, Jesus Cristo se fez nossa justiça. E isso, explica São Bernardo, no sentido de que Ele nos lavou de nossos pecados. E com efeito, aceitando por nós as dores e a morte de Jesus Cristo, Deus está obrigado por justiça, em virtude dum pacto entre Ele e o Salvador, a conceder-nos a remissão de nossas dívidas. Aquele que não conhecia o pecado, diz ainda São Paulo, Deus o fez vítima do pecado, a fim de que sejamos por Ele justos aos olhos de Deus. (2Cor 5,21.) A inocência mesma tornou-se vítima dos nossos pecados, a fim de que, em virtude de seus méritos, e segundo toda a justiça, tivéssemos direito ao perdão. Eis por que Davi pedia a Deus que o salvasse, não só segundo a sua misericórdia, mas ainda segundo a sua justiça: Livrai-se na vossa justiça. (Sl 30,12.)

         Deus sempre teve um extremo desejo de salvar os pecadores. Já na antiga lei Ele os seguia dizendo: Transgressores dos meus preceitos, entrai em vós mesmos. (Is 46,8.) Pensai nos benefícios que de mim recebestes, no amor que vos testemunhei, e cessai de ofender-me. Voltai-vos a mim, (Zc 1,3.) e eu me voltarei a vós para vos abraçar. Vós que sois meus filhos, por que vos quereis perder e condenar à morte eterna? voltai-vos a mim, e vivereis. (Ez 21,31.)

         Enfim a misericórdia divina do Senhor o fez descer do céu à terra, para nos subtrair à morte; assim afirma Santo Zacarias: Pelas entranhas da misericórdia do nosso Deus, graças à qual nos visitou do alto o Sol nascente. (Jesus.) (Lc 1,78.) Mas é preciso refletir aqui no que diz São Paulo: antes que Deus se fizesse homem, Ele era cheio de misericórdia por nós, mas não podia sentir compaixão de nossas misérias, porque a compaixão é um sentimento doloroso, e Deus é incapaz de dor. Ora, segundo o apóstolo, o Verbo Eterno se fez homem, sensível à dor como os outros homens para poder não só salvar-nos mas também ter compaixão de nós: Não temos um pontífice que não possa compadecer-se das nossas enfermidades, mas que foi tentado em tudo à nossa semelhança, exceto o pecado. Ele deveu em tudo ser semelhante a seus irmãos, a fim de ser compassivo. (Hb 2,17.)

         Quão grande é a compaixão de Jesus Cristo para com os pobres pecadores! Disso nos dá uma idéia, tomando os traços daquele bom Pastor que vai à procura da velha desgarrada, e que, depois de achá-la, convida seus amigos a regozijarem-se com ele: Congratulai-vos comigo, porque achei a minha ovelha que se havia tresmalhado. (Lc 15,6.) Toma-a sobre os ombros e aperta-a a si de medo de tornar a perdê-la.

         É por causa dessa compaixão que Ele se representou sob o emblema daquele bom pai que vendo de volta, e prostrado a seus pés, o filho pródigo que o havia deixado, não o repele, mas o abraça, o cobre de carícias e quase fica fora de si de consolação e ternura vendo-o arrependido. Correndo, lançou-lhe os braços ao pescoço e beijou-o. (Lc 15,20.) É essa compaixão que faz que, expulso duma alma pelo pecado, não se afasta, mas permanece à porta de seu coração, em que não cessa de bater por meio de suas graças para nele entrar: Estou à porta, diz Ele, e bato. (Ap 3,20.) É essa compaixão que o fazia dizer a seus discípulos, cujo zelo indiscreto queria tirar vingança dos que o haviam repelido: Vós não sabeis de que espírito sois. (Lc 6,53.) Vedes qual é minha compaixão para com os pecadores e desejais vingança? Ide; retirai-vos, porque não estais animados do meu espírito.

         É essa compaixão enfim que o fez dizer: Vinde a mim todos os que trabalhais e vos achais carregados, e eu vos aliviarei. (Mt 11,28.)

         E de fato, com que ternura esse amável Redentor perdoou a Madalena logo que ela reconheceu suas faltas, e a converteu numa grande santa! Com que bondade perdoou ao paralítico, ao qual restituiu ao mesmo tempo a saúde do corpo! Com que bondade se portou sobretudo para com a mulher adúltera! Os sacerdotes levaram-lhe essa pecadora para que Ele a condenasse. Mas, voltando-se para ela, disse-lhe: Ninguém te condenou?... nem eu te condenarei; (Jo 8.) isto é: se nenhum daqueles que te trouxeram aqui te condenou, como poderia eu fazê-lo, eu que vim salvar os pecadores? Vai em paz e não peques mais.

         Nada temamos de Jesus Cristo; temamos tudo de nós mesmos, de nossa obstinação, se depois de termos ofendido o Senhor, recusarmos obedecer à sua voz, que nos convida à reconciliação. Meditemos estas palavras de São Paulo: Quem deveria condenar-nos? O Cristo Jesus que morreu... e que continua a interceder por nós. (Rm 8,34.) Se quisermos obstinar-nos no pecado, Jesus Cristo será obrigado a condenar-nos; mas se nos arrependermos do mal que fizemos, que medo havemos de ter? Quem nos há de condenar? Não é o nosso próprio Salvador que morreu para não nos condenar? Para perdoar a nós, não quis perdoar a si mesmo, diz São Bernardo.

         Vai, pois, pecador, ao estábulo de Belém, e agradece a Jesus Menino que treme de frio por ti naquela gruta, que geme e chora por ti sobre a palha. Agradece a teu divino Redentor que veio do céu para te chamar e salvar. Se desejas o perdão, Ele te espera no presépio para to conhecer. Apressate, pois, pede-lhe perdão e depois não percas a lembrança do amor que Jesus te testemunhou. Não te esqueças, diz o profeta, da imensa graça que te fez tornando-se fiador por ti junto de Deus e tomando sobre si o castigo que havias merecido. Não o esqueças e dá-lhe o teu coração. E saibas que, se o amares, os teus pecados não te impedirão de receber de Deus as mais abundantes e assinaladas graças, com que costuma favorecer as almas que lhe são mais caras. Tudo contribui para o nosso bem, (Rm 8,28.) diz o apóstolo; mesmo os nossos pecados, ajunta a Glosa.

         Sim, mesmo a lembrança das suas faltas é útil ao pecador que as chora e detesta, porque assim se torna mais humilde e mais grato para com Deus que o acolhe com tanto amor apesar da sua indignidade. Haverá maior alegria no céu por um só pecador que se converte, disse Jesus, do que por noventa e nove justos. (Lc 15,7.)

         Mas qual é o pecador que causa mais alegria no céu do que um grande número de justos? Aquele que, cheio de reconhecimento para com a bondade divina, se consagra com fervor e sem reserva ao celeste amor, como o fizeram um São Paulo, uma Santa Maria Madalena, uma Santa Maria do Egito, um Santo Agostinho, uma Santa Margarida de Cortona. Para não falar senão desta última, ainda que ela tivesse passado vários anos no pecado, Deus lhe mostrou no céu o seu lugar colocado entre os serafins, e durante a sua vida não cessou de lhe prodigalizar sempre novas graças.

         Vendo-se tão favorecida por Deus, disse-lhe um dia: "Senhor, concedeis-me tantas graças! Já vos esquecestes das ofensas que vos fiz? - Acaso ignoras, respondeu-lhe o Senhor, a minha promessa de esquecer todos os ultrajes a mim feitos por uma alma que se arrepende sinceramente?" E de fato, é justamente isso que Ele declarou pelo profeta Ezequiel: Se o ímpio fizer penitência, eu não me lembrarei mais de nenhuma das iniqüidades que praticou. (Ez 17,22.)

         Concluamos. Os pecados cometidos pois não nos impedem de tornarmo-nos santos. Deus oferece-nos todos os seus socorros contanto que os desejemos e os peçamos. Que resta ainda? Que nos demos inteiramente a Deus, que lhe consagremos ao menos os dias que ainda nos restam de vida. Eia, pois, que fazemos? Se não avançamos, a culpa é nossa, não de Deus. Façamos com que essas misericórdias e esses ternos convites que Deus nos faz, não sejam para nós uma fonte de remorsos e desespero na hora da morte, quando não tivermos mais tempo de fazer coisa alguma, quando chegar a noite, da qual diz Jesus: Vem a noite, quando ninguém pode trabalhar. (Jo 9,14.)

         Recomendemo-nos à Santíssima Virgem Maria, que, segundo São Germano, se gloria de santificar os pecadores mais perdidos obtendo-lhes não só uma graça ordinária de conversão, mas os mais assinalados favores. E Ela bem o pode fazer, pois que todas as súplicas que dirige a Jesus, são pedidos duma mãe a seu filho: "Gozando junto de Deus duma autoridade verdadeiramente material, obtendes aos maiores pecadores exímia graça de perdão"; assim fala o santo Arcebispo. Ela mesma nos anima a recorrermos à sua intercessão com as palavras que a Santa Igreja lhe põe nos lábios: Em meu poder estão os tesouros para enriquecer os que me amam. (Eclo 24,25.) "Vinde todos a mim, porque em mim, achareis toda a esperança de salvar-vos e de salvar-vos como santos".

“Afetos e Súplicas”

         Ó meu Redentor e meu Deus, quem sou eu, para que me tenhais amado tanto? Que é que vos obriga a amar-me assim? Que tendes recebido de mim senão desprezos e desgostos, que antes vos deveriam obrigar a abandonar-me e a expulsar-me para sempre de vossa presença? Ah! Senhor, aceito qualquer outro castigo, mas não esse. Se me abandonardes e me privardes de vossa graça, já não poderei amar-vos. Não pretendo fugir do castigo, mas quero amar-vos, e quero amar-vos muito. quero amar-vos como é obrigado a amar-vos um pecador que, pagando com ingratidão tantos favores especiais e tantas provas de amor da vossa parte, vos abandonou tantas vezes e renunciou a vossa graça e ao vosso amor por prazeres miseráveis, efêmeros e envenenados.

         Ó querido Menino, perdoai-me; arrependo-me de todo o coração de vos haver tantas vezes desgostado. Mas, meu Jesus, sabei que me não contento com um simples perdão. Desejo ainda a graça de vos amar muito, quero compensar, quanto possível, com o meu amor e minha ingratidão passada. Uma alma inocente ama-vos como inocente, agradecendo-vos por a terdes preservado da morte do pecado. Mas eu devo amar-vos como um pecador, isto é, como um servo rebelde, como um criminoso, condenado ao inferno tantas vezes quantas o mereci, e tantas vezes agraciado por vossa misericórdia, que me pôs em estado de salvar-me, me enriqueceu de luzes, de socorros e de convites para me santificar. Ó Redentor de minha alma, minha alma já se enamorou de vós, já vos ama. Vós me tendes amado tanto; vencido pelo vosso amor, não posso resistir por mais tempo a tantas finezas. Rendo-me enfim e ponho em vós todo o meu amor.

         Amo-vos, pois, Bondade infinita, amo-vos, Deus infinitamente amável! Aumentai sempre mais as chamas, multiplicai sem cessar as setas de amor que traspassam o meu coração. Por vossa glória, fazei-vos amar muito por este coração que muito vos tem ofendido.

         Maria, minha Mãe, que sois a esperança e o refúgio dos pecadores, socorrei um pecador que quer ser grato a seu Deus; fazei que o ame e o ame muito.

CONSIDERAÇÃO 5
O VERBO ETERNO DE FORTE SE FEZ FRACO.

         Dizei aos pusilânimes: Confortai-vos e não, temais; Deus mesmo virá e vos salvará. (Is 85,4.)

         Falando Isaías da vinda do Messias, predisse: A terra deserta e sem caminho se alegrará e florescerá como o lírio. O profeta falava assim dos pagãos, em cujo número estavam os nossos antepassados: a terra dos gentios em que viviam, era como deserta porque não povoada por homens que conheciam e adoravam o verdadeiro Deus, mas só por escravos do demônio; era uma terra deserta e sem caminho, porque esses infelizes ignoravam o caminho da salvação. Essa terra tão triste ia pois alegrar-se com a vinda do Messias, vendo-se coberta de servos do verdadeiro Deus, cuja graça os devia fazer fortes contra todos os inimigos de sua salvação; enfim, essa terra iria florescer como o lírio pela pureza de costumes e pelo bom odor das virtudes. É por isso que o profeta ajunta: Tomai ânimo e não temais; Deus mesmo virá e vos salvará.

         - Essa predição cumpriu-se já; seja-me pois permitido exclamar com júbilo: Alegrai-vos, filhos de Adão, alegrai-vos e não sejais pusilânimes se vos julgais demasiado fracos contra tantos inimigos: Não temais... Deus mesmo virá e vos salvará, dizia Isaías. Ele veio, Deus mesmo veio à terra e vos salvou dando-vos a força necessária para combater e vencer todos os inimigos de vossa salvação.

         Mas como nosso Redentor nos proporcionou essa força? - De forte e de todopoderoso se fez fraco. Tomou sobre si nossa fraqueza, e assim nos comunicou sua força. - É isso que vamos considerar depois de pedirmos a Jesus e Maria que nos iluminem.

1

         Deus é forte, e o único que se pode dizer forte porque é a força mesma, e toda a força vem dele, como Ele o declara pela boca do Sábio: Minha é a força; é por mim que os reis reinam. Deus é poderoso; pode tudo o que quer, e o pode com facilidade; basta um ato de sua vontade: O céu e a terra são obra de vossa onipotência... nada vos é difícil. Com um aceno criou do nada o céu e a terra: Ele disse e tudo foi feito. E se quisesse, com um outro aceno, poderia aniquilar o universo. Sabemos que, quando quis, destruiu num instante cinco cidades inteiras com o fogo do céu. Sabemos que, noutra ocasião, sepultou toa a terra nas águas do dilúvio e fez perecer todo o gênero humano, exceto oito pessoas. Numa palavra Deus é todopoderoso. Senhor, exclamava Salomão, quem poderia resistir à força do vosso braço?

         Daí se vê quão grande é a temeridade do pecador, que ousa revoltar-se contra Deus, levando a audácia, como diz Jó, ao ponto de levantar sua mão contra o Todopoderoso. Que pensaríamos nós da temeridade duma formiga que ousasse provocar um soldado? porém, bem mais temerário é o homem que ousa afrontar seu Criador, desprezar seus mandamentos, menosprezar suas ameaças, vilipendiar sua graça, e declarar-se seu inimigo.

         É a esses homens temerários e ingratos que o Filho de Deus veio salvar; para isso ele mesmo se fez homem, e a fim de reconciliá-los com Deus, tomou sobre si as penas que lhes eram devidas. E vendo-os enfraquecidos pela chaga do pecado e impotentes para resistir a seus inimigos, que fez o Verbo eterno? de forte e de todopoderoso, se fez fraco; revestiu-se da fraqueza corporal natural aos homens, a fim de lhes merecer a força espiritual de que necessitavam para reprimir os assaltos da carne e do inferno. E ei-lo feito menino necessitado de leite para sustentar-se a vida; e tão fraco ao ponto de não poder sustentar-se a si mesmo nem de se mover.

         O Filho de Deus, vindo à terra e tomando a natureza humana, quis ocultar a sua força: Quando pois veio ao mundo revestir-se da nossa carne, o Filho de Deus quis ocultar o seu poder: Deus virá do meio-dia, disse Habacuc... sua força é oculta. E Santo Agostinho: Achamos em Jesus Cristo o forte e o fraco: o forte, porque criou o universo; o fraco, porque se tornou semelhante a nós. Ora, continua o Santo Doutor, o forte quis fazer-se fraco, a fim de remediar por sua fraqueza à nossa enfermidade, e de operar assim a nossa salvação. Eis por que, acrescenta, o Salvador dirigindo-se a Jerusalém, se comparou à galinha: Quantas vezes eu quis juntar teus filhos, como a galinha recolhe debaixo das asas os seus pintos, e tu não quiseste.

         Segundo a observação de Santo Agostinho, a galinha se faz fraca com os pintainhos que cria; e com esse sinal se á a conhecer por mãe; assim fez o nosso amoroso Redentor: a fraqueza de que se revestiu no-lo fez reconhecer por pai e mãe da pobre e débil humanidade.

         Eis pois Aquele que governa os céus, diz São Cirilo, ei-lo envolto em paninhos sem mesmo poder estender os braços. Considerai-o na viagem que é obrigado a fazer ao Egito por ordem de seu Pai celeste: Ele quer obedecer, mas não poder caminhar; é preciso que Maria e José, revezando-se, o levem nos braços. E ao voltar desse exílio, como observa São Boaventura, Ele precisa parar muitas vezes no caminho para descansar; pois o divino Infante já demasiado grande para ser carregado, era ainda demasiado pequeno e fraco para caminhar muito tempo.

         Ei-lo agora na humilde oficina de Nazaré, onde, um tanto já crescido, se entrega ao trabalho e se esforça por ajudar a São José no ofício de carpinteiro. Ah! contemplando atentamente esse belo adolescente, que se fatiga e quase perde o fôlego sob o peso da madeira bruta, quem poderia não exclamar: Mas vós, amável jovem, não sois o Deus que com um aceno tirou o mundo do nada? como pois tendes agora de suar o dia inteiro para trabalhar essa madeira sem todavia conseguirdes terminar o serviço? quem vos fez tão fraco? - Ó santa fé! ó amor dum Deus! esse pensamento, se dele nos penetrássemos bem, deveria não só inflamar-nos, mas ainda, por assim dizer, consumir-nos de amor! Eis até onde chegou um Deus! e por que? para se fazer amar dos homens.

         No fim de sua vida, ei-lo no jardim das Oliveiras carregado de cadeias de que não pode desvencilhar-se, depois atado à coluna no pretório para ser flagelado. Ei-lo que se avança, a cruz sobre os ombros, não tendo força para carregá-la, e caindo mais vezes pelo caminho. Ei-lo pregado na cruz com cravos, de que não pode desfazer-se. Ei-lo enfim a agonizar de fraqueza, desfalecendo e exalando o derradeiro suspiro!

2

         E por que se fez Jesus Cristo tão fraco? Ele se tornou fraco, já o dissemos, para assim nos comunicar a sua própria força, e, de outro lado, para vencer e abater as forças do inferno: Venceu o Leão da tribo de Judá. Segundo o Salmista, é próprio de Deus, é sua inclinação natural querer salvar-nos e preservar-nos da morte: O nosso Deus é o Deus que tem a virtude de nos salvar; e ao Senhor, ao Senhor pertence o livrar da morte.

         Esse texto é interpretado no mesmo sentido por Belarmino. Se somos fracos, confiemos em Jesus Cristo e poderemos tudo: Tudo posso, dizia São Paulo, naquele que me conforta. Posso tudo, não por minhas próprias forças, mas pela força que meu Redentor me comunica em virtude de seus méritos. Confiai, meus filhos, diz-nos Jesus Cristo; se não podeis resistir a vossos inimigos, sabei que eu os venci por vós; a minha vitória foi para o vosso bem. Empregai as armas que vos deixo para a vossa defesa, e vencereis certamente.

         Mas quais são essas armas que Nosso Senhor nos deixou? - São duas: a freqüência dos sacramentos e a oração.

         Já se sabe que os sacramentos, especialmente a Penitência e a Eucaristia, são os canais pelos quais nos chegam as graças que nosso Salvador nos mereceu. A experiência cotidiana prova que quem freqüenta os sacramentos, se conserva facilmente na graça de Deus; mormente quem comunga muitas vezes, oh! que força recebe para resistir às tentações! A sagrada Eucaristia é chamada Pão, e Pão celeste, para nos dar a entender que, como o pão terrestre conserva a vida do corpo, assim a comunhão conserva a vida da alma, que é a graça de Deus. O Concílio de Trento diz que é um antídoto, que nos livra das faltas veniais e nos preserva dos pecados graves. Segundo Santo Tomás, a chaga que o pecado nos fez, seria incurável, se não tivéssemos esse remédio divino. Por sua Paixão, diz Inocêncio III, Jesus Cristo nos livros das cadeias do pecado, e pela Eucaristia nos livra da vontade de pecar.

         O segundo meio que temos para vencer as tentações é a oração feita a Deus pelos méritos de Jesus Cristo, que nos fez esta promessa: Em verdade, em verdade vos digo: tudo o que pedirdes ao Pai em meu nome, Ele vo-lo dará. Assim, tudo o que pedirmos a Deus em nome de Jesus Cristo, isto é, por seus merecimentos, o obteremos. É ainda um fato de experiência cotidiana: todos os que, em suas tentações, recorrerem a Deus suplicando-lhe por Jesus Cristo, obtêm sempre a vitória; ao contrário, os que se descuidam de reclamar o socorro divino, especialmente nas tentações carnais, sucumbem miseravelmente e se perdem. Eles dizem, desculpando-se, que são de carne, que são fracos.

         Mas como pode desculpá-los a sua fraqueza? Para terem a força que lhes falta, bastar-lhes-ia recorrer a Jesus Cristo e invocar com confiança o seu santíssimo nome, e eles não o querem fazer! Que desculpa teria quem se queixasse de ser vencido pelo inimigo, se, sendo-lhe apresentadas as armas de defesa, as tivesse rejeitado e desprezado? Se quisesse alegar a sua fraqueza, fácil seria confundi-lo dizendo: Já que conhecias a tua fraqueza, por que não quiseste servirte das armas que te ofereciam?

         O demônio, diz Santo Agostinho, foi acorrentado por Jesus Cristo; ele pode ladrar, mas só pode morder a quem quer ser mordido; é preciso ser bem insensato, acrescente o Santo Doutor, para se deixar morder por um cão preso à corrente, pois o demônio pode solicitar-nos, mas não forçar-nos a consentir no mal. Ele diz ainda alhures que nosso Redentor nos deixou todos os remédios necessários à nossa cura, e que todos os que morrem, por não seguirem as prescrições do médico, devem atribuir a si mesmo a sua morte.

         Quem se une a Jesus Cristo não é fraco, mas se torna forte pela força de Jesus. Esse bom Mestre, ensina-nos Santo Agostinho, não só nos exorta a combater, mas nos ajuda também a vencer; se nos faltam as forças, vem em nosso socorro, e Ele mesmo nos coroa após a vitória. Isaías predisse que o coxo saltaria como o veado, isto quer dizer que, pelos méritos do Salvador, quem de si mesmo não possui força de dar um passo, se torna capaz de galgar as montanhas com a maior facilidade. Predisse que fontes abundantes jorrariam do solo mais árido, isto é, que as almas estéreis, que não produziam nenhum bem, se tornariam fecundas em virtudes. Predisse que, onde moravam os dragões, nasceria a verdura da cana e do junco, isto é, que os corações mais viciados, em que habitavam os demônios, se abririam a sentimentos de humildade e caridade.

         A cana representa a humildade, porque, segundo o comentário do Cardeal Hugo, quem é humilde julga-se vazio ou desprovido de méritos; o junco representa a caridade porque, segundo o mesmo intérprete, em algumas regiões serve de mecha a arder as lâmpadas.

         Numa palavra, quando recorremos a Jesus Cristo, encontramos nele toda a graça, toda a força, todo o socorro: Nele, diz o apóstolo, fostes enriquecidos de todos os bens... de maneira que nada vos falta em graça alguma. É por isso que Ele se fez homem, que se aniquilou. Em certo sentido reduziu-se a nada, diz Cornélio; despojou-se de sua majestade, de sua glória e de sua força. Tomou sobre si a nossa miséria e a nossa fraqueza, para nos comunicar a sua dignidade e o seu poder, para ser nossa luz, nossa justiça, nossa santificação, e nossa redenção. E está sempre pronto a auxiliar e confortar a quem o invoca.

         São João viu o Senhor com o peito cheio de leite, isto é, de graças, e cingido dum cinto de ouro. Isso significa que Jesus Cristo em certo sentido está ligado e constrangido pelo amor que tem aos homens: à semelhança duma mãe que, tendo os seios cheios de leite, procura o filho para amamentá-lo e para se desfazer do precioso peso, Nosso Senhor deseja ardentemente que lhe peçamos as suas graças e todos os socorros de que temos necessidade para vencer os inimigos que procuram sem cessar roubar-nos a sua amizade e perder-nos.

         O profeta exclama: Oh! como Deus é bom e liberal para com a alma que o procura com sinceridade e resolução. Se pois não nos tornarmos santos, a culpa é nossa; é que nos não resolvemos a querer só a Deus. Os preguiçosos, ou os tíbios, querem e não querem, e são sempre vencidos, porque não tomam a firme resolução de agradar só a Deus. Uma vontade bem determinada triunfa de tudo, porque quando uma alma se decide verdadeiramente a dar-se a Deus sem reserva, o Senhor lhe estende logo a mão e a força de superar todas as dificuldades que ela encontra no caminho da perfeição. Assim se realiza a bela promessa que Isaías fazia ao mundo, suspirando pela vida do Salvador: Oxalá romperas tu os céus, e desceras de lá! Os montes se derreteriam diante da tua face. À vinda do Redentor, dizia ainda, os caminhos tortuosos serão endireitados, e os escabrosos aplanados.

         Os montes são os obstáculos opostos pelos apetites carnais à perfeição: fortalecidas pelo Salvador, as almas de boa vontade o vêem desaparecer.

         Os caminhos tortuosos e escabrosos são as humilhações e as penas que os homens acham naturalmente duras e difíceis de suportar: tudo isso se lhes torna doce e leve pela graça que Jesus Cristo lhes dá pelo amor divino que Ele ateia em seus corações. Assim São João de Deus regozijava em passar por louco e em ser espancado num hospital; assim Santa Ludovina gozava ao ver-se toda coberta de chagas e presa ao leito por vários anos; assim São Lourenço arrostou o tirano que o fazia arder na grelha, e deu com alegria sua vida por Jesus Cristo.

         Assim ainda muitas almas fervorosas acham a paz e a felicidade, não nos prazeres e nas honras do mundo, mas nos sofrimentos e nas ignomínias.

         Ah! peçamos a Jesus Cristo nos penetre desse fogo divino, que Ele veio acender sobre a terra, que assim também nós não acharemos pena nem dificuldade em espezinhar a lama dos bens do mundo e empreendermos grandes coisas por Deus. Quando se ama, não se sofre, diz Santo Agostinho. Para uma alma que ama a Deus não é penoso nem difícil sofrer, orar, mortificar-se, humilhar-se, renunciar aos prazeres terrestres. Quanto mais trabalha e sofre tanto mais quer trabalhar e sofrer. As chamas do amor divino, como as chamas do inferno, diz o Sábio, não dizem jamais: basta. - Nada pode saciar o ardor duma alma que ama a Deus.

         É pelas mãos da Santíssima Virgem, como foi revelado a Santa Maria Madalena de Pazzi, que se distribui às almas o amor divino; peçamos-lhe nos proporcione esse dom precioso. O sábio Idiota nos assegura que Ela é o "tesouro de Deus e a tesoureira de todas as graças", e principalmente do divino amor.

“Afetos e Súplicas”

         Meu sumo Deus e Redentor, eu estava perdido e vós me resgatastes do inferno com o vosso sangue; mas depois eu me perdi miseravelmente e muitas vezes, e sempre me subtraístes à morte eterna. Eu sou vosso, salvai-me. Já que agora sou vosso, como espero, não permitais me suceda ainda revoltar-me contra vós e perder-me. Estou resolvido a sofrer a morte, e mil mortes, antes que ver-me de novo vosso inimigo e escravo do demônio. Mas conheceis minha fraqueza e as minhas infidelidades passadas: vós haveis de fazer-me invencível aos assaltos do inferno. Sei que nas tentações serei por vós socorrido, sempre que vos invocar; esse é a vossa promessa: Pedi e recebereis. Quem pede, recebe. Mas resta-me um temor: temo que nas minhas necessidades eu deixe de recorrer a vós: isso seria a minha ruína.

         Eis a graça que vos peço antes de tudo: a força de recorrera vós e de implorar a vossa proteção todas as vezes que eu for tentado; peço-vos ainda o auxílio para vos pedir sempre essa graça; concedeima pelos méritos do vosso sangue.

         E vós, ó Maria, obtende-me essa graça, eu vos conjuro pelo amor que tendes a Jesus Cristo.

CONSIDERAÇÃO 6
O VERBO ETERNO DE SEU SE FEZ NOSSO.

         Nasceu-nos um Menino e nos foi dado um Filho. (Is 9,6.)

         Dize-me, cruel Herodes: por que mandas matar e sacrificar à tua ambição de reinar tantas crianças inocentes? dize-me: por que te perturbas? que temes? temes que o Messias que acaba de nascer te roube a coroa? Assim fala São Fulgêncio: depois acrescenta: Esse Rei que temes, não veio combater e vencer os poderes da terra pelas armas, mas veio reinar nos corações dos homens padecendo e morrendo por seu amor. Esse amável Redentor de nossas almas veio não para fazer guerra durante a vida, mas para triunfar do amor dos homens, depois de sacrificar sua vida sobre a cruz; Ele mesmo o declara: Quando eu for elevado da terra, atrairei a mim todas as coisas.

         Mas deixemos a Herodes de lado, almas cristãs, e volvamo-nos a nós mesmos. Por que é que o Filho de Deus veio à terra? Para dar-se a nós. É isso que nos assegura Isaías: Nasceu-nos um Menino, foi-nos dado um Filho. Eis a que ponto esse terno Senhor se deixou levar por nosso amor e pelo desejo que tem de ser amado por nós: de SEU ele se fez NOSSO. - Antes de entrarmos na consideração desse mistério, peçamos ao Santíssimo Sacramento e à Mãe de Deus as luzes de que necessitamos.

1

         A maior prerrogativa de Deus, ou melhor, toda a sua essência, é de Ele ser seu, isto é, de existir por si mesmo e de não depender de ninguém. Todas as criaturas, por grandes e excelentes que sejam, nada são na realidade, porque o que têm elas o têm de Deus, que as criou e as conserva, de sorte que, se Deus cessasse por um instante de mantê-las, perderiam imediatamente a existência e voltariam ao nada. Deus, ao contrário, existindo por si mesmo, não pode deixar de existir, e nada pode destruir ou diminuir a sua grandeza, nem o seu poder, nem a sua felicidade. E essa soberana Majestade, o Pai Eterno, deu por nós seu unigênito Filho, diz São Paulo; e o Filho de Deus também se deu a si mesmo por nós. Então Deus dando-se a nós se fez nosso? "Sim, responde São Bernardo, Aquele que só pertencia a si mesmo, quis nascer para nós e dar-se a nós". Esse Deus que não pode ser dominado por ninguém, o amor de certo modo o venceu e dele triunfou ao ponto que de seu se fez nosso.

         O Salvador mesmo o declarou: Deus amou de tal modo o mundo, que lhe deu o seu Filho unigênito, e o Filho de Deus também por amor se quis dar aos homens para ser amado por eles.

         De vários modos tinha Deus procurado cativar-se os corações dos homens, ora com benefícios, ora com ameaças, ora com promessas, sem todavia conseguir seu intento. Enfim o seu amor infinito, diz Santo Agostinho, o fez achar na encarnação do Verbo o meio de dar-se inteiramente a nós, para assim nos obrigar a o amarmos de todo o coração. Ele poderia encarregar um anjo ou um serafim de resgatar o homem; mas se fosse este resgatado por um serafim deveria dividir o seu coração, dando uma parte de seu amor a seu Criador e outra parte a seu redentor; por isso Deus, que queria só para si todo o coração e todo o amor do homem, não contente de ser nosso Criador, diz um piedoso escritor, quis fazer-se também nosso Redentor.

         E ei-lo descido do céu a um estábulo; ei-lo criancinha, nascido por nós e feito todo nosso: Nasceu-nos um Menino, foinos dado um Filho. É precisamente isso que o anjo quis dar a entender quando disse aos pastores: Nasceu-vos hoje um Salvador; - como se dissesse: Ó homens, ide à gruta de Belém, e adorai o Menino que lá achareis deitado sobre palha, num presépio, tremendo de frio e chorando; sabei que é o vosso Deus; não quis mandar um outro para salvar-vos, mas quis vir em pessoa a fim de obter assim todo o vosso amor.

         Sim, foi para se fazer amar que o Verbo Eterno desceu à terra e que, segundo a profecia, conversou com os homens. Se um rei diz uma palavra de confiança a um vassalo, se lhe faz um sorriso, se lhe dá uma flor, oh! quanto esse vassalo se sente honrado e feliz! Que seria, se o rei procurasse a sua amizade, se o convidasse cada dia à sua mesa, se o quisesse hospedar em seu próprio palácio e tê-lo constantemente perto de si. Ah! meu soberano Rei, meu doce Jesus, vós fizestes muito mais: não podendo, antes da redenção, introduzir o homem no céu, que lhe estava fechado pelo pecado, viestes à terra para conversar com o homem, como um irmão com seu irmão, e para dar-vos todo a ele pelo amor. - Ele amou-nos, diz São Paulo, e entregou-se por nós! "Sim, ajunta Santo Agostinho, em seu amor pelo homem, esse Deus cheio de ternura e misericórdia, quis não só comunicar-lhe os seus bens, mas também dar-se a ele".

         Quão grande pois é o afeto desse supremo Senhor a nós miseráveis vermes! alegra-se em dar-se todo a nós, nascendo por nós, vivendo por nós, morrendo mesmo por nós, a fim de preparar-nos em seu sangue derramado até a última gota, um banho salutar que nos purifica de todos os nossos pecados. Sim, exclama São João, ele nos amou e nos lavou de nossos pecados em seu próprio sangue. E o Abade Guerico: "Ó meu Deus, chegastes por assim dizer a prodigalizar a vós mesmo, tão grande é o desejo que tendes de ser amado pelo homem"! E, ajunta, como não chamaríamos de prodígio de si mesmo a um Deus que, para resgatar o homem perdido, não só dá o que tem, mas ainda a si mesmo?"

         Santo Agostinho diz que para conquistar o amor dos homens, Deus lhes lançou no coração vários dardos de amor. Quais são esses dardos? são todas as criaturas que vemos, porque Deus as fez para o homem a fim de ganhar o seu amor; por isso diz o mesmo Santo: "O céu, a terra e todas as coisas me dizem que vos ame, ó meu Deus". Parecia-lhe que o sol, a lua, as estrelas, as montanhas, os campos, os mares, os rios, gritavam dizendo-lhe: Agostinho, ama a Deus que nos criou para ti, e a fim que o ames. - Quando Santa Maria Madalena de Pazzi tinha na mão um belo fruto ou uma bela flor, dizia que essa fruta, essa flor era como uma seta que lhe traspassava o coração e o abrasava de amor a Deus, porque se lembrava então que o Senhor havia desde a eternidade pensando em criar aquele flor para lhe testemunhar seu afeto e se fazer amar por ela.

         - Santa Teresa dizia igualmente que todas as encantadoras criaturas que nos ferem a vista: os lagos, os riachos, as flores, os frutos, os pássaros, exprobram a nossa ingratidão para com Deus, pois que são outras tantas provas de seu amor para conosco.

         - Conta-se também dum piedoso solitário que, caminhando pelos campos, se imaginava que as ervas e as flores o acusavam de ingratidão para com Deus; e as batia com a bengala dizendo: "Calai-vos, calai-vos; basta, já vos compreendo: vós me tratais de ingrato; vós me dizeis que Deus vos criou tão belas para que eu o amasse, e eu não o amo; compreendo-vos; basta, não me exprobreis mais". E assim andada desabafando o afeto que sentia acender-se no coração para com Deus à vista daquelas belas criaturas.

         Todos esses objetos são pois outras tantas setas de amor que deveriam inflamar o coração do homem; mas Deus não se satisfez com isso, porque essas setas não bastavam para obrigar os homens a amá-lo. Lemos em Isaías: Ele fez de mim como que uma seta escolhida, escondeu-me na sua aljava. Sobre essa passagem do Cardeal Hugo diz que, como o caçador guarda a sua melhor flecha para o último golpe à fera, assim entre todos os dons que Deus nos destinou, Ele reservou Jesus para no-lo enviar na plenitude dos tempos, como uma seta suprema e mais própria que todas as outras para nos inflamar de amor. Jesus Cristo foi pois a flecha escolhida e reservada que, segundo a predição de Davi, deveria atingir e domar povos inteiros. Oh! quantos corações feridos vejo eu arder de amor diante da manjedoura de Belém! quantos vejo ao pé da cruz no Calvário! quantos em presença do Santíssimo Sacramento dos altares?

         São Pedro Crisólogo observa que para se fazer amar do homem, nosso Salvador quis tomar várias formas. Essa Majestade infinita, imutável em si mesmo, dignou-se fazer-se ver primeiro como uma criancinha num estábulo, depois como um simples operário numa oficina, mais tarde como um criminoso sobre um patíbulo, e enfim como um pouco de pão sobre o altar. Jesus quis mostrar-se a nós sob todas essas formas; mas todas essas formas não são senão várias maneira de se revelar a nós como o amante apaixonado da natureza humana.

         - Ah! Senhor, dizei-me: tendes ainda outra coisa a inventar para vos fazer amar? Ide, almas redimidas, exclamava Isaías, ide publicar em toda a parte as caridosas invenções desse Deus cheio de amor, o que Ele concebeu e executou para se fazer amar dos homens; após nos haver cumulado de seus benefícios, quis dar-se pessoalmente a nós, e de quantas maneiras! - "Se estais chagado ou enfermo, diz Santo Ambrósio, e desejas sarar, Jesus é o vosso médico: Ele vos restituirá a saúde com o seu sangue.

         Se sofreis febre, isto é, se sois atormentados pelas chamas impuras das afeições mundanas, Ele é a fonte que refresca e fortifica. Se quereis evitar a morte, Jesus é a vida; se aspirais ao céu, Ele é o caminho".

         Não contente de dar-se a todos os homens em geral, Jesus Cristo quis ainda dar-se a cada um deles em particular. Foi isso que fez São Paulo dizer: Ele me amou e se entregou por mim. Segundo São João Crisóstomo, Deus ama a cada um de nós, como ama todos os homens. Assim, meu caro irmão, se estivesses só no mundo, o divino Redentor teria vindo e dado o seu sangue e sua vida por ti só. "Ah! quem poderia explicar ou compreender, diz São Lourenço Justiniano, o amor que Deus tem a cada um de nós?" Também São Bernardo dizia falando de Jesus Cristo: "Ele se deu todo a mim, Ele se pôs inteiramente ao meu serviço". E São João Crisóstomo: "Ele nada se reservou para si". Deu-nos o seu sangue, a sua vida; deu-se a si mesmo no Santíssimo Sacramento; não lhe restou nada mais a dar. Com efeito, segundo observa Santo Tomás, dando-se-nos a si próprio, que mais poderia Deus dar-nos?

2

         Após a obra da redenção pois Deus nada mais tinha a dar-nos nem a fazer por amor dos homens, e cada um de nós deveria doravante dizer com São Bernardo: "Eu sou de Deus e me devo dar a Ele, porque Ele me criou e me deu o ser: mas que poderei dar em retorno a Deus por Ele se ter dado a mim?" - Ah! não nos inquietemos por isso; demos-lhe o nosso amor e isso basta, é isso o que Ele deseja. Os príncipes da terra gloriam-se de possuir reinos e riquezas, mas Jesus Cristo contenta-se com reinar sobre os corações; os nossos corações, eis o seu domínio; e esse domínio Ele o adquiriu morrendo na cruz: O sinal da sua dominação foi colocado sobre os seus ombros, diz Isaías. Por essas palavras, vários intérpretes com São Basílio, São Cirilo, Santo Agostinho e outros Padres entendem a cruz que nosso divino Redentor levou sobre seus ombros.

         "Esse Rei do céu, observa Cornélio a Lápide, é um Senhor muito diferente do demônio: este impõe cargas pesadas aos ombros de seus escravos; Jesus, ao contrário, toma sobre si todo o peso de seu principado, pois abraça a cruz na qual quer morrer para adquirir o domínio dos nossos corações". E Tertuliano: "Enquanto os monarcas da terra têm o cetro na mão e a coroa na cabeça, como emblema de seu poder, Jesus Cristo levou a cruz sobre os ombros, a qual foi o trono em que subiu para fundar seu reino de amor".

         Orígenes faz esta reflexão: "Se Jesus Cristo se deu todo a cada homem, será muito para o homem dar-se todo a Jesus Cristo?" Demos pois de boa vontade o nosso coração e todo o nosso amor a esse Deus que, para conquistá-los, sacrificou o seu sangue, a sua vida e todo o seu ser. Disse Jesus à Samaritana: Se soubesses a graça que recebes de Deus, e quem é aquele que te pede de beber! Oh! se a alma compreendesse o favor que Deus lhe faz quando lhe diz: Dá-me o teu coração! Se um simples súdito ouvisse um príncipe reclamar a sua amizade, isto bastaria para cativá-lo. E nós ficaríamos insensíveis à voz de um Deus que nos diz: Meu filho, dá-me teu coração?


         Mas Deus não quer a metade desse coração; Ele quer que lho demos todo inteiro sem partilha, fazendo disso um preceito formal: Amaras o Senhor teu Deus de todo o teu coração. Não se contenta com menos. Se nos deu todo o seu sangue, toda a sua vida, todo o seu ser, foi para que nos demos inteiramente a Ele, que lhe pertençamos sem reserva. E compreendamo-lo bem: daremos a Deus todo o nosso coração quando lhe der-mos toda a nossa vontade, para não querermos doravante senão o que quer esse Senhor que certamente só quer o nosso bem e a nossa felicidade. Jesus Cristo, diz o apóstolo, morreu e ressuscitou a fim de reinar sobre os mortos e sobre os vivos. - Quer vivamos, quer morramos, somos do Senhor.

         Jesus quis morrer por nós; não podia fazer mais para ganhar todo o nosso amor e para ser o único senhor do nosso coração; devemos pois mostrar de hoje em diante ao céu e à terra, por nossa vida e por nossa morte, que já nos não pertencemos, mas que somos de Deus e só dele.

         Oh! quanto Deus deseja ver, e quanto lhe é caro um coração que se dá todo a Ele! Oh! quantas provas de sua ternura Deus prodigaliza sobre aterra; quantos bens, quantas delícias, quanta glória Deus prepara no céu para um coração que é todo dele!

         O venerável padre João Leonardo de Lettera, dominicano, viu um dia Jesus Cristo que, sob a figura dum caçador e empunhando um dardo. percorria a floresta deste mundo. O servo de Deus perguntou-lhe aonde ia e que queria fazer. Jesus respondeu-lhe que ia à caça dos corações. Oxalá possa o Menino Jesus durante esta novena ferir e apoderar-se de algum coração que Ele procura há tempo e ainda não conseguiu ferir e ganhar!

         Almas devotas, se Jesus conseguir possuir-nos, nós possuiremos a Jesus; a troca é muito mais vantajosa para nós. "Teresa, disse um dia o Senhor a essa Santa, até agora não foste inteiramente minha; mas agora que és toda minha, saibas que sou todo teu". Santo Agostinho chama o amor "um vínculo que prende quem ama à pessoa amada". Deus tem vivo desejo de prender-se e unir-se a nós; mas é preciso que, do nosso lado, procuremos unir-vos a Deus. Se queremos que Deus se dê inteiramente a nós, devemos dar-nos inteiramente a Deus.

“Afetos e Súplicas”

         Oh! quão feliz seria se doravante eu pudesse sempre dizer com a sagrada Esposa: O meu Deus bem-amado se deu todo a mim; é justo que me dê todo a meu Deus! Eu deveria repetir sem cessar com o profetarei: Que há para mim no céu, e, fora de ti, que desejei eu sobre a terra?... ó Deus, que és o Deus do meu coração, e a minha herança para sempre! Sim, ó caro Infante, meu divino Redentor, já que descestes do céu para vos dar todo a mim, que procurarei eu ainda sobre a terra e no céu senão a vós, que sois meu soberano bem, meu único tesouro e o paraíso das almas? - Sêde pois o único senhor do meu coração, possuí-o inteiramente. Só a vós obedeça o meu coração e procure agradar.

         Só a vós ame a minha alma, e sêde vós só a minha partilha! Corram outros atrás dos bens e fortunas do mundo; procurem neles a sua alegria, se é que se pode encontrar verdadeira alegria fora de vós; quanto a mim, quero que só vós sejais toda a minha fortuna, minha riqueza, minha paz e minha esperança nesta vida e na eternidade! Eis o meu coração, eu vo-lo dou inteiramente; ele já não é meu mas vosso. Entrando no mundo oferecestes e destes a vosso Pai eterno toda a vossa vontade como nos fizestes saber por Davi: Na cabeceira do livro está escrito de mim que farei a vossa vontade; sim, meu Deus, eu o quero; assim hoje eu vos ofereço, meu divino Salvador, toda a minha vontade.

         Ela vos foi outrora rebelde e com ela vos ofendi; mas agora detesto do fundo do coração o mau uso que dela fiz, todas as faltas pelas quais tive a infelicidade de perder a vossa amizade, e vos consagro esta minha vontade sem reserva. Senhor, que quereis que eu faça? estou pronto a obedecer-vos.

         Disponde de mim e do que me pertence como vos aprouver; aceito tudo e a tudo me resigno. Sei que quereis o meu maior bem; nas vossas mãos recomendo o meu espírito. Ajudai minha alma por vossa misericórdia, conservai-a, fazei seja ela sempre vossa, e toda vossa, pois que a resgatastes com vosso sangue: Vós me remistes, Senhor, Deus de verdade.

         Ó Maria, Virgem santa, feliz sois vós! Fostes sempre toda de Deus, toda bela, toda pura e sem mancha. Só vós fostes, entre todas as almas, chamada pelo divino Esposo, a sua columba, a sua perfeita. Vós sois o jardim fechado à toda a culpa, a toda a imperfeição, e cheio de flores e frutos de todas as virtudes. Ah! minha Rainha e minha Mãe, que sois tão bela aos olhos de Deus, tende piedade de minha alma, tão deformizada por seus pecados. Se no passado não pertenci a Deus, agora quero ser dele e todo dele. Quero empregar o resto de minha vida só em amar o meu Redentor, que tanto me tem amado: basta dizer que Ele se deu todo a mim. Ó minha esperança, obtende-me a força de lhe ser grato e fiel até a morte. Amém. Assim o espero, assim seja.

CONSIDERAÇÃO 7
O VERBO ETERNO DE FELIZ SE FEZ PADECENTE.

         Os teus olhos estarão sempre, vendo o teu Mestre. (Is 30,20.)

         Tudo o que há no mundo, diz São João, é concupiscência da carne, concupiscência dos olhos e orgulho da vida. Eis as três más paixões que se apoderaram do homem e o dominaram depois do pecado de Adão: o amor dos prazeres, o amor das riquezas e o amor das honras, do qual nasce o orgulho. O Verbo divino veio à terra ensinar-nos por seu exemplo a vencer esses três inimigos de nossa alma: para ensinar-nos a mortificação dos sentidos, oposta ao amor dos prazeres, de feliz Ele se fez padecente; para ensinar-nos o desapego dos bens terrenos, oposto ao amor das riquezas, de rico Ele se fez pobre; e enfim, para ensinar-nos a humildade, oposta ao amor das honras, Ele, o Altíssimo, se rebaixou.

         Trataremos esses três pontos nos três últimos dias da Novena; hoje falaremos do primeiro.

         Nosso Redentor, pois, veio ensinar-nos, mais pelo exemplo de sua vida do que por sua doutrina, a amar a mortificação dos sentidos; e é por isso que de feliz que Ele é e sempre foi, se fez padecente. Consideremos bem essa verdade, e peça-mos a Jesus e Maria nos iluminem.

1

         O Apóstolo, falando da divina beatitude, chama a Deus o único feliz e poderoso. E com razão, porque toda a felicidade que nós, suas criaturas, podemos gozar, não é senão uma mínima participação da felicidade infinita de Deus; os bem-aventurados do céu encontram nela a sua beatitude, isto é, no entrar no oceano imenso da beatitude de Deus: Entra no gaudio de teu Senhor. Esse é o paraíso que o Senhor dá à alma quando entra na posse do reino eterno.

         Quando Deus no princípio criou o homem e o colocou na terra, a sua intenção não era que ele padecesse, pois segundo a Escritura: Ele o pôs num jardim de delícias, para de lá passar ao céu, onde devia gozar eternamente a glória dos bem-aventurados. Mas o homem infeliz com o pecado se tornou indigno do paraíso terrestre, e se fechou as portas do paraíso celeste condenando-se voluntariamente à morte e aos sofrimentos eternos. Ora, o Filho de Deus resolveu livrar o homem de ruína tão funesta, e que fez? Ele que era feliz e cuja felicidade era infinita, quis submeter-se às dores, a penas de toda a sorte.

         Nosso divino Redentor poderia arrancar-nos das mãos dos nossos inimigos sem sofrer. Mesmo vindo à terra, poderia gozar, como no céu, a felicidade e passar sua vida em delícias e nas honras que são devidas ao Rei e Senhor do universo. Uma só gota de sangue, uma lágrima que Ele oferecesse a Deus em nosso favor, teria bastado para resgatar o mundo e uma infinidade de mundos: "O menor sofrimento de Jesus Cristo, diz Santo Tomás, teria realizado uma redenção suficiente devido à dignidade infinita de sua pessoa". Mas não: Sendo-lhe oferecido o prazer, escolheu a cruz, renunciou a todas as honras e a todos os prazeres e abraçou na terra uma vida cheia de sofrimentos e ignomínias.

         Sem dúvida, diz São João Crisóstomo, o homem poderia ser resgatado por um ato qualquer do Verbo encarnado; "mas o que bastava à nossa redenção não bastava ao seu amor por nós". E como quem ama quer ser amado, Jesus Cristo para ver-se amado do homem, quis padecer muito e escolher uma vida de sofrimentos a fim de obrigar o homem a amá-lo muito. O Senhor revelou a Santa Margarida de Cortona que jamais teve em sua vida a menor consolação sensível. Segundo a predição de Jeremias, a vida de Nosso Senhor foi semelhante ao mar, que é todo amargo e salgado, sem uma só gota de água doce. Isaías tinha pois razão de chamá-lo Homem de dores, como se no mundo só tivesse de sofrer. Segundo Santo Tomás, Jesus Cristo tomou sobre si não simples dores mas o cúmulo da dor; isto é, quis ser o homem mais aflito que jamais viveu ou apareceu neste mundo.

         E, com efeito, o Homem-Deus veio à terra expressamente para sofrer; é para isso que tomou um corpo afeito à dor. Encerrando-se no seio de Maria, como no-lo ensina o apóstolo, Ele fala assim a seu Pai celeste: Não quisestes hóstia nem oblação, mas me formastes um corpo. Isto é: Meu Pai, rejeitastes os sacrifícios dos homens como incapazes de aplacar vossa justiça ofendida por seus pecados; destes-me um corpo, como já vo-lo havia pedido, delicado, sensível, e todo afeito ao sofrimento; esse corpo eu aceito e com gosto vo-lo ofereço, a fim que sofrendo por ele todas as penas que devem encher a minha vida e dar-me finalmente a morte na cruz, eu possa aplacar a vossa cólera contra o gênero humano, e atrair-me assim o amor dos homens.

         E eis que apenas entrado no mundo começa o seu sacrifício; começa logo a sofrer, porém bem mais do que os outros homens. As crianças, quando ainda no seio materno, não sofrem porque se acham em uma situação natural; ou pelos me-nos, se padecem algum pouco, não têm disso consciência porque estão privadas de entendimento; mas o divino Infante suporta durante noves meses a obscuridade daquele cárcere, suporta a pena de não poder mover-se, e sabe perfeitamente o que sofre. Também Jeremias havia predito que uma mulher, que foi Maria, deveria ter envolto em suas entranhas, não uma criança, mas um homem. É certo que Jesus Cristo era então uma criança quanto à idade, mas era homem perfeito quanto ao uso da razão, porque, desde o primeiro instante de sua existência, era cheio, como diz o apóstolo, de todos os tesouros da sabedoria e ciência.

         "Jesus Cristo era homem perfeito desde o seu nascimento, escreve São Bernardo; digo, quanto à sabedoria, não quanto à idade".

         E Santo Agostinho: "Era sábio e maneira inexplicável, duma sabedoria unida à infância".

         Sai por fim do cárcere do seio materno; talvez para gozar a vida? sai para sofrer ainda mais. Nasce no coração do inverno, numa caverna que serve de abrigo aos animais, e nasce no meio da noite e em tal estado de pobreza que não tem nem fogo para se aquecer, nem bastantes paninhos para se proteger do frio. Falando do presépio de Belém exclama Santo Tomás de Vilanova: "Oh! que belos ensinamentos vem-nos dessa cátedra". Lá Jesus Cristo nos ensina o amor dos sofrimentos. Na gruta, observa Salmeron, tudo aflige os sentidos. Tudo aflige a vista: só se vêm pedras brutas e negras. Tudo aflige o ouvido: só se ouve a voz dos animais. Tudo aflige o olfato: só se sente o cheio repelente do lugar. Tudo aflige o tato: o divino Infante tem por berço uma manjedoura, e o seu leito é feito dum pouco de palha.

         - Ei-lo, esse Deus Menino, tão apertado entre as faixas que não se pode mover, Ele que veio, diz São Zenão, para libertar o mundo.

         "Oh! quão abençoados, diz Santo Agostinho, são esses felizes paninhos que serviram para purificar-nos das sujidades dos nossos pecados". Ei-lo, esse divino Infante, que treme de frio, que chora para dar-nos a entender que padece, e que oferece a seu Pai suas primeiras lágrimas para nos poupar os prantos eternos que temos merecido. "Lágrimas de Jesus, como sois preciosas, exclama Santo Tomás de Vilanova, vós lavastes as nossas almas criminosas".

         E assim sempre aflita e atribulada foi a vida de Jesus Cristo. Poucos dias depois de seu nascimento, é constrangido a fugir e exilar-se no Egito para escapar às mãos de Herodes; nesse país bárbaro teve de passar vários anos de sua infância pobre e desconhecido. Pouco diferente foi depois sua vida em Nazaré, onde residiu após a volta do Egito. Por fim foi pregado num patíbulo pelos carrascos e terminou sua vida num oceano de dores e opróbrios.

         Ademais, notemo-lo bem, as dores que nosso Salvador padeceu na sua Paixão, a flagelação, a coroação de espinhos, a crucifixão, a agonia, a morte e todas as outras penas e injúrias de que foi cumulado no fim de sua vida, Ele as sofreu desde o princípio dela, porque desde a sua conceição teve constantemente diante dos olhos o horrível quadro de todos os tormentos que deveriam assaltá-lo no momento de deixar a terra. Ele predissera pela boca de Davi: A minha dor está sempre diante de mim. Aos pobres enfermos esconde-se o ferro ou o fogo com que precisam ser atormentados para recuperarem a saúde; mas Jesus não quis que lhe escondessem os instrumentos de sua Paixão, com os quais devia terminar a vida para nos dar a vida eterna; quis ter continuamente diante dos olhos os flagelos, os espinhos, os cravos, a cruz, que fariam um dia correr todo o sangue de suas veias, e lhe causariam uma morte dolorosíssima e privada de todo o alívio.

         A irmã Madalena Orsini que há muito tempo sofria grave tribulação mereceu ver um dia Jesus que lhe apareceu como Crucificado para assim confortá-la com a memória de sua Paixão e animá-la a sofrer com paciência. A serva de Deus respondeu-lhe: "Mas, Senhor, vós ficastes só três horas sobre a cruz, enquanto que eu suporto esta dor a vários anos. - Ignorante, replicou Jesus, desde o primeiro momento que estive no seio de Maria, minha Mãe, padeci no meu coração, tudo quanto sofri mais tarde sobre a cruz". - "Sim, diz Novarino, a cruz estava desde então impressa na alma do Senhor, e eis por que Isaías predisse que Ele nasceria com a marca de seu principado sobre os ombros". Por isso, ó meu Redentor, exclama Drogon de Ostia, em toda a vossa vida só vos posso encontrar na cruz. A cruz em que Jesus morreu esteve sempre presente a seu espírito para atormentá-lo. Nem o sono, diz Belarmino, livrava o seu coração dessa terrível visão.

         Porém o que encheu de amarguras a vida de nosso Redentor, bem mais do que as dores de sua Paixão, foi a vista dos pecados que os homens cometeriam mesmo depois de sua morte. Os nossos pecados foram outros tantos carrascos que o fizeram viver em contínua agonia e sob o peso de terrível tristeza que seria suficiente por si só a fazê-lo morrer a cada instante. Esse é também o pensamento de Léssio: a vista da ingratidão dos homens, diz ele, causava de per si a Jesus uma dor capaz de fazê-lo morrer mil vezes.

         Os flagelos, a cruz, a morte, não eram, aos olhos de nosso Salvador, objetos odiosos; ao contrário, eram-lhe caros e Ele os queria e desejava. Ele mesmo espontaneamente se ofereceu a sofrê-los, dizia Isaías; Ele não deu a vida contra a vontade, mas por própria escolha, como no-lo dá a entender com as palavras: Eu dou a minha vida por minhas ovelhas. Que digo? o seu mais ardente desejo no e curso de sua vida, foi de ver chegar o tempo de sua Paixão, em que devia cumprir-se a redenção dos homens; daí o que Ele disse na véspera de sua morte: Desejei ardentemente comer esta páscoa convosco.

         Daí ainda aquele suspiro com que procurava, ao que parece, aliviar seu coração da espera demasiado longa: "Devo ser batizado com um batismo; e quão grande é a minha ansiedade, até que ele se conclua!" É preciso que eu seja mergulhado no batismo de meu próprio sangue, não para lavar a minha alma, mas para purificar minhas ovelhas das manchas de seus pecados; e quanto me sinto tomado do desejo de ver chegada a hora de ver-me exangue e morto sobre a cruz! - O que afligia Jesus não era o temor da morte, diz Santo Ambrósio; era a demora do nosso resgate.

         O Filho de Deus quis exercer sobre a terra o ofício de carpinteiro, e era conhecido como tal: Não é este o carpinteiro, o filho do carpinteiro? Num sermão sobre a Paixão, São Zenão dá a razão dessa preferência dizendo que os carpinteiros têm sempre em mãos peças de madeira e de pregos, e que Jesus gostava de ver esses objetos que lhe representavam os cravos e a cruz, futuros instrumentos de sua morte.

         Assim, repetimos, o que afligia o coração de nosso Redentor era menos o pensamento de sua Paixão, do que a ingratidão com que os homens iam pagar o seu amor. Essa ingratidão o fez chorar no estábulo de Belém. Essa ingratidão o fez suar sangue vivo com agonia de morte no horto de Getsêmani; ela o encheu de tristeza tal que bastaria para tirar-lhe a vida; Ele mesmo no-lo declarou dizendo: Minha alma está triste até a morte. É essa ingratidão em fim que o fez morrer em abandono absoluto e sem nenhum consolo sobre a cruz. O homem incorrera em duas penas: a do dano ou da perda de Deus, e a do sentido ou do corpo; ora, segundo Suarez, Jesus Cristo quis satisfazer principalmente pela primeira; por isso foram muito maiores as penas interiores da alma do Senhor do que toas as outras do corpo.

2

         Também nós, pois, temos contribuído com nossos pecados a tornar tão amarga e dolorosa toda a vida de nosso salvador. Mas agradeçamos a sua bondade que nos dá tempo para repararmos o mal que fizemos.

         Como poderemos repará-lo? Sofrendo com paciência as penas e as cruzes que o Senhor nos envia para o nosso bem. E o meio de praticarmos essa paciência Ele mesmo nos ensina quando nos diz: Ponde-me como um selo sobre o vosso coração, imprimi nele a imagem de vosso Salvador crucificado; - isto é: Considerai meu exemplo, as dores que padeci por vós; e assim sofrereis em paz todas as tribulações. "Coisa admirável, exclama Santo Agostinho; esse Médico celeste quis tornar-se doente para nos curar de nossa doença com a sua". Isaías havia predito: Nós fomos sarados com as suas pisaduras. Os sofrimentos eram o remédio necessário para as nossas almas enfermas pelo pecado; não havia outro; e nosso divino Médico quis primeiro tomá-lo, ajunta o Santo Doutor, a fim que não tivéssemos repugnância de tomá-lo depois dele, nós que dele precisamos.

         Daí se segue que, segundo São Epifânio, para nos fazermos conhecer como verdadeiros seguidores de Jesus Cristo, deve-mos agradecer-lhe quando nos envia cruzes. E com razão, porque, tratando-nos assim, Jesus faz-nos semelhantes a Ele. - São João Crisóstomo acrescenta uma reflexão de grande consolação: "Agradecendo a Deus os seus benefícios, diz ele, pagamos-lhe o que lhe devemos, mas, suportando as penas com paciência e por seu amor, Deus torna-se em certo sentido nosso devedor".

         E se quereis pagar a Jesus Cristo amor com amor, diz São Bernardo, aprendei dele com o que deveis amar. Sabei sofrer qualquer coisa por esse Deus que tanto sofreu por vós. O desejo de dar gosto a Jesus Cristo e de lhe testemunhar seu amor fez os Santos tão ávidos e sedentos não de honras e prazeres, mas de sofrimentos e humilhações. Isso fazia dizer ao apóstolo: Longe de mim gloriar-me a não ser na cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo. Feliz de estar unido a seu Deus crucificado, o apóstolo não ambicionava outra glória que de se ver com Ele na cruz.

         Isso também arrancava a Santa Teresa o grito tão conhecido: "Ou padecer ou morrer!" como se dissesse: Meu divino Esposo, se quereis chamar-me a vós, eis-me pronta a seguir-vos com ações de graças; mas se vos aprouver deixar-me mais tempo na terra, não posso resignar-me a ficar sem sofrer: ou padecer ou morrer! - Santa Maria Madalena de Pazzi ia ainda mais longe: "Sofrer, dizia ela, e não morrer!" isto é: Meu Jesus, desejo o paraíso para vos amar com mais perfeição; porém desejo ainda mais sofrer para compensar em parte o amor que me demonstrastes padecendo tanto por mim! - A venerável irmã Maria Crucificada da Sicília amava igualmente os sofrimentos a tal ponto que costumava dizer: "É belo o paraíso; mas lá falta uma coisa: a dor". O exemplo de São João da Cruz não é menos admirável: Quando Jesus lhe pareceu com a cruz às costas e lhe disse: "João, pede-me o que quiseres"; o Santo só pediu sofrimentos e desprezos: "Senhor, respondeu ele, padecer e ser vilipendiado por vós!" Domine, pati et contemni pro te.

         Se não temos coragem de desejar e pedir sofrimentos, procuremos ao menos aceitar com resignação os que Deus nos envia para o nosso bem: "Onde está Deus, diz Tertuliano, está também a paciência". Dai-me uma alma que sofre com resignação, que eu lá encontrarei certamente Deus. O Salmista declarou que o Senhor se apraz em estar perto das almas aflitas; mas isso entende-se somente daquelas que suportam suas penas com paciência e sabem resignar-se à vontade divina. E a essas almas que Deus faz gozar a verdadeira paz, que consiste unicamente, como ensina São Leão, em unir a nossa vontade à de Deus. A conformidade à vontade divina, observa São Boaventura, é como o mel que torna doces e amáveis também as coisas amargas. A razão disso é que, quem obtém tudo o que quer, nada mais tem a desejar, e por isso, diz Santo Agostinho, deve ser feliz.

         Assim, quem não quer senão o que Deus quer, está sempre contente, porque então obtém tudo o que deseja, pois que nada acontece que não seja querido por Deus.

         E quando Deus nos envia cruzes devemos não só resignar-nos à vontade divina, mas também agradecer-lhe; pois é isso um sinal de que Ele nos quer perdoar os nossos pecados e salvar-nos do inferno que temos merecido. Quem ofendeu a Deus deve ser castigado mais cedo ou mais tarde; peçamos-lhe pois nos castigue nesta vida e não na eternidade. Ai do pecador que no mundo prospera em vez de ser punido! Que Deus nos preserve da misericórdia de que fala Isaías quando disse: Façamos misericórdia ao ímpio. Senhor, exclamava São Bernardo, não quero essa misericórdia; é o mais terrível de todos os castigos. Quando Deus não pune um pecador nesta vida, é sinal que deixa para puni-lo na outra, onde os castigos são eternos.

         Vendo Jesus Cristo morto na cruz, diz São Lourenço Justiniano, devemos considerar o grande dom que Ele nos fez derramando seu sangue para nos resgatar do inferno, e reconhecer ao mesmo tempo a malícia do pecado, que levou um Deus a morrer assim para obter o nosso perdão. - "Ó Deus eterno, exclama Drogon, nada me apavora tanto como ver vosso divino Filho golpeado de morte tão cruel por causa do pecado".

         Quando, pois, após o pecado recebemos de Deus algum castigo temporal, consolemo-nos vendo nele o penhor de sua disposição para nos fazer misericórdia na vida futura. O só pensamento de havermos desgostado a um Deus tão bom não nos deve porventura, se o amamos, tornar-nos mais contentes por ver-nos punidos justamente do que gozássemos todas as prosperidades e todos os bens do mundo? Essa reflexão é de São João Crisóstomo. Quem ama verdadeiramente, ajunta ele, aflige-se mais com ter contristado a pessoa amada do que com ver-se castigado.

         Ainda uma vez, consolemo-nos nos sofrimentos; e se todas essas considerações não bastarem para nos restituir a paz, dirijamo-nos a Jesus Cristo; Ele mesmo nos consolará segundo a sua promessa: Vinde a mim todos os que sofreis e estais acabrunhados, e eu vos aliviarei. Se recorrermos ao Senhor, ou Ele nos livrará das nossas penas, ou nos dará a força de suportá-las com paciência. Ora, esta última graça é preferível à primeira, porque pela paciência na tribulação, além de expiarmos as nossas faltas nesta vida, merecemos ainda um novo grau de glória eterna no paraíso.

         Nas nossas aflições e desolações, dirijamo-nos também a Maria, que é chamada a Mãe de misericórdia, a causa da nossa alegria e a consoladora dos aflitos. Lancemo-nos aos pés dessa boa Rainha que, como diz Lanspérgio, abre a todos o seio de sua maternal ternura, e não permite se retire alguém de seus pés triste e sem consolo. Segundo São Boaventura, o seu ofício é compadecer-se de nossos males. Quem a invoca, diz Ricardo de São Lourenço, acha-a sempre pronta a socorrê-lo. E com efeito quem implorou a sua assistência, pergunta Eutíquio, e foi jamais por Ela abandonado?

“Afetos e Súplicas”

         Santa Maria Madalena de Pazzi prescreveu a duas de suas religiosas se conservasse, durante as festas de Natal, aos pés do divino Infante, para fazerem junto dele o ofício dos animais que o acalentaram com seu hálito, quando Ele Tremia de frio no estábulo: elas deviam acalentá-lo com louvores de amor, com ações de graças e suspiros de amor saídos de seus corações inflamados. - Meu caro Redentor, oxalá pudesse também eu exercer esse ofício. Sim, louvo-vos meu Jesus, louvo vossa misericórdia infinita, louvo vossa caridade infinita, que vos honra no céu e na terra, e uno minha voz à dos anjos para cantar com eles: Glória a Deus no mais alto dos céus. Rendo-vos graças por todos os homens, e especialmente por mim mesmo, mísero pecador. Que seria de mim, que esperança de perdão e de salvação poderia eu ter, ó meu Redentor, se não descêsseis do céu para salvar-me? Eu vos louvo, pois, eu vos agradeço e vos amo.

         Amo-vos mais do que todas as coisas, amo-vos mais do que a mim mesmo, amo-vos de toda a minha alma e dou-me todo a vós. Recebei, divino Infante, e aceitai esses atos de amor; e se eles são frios por saírem dum coração gelado, acalentai este pobre coração, este coração que vos ofendeu, mas que se arrepende. Sim, Senhor, arrependo-me sobre todas as coisas de vos haver ofendido, a vós que me haveis amado tanto. Agora não desejo senão amar-vos; eis a única coisa que vos peço: dai-me o vosso amor, e fazei de mim o que vos aprouver. Fui um tempo mísero escravo do inferno; mas hoje que estou livre dessas funestas cadeias, consagro-me inteiramente a vós: consagro-vos o meu corpo, os meus bens, a minha vida, a minha alma, a minha vontade, e toda a minha liberdade. Já não quero ser meu, mas só vosso, meu único bem. Dignai-vos prender a vossos pés meu pobre coração, a fim que não se separe jamais de vós.

         Ó Maria, minha Santíssima Mãe, impetrai-me a graça de viver sempre nas felizes cadeias do amor do vosso adorável Filho. Dizei-lhe que me aceite por escravo de seu amor; Ele faz tudo o que lhe pedis. Rogai, rogai por mim. Assim o espero.

CONSIDERAÇÃO 8
O VERBO ETERNO DE RICO SE FEZ POBRE.

         Sacodete do pó, levantate; assentate, Jerusalém. (Is 52,2.)

         Coragem, alma cristã, exclama o profeta, sacodete do pó das afeições terrenas; levantate, sai da lama do vício em que te mergulhaste miseravelmente. Assentate no trono que te pertence, e reina sobre as paixões que procuram privarte da glória celeste e te expõem ao perigo duma eterna ruína.

         Mas que deverá fazer uma alma para conseguir isso? - Lançar os olhos para a vida de Jesus Cristo, que, soberano Senhor de todas as riquezas do céu e da terra, se fez pobre e calcou aos pés todos os bens deste mundo. À vista de Jesus feito pobre por amor de nós, é impossível que não nos mova-mos a desprezar tudo por amor de Jesus. - Consideremo-lo, pois, atentamente; e para isso peçamos a Jesus e Maria nos iluminem.

1

         Tudo o que há no céu e na terra pertence a Deus: Minha é a terra e tudo o que ela encerra, diz o Senhor. Mas isso é pouco; o céu e a terra não são o todo, mas uma mínima parte das riquezas de Deus. A riqueza de Deus é infinita e imperecível, porque não depende de outrem: Ele a possui em si mesmo e é um bem infinito. Eis por que Davi lhe dizia: Tu és o meu Deus, que não tens necessidade dos meus bens. - Pois bem, esse Deus tão rico se fez pobre fazendo-se homem, a fim de enriquecer a nós miseráveis pecadores. Ele sendo rico se fez pobre por vós, a fim de que vós fosseis ricos pela sua pobreza, diz o apóstolo.

         Como! um Deus fazer-se pobre! e por que? - Procuremos compreendê-lo. Os bens terrenos não podem ser senão terra e lama; mas essa lama cega de tal forma o homem, que este não vê mais os verdadeiros bens. Antes da vinda de Jesus Cristo, o mundo era cheio de trevas, porque era cheio de pecados: Toda a carne corrompera o seu caminho. Todos os homens haviam violado e alterado a lei da razão; viviam como irracionais pensando só em gozar os bens ou prazeres terrenos e descuidando-se inteiramente dos bens eternos. Mas, graças à divina misericórdia, o Filho de Deus veio esclarecer esses cegos: Aos que habitavam na região da sombra da morte nasceu-lhes o dia.

         Jesus Cristo foi chamado por Simeão a Luz das nações; e por São João a Luz que resplandece nas trevas e que ilumina a todo o homem. O Senhor já nos predissera que Ele mesmo seria o nosso Mestre, e um Mestre visível a nossos olhos, que viria ensinar-nos o caminho da salvação, o qual não é outro que a prática das virtudes e esclarecimentos da santa pobreza: Os teus olhos verão o teu Mestre. Ora, esse divino Mestre devia ensinar-nos não só por sua palavra, mas ainda e sobretudo pelo exemplo da sua vida.

         A pobreza, diz São Bernardo, não existia no céu; ela só se achava na terra; mas o homem não conhecia o seu valor e por isso a detestava. Eis porque o Filho de Deus desceu do céu à terra e escolheu a pobreza por companheira de toda a sua vida a fim que seu exemplo no-la fizesse estimar e procurar. Eis, pois, vosso Redentor Menino, desde o seu nascimento feito Mestre da pobreza na gruta de Belém, que por esse motivo São Bernardo chama "escola de Jesus Cristo" e Santo Agostinho "a gruta do Mestre".

         Por expressa disposição de Deus, o edito de César fez que Jesus nascesse não só pobre, mas o mais pobre de todos os homens, vindo ao mundo longe de sua própria habitação numa gruta que servia de abrigo aos animais. Ordinariamente os pobres nascem em suas casas e aí encontram ao menos as coisas indispensáveis: panos, lume e pessoas que ao menos por compaixão os socorrem. Qual a criança cujos pais são tão pobres que a fazem nascer num estábulo? Nos estábulos só se vêem animais.

         São Lucas narra as circunstâncias desse grande acontecimento. Chegado o tempo que Maria devia dar à luz, José lhe procurou alojamento na cidade. Em vão vai de porta em porta, nenhuma se lhes abriu. Dirige-se à hospedaria, e lá não há mais lugar para eles. É assim que a Mãe de Deus se viu obrigada a refugiar-se a uma miserável gruta, onde, apesar da grande afluência de estranhos, só se achavam dois animais.

         Os filhos dos príncipes da terra nascem em apartamentos preparados com cuidado e ricamente ornados; têm berços de prata e os mais finos paninhos; os grandes do reino e as mais nobres damas os assistem. O Rei do céu, em vez de apartamento bem guarnecido e aquecido, não tem por abrigo senão uma fria gruta onde crescem as ervas; em lugar dum leito de plumas, só tem um pouco de palha dura e pungente; em vez de panos finos tem só alguns trapos grosseiros, frios e úmidos; dois animais formam a sua corte, e o hálito deles, substituindo o fogo, lhe aquece os membros; enfim por berço só tem uma miserável manjedoura. "Ah! exclama São Pedro Damião, ao ver o Criador dos anjos nesse abatimento, envergonhe-se o nosso orgulho!"

         "E como é possível, pergunta São Gregório de Nissa, ao Rei dos reis, que enche o céu e a terra, não encontrar para repousar seus membros vindo ao mundo, senão essa pobre manjedoura?" É que por nosso amor esse Rei dos reis quis ser pobre e o mais pobre de todos os homens.

         - Os filhos dos pobres tem ao menos leite suficiente para saciá-las; mas mesmo nisso Jesus quis ser mais pobre do que eles, pois o leite de Maria era miraculoso; Ela o recebera não da natureza, mas do céu, como a Igreja no-lo dá a entender; e Deus para comprazer seu Filho que queria ser o mais pobre dos filhos dos homens, não proveu Maria de grande abundância de leite, mas só de quantidade apenas suficiente para sustentar a vida de seu divino Infante; isso a Santa Igreja exprime em seus cânticos: "Por alimento teve apenas um pouco de leite".

         Nascido na pobreza, continuou Jesus a ser pobre durante toda a sua vida, e não só pobre, mas indigente, segundo a expressão de São Paulo: Egenus. Do texto grego Cornélio a Lápide deduz que Ele foi até mendigo. Nascido nessa extrema pobreza nosso Redentor foi constrangido a fugir para o Egito, deixando a sua pátria. São Boaventura contempla compassivo a Maria e José nesse longo e penoso trajeto; imagina-os privados de tudo e levando em seus braços o santo Infante que muito sofreu com a pobreza deles: "Onde achavam alimento? pergunta-se ele; onde pernoitavam? onde se hospedavam?" Mas de que podiam eles nutrir-se senão dum pouco de pão duro? onde se deitavam no deserto senão sobre a terra nua, ao relento ou debaixo duma árvore? Ah! se alguém encontrasse de caminho esses três nobres exilados, por quem os poderia tomar senão por três pobres mendigos?

         Chegaram enfim ao Egito; e podemos imaginar-nos quão penosa foi a permanência de sete anos que lá estiveram, eles pores, em um país estranho, onde não tinham nem amigos, nem parentes. Segundo São Basílio, eles mal chegavam a conseguir o necessário à força de trabalho. "Mais duma vez, ajunta Landolfo de Saxônia, o Menino Jesus, premido pela fome, pediu à sua Mãe um pedaço de pão, e Maria teve de dizer-lhe que não havia mais".

         Do Egito voltam de novo à Palestina e dirigem-se a Nazaré; e lá Jesus continua a viver na pobreza. "Uma casa pobre, móveis pobres, eis com que se contenta o Criador do mundo", diz São Cipriano. Nessa humilde morada leva a vida dos pobres: ganha o pão com o trabalho e no suor de seu rosto, como o faz um pobre artífice, filho de artífice; é assim que os hebreus o conheciam e o designavam: Não é Ele o carpinteiro, - o filho do carpinteiro?

         Nosso divino Redentor começa enfim a pregar o seu Evangelho. Nesses três últimos anos que Ele passou sobre a terra, longe de ficar à vontade, pratica uma pobreza ainda mais rigorosa que antes, e vive de esmolas. A alguém que mostrara intenção de segui-lo levado pela esperança duma vida cômoda, Jesus disse: As raposas têm suas covas e os pássaros do céu os seus ninhos; mas o Filho do homem não tem onde repousar a cabeça. Cornélio a Lápide interpreta assim essas palavras: Se esperais fazer fortuna seguindo-me, estais enganados, porque eu vim à terra ensinar a pobreza, e para esse fim me tornei mais pobres do que os animais, que têm ao menos um abrigo, enquanto que eu não tenho neste mundo nem a menor parcela de terra que me pertença e onde possa repousar; e eu quero que os meus discípulos sejam como eu. E com efeito, observa São Jerônimo, os verdadeiros discípulos de Jesus não têm e não desejam nada senão a Jesus.

         Numa palavra, Jesus Cristo viveu pobre e morreu pobre, sendo preciso que José de Arimatéia lhe desse um lugar de sepultura, e outros lhe fizessem a esmola dum lençol para sepultar o seu corpo.

2

         O Cardeal Hugo, considerando a pobreza, as humilhações e os sofrimentos a que nosso divino Salvador quis submeter-se, não pôde contentar-se e disse: Parece que nosso Deus levou o amor dos homens até a demência, tomando sobre si tantas misérias, a fim de lhes proporcionar as riquezas da graça divina e da glória celeste. - E se Jesus Cristo não houvesse operado esse prodígio de amor, continua o mesmo autor, quem poderia achar possível que o Senhor te todos os bens quisesse jamais tornar-se tão pobre, o Senhor de todos os seres fazer-se servo, o Rei do céu padecer tanto desprezo, o Ser infinitamente feliz sujeitar-se a tantas dores?

         Sem dúvida, há na terra príncipes compassivos que gostam de empregar seus tesouros em alívio dos pobres; mas viu-se jamais algum rei que, para auxiliar os pobres, se tenha tornado semelhante a eles como o fez Jesus Cristo? Cita-se como um prodígio de caridade o que fez São Eduardo: encontrando de caminho um mísero mendigo incapaz de se mover e abandonado de todos, tomou-o afetuosamente sobre os ombros e levou-o à igreja. Isso foi certamente uma ação sublime de molde a excitar a admiração dos povos; mas procedendo assim, esse Santo não deixou de ser rei e rico como antes. O Filho de Deus, o Rei do céu e da terra, vai mais longe: desejando salvar sua ovelha desgarrada, isto é, o homem, não se contenta de descer do céu para vir buscá-la, nem de pô-la sobre os ombros: não hesita despojar-se de sua majestade, de suas riquezas, de suas honras; faz-se pobre e o mais pobre de todos os homens.

         "Ele oculta a sua púrpura, isto é, a sua divindade e realeza sob as aparência dum pobre operário".

         Assim fala São Pedro Damião. E São Gregório de Nazianzo exclama com transporte: "Aquele que enriquece os outros submete-se à indulgência; abraça a minha pobreza humana para me fazer partilhar suas riquezas divinas". Sim, Aquele do qual os ricos tem suas riquezas, quer ser pobre a fim de nos merecer não os bens faltos e transitórios deste mundo, mas as riquezas divinas que são imensas e eternas; e com seu exemplo induz-nos a nos desapegarmos das coisas deste mundo, que nos põem em grande perigo de eterna ruína! - Lê-se na vida de São João Francisco Regis, que o assunto ordinário de suas meditações era a pobreza de Jesus.

         São Alberto Magno diz que Jesus quis nascer num estábulo, perto da via pública, por dois fins. O primeiro foi para nos fazer melhor compreender que somos todos viajores sobre a terra, onde estamos de passagem, como o diz Santo Agostinho. Ninguém se apega certamente ao lugar onde se hospeda uma noite de passagem: sabe que o tem de deixar em breve.

         Ah! se os homens não se esquecessem que são viajores neste mundo, e que se dirigem à morada da eternidade, haveria acaso um só que quisesse prender-se aos bens terrenos com risco de perder os do céu? - O segundo fim que Nosso Senhor teve em vista, segundo São Alberto Magno, foi de ensinar-nos por seu exemplo "a desprezar o mundo", que nos não oferece bem algum capaz de contentar nosso coração. O mundo ensina a seus adeptos que a felicidade consiste no gozo das riquezas, dos prazeres, e das honras; mas esse mestre enganador foi condenado pelo Filho de Deus feito homem: Agora chegou o juízo do mundo.

         Esse julgamento do mundo começou, segundo Santo Anselmo e São Bernardo, no estábulo de Belém. Jesus quis lá nascer pobre para induzir-nos com seu exemplo a banirmos dos nossos corações a afeição aos bens terrenos e a consagrar-vos inteiramente ao amor de Deus e da virtude. Ele assim entrou, diz Cassiano, e nos conduziu por um caminho novo inteiramente oposto ao do mundo, que odeia e foge da pobreza.

         Fiéis a esse divino exemplo os Santos nada tiveram tanto a peito como despojar-se de tudo para na pobreza seguirem a Jesus pobre. "A pobreza de Jesus, disse São Bernardo, é mais rica do que qualquer tesouro".

         Com efeito ela nos proporcionou bens mais preciosos do que todos os tesouros do mundo, porque pelo desprezo que nos inspira das riquezas da terra, nos anima à conquista das riquezas celestes. O Apóstolo considerava todas as coisas como lodo e fumaça em comparação da graça de Jesus Cristo:

         Renunciei todas as coisas e as considero como esterco para ganhar a Cristo. São Bento, filho de família opulenta, renuncia na flor da mocidade às comodidades da casa paterna, e retira-se a uma caverna onde viverá dum pouco de pão recebido de esmo-la dum caridoso monge chamado Romano. São Francisco de Borja abandona todas as suas riquezas para abraçar a via pobre na Companhia de Jesus. Santo Antão vende todo o seu rico patrimônio, distribui-o aos pobres e retira-se a um deserto. São Francisco de Assis devolve ao pai até a camisa para viver mendigando o resto de sua vida.

         Quem ama as riquezas, dizia São Filipe Néri, jamais se santificará. E com efeito, num coração cheio de terra não pode ter lugar o amor divino. "Trazeis um coração vazio?" essa era, na opinião dos antigos monges, a pergunta mais necessária a fazer-se aos que se apresentavam para ser admitidos em sua companhia. Perguntando se tinham o coração livre de afeições terrenas, queriam dizer: Sabei que sem isso jamais podereis ser inteiramente de Deus. Onde está o vosso tesouro, aí está também o vosso coração, disse Jesus Cristo. Ora, tesouro de cada um é o objeto de sua estima e de sua afeição. Morrendo uma vez um rico, Santo Antônio de Pádua publicou do alto do púlpito que esse infeliz estava condenado; e como prova do que avançava, disse que fossem ver o lugar onde estava o seu dinheiro, e lá encontrariam o seu coração. Com efeito foram e acharam o coração daquele infeliz ainda quente no meio de seu dinheiro.

         Deus não pode ser o tesouro duma alma apegada aos bens da terra; eis por que Davi fazia esta oração: Senhor, criai em mim um coração puro, tirai do meu coração toa afeição terrena, a fim de que eu possa exclamar: Vós só, ó meu Deus, sois o Deus do meu coração e a minha partilha para sempre. Quem, pois, deseja santificar-se e verdade, deve banir de seu coração tudo o que não é Deus. De que servem os tesouros, as riquezas? para que esses bens, se não podem contentar o nosso coração, e se os temos de deixar tão depressa? Não amontoeis tesouros sobre a terra, diz o Senhor, onde a ferrugem e a traça os consomem; entesourai para vós tesouros no céu.

         Oh! que bens imensos prepara Deus no céu aos que o amam! Que tesouro é a graça de Deus e o divino amor para quem lhe conhece o valor! Comigo estão as riquezas... para enriquecer os que me amam. Deus contém em si e leva consigo a riqueza e o prêmio. No paraíso Deus só é a recompensa dos eleitos; dando-se a eles satisfaz plenamente todos os seus desejos, conforme disse a Abraão: Eu mesmo serei a tua recompensa infinitamente grande.

         Mas se queremos amar muito a Deus no céu, temos primeiro de amá-lo muito na terra. O grau de amor ao qual tiver-mos chegado no fim de nossa peregrinação terrestre, será a medida eterna do amor em que nos abrasaremos por Deus no céu. E se queremos estar ao abrigo de todos os perigos que nos poderiam separar de Deus nesta vida, estreitemos sempre mais os laços do nosso amor, a exemplo da esposa sagrada que dizia: Achei a quem ama a minha alma; agarrei-me a ele e não o largarei mais. Como pode a esposa sagrada agarrar o seu dileto? Brachiis caritatis. Nos braços de seu amor, responde Guilherme. Sim, diz Santo Ambrósio, "é pelo amor que Jesus se deixa prender". Feliz pois quem puder exclamar com São Paulino: "Guardem os ricos o seu ouro e os reis os seus cetros; Jesus é a nossa glória, a nossa riqueza, a nossa coroa".

         E com Santo Inácio: "Senhor, dai-me a vossa graça e o vosso santo amor; fazei que vos ame e seja de vós amado; e sou bastante rico e não quero outra coisa e nada mais tenho a desejar!"

         "Quem possui tudo em Deus, diz São Leão, tem certeza de nunca sentir falta de coisa alguma".

         Para chegarmos a essa perfeição, invoquemos sem cessar nossa augusta Mãe, Maria, e procuremos amá-la sobre tudo depois de Deus; Ela nos afirma pelas palavras que a Santa Igreja lhe põe nos lábios, que enriquece de graças a todos os que a amam.

“Afetos e Súplicas”

         Meu caro Jesus, inflamai-me de vosso santo amor, pois que para isso viestes à terra. É verdade que eu, miserável, por vos haver ofendido após tantas luzes e graças especiais que me destes, não mereço arder nessas benditas chamas, em que ardiam os Santos; as chamas do inferno deveriam ser a minha partilha; mas, apesar da minha ingratidão, estou ainda fora dessa horrível prisão que tenho merecido; ouço que vos, voltando-vos para mim, me dizeis: Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração. Ó meu Deus, agradeço-vos por me renovardes esse doce preceito; e já que me mandais amar-vos, quero obedecer-vos, quero amar-vos de todo o meu coração.

         Senhor, no passado fui um ingrato, um cego; esqueci voluntariamente o amor que tendes por mim; mas agora que me aclarais novamente e me recordais tudo o que fizestes por meu amor; agora que considero que vos fizestes homem por mim e que vos carregastes das minhas misérias; agora que vos vejo sobre a palha, tremendo de frio, gemendo e chorando por mim, ó divino Infante, como poderia viver sem vos amar? Ah! perdo-ai-me, amor meu, perdoai todos os desgostos que vos tenho dado. Ó Deus, como pude ofender-vos assim, sabendo pela fé tudo o que sofrestes por mim? Mas essas palhas que vos pungem, essa vil manjedoura que vos acolhe, esses ternos vagidos que soltais, essas lágrimas de amor que derramais, fazem-me esperar com confiança o perdão de minhas falta e a graça de vos amar o resto de minha vida. Sim, eu vos amo, ó Verbo encarnado, eu vos amo, ó divino Infante, eu vos amo e me dou todo a vós.

         Pelas penas que sofreis no estábulo de Belém, ó meu Jesus, não rejeiteis um mísero pecador que quer amar-vos.

         Ajudai-me e dai-me a perseverança; tudo espero de vós.

         Ó Maria, que sois a digna Mãe de tão grande Filho e a mais amada desse Filho, rogai por mim.

CONSIDERAÇÃO 9
O VERBO ETERNO DE SUBLIME SE FEZ HUMILDE.

         Aprendei de mim, que eu sou manso, e humilde de coração. (Mt 11,29.)

         O orgulho foi a causa da queda de nossos primeiros pais; estes, por não quererem submeter-se à lei divina, perderam a si mesmos e todo o gênero humano. Para reparar tão grande desgraça, o Deus de misericórdia quis que seu Filho unigênito se humilhasse ao ponto de assumir a natureza humana, e que pelo exemplo de sua vida nos movesse a amar a santa humildade e a detestar o orgulho que nos torna odiosos aos homens e a Deus. Eis por que São Bernardo hoje nos convida a visitar a gruta de Belém; lá encontraremos, diz ele, o que admirar, o que amar, e o que imitar.

         Sim, nessa gruta achamos primeiro o que admirar. Que vejo? um Deus num estábulo! um Deus sobre a palha! Ó prodígio! esse Deus onipotente que Isaías viu sentado num trono de glória e majestade no mais alto os céus; onde o vemos agora repousar? num presépio! e desconhecido, abandonado, sem outros cortesãos que dois animais e alguns pobres pastores!

         Lá encontramos também um objeto digno de nossos afetos: um Deus, o Bem infinito que quis aviltar-se ao ponto de mostrar-se ao mundo como pobre criança, e isso a fim de se fazer mais amável, mais caro aos nossos corações: "Quanto mais Ele se humilha por mim, diz ainda São Bernardo, tanto mais eu o amo".

         Lá encontramos enfim um modelo a seguir. O Altíssimo, o Rei do céu reduzido ao estado mais humilde! uma criancinha em extrema indigência; nessa gruta em que acaba de nascer quer começar a ensinar-nos com seu exemplo, continua o mesmo Santo, aquilo que mais tarde nos ensinará dizendo: Aprendei de mim que sou manso e humilde de coração. Peça-mos a Jesus e Maria nos iluminem.

1

         Quem não sabe que Deus é incomparavelmente o primeiro, o mais nobre de todos os seres, do qual depende toda a nobreza? Ele é de infinita grandeza. E independente; não recebeu de ninguém a sua grandeza, mas a possui em si mesmo. É o Senhor do universo; todas as criaturas lhe obedecem. O Apóstolo tinha pois razão de dizer: A Deus pertence toa a honra e glória. Para curar o homem do vício do orgulho e remediar a desgraça em que o orgulho o havia precipitado, esse grande Deus dignou-se dar-lhe o exemplo da humildade, assim como para desapegá-lo dos bens terrenos lhe deu, como vimos na consideração precedente, o exemplo da pobreza.

         O primeiro e o maior exemplo de humildade da parte do Verbo eterno foi de se fazer homem e revestir-se da nossa natureza e de nossas misérias. "Quem veste roupa de outrem, diz Cassiano, oculta-se sob essa roupa; assim Jesus Cristo ocultou sua natureza divina sob a humilde veste da carne humana". "Ó maravilha, exclama São Bernardo, a Majestade se uniu à lama, o poder à fraqueza, o que há de mais sublime ao que há de mais baixo! E maravilha mais estupenda ainda, não contente de se fazer criatura, esse Deus quis ainda parecer pecador revestindo-se, segundo a palavra do Apóstolo, duma carne semelhante à nossa carne pecadora".

         Mas o Filho de Deus não se contentou de tomar a natureza humana e de parecer pecador; quis escolher o gênero de vida mais humilde e mais baixo que há entre os homens, de sorte que Isaías o chama o último dos mortais. Jeremias havia predito que Ele seria saturado de ignomínias; e Davi, que Ele se tornaria o opróbrio dos homens e a abjeção da plebe. Eis por que Jesus Cristo quis nascer do modo mais abjeto que se possa imaginar: quis nascer num estábulo. Que vergonha para um homem, embora pobre, nascer num estábulo! Quais são os seres que nascer nos estábulos? Os pobres vem ao mundo em seus casebres, pelo menos numa esteira, e não num estábulo. Em estábulos só nascem os animais, os vermes; e como um verme quis nascer na terra o Filho de Deus: Sou um verme, diz Ele, e não um homem.

         Sim, observa Santo Agostinho, assim quis nascer o Rei do universo para nesse mesmo abaixamento mostrar-nos a sua grandeza e o seu poder, fazendo com seu exemplo amarem a humildade os homens naturalmente cheios de orgulho.

         Quando os anjos anunciaram aos pastores o nascimento do Messias, os sinais que deram para o acharem e reconhecerem foram outros tantos sinais de humildade: Achareis num estábulo, disseram, uma criança envolta em panos e reclinada num presépio sobre a palha; eis o vosso Salvador. Eis como se faz reconhecer um Deus que vem à terra abater o orgulho.

         A vida de Jesus exilado no Egito corresponde aos seu nascimento. Que era ele aos olhos daqueles bárbaros todo o tempo que se demorou entre eles, senão um estrangeiro, um desconhecido, um indigente? Quem o conhecia? quem lhe prestava atenção?

         Após a sua volta à Judéia, a sua vida pouco se diferençou da que levou no Egito. Viveu até aos trinta anos na oficina dum pobre artífice, que todos consideravam como seu pai; lá exercia o ofício dum simples operário, sempre pobre, obscuro e desprezado. Na santa Família não havia servos nem servas, observa São João Crisóstomo. O único servo que havia na casa era o Filho de Deus, que quisera fazer-se filho do homem, isto é, de Maria, para ser um humilde servidor e como tal obedecer a um homem e a uma mulher: São Lucas atesta que Ele lhes era submisso.

         Após esses trinta anos de vida oculta, chegou enfim o tempo em que nosso Salvador tinha de mostrar-se em público, e cumprir sua divina missão pregando-nos sua celeste doutrina; desde então já não podia deixar de se manifestar tal qual era, o verdadeiro Filho de Deus. Mas, Ah! quantos eram os que o reconheciam e lhe prestavam a honra que merecia? exceto um pequeno número de pessoas que o seguiram e se tornaram seus discípulos, todos os outros, longe de o honrarem, o desprezaram como homem vil e impostor. Ah! foi sobretudo então que se verificou a profecia de São Simeão: Ele será alvo de contradição. - Jesus Cristo foi contradito e desprezado em tudo: foi desprezado em sua doutrina; tendo-se declarado o Filho de Deus, foi taxado de blasfemo pelo ímpio Caifás, e, como tal, julgado digno de morte.

         Foi desprezado em sua sabedoria sendo considerado como louco: Ele perdeu o juízo, diziam seus inimigos, por que o ouvis? Foi desprezado em sua conduta e tratado de glutão, de embriagado e de amigo de gente de má vida; de mágico em comércio com os demônios; de Samaritano, isto é, de herege e de demoníaco: Não temos razão de dizer que és um Samaritano e um possesso do demônio? Foi enfim tratado de sedutor e considerado, numa palavra, como um criminoso tão notório digno de ser condenado sem processo: Se Ele não fosse um malfeitor, diziam os judeus, não vo-lo teríamos entregue.

         Chegado ao fim da sua vida e à sua dolorosa Paixão, quantos novos ultrajes e humilhações não teve de suportar o divino Salvador! Foi traído e vendido por um dos seus discípulos por trinta dinheiros, quantia inferior à dum vil animal. Foi renegado por um outro discípulo. Foi arrastado pelas ruas de Jerusalém, amarrado como um malfeitor e abandonado de todos, mesmo dos poucos discípulos que lhe restavam. Foi indignamente flagelado como um vil escravo. Foi esbofeteado em público. Foi tratado como um idiota por Herodes, que vendo que Ele nada respondia e não se defendia, o cobriu duma veste branca, querendo com isso fazê-lo passar por um ignorante, diz São Boaventura.

         Foi tratado como rei de teatro: puseram-lhe na mão por cetro uma cana grosseira; sobre os ombros um pedaço de pano rubro à moda de púrpura; e sobre a fronte um feixe de espinhos em lugar de coroa; e depois escarnecendo-o o saudavam, dobravam o joelho diante dele por escárnio dizendo: Salve, rei dos judeus! e carregavam-no de escarros e golpes.

         Nosso Senhor quis enfim morrer por nós, e de que morte? da morte mais ignominiosa, que é o suplício da crus: Ele se humilhou e se fez obediente até a morte, até a morte da cruz. Eram crucificados os que eram considerados como os mais vis e odiosos facínoras; os seus nomes eram para sempre amaldiçoados e votados à infâmia. A lei de Moisés dizia: Maldito todo aquele que pende no madeiro. Daí a palavra de São Paulo: O Cristo se fez maldição por nós; o que Santo Atanásio explica com as palavras: "Jesus quis tomar sobre si essa maldição para salvar-nos da maldição eterna".

         "Mas, Senhor, exclama aqui Santo Tomás de Vilanova, que é da vossa glória, da vossa majestade nesse excesso de ignomínia? Não procureis a glória e a majestade em Jesus Cristo, responde ele: Ele veio para dar-nos o exemplo da humildade e manifestar o amor que tem aos homens; a esse amor o pôs, em certo sentido, fora de si mesmo".

2

         Os pagãos contavam que, por amizade, Hércules havia limpado as estrebarias de Augias, e Apolo, guardado os rebanhos de Admeto: puras ficções, mas é de fé que, por amor dos homens, Jesus Cristo, verdadeiro Filho de Deus se humilhou a nascer num estábulo, a levar uma vida pobre e desprezada, e a morrer num patíbulo infame. - Ó força de amor divino! exclama São Bernardo; o maior de todos fez-se o último, o mais humilde de todos! E qual o móvel desse prodigioso abaixamento? O amor, esquecido de sua dignidade, em se tratando de ganhar o afeto da pessoa amada. Assim, concluiu o Santo, Deus, a quem ninguém pode vencer, foi vencido pelo amor, pois que o amor o moveu a fazer-se homem e a imolar-se por nós num oceano de dores e opróbrios. O Verbo divino, a grandeza personificada, humilhou-se até se aniquilar em certo sentido, para mostrar ao homem o amor que lhe tinha.

         E de fato, observa São Gregório de Nazianzo, Deus não podia melhor manifestar o seu amor por nós do que humilhando-se ao ponto de abraçar as maiores misérias e as mais profundas humilhações que os homens podem padecer sobre a terra. E Ricardo de São Vítor ajunta que, tendo o homem possuído a audácia de ofender a majestade divina, "o seu crime devia ser expiado pela extrema humilhação duma suprema grandeza". Mas, replica São Bernardo, na medida que Deus se humilhou por nós, se mostrou grande em bondade e em amor.

         Depois que um Deus se humilhou tanto por amor do homem, repugnará ainda ao homem humilhar-se por amor de Deus? Sejam os vossos sentimentos conformes aos de Jesus Cristo, nos diz o apóstolo. Não merece o nome de cristão quem não é humilde e não procura imitar nisso a Jesus Cristo, que, como observa Santo Agostinho, veio ao mundo todo revestido de humildade, precisamente a fim de abater o orgulho. O orgulho do homem, ajunta o Santo Doutor, é a doença que fez descer do céu o divino Médico, o saturou de ignomínias e o cravou na cruz. Envergonhe-se pois o homem de ser orgulhoso ao menos à vista dum Deus que tanto se humilhou para curá-lo do orgulho".

         São Pedro Damião exprime mais ou menos o mesmo pensamento nestes termos: "Nosso Senhor abaixou-se a fim de nos elevar", isto é, de nos retirar da lama dos nossos pecados, e de nos colocar com seus anjos no seu reino eterno, segundo as palavras do Salmista: Levanta do pó da terra o desvalido, e tira da imundície o pobre para o colocar com os príncipes, com os príncipes do seu povo. De sorte que, como ajunta São Hilário, humilhando-se Ele nos enobreceu. "Ó imensidade do amor dum Deus para com a humanidade! exclama Santo Agostinho; Ele vem carregar-se de opróbrios para nos fazer participantes de suas honras; vem entregar-se às dores para operar a nossa salvação; vem padecer a morte para nos reconduzir à vida!"

         Escolhendo um nascimento tão humilde, uma vida tão desprezada e uma morte tão ignominiosa, Jesus Cristo tornou nobres e amáveis os desprezos e os opróbrios. Eis por que todos os Santos neste mundo foram tão amantes e até tão ávidos das ignomínias que pareciam não saber desejar e procurar outra coisa que ser humilhados e espezinhados pelo amor de Jesus Cristo. A aparição do Verbo sobre a terra cumpriu exatamente a predição de Isaías: Nas cavernas em que antes habitavam os dragões, nascerá a verdura da cana e do junco, isto é, segundo o comentário do Cardeal Hugo, o exemplo da humildade de Jesus Cristo faria nascer o espírito de humildade lá onde até então reinaram os demônios, que são espíritos de orgulho. E de fato, assim como a cana é vazia por dentro, os humildes são vazios a seus próprios olhos; em oposição aos soberbos, que são cheios de si, eles estão persuadidos, como é verdade, que tudo o que eles têm é um dom de Deus.

         Daí podemos inferir quanto Deus ama uma alma humilde e detesta um coração soberbo. Mas é possível, exclama São Bernardo, que haja ainda orgulhosos sobre a terra depois dos exemplos dados por Jesus Cristo, e que "o vermezinho se eleve quando a majestade infinita se aniquilou?" Sim, repitamo-lo: é possível que um verme da terra manchado de pecados persista no seu orgulho depois de ver um Deus de majestade e pureza infinitas humilhar-se tão profundamente para ensinar-lhe a ser humilde!

         De resto, estejamos persuadidos que os orgulhosos não podem estar bem com Deus. Ouçamos o conselho de Santo Agostinho: "Quando vos elevais, Deus foge de vós; quando vos humilhais, Deus desce para vós". O Senhor afasta-se pois dos orgulhosos; mas, ao contrário, um coração que se humilha, embora em pecado, não deve temer ser desprezado: Não desprezareis, ó Deus, um coração contrito e humilhado, cantava o Salmista. Ele prometeu atender a quem lhe pede: Pedi e dar-se-vos-á..., pois quem pede recebe; mas protesta pela boca de São Tiago que não pode atender os soberbos: Deus resiste às preces dos orgulhosos, e não os ouve, ao passo que aos humildes dá a sua graça; não sabe negar-lhes nenhuma graça que lhe pedem. - Santa Teresa dizia que Deus lhe concedia as maiores graças quando ela mais se humilhava em sua presença.

         A oração dum coração que se humilha penetra o céu, diz o Espírito Santo, sem ter necessidade de ser lá introduzida, e não se retira sem haver recebido de Deus o que reclama.

“Afetos e Súplicas”

         Ó meu Jesus desprezado, com o vosso exemplo tornastes caros e amáveis os desprezos aos que vos amam. Contudo, pois, em vez de recebê-los com alegria, como o fizestes, eu me tenho orgulhosamente revoltado contra os que me desprezavam e cheguei a ofender vossa majestade infinita? Fui a um tempo pecador e soberbo! Ah! Senhor, compreendo: não tenho sabido aceitar as afrontas com paciência, porque não soube amar-vos: se vos amasse, tê-los-ia achado doces e agradáveis. Mas já que prometeis o perdão a quem se arrepende, detesto do fundo da alma as desordens da minha vida, que tem sido tão diferente da vossa. Mas quero emendar-me e vos prometo de sofrer doravante todos os desprezos que me forem feitos, por vosso amor, ó meu Jesus que fostes tão desprezado por amor de mim. Sei que as humilhações são minas preciosas que abris às almas para enriquecê-las de tesouros eternos.

         Ah! bem mereço eu outras humilhações e outros desprezos, eu que desprezei a vossa graça: mereço ser calcado aos pés dos demônios! Mas o vosso sangue é a minha esperança. Quero mudar de vida, não quero mais ofender-vos; doravante só quero procurar o vosso beneplácito. Mereci mais vezes ser lançado nas chamas do inferno; vós que até agora me tendes esperado e perdoado, como espero, fazei que em vez de arder naquele horrível fogo, eu arda no doce fogo do vosso santo amor. Ó meu amor, não quero mais viver sem vos amar. Ajudai-me, não permitais que eu viva na ingratidão para convosco, como o fiz no passado. De hoje em diante quero amar a vós só; quero que meu coração só a vós pertença.

         Tomai posse dele e guardai-o eternamente, de sorte que eu seja sempre vosso e que sejais sempre meu, que eu vos ame sempre e que vós sempre me ameis. Sim, ó Deus infinitamente amável, assim o espero, sempre vos amarei, e vós me amareis sempre. Creio em vós, bondade infinita; espero em vós, bondade infinita; amo-vos, bondade infinita, amo-vos e não cessareis jamais de dizer-vos: Amo-vos, amo-vos, amo-vos; e porque vos amo estou resolvido a fazer quanto possa para comprazer-vos. Disponde de mim como vos aprouver. Basta que me deis a graça de amar-vos, e fazei de mim o que quiserdes. O vosso amor é e será sempre o meu único amor, o meu único bem.

         Maria, minha esperança, Mãe do belo amor, ajudai-me a amar muito e sempre o meu Deus infinitamente amável.

CONSIDERAÇÃO 10
DO NASCIMENTO DE JESUS CRISTO. PARA A NOITE DE NATAL.

         Anuncio-vos uma grande alegria; nasceu-vos hoje um Salvador. (Lc 2,10.)

         Anuncio-vos uma grande alegria. Eis o que disse o anjo aos pastores de Belém, e eis também o que vos tenho dizer hoje, almas fiéis: Trago-vos uma nova de grande alegria. E que nova de maior alegria pode dar-se a pobres exilados, condenados à morte, do que a da vinda do Salvador, que quer não só livrá-los da morte, mas também obter a sua entrada na pátria? essa é precisamente a nova que vos trago: Nasceu-vos hoje um Salvador. Nesta noite nasceu Jesus Cristo, e nasceu por vós, a fim de vos livrar da morte eterna e de vos abrir o céu, vossa pátria, donde vos tinham banido os vossos pecados.

         Mas a fim de que o reconhecimento para com esse Redentor recém-nascido vos decida a amá-lo doravante, permiti vos ponha ante os olhos as circunstâncias desse acontecimento, dizendo-vos onde nasceu, como nasceu, e onde se acha esta noite; podereis então vir lançar-vos a seus pés e agradecer-lhe tão grande benefício e tanto amor. Mas antes peçamos a Jesus e Maria nos iluminem.

1

         Permiti que antes vos historie em poucas palavras o nascimento desse Rei do universo, que desceu do céu para a vossa salvação.

         Otávio Augusto, imperador romano, querendo conhecer as forças de seu império, mandou fazer um recenseamento geral de todos os seus súditos. Para esse fim prescreveu a todos os governadores, e entre outros a Cirino, na Judéia, obrigassem os habitantes de suas respectivas províncias a se fazerem inscrever cada um em seu lugar de origem e a pagarem ao mesmo tempo um tributo em sinal de sujeição. É o que atesta São Lucas. Publicada que foi essa ordem, José obedeceu prontamente e sem esperar o parto de sua santa Esposa, o qual estava próximo. Obedeceu logo e se pôs a caminho com Maria, que levava em seu casto seio o Verbo encarnado, para se inscrever na cidade de Belém. A viagem foi longa; pois, segundo os autores, a distância era de noventa milhas, isto é, de quatro dias; foi além disso bem penosa porque foi preciso atravessar uma região montanhosa, os caminhos eram maus, era na estação dos ventos, chuvas e frio.

         Quando um rei entra pela primeira vez numa cidade de seu reino, quantas honras não lhe prestam! quantos arcos de triunfo, quantos aparatos de todo o gênero! Preparate, pois, ó ditosa Belém! preparate para receber dignamente o teu Rei: o profeta Miquéias te anuncia que Ele vai visitarte, esse grande Rei, que é o soberano Senhor, não só da Judéia, mas do mundo inteiro. Saibas, dizte o profeta, que entre todas as cidades do universo, tu és a cidade afortunada que se escolheu para lugar de seu nascimento o Rei do céu vindo à terra para reinar não sobre a Judéia, mas sobre todos os corações dos homens na Judéia e em todos os lugares: E tu Belém Efrata, tu és pequenina entre os milhares de Judá; mas de ti é que há de sair aquele que há de reinar em Israel.

         Mas eis que chegou a Belém dois pobres peregrinos José e Maria que leva em seu seio o Salvador do mundo. Entram na cidade e apresentam-se ao oficial imperial para pagar o tributo e se inscrever na lista dos vassalos de César, lista em que amanhã será inscrito também o nome do filho de Maria, Jesus Cristo, que é o senhor de César e de todos os príncipes da terra. Mas quem os reconheceu? quem lhes foi ao encontro para honrá-los? quem os saudou? quem os acolheu? Ah! veio para o que era seu, e os seus não o receberam. Vão eles como pobres, e como tais são desprezados; tratam-nos pior do que os outros pobres, todos os repelem. Por que? porque, como diz São Lucas, enquanto lá estavam, chegou o momento em que Maria devia dar à luz. Foi naquele lugar e durante aquela noite que o Verbo encarnado quis nascer e tornar-se visível neste mundo; Maria o sabia e disso avisou seu casto esposo.

         José apressou-se a encontrar hospedagem conveniente em qualquer casa particular, a fim de não ser obrigado a conduzir a jovem Maria ao hotel, que não era lugar decente para uma jovem que ia dar à luz, tanto mais porque ele estava repleto de viajantes. Mas não achou ninguém que se dignasse ouvi-lo; mas de um, sem dúvida, o taxaram de imprudente por levar consigo sua esposa no estado em que se achava, e isso durante a noite e no meio de tão grande afluência de povo. Enfim, para não passar a noite na rua, foram constrangidos a apresentar-se na hospedaria; mas, Ah! ela estava lá invadida por uma multidão de pobres que nela se refugiaram; forçaram-nos a retirar-se dizendo que não havia lugar para eles. Havia lugar para todos, mesmo para os mais pobres, só não para Jesus Cristo!

         Essa hospedaria é a figura de tantos corações ingratos que se abrem a uma multidão de miseráveis criaturas e permanecem fechados para Deus. Quantos amam seus pais, seus amigos e até os animais e não amam a Jesus Cristo e não fazem caso de sua graça nem de seu amor! A Santíssima Virgem disse um dia a uma alma devota: "Foi por disposição particular de Deus que não houve hospedagem entre os homens nem para mim nem para meu Filho; foi a fim de que as almas amantes oferecessem um asilo a Jesus e o convidassem com ternura a habitar em seus corações".

         Prossigamos a nossa narração. Vendo-se assim repelidos de todas as partes, José e Maria saíram da cidade para procurar ao menos algum abrigo fora de seus muros. Caminham ao escuro, giram, espiam; finalmente divisam uma gruta cavada na montanha abaixo da cidade. Segundo Barradas, Beda e Brocardo, foi esse o lugar em que nasceu Jesus Cristo: era uma escavação feita no rochedo, separada da cidade, uma espécie de caverna que servia de abrigo aos animais. - Meu caro José, disse então Maria, não é preciso ir mais longe; entremos nesta gruta e fiquemos aqui.

         - Mas como? respondeu então José; minha cara esposa, não vês que a gruta é aberta, fria e úmida, que a água escorre de todos os lados? Não vês que isto é um estábulo e não habitação para homens? Como queres aqui ficar a noite inteira e aqui dar à luz o teu divino Filho? - E não obstante, é verdade, replicou Maria, que este estábulo é o palácio em que o Filho eterno de Deus resolveu nascer.

         Oh! que terão dito os anos vendo entrar a Mãe de Deus nessa gruta para lá dar à luz o Rei dos reis? Os príncipes da terra nascem em aposentos resplandecentes de ouro; preparam-lhes berços enriquecidos de pedrarias, de panos do linho mais fino, e são rodeados dos primeiros senhores do reino. Mas o Rei do céu vem ao mundo num estábulo frio e sem lume, só tem trapos pobres para se cobrir, e um miserável presépio com um pouco de palha para repousar seus membros! - Onde está a sua corte? pergunta São Bernardo; onde está o seu trono? Lá não vejo senão dois animais para lhe fazerem companhia, e a sua manjedoura para lhe servir de berço.

         - Ó gruta ditosa, que tiveste a ventura de ver nascer o verbo divino! Ó venturoso presépio, que tiveste a honra de receber o Senhor do universo! Ó palha afortunada, que serviste de leite àquele que repousa sobre as asas dos Serafins! Ah! ao considerarmos como Jesus quis nascer no meio de nós, deveríamos todos abrasar-nos de amor; ao ouvirmos os nomes: gruta, presépio, palha, leito, vagido, deveríamos, recordando-nos do nascimento de nosso Redentor, sentir os corações traspassados como de setas inflamadas. Sim, fostes felizes, ó gruta, ó presépio, ó palha! porém bem mais felizes são os corações que amam com fervor e ternura esse doce e amável Salvador, e que, inflamados de amor, o recebem na santa comunhão! Oh! com que desejo e contentamento vem Jesus repousar num coração que o ama!

2

         Apenas entrada na gruta, Maria se põe em oração; e tendo chegado a hora do nascimento do Salvador, desata os cabelos em sinal de respeito, e os derrama sobre os ombros. De repente vê uma grande luz; o seu coração exulta de gáudio celeste; abaixa os olhos, e, ó céu! que vê? vê sobre o solo uma criancinha, tão bela, tão amável, que arrebata; mas ele treme, estende as mãos para sua Mãe indicando que quer que Ela o tome em seus braços, segundo o que foi revelado a Santa Brígida. Maria chama a José dizendo: "Vem ver o Filho de Deus que acaba de nascer". José vem logo, e, vendo a Jesus pela primeira vez, adora-o derramando um rio de doces lágrimas. Em seguida a Santíssima Virgem toma com respeito seu caro Filho, conserva-o em seus braços com uma alegria misturada de terna compaixão, e põe-se a acalentá-lo, apertando-o contra o seu seio e cobrindo-o de seus beijos maternais.

         Considerai a devoção, a ternura, o amor que encheram o coração de Maria quando ela viu em seus braços, em seu regaço, o Senhor do universo, o Filho do Padre eterno, o qual quis também fazer-se filho dela, e que entre todas as mulheres a havia escolhido por Mãe. Ela o adora como seu Deus; beija-lhe os pés como a seu Rei, e as faces como a seu filho. Em seguida procura cobri-lo e enfaixá-lo; mas, Ah! como são grosseiros e rudes aqueles pobres panos! ademais são frios, são úmidos; e nessa gruta não há fogo para aquecê-los.

         Vinde, reis, imperadores; vinde todos vós, poderosos da terra! vinde homenagear o vosso supremo Senhor, que por amor de vós quis nascer tão pobre nessa caverna. - Mas não vejo ninguém apresentar-se! Não, ninguém: o Filho de Deus veio ao mundo, e o mundo não o quis conhecer.

         Mas se não vêm os homens, vêm os anjos prosternar-se aos pés de seu soberano Senhor; o Padre eterno assim o ordenou para honrar seu divino Filho: Adorem-no todos os anjos de Deus, exclama o Salmista. Eles vêm em grande número e, louvando o Senhor, cantam em transportes de alegria: Glória a Deus nas alturas, e paz na terra aos homens de boa vontade.

         Sim, glória à divina misericórdia, que quer que o Senhor, em vez de punir os homens rebeldes, tome sobre si a pena de seus pecados, e que os salve! Glória à divina sabedoria, que achou o meio de satisfazer à justiça e libertar o homem da morte por ele merecida! Glória ao poder divino, que tão admiravelmente triunfou do inferno! Suportando a pobreza, as dores, os desprezos e a morte, o Verbo eterno conquistou os corações de maneira tal que, ardendo em desejo de conhecer o seu amor, uma multidão de jovens dos dois sexos, de nobres personagens e até de príncipes, abandonou por Ele honras, riquezas e todas as coisas não excetuando a vida.

         Glória enfim ao divino amor, que moveu um Deus a fazer-se criança, pobre, humilde, a levar vida penosa e a sofrer morte cruel para mostrar aos homens o afeto que lhes tinha, e para ganhar o seu amor!

         Nesse estábulo, diz São Lourenço Justiniano, vemos a majestade divina como que aniquilada; vemos um Deus que é a sabedoria personificada levando o amor aos homens, por assim dizer, até a loucura.

3

         E agora Maria convida todos os homens, nobres e plebeus, ricos e pobres, santos e pecadores, a entrarem na gruta de Belém, a adorarem seu divino Filho e a lhe beijarem os pés. - Entrai, pois, almas cristãs, vinde ver sobre a palha o Criador do céu e da terra sob a forma duma criancinha, dum menino resplandecente de beleza e de brilhante luz. Agora que Ele nasceu na gruta e que está reclinado sobre palha, esse lugar já nada tem de repelente, mas tornou-se um paraíso. Entremos e não temamos.

         Jesus nasceu para todos, para quem o deseja. Eu sou, diz Ele nos Cânticos, eu sou a flor dos campos e o lírio dos vales. Ele se diz Lírio dos vales, para nos dar e entender que, tendo Ele nascido tão pobre, só os humildes o podem achar. Eis porque o anjo não anunciou o seu nascimento a César ou a Herodes, mas a pobres e humildes pastores. De resto, segundo o comentário do Cardeal Hugo, Ele se diz Flor dos campos, porque é acessível a todos. As flores dos jardins são reservadas seu dono; não é permitido a todos colhê-las nem mesmo vê-las; os muros que as cercam, a isso se opõem. As flores dos campos, ao contrário, são expostas à vista de todos os transeuntes, e cada um as pobre colher: assim Jesus quis estar ao alcance de todos que o desejam achar.

         Entremos; a porta está aberta e, acrescenta São João Crisóstomo, "não há guarda para dizer: Não é hora". Os reis da terra fecham-se em seus palácios, e esses palácios são rodeados de soldados; não é fácil chegar-se a eles: quem lhes quer falar tem de suportar aborrecimentos: Venha em outra ocasião, agora não há audiência. Jesus Cristo não é assim: fica naque-la gruta, e sob a forma duma criança para atrair docemente todos os que se apresentam; a gruta está aberta, sem guardas e sem portas, de sorte que cada um pode entrar à vontade e em qualquer tempo para ver esse Reimenino, falar-lhe e até abraçá-lo, se o ama e deseja.

         Entrai, pois, almas cristãs, vinde ver no presépio sobre palhas esse tenro Menino que chora. Vêde como é belo; vêde que luz irradia, que amor respira; seus olhos enviam setas de fogo aos corações que o desejam; seus vagidos são chamas para toda a alma que o ama; "o estábulo e o presépio, diz São Bernardo, vos clamam que ameis aquele que tanto vos amou". Amai um Deus que é digno de amor infinito e que desceu dos céus, se fez menino, se fez pobre, para vos mostrar seu amor e ganhar o vosso por seus sofrimentos.

         Se lhe perguntardes: Ah! Menino encantador! dizei-me, de quem sois Filho? - Ele responderá: "Minha Mãe é essa Virgem toda bela e toda pura que está perto de mim. - E quem é o vosso Pai? - Meu Pai é Deus. - E como! vós sois o Filho de Deus, e nasceis em tanta pobreza e humilhação? quem poderá jamais reconhecer-vos? que caso farão de vós? - Não, responde Jesus, a santa fé me fará conhecer pelo que sou, e me fará amar pelas almas que vim resgatar da morte e inflamar de amor. Não vim para ser temido, mas amado; e se é como criança pobre e humilde que me mostro aos vossos olhos pela primeira vez, é para que me ameis mais, vendo a que humilhação me reduziu o amor que vos tenho.

         - Mas, dizei-me, amável Menino, porque girais assim os vossos olhos ao redor de vós? que estão olhando? Ouço-vos suspirar! dizei-me: porque suspirais? Ó Deus, vejo-vos chorar! dizei-me: porque chorais? - Ah! me responde Jesus, olho ao redor de mim, para ver se encontro uma alma que me deseje.

         Suspiro, porque quisera ver ao meu lado um coração ardente de amor por mim, como eu ardo de amor por ele. Choro, sim, e eis porque choro: porque não vejo, ou vejo bem poucas almas e corações que me procuram e que me querem amar!


         Exortação para o beijamento dos pés do divino

         Menino em uso em algumas igrejas.

         Levantai-vos, almas fiéis; Jesus vos convida esta noite a virdes lhe beijar os pés. Os pastores que o foram visitar no estábulo de Belém levaram-lhe seus presentes; é preciso que lhe ofereçais também os vossos. Mas que lhe ides oferecer? Escutai-me: o mais agradável presente que possais oferecer a Jesus, é um coração arrependido e amante. Eis, pois, os sentimentos que cada um lhe deve exprimir:

“Afetos e Súplicas”

         Vendo-me manchado de tantos pecados, não teria a ousadia de aproximar-me de vós, Senhor, se me não convidásseis com tanta bondade; mas já que me chamais tão amorosamente, não quero recusar o favor que me fazeis. Não, não quero acrescentar às minhas faltas esta nova ingratidão para convosco; depois de vos haver tantas vezes voltado as costas, não quero por falta de confiança resistir a um apelo tão doce, tão gracioso. Mas sabeis que sou extremamente pobre; nada tenho para vos oferecer. Não tenho outra coisa que o meu miserável coração, que venho trazer-vos. É verdade que vos ofendi outrora, mas hoje me arrependo, e vo-lo ofereço arrependido. Sim, adorável Menino, arrependo-me de vos haver contristado. Eu o confesso, sou o bárbaro, o traidor, o ingrato, que vos causou tantas dores e vos fez derramar tantas lágrimas no estábulo de Belém; mas as vossas lágrimas são a minha esperança.

         Sou um pecador indigno de perdão; mas tenho a vós que, sendo Deus, vos fizestes menino para perdoar-me.

         Ó Pai eterno, se mereço o inferno, olhai para as lágrimas que vosso Filho inocente derrama para me obter misericórdia. Não recusais nada às preces de Jesus Cristo; atendei-o pois que implora de vós o meu perdão nesta noite, que é uma noite de alegria, uma noite de salvação, uma noite de perdão. - Ah! caro Menino, meu Jesus, espero de vós o perdão; mas não me basta o perdão dos meus pecados: nesta noite concedeis grandes graças às almas; eu também desejo uma grande graça que deveis fazer-me, a graça de vos amar. Agora que estou arrependido aos vossos pés, abrasai-me todo de vosso santo amor, e prendei-me a vós; mas prendei-me de tal forma que me não possa mais separar de vós. Amo-vos, ó meu Deus feito menino por mim, mas amo-vos pouco; quero amar-vos muito, a vós compete fazer que assim seja. Venho beijar-vos os pés e trazer-vos meu coração; eu vo-lo entrego, não o quero mais.

         Transformai-o e guardai-o para sempre. Não mo deis mais, pois se o puserdes em minhas mãos, temo que vos torne a trair.

         Santíssima Virgem Maria, vós que sois a Mãe desse divino Menino, sois também a minha Mãe: em vossas mãos deposito meu pobre coração, apresentai-o a Jesus. Se vós lho apresentardes, Ele o não rejeitará. Apresentai, pois, meu coração a Jesus, ó minha Mãe, e pedi que o aceite.

CONSIDERAÇÃO 11
DO NOME DE JESUS.

         Deram-lhe o nome de Jesus.

         O grande nome de Jesus não é de invenção humana; foi o Padre eterno que o deu a seu divino Filho, diz São Bernardino de Sena. É um nome novo e saído dos lábios do Senhor, segundo o profeta, um nome que só Deus podia dar Àquele que destinara para Salvador do mundo. É um nome a um tempo novo e eterno porque, como a redenção foi decretada desde a eternidade, assim o nome do Redentor lhe foi assinalado desde a eternidade. Entretanto na terra o nome de Jesus só foi imposto a Nosso Senhor no dia da circuncisão: Depois que se completaram os oito dias para ser circuncidado o Menino, foi-lhe dado o nome de JESUS, diz Lucas. Deus quis então recompensar a humildade de seu Filho, dando-lhe esse nome glorioso. Sim, enquanto Jesus se humilha sujeitando-se com a circuncisão a receber a marca dos pecadores, é justo que seu Pai o glorifique dando-lhe um nome que, como se exprime São Paulo, sobrepuja em dignidade e grandeza todos os outros nomes.

         E manda que esse nome seja adorado pelos anjos, pelos homens e pelos demônios, ou, para nos servirmos das expressões do mesmo Apóstolo, Deus quer que ao nome de Jesus se curve todo o joelho no céu, na terra e no inferno.

         Se todas as criaturas adoram esse grande nome, nós, pecadores, muito mais do que os outros, somos obrigados a adorá-lo, porque por nosso amor é que o Filho de Deus leva esse nome de Jesus, que significa Salvador; é para salvar os pecadores, como canta a Igreja, que Ele desceu do céu e se fez homem. Devemos adorá-lo, e ao mesmo tempo render graças a Deus por haver dado a Nosso Senhor, para o nosso bem, esse nome que nos consola, nos defende, e nos inflama; três pontos que vamos tratar neste discurso, depois de pedir a Jesus e Maria as luzes de que temos necessidade.

1

         Em primeiro lugar, o nome de Jesus nos consola; em todas as penas basta-nos dizer: Jesus! para nos sentirmos aliviados. Quando recorremos a Jesus, Ele não pode deixar de consolar-nos: Ele quer consolar-nos porque nos ama, e Ele o pode, porque não é só homem mas também Deus todopoderoso; do contrário, esse grande nome de SALVADOR não lhe convidaria em toda verdade. O nome de Jesus supõe um poder infinito e ao mesmo tempo uma sabedoria e um amor infinitos; se essas perfeições não se achassem reunidos em Jesus Cristo, Ele não poderia salvar-nos, como o disse São Bernardo. Esse Santo diz ainda, falando da circuncisão: "Ele foi circuncidado como filho de Abraão; foi chamado Jesus como Filho de Deus".

         Nosso Senhor está marcado, como homem, com o sinal dos pecadores, porque Ele se encarregou de satisfazer pelos pecadores, e desde o seu nascimento quer começar a expiar os pecados deles por seus sofrimentos e pela efusão de seu sangue; mas Ele é chamado Jesus, é chamado Salvador, como Filho de Deus, porque só a Deus compete salvar.

         O nome de Jesus é chamado pelo Espírito Santo óleo derramado. E não sem razão, observa São Bernardo: o óleo aclara, nutre e cura; assim o nome de Jesus. Em primeiro lugar é luz: aclara quando anunciado. Com efeito, pergunta o Santo, donde veio essa luz que a fé difundiu com tanta rapidez sobre a terra ao ponto de levar em pouco tempo grande número de gentios ao conhecimento e ao serviço do verdadeiro Deus? foi da pregação do nome de Jesus. É a esse nome que devemos a felicidade de sermos feitos filhos da verdadeira luz, isto é, filhos da Santa Igreja, tendo nascido no grêmio da Igreja Romana, em países cristãos e católicos: graça e sorte não concedidas à maior parte dos homens, que nascem entre os idólatras, maometanos ou hereges. - Além disso o nome de Jesus é um nutrimento que fortifica nossas almas, cada vez que nele pensa-mos.

         Enche de paz e consolação os fiéis, mesmo no meio das misérias e das perseguições que têm de sofrer sobre a terra.

         Sustentados pela virtude do nome de Jesus, os apóstolos exultavam de alegria no meio dos maus tratos e dos opróbrios: Eles saiam da presença do conselho, contentes por terem sido achados dignos de sofrer afrontas pelo nome de Jesus. - É, pois, uma luz e um nutrimento, e é também um remédio para os que o invocam. Demos a palavra a São Bernardo: "Se uma alma está aflita ou atribulada, pronuncie o nome de Jesus; e logo a tempestade fugirá e voltará a paz". Se alguém tem a desgraça de cair no pecado e desespera do perdão, invoque esse nome de vida que logo sentirá a confiança do perdão; esse nome de Jesus o Pai eterno lho deu como Salvador precisamente para obter o perdão aos pecadores.

         Se Judas, tentado de desespero, tivesse invocado o nome de Jesus, não teria sucumbido, afirma Eutímio. Ele acrescenta que um pecador, seja ele qual for, não cairá jamais no abismo do desespero, contanto que invoque esse santo nome que é nome de esperança e salvação.

         Infelizmente os pecadores deixam de recorrer a esse remédio salutar, porque não querem sarar de suas enfermidades. Jesus Cristo está pronto a curar todas as nossas chagas; mas se alguém gosta de suas chagas e não deseja a cura, como poderá Jesus curá-lo? - A venerável Irmã Maria Crucifixa viu um dia Nosso Senhor como num hospital; as mãos cheias de remédios, ia dum doente a outro; mas em vez de lhe testemunharem reconhecimento e de chamarem-no, esses infelizes o repeliam. Assim fazem muitos pecadores: depois de se envenenarem voluntariamente pelo pecado, recusam a saúde, isto é, a graça que Jesus lhe oferece; ficam pois na sua miséria e se perdem.

         Ao contrário, que temor pode ter um pecador que recorre a Jesus, pois que Jesus mesmo se oferece para obter de seu Pai o perdão aos culpados havendo já com a sua morte pago a pena que eles mereceram? "O ofendido fez-se nosso intercessor, diz São Lourenço Justiniano; e Ele mesmo pagou o que lhe devíamos". Alhures ele acrescenta: "Quando pois vos sentirdes acabrunhados pela enfermidade, atormentados pela dor, agitados pelo temor, chamai Jesus em vosso auxílio, e Ele vos consolará". Aliás basta que peçamos a seu Pai em seu nome, para obtermos tudo quanto lhe pedirmos: essa promessa, repetida muitas vezes pelo próprio Jesus Cristo, não pode deixar de ser cumprida: Tudo o que pedirdes a meu Pai em meu nome, Ele vo-lo dará. - Tudo o que pedirdes ao Pai em meu nome, eu o farei.

2

         Dissemos, em segundo lugar, que o nome de Jesus nos defende. Sim, nos protege contra as emboscadas e ataques de nossos inimigos. O Messias foi por Isaías chamado o Forte: Fortis; e o Sábio disse que o seu nome é uma torre fortíssima. Com isso nos dá a entender que quem se põe sob a proteção desse nome poderoso nada tem a temer dos assaltos do inferno.

         Jesus Cristo, diz São Paulo, humilhou-se por obediência a seu Pai, ao ponto de morrer na cruz; eis por que Deus o exaltou. "Com outras palavras, observa Santo Anselmo, Nosso Senhor humilhou-se de tal forma, que não podia humilhar-se mais; e por isso o seu divino Pai, pelo mérito dessa humildade e obediência do Filho, o exaltou o mais que pôde". E de fato, diz o apóstolo, o Padre eterno deu a seu Filho divino um nome acima de todo outro nome, um nome tão glorioso e poderoso, que é venerado pelo céu, porque nos pode obter todas as graças; nome poderoso na terra, porque pode salvar a todos os que o invocam devotamente; nome poderoso no inferno, porque espanta todos os demônios.

         Esse nome sagrado faz tremer os anjos rebeldes, porque, ao ouvi-lo, se lembram do Forte por excelência, que destruiu o império que exerciam violentamente sobre os homens. "Eles tremem, diz São Pedro Crisólogo, porque são forçados a adorar esse nome toda a majestade de Deus".

         Aliás nosso Salvador declarou que seus discípulos expulsariam os demônios em virtude de seu nome. E de fato, a Santa Igreja, em seus exorcismos, sempre se serve desse nome para expelir esses espíritos infernais dos possessos. E os sacerdotes que assistem aos moribundos, se servem do nome de Jesus para libertar os enfermos dos mais terríveis assaltos que o inferno faz naqueles momentos da morte.

         Leia-se a vida de São Bernardino de Sena, e lá se verá quantos pecadores ele converteu, quantos abusos fez desaparecer, quantas cidades santificou, pregando aos povos a devoção ao nome de Jesus. Segundo a palavra de São Pedro, o santo nome de Jesus é o único do qual, pela vontade divina, podemos esperar a salvação. Jesus Cristo não nos salvou apenas uma vez; Ele nos salva continuamente por seus méritos, livrando-nos do perigo de pecar todas as vezes que o invocamos com confiança; assim cumpre a promessa: Tudo o que pedirdes ao Pai em meu nome, eu o farei. Daí a animadora palavra de São Paulo que quem invocar o nome do Senhor, será salvo.

         Repito, pois, com São Lourenço Justiniano: Em todas as vossas tentações, venham elas dos demônios ou dos homens que vos excitam ao pecado, chamai a Jesus em vosso auxílio, e triunfareis; e se as tentações continuarem a perseguir-vos, continuai a invocar Jesus, e não sucumbireis jamais. É um fato de experiência: as almas fiéis a essa santa prática permanecem firmes no combate e conquistam infalivelmente a vitória.

         Ao nome de Jesus usamos sempre o de MARIA, que é igualmente terrível no inferno, e nada teremos a temer. "Jesus! Maria!" haverá oração mais curta, mais fácil de reter? ela não é menos poderosa para repelir todos os ataques dos inimigos da nossa salvação. Assim fala Tomás a Kempis.

3

         O nome de Jesus nos consola, pois, nas penas e nos preserva de todo o mal; além disso inflama de santo amor a todos os que pronunciam com devoção. O nome de Jesus, ou de Salvador, é um nome que por si mesmo exprime o amor, porque nos lembra, observa São Bernardino de Sena, tudo o que o Filho de Deus fez e sofreu para operar a nossa salvação. Daí a tocante exclamação dum piedoso autor: "Ó meu Jesus, quanto vos custou o serdes Jesus, isto é, meu Salvador!"

         São Mateus narra, falando da crucifixão de Nosso Senhor, que lhe puseram sobre a cabeça a inscrição: Aqui está Jesus, o Rei dos Judeus. O Padre eterno, pois, quis que na cruz em que morreu nosso Redentor, se lesse o nome de Jesus, isto é, de Salvador do mundo. Por essa inscrição Pilatos não pretendia declarar Jesus Cristo culpado por se arrogar o título de rei, como o acusavam os judeus, pois não se incomodou com a acusação, reconheceu a inocência dele e protestou não querer ter a parte na sua morte: Eu sou inocente do sangue deste justo. Por que então lhe dá o título de rei? Porque essa foi a vontade de Deus que nos quis com isso dizer: Ó homens, sabeis porque morre este inocente que é o meu Filho? morre porque é o vosso Salvador; morre, esse divino Pastor, e morre no madeiro infame para salvar a vós suas ovelhas.

         Eis uma razão a mais por que nos Cânticos o nome do Senhor é chamado óleo derramado; esse nome, diz São Bernardo, significa "a efusão da divindade". Na obra da nossa redenção Deus levou o seu amor por nós até dar-se e comunicar-se a nós sem reserva: Ele nos amou e entregou-se por nós. Para poder comunicar-se a nós, tomou sobre si, diz Isaías, as penas que tínhamos de sofrer. Pelo quirógrafo que foi afixado à cruz quis Ele, diz São Cirilo de Alexandria, apagar a sentença de morte lavrada contra nós pecadores. É precisamente isso que nos ensina o apóstolo com as palavras: Cancelou o quirógrafo do decreto que nos era desfavorável, que era contra nós, e o aboliu inteiramente encravando-o na cruz. Em fim nosso amoroso Redentor quis subtrair-nos à maldição que mereceramos, e por isso atirou sobre sua cabeça as maldições divinas, carregando-se de todos os nossos pecados: Cristo remiu-nos da maldição da lei, feito ele mesmo maldição por nós.

         Assim, quando uma alma fiel pronuncia o nome de Jesus e se recorda do que o Senhor fez para salvá-la, é impossível que não sinta o seu coração inflamar-se por Aquele que a amou tanto. "Quando dizemos 'Jesus', afirma São Bernardo, devemos figurar-nos um homem manso, afável, compassivo, cheio de todas as virtudes; devemos ainda pensar que Ele é o nosso Deus e que, para curar-nos de nossas chagas, quis ser desprezado e maltratado até morrer de pura dor na cruz". - "Seja-nos caro, ó cristão, exorta Santo Anselmo, o belo nome de Jesus; Jesus esteja sempre em vosso coração; seja o único alimento de vossa alma e a vossa única consolação". Ah! replica São Bernardo, só quem experimentou pode compreender a doçura, as celestes delícias que se sentem, mesmo neste vale de lágrimas, quando se ama ternamente a Jesus.

         Expertus potest credere

         Quid sit Jesum diligere.

         Isso souberam por experiência tantas almas piedosas: uma Santa Rosa de Lima, que ao comungar tinha o coração de tal forma abrasado do amor divino, que seu hálito queimava a mão que lhe dava água a beber, segundo o costume, após a comunhão; uma Santa Maria Madalena de Pazzi que, empenhando o crucifixo, andava toda inflamada gritando: "Ó Deus de amor! ó Deus de amor! direi mesmo, louco de amor!" - um São Filipe Néri, cujo peito teve de ser alargado para dar espaço às palpitações de seu coração abrasado; - um São Estanislau Kostka, ao qual era às vezes preciso banhar o peito em água fria para temperar o ardor de que se consumia por Jesus; - um São Francisco Xavier que, pelo mesmo motivo, se descobria o peito dizendo: "Basta, Senhor, basta"; declarando com isso que já não podia suportar a chama que ardia em seu coração.

         Procuramos pois também nós ter, quanto possível, o amor de Jesus em nosso coração e o seu santo nome nos nossos lábios. O Apóstolo ensina que não podemos pronunciar com devoção o nome de Jesus a não ser pela graça do Espírito Santo. Assim o Espírito Santo comunica-se a todos os que pronunciam devotamente o nome de Jesus.

         Para alguns o nome de Jesus é um nome estranho; por que? porque não amam a Jesus Cristo. Os Santos tiveram sempre nos lábios esse nome de salvação e de amor. Nas epístolas de São Paulo quase não se encontra uma página em que não se leia mais vezes o nome de Jesus. São João também o repete freqüentemente. Um dia, o bem-aventurado Henrique Suso, querendo imprimir-se mais fortemente no coração o amor de seu divino Mestre, tomou um ferro afiado e gravou-se no peito o nome de Jesus; depois exclamou banhado em sangue: "Senhor, quisera gravar-vos no fundo do meu coração, mas não posso; vós que tudo podeis, gravai vosso nome adorável no meu coração, de maneira que dele não possa desaparecer nem o vosso nome nem o vosso amor". Santa Joana de Chantal chegou a imprimir o nome de Jesus em seu coração por meio dum ferro em brasa.

         De nós Jesus não pede tanto; contenta-se que o conservemos em nosso coração com um afeto sincero e que o invoquemos muitas vezes com amor. E já que tudo quanto Ele fez e disse durante sua vida, Ele fez e disse por nosso amor, é justo que façamos todas as nossas ações em nome e por amor de Jesus Cristo; São Paulo a isso nos exorta: Tudo o que fizerdes, em palavras ou por obra, fazei tudo em nome do Senhor Jesus Cristo. E já que Jesus Cristo morreu por nós, devemos estar prontos a morrer pelo nome de Jesus, como o apóstolo que dizia: Estou pronto a sofrer não só as cadeias, mas também a morte pelo nome do Senhor Jesus.

         Concluamos este discurso. Se, pois, estivermos aflitos, invoquemos a Jesus, e Ele nos dará a força de resistir a todos os nossos inimigos; se enfim estamos áridos e frios no amor divino, invoquemos a Jesus, e Ele nos inflamará. Felizes as almas que tiverem sempre nos lábios esse nome tão santo e amável, nome de paz, nome de esperança, nome de salvação, nome de amor! Mas que felicidade, sobretudo a de morrer, pronunciando o nome de Jesus! Se desejamos exalar o derradeiro suspiro com esse doce nome nos lábios, devemos habituar-nos a repeti-lo muitas vezes durante a vida, e sempre com amor e confiança.

         Ao nome de Jesus unamos sempre o belo nome de Maria, que é também um nome vindo do céu, um nome poderoso, que faz tremer o inferno, e ao mesmo tempo um nome cheio de doçura, pois que nos recorda essa augusta Rainha que é a um tempo a Mãe de Deus e a nossa, Mãe de misericórdia, Mãe de amor.

“Afetos e Súplicas”

         Ó Jesus, já que sois o meu Salvador, que destes o vosso sangue e a vossa via para resgatar-me, gravai, peço-vos, o vosso nome adorável em meu pobre coração, a fim que, tendo-o sempre impresso no coração pelo amor, eu o tenha também sempre nos lábios invocando-o em todas as minhas necessidades. Se o demônio me tentar, o vosso nome me dará força de resistir-lhe. Se a confiança me abandonar, o vosso nome me reanimará a esperança. Se estiver aflito, o vosso nome me fortalecerá, recordando-me o muito que sofrestes por mim. Se estiver frio no vosso amor, o vosso nome me inflamará, recordando-me o muito que sofrestes por mim. Se estiver frio no vosso amor, o vosso nome me inflamará, recordando-me o amor que me testemunhastes. No passado caí muitas vezes no pecado, porque vos não invoquei; para o futuro o vosso nome será a minha defesa, o meu refúgio, a minha esperança, o meu único consolo e o meu único amor.

         Assim espero viver, assim espero morrer, tendo sempre nos lábios o vosso santo nome.

         Virgem Santíssima, obtende-me a graça de invocar sempre em minhas necessidades o nome de vosso divino Filho, Jesus, e o vosso, minha Mãe Maria; mas fazei que os invoque sempre com confiança e amor, dizendo-vos com o devoto Afonso Rodrigues: "Ó meu dileto Jesus, ó minha querida Rainha, Maria, concedei-me a graça de sofrer e de morrer por vosso amor: já não quero ser meu, mas vosso e todo vosso, vosso na vida e vosso na morte, em que, com o vosso socorro, espero entregar a minha alma repetindo: Jesus e Maria, ajudai-me; Jesus e Maria, recomendo-me a vós; Jesus e Maria, eu vos amo, confio em vós, eu vos dou toda a minha alma.