MARIA SANTÍSSIMA
Como a Igreja ensina Padre Émile Neubert Marianista,
Doutor em Teologia
PREFÁCIO
No meu prefácio à primeira
edição deste livro, transcrevi um texto do Pequeno Tratado do Conhecimento de Maria,
que o Pe. Guillaume Joseph Chaminade -- grande servo de Maria no século 19, cujo
processo de canonização caminha auspiciosamente em Roma -- publicou próximo do fim
de sua vida. Ele se inicia com estas palavras que bem o caracterizam: "Todos
os dias falamos de Maria, reunimo-nos diante dos seus altares, alegramo-nos por
sermos seus filhos e por participarmos de associações mais especialmente dedicadas
ao seu culto. Porém, na ordem da fé, mal a conhecemos e mal nos damos conta de tudo
o que Ela representa para Deus e para nós. A muitos desses cristãos a augusta Virgem
poderia lançar a censura que Deus fez ao seu povo pela boca de Isaías: 'Nem os bois
me reconheceram nem o meu povo me compreendeu'".
G.J,
Chaminade, fundador da Sociedade de Maria Marianistas -- e das Filhas de Maria Imaculada,
no Petit Traité de la Connaissance de Marie -- Téqui, Paris, 1927.
Alguns anos antes, o Pe.
Chaminade prenunciara aos seus discípulos, e mesmo em carta ao Papa Gregório XVI,
[16/09/1838] que a próxima era da humanidade seria a do triunfo de Maria, o qual
traria consigo o triunfo de Cristo e de sua Igreja. Presenciamos agora a realização
dessa profecia, ou ao menos seu início, pois o século atual se glorifica, a justo
título, de ser por excelência o século de Maria. (São conhecidas as previsões análogas
de São Luís Grignion de Montfort no seu Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima
Virgem. Mas as do Pe. Chaminade são independentes das de São Luís, cujos originais
do seu Tratado só foram descobertos em data posterior.)
No entanto, será que o
lamento do Pe. Chaminade sobre o conhecimento de Maria deixou de ter fundamento
em nossos dias? Terá o conhecimento de Maria progredido bastante entre aqueles mesmos
que "falam de Maria todos os dias e se reúnem diante dos seus altares"?
Ninguém ousaria afirmá-lo. Ainda recentemente, o Pe. Doncœur escreveu: "Esta
geração, alimentada pelo dogma e pela Eucaristia, fará grandes coisas, mas ainda
lhe resta descobrir a Santíssima Virgem". Sem dúvida, o estudo dos teólogos
sobre a doutrina relativa à Virgem avançou muito, especialmente após 1854. Do ponto
de vista mariano, se a nossa época apresenta alguma vantagem sobre a maravilhosa
época marial que foi a Idade Média, isso se prende ao seu caráter doutrinário.
Quaisquer que tenham sido
os espetáculos de devoção a Maria, contemplados por nossos antepassados naqueles
séculos de fé, não lhes terá sido possível ver, como nós vemos, tantos teólogos
ocupados em estudar as prerrogativas da Mãe de Deus, além de congressos nacionais
e internacionais reunidos para pôr em relevo suas grandezas e sistematizar seu culto.
O próprio Magistério Supremo -- sem ser a isso forçado pelos ataques heréticos,
mas movido por pura devoção -- define ou se prepara a fim de definir muitos dos
seus gloriosos privilégios.
Examinando as coisas de
perto, no entanto, somos obrigados a reconhecer que o avanço doutrinário só se afirmou
entre os teólogos. Não é necessário proceder a uma pesquisa minuciosa para constatar
a ignorância da grande maioria dos fiéis a respeito da Mãe de Deus, mesmo daqueles
que se consideram instruídos, mas cuja bagagem mariológica se resumiria a algumas
linhas contendo a enumeração dos principais privilégios e a afirmação do seu poder
e bondade.
É fácil prever que, se
a devoção a Maria se baseia menos no dogma do que no sentimento, será tão instável
como o sentimento. Pode manifestar-se muito terna ou entusiasta em certos momentos,
mas quase desaparece ou apenas subsiste com eficácia limitada em outros, nos quais
ela sobretudo é necessária: nas tentações da idade crítica e na época das aspirações
viris ao apostolado. De uma doutrina rudimentar, não pode brotar mais que uma devoção
amesquinhada. Até essa devoção amesquinhada pode, em certas ocasiões, produzir resultados
surpreendentes, que no entanto representam apenas uma ínfima parte do que obteriam
os que são dotados de sólida devoção à Virgem. Quem conhece de perto certas almas
mariais, encanta-se com as maravilhas de santidade e fecundidade apostólica que
nelas opera a união com a Mãe de Jesus. São essas as almas que "descobriram
a Santa Virgem". Para a maioria, esse descobrimento ainda não se fez.
Como explicar tal ignorância
numa época tão fértil em escritos sobre a Virgem? Dentre as múltiplas causas, por
mais paradoxal que pareça, uma das principais é que são raros os livros próprios
a dar sobre Maria um conhecimento exato e sólido.
Os sábios estudos publicados
sobre a Virgem nesses últimos oitenta anos interessam apenas aos teólogos de profissão.
Os leigos, e mesmo a maioria dos sacerdotes e religiosos, não dispõem de tempo nem
da formação necessária para neles se aprofundarem. Para estes, grande número de
livros de devoção foram impressos, a maioria dos quais com o propósito de edificar,
mais do que instruir. Partem da suposição de que as bases doutrinárias são conhecidas,
e tiram consequências de princípios estabelecidos tomando-os como conhecidos.
Seriam necessários outros
livros contendo um ensinamento sério e metódico sobre o conjunto das questões relativas
à Mãe de Deus. Livros que façam uma ponte entre os tratados profundos e as obras
de devoção, que sejam bastante simples para estarem ao alcance de todos os que desejam
instruir-se bem sobre sua devoção a Maria, mas suficientemente substanciais para
assentar em bases sólidas essa piedade.
Muitos tratados têm se
dedicado a este problema nesses últimos vinte anos, mas resta ainda muito a fazer.
Diversidades de espírito, diferenças de formação intelectual e religiosa, de tendências
e costumes, de gostos e propensões, exigem uma diversidade correspondente no modo
de apresentar a doutrina mariana. Se essa doutrina deve exercer uma ação possante
sobre a Igreja inteira, como parecem indicar os sinais da Providência, é necessário
que ela esteja ao alcance das diversas classes de fieis que compõem a Igreja de
Cristo.
Este livro tem o objetivo
de contribuir para essa difusão do conhecimento de Maria. Foi redigido tendo em
vista os sacerdotes que, por diversas causas, não podem se dedicar ao estudo das
obras especializadas; as religiosas e religiosos,
sobretudo os que se dedicam ao apostolado da educação; os leigos piedosos, a cada dia mais numerosos,
que desejam compreender melhor para poderem viver melhor. Tem em vista também essa
juventude apostólica, ardente e generosa -- sobretudo a das nossas revitalizadas
congregações marianas -- que constitui a esperança da Igreja e da sociedade. Essa
juventude sabe que, para sua ação ser eficaz, deve impregnar-se da vida de Cristo,
mas sabe também que só se conseguirá compreender bem a Cristo por meio de sua Mãe.
Fará grandes coisas, quando tiver entendido a Santíssima Virgem. (Para essa mesma
categoria de leitores, escrevi os livros Vie de Marie e La dévotion à Marie.
No livro Notre Mère, pour
la mieux connaître, desenvolvi de modo acessível aos fieis comuns três assuntos:
Vida de Maria; grandezas de Maria; devoção a Maria. Uma edição mais simples, Votre
Maman du ciel, é destinada às crianças.)
O que afirmei na primeira
edição, sobre a ignorância dos leigos quanto à doutrina mariana, deixou de ser totalmente
exato. Durante uma década, em muitos ambientes começou-se a sentir necessidade de
conhecer melhor a Mãe de Jesus, pois que se passou a compreender, pelo menos a pressentir,
que a verdadeira devoção a Maria é algo bem diferente de um assunto sentimental
ou de piedade pessoal, e que ela tem importante papel a desempenhar também no apostolado.
Nas associações marianas cujos nomes se multiplicam, como também nos diversos centros
de ação católica especializada e ainda outros, têm-se estudado com crescente ardor
as grandezas da Mãe de Deus e a função da devoção a Ela na vida de um discípulo
de Cristo, sobretudo de um apóstolo de Cristo.
A rápida difusão da Legião
de Maria na França, com sua preocupação de imprimir na base de sua ação apostólica
uma marcante devoção a Maria com fundamento doutrinário, parece contribuir poderosamente
para difundir em número crescente de fieis o desejo de se dedicar a um estudo sério
da doutrina mariana. Trata-se aí apenas de um começo, pois grande parcela de católicos
precisa ainda descobrir Maria.
Esta segunda edição foi
reformulada. Os capítulos foram reagrupados, de modo a fazer compreender melhor
o "mistério de Maria". As grandezas da Virgem foram divididas em dois
grupos:
1º. Funções sociais;
2º. Prerrogativas. Os capítulos
do primeiro grupo foram retrabalhados e completados. Um capítulo novo foi acrescentado
sobre "A missão apostólica de Maria".
Espero que, assim redistribuído
e ampliado, este livro servirá melhor ainda a tornar conhecida e amada aquela que,
desde toda a eternidade, foi predestinada a dar Cristo ao mundo e o mundo a Cristo.
Friburgo, 1º de maio de 1945.
INTRODUÇÃO
Algumas palavras introdutórias
são necessárias para a melhor compreensão do método de exposição usado neste livro.
Sobre as diversas grandezas
de Maria, examinaremos seu significado, seu caráter de verdade revelada, sua importância
e suas harmonias. O sentido da primeira e das duas últimas abordagens não exigirá
longas explanações, porém insistiremos mais na segunda, ou seja, no seu caráter
de verdade revelada. O significado exato de cada uma das grandezas de Maria precisa
ser bem estabelecido, tendo em vista sobretudo que certos fieis têm sobre isso noções
obscuras ou incompletas, por vezes até inteiramente falsas.
As verdades religiosas,
em particular as verdades mariais, não são especulações estéreis, e sim "espírito
e vida", por isso nos empenhamos em indicar a importância especial de cada
uma das grandezas da Mãe de Deus. Não somente do ponto de vista teórico, mas sobretudo
em função da vida sobrenatural e da atitude prática que elas exigem em relação a
Maria.
Haverá também oportunidade
para mencionarmos as "harmonias" entre cada uma das grandezas de Maria
e suas outras grandezas, ou ainda com outras verdades sobrenaturais. Com efeito,
Deus "fez tudo com ordem e medida", e tornou Maria a mais harmoniosa de
todas as criaturas. Tudo se contém e se aceita na sua pessoa, nas suas funções e
prerrogativas. Para bem compreender, bem admirar, e sobretudo bem viver qualquer
desses atributos, é necessário contemplá-lo não só em si mesmo, mas também nas suas
relações com os outros, e mesmo com o conjunto da Revelação.
A propósito do caráter
de verdades reveladas que atribuímos às diversas grandezas de Maria, nós o encaramos
como doutrinas de fé, sustentando evidentemente que elas nos vêm da Revelação. Como
elas chegaram até nós? Muitas delas estão contidas claramente na Sagrada Escritura.
Em termos explícitos, como a sua virgindade, ou em termos equivalentes, como a sua
maternidade divina. Porém outras, talvez a maioria, não se discernem numa primeira
análise do texto sagrado, mas um exame atento descortina neles certas afirmações
que sustentam relações mais próximas ou menos com alguma prerrogativa marial.
Por um processo às vezes
rápido, outras vezes muito longo, a partir de algumas indicações obscuras os fieis
chegaram à visão clara de verdades professadas atualmente. Não se trata aqui de
um processo de lógica abstrata, mas de lógica vital, ao mesmo tempo natural e sobrenatural.
Assemelha-se em parte ao processo pelo qual chegamos pouco a pouco à convicção de
que tal palavra, pronunciada por tal pessoa, não deve ser entendida no seu sentido
óbvio, e sim no sentido hiperbólico, metafórico ou irônico, adquirindo tal significado.
Para distinguir qual destes se aplica, de nada adianta montar silogismos com base
no sentido próprio das palavras. O que se deve fazer é procurar conhecer o modo
geral de pensar e de sentir do autor, as afirmações que sustentou em outras ocasiões
a respeito da mesma ideia, as circunstâncias especiais em que ele as pronunciou,
etc.
Obtém-se assim certo número
de indicações convergentes que possibilitarão definir, por vezes em grau de certeza,
o sentido exato que se deve dar a tal palavra. Algumas dessas indicações podem não
resultar em certeza, mas se no seu conjunto elas orientam o espírito no mesmo sentido,
isso exclui a dúvida. Também no domínio da fé, talvez não se alcance uma conclusão
válida a partir de um silogismo alicerçado em um texto isolado da Escritura. Porém,
quando um conjunto de afirmações escriturais converge para uma mesma doutrina, conduz
a uma certeza, ou pelo menos a uma forte probabilidade.
Outro fator psicológico
contribui na compreensão das verdades reveladas. Sendo elas "espírito e vida",
quanto mais vivemos uma verdade de ordem moral, sobretudo de ordem espiritual, melhor
a compreendemos; e só a compreendemos de
fato se a vivemos. Foi o que Nosso Senhor ensinou aos fariseus, quando lhes disse:
"Se alguém quer fazer a vontade de meu Pai, saberá se minha doutrina é de Deus
ou se falo por mim mesmo". É por isso que almas simples, mas entregues completamente
à vontade de Deus, compreendem melhor as verdades reveladas do que certos teólogos
que discorrem doutamente sobre elas. À medida que almas amorosas se dedicaram a
viver os ensinamentos que a Tradição lhes apresenta sobre a Virgem Maria, fizeram
avançar o entendimento do dogma marial.
Por vezes surgem pessoas
que, mais confiantes nas suas luzes pessoais do que na doutrina tradicional, se
põem a contradizer o que em torno delas outros acreditam. Suas negações provocam
escândalo, indignação e discussões. Mas até isso contribui para o progresso da verdade
revelada, pois tais ataques levam os fieis a estudar melhor os dados da Escritura
e a viver melhor a doutrina que está sendo combatida.
Paralelamente a esses dois
fatores de entendimento progressivo da verdade revelada, atua outro de ordem sobrenatural,
que é a assistência infalível prometida por Nosso Senhor a seus discípulos antes
de os deixar: "Eis que estarei convosco em todos os tempos, até o fim do mundo".
Por seu Espírito, Ele orienta sempre a Igreja, seu corpo místico. O que a Igreja
faz, é Cristo que o faz por meio dela. Ele é quem preside a vida da Igreja, que
a faz conscientizar-se com nitidez cada vez maior da verdade que em vida lhe confiou.
Depois da Santa Ceia, Ele disse aos seus discípulos: "Tenho ainda muitas coisas
a voz dizer, mas ainda não podeis compreendê-las. Quando vier, o Espírito de verdade
vos guiará para a verdade completa, pois
tomará do que é meu e vo-lo fará conhecer". É portanto sob a ação do Espírito
Santo que a Igreja consegue compreender cada vez mais claramente a verdade pregada
pelo Mestre.
E também por isso o desenvolvimento
do dogma é preservado de toda possibilidade de erro.
As indicações convergentes
de que falamos, e a fidelidade em viver uma doutrina, podem conduzir a uma quase
certeza, mas não excluem todas as hesitações. Certeza absoluta só é possível com
a assistência constante do Espírito Santo.
Em que momento do desenvolvimento
de uma doutrina pode-se afirmar sua certeza? A resposta é instintiva: "Quando
o Papa ou o Concílio a define". Com efeito, a definição solene pelo Papa quando
fala como doutor universal, excathedra, ou pelo Concílio com a aprovação do Papa,
põe fim a toda discussão e constitui o critério mais explícito da certeza de uma
doutrina. A essas definições, devem-se acrescentar as afirmações contidas nos símbolos
de fé universais.
Entretanto, não se deveria
acreditar que as verdades assim definidas sejam as únicas que nos são apresentadas
com a garantia de absoluta certeza. A autoridade dos concílios e a questão da infalibilidade
pontifical adquiriram importância excepcional sobretudo depois do século 16, levando
certos fieis, até mesmo certos teólogos, a perder a verdadeira noção da extensão
que tem a autoridade doutrinária da Igreja. Parecem acreditar que, se durante muito
tempo uma opinião não foi definida por um Papa ou por um Concílio, torna-se duvidosa,
ficando-se livre para aceitá-la ou rejeitá-la. Essa é uma atitude expressamente
condenada pelo Syllabus, contrária ao ensinamento
da Igreja definido pelo Primeiro Concílio do Vaticano. (Proposição condenada: A
obrigação estrita que vincula os mestres e escritores católicos se restringe às
afirmações propostas à crença de todos como dogmas de fé, por um julgamento infalível
da Igreja.
Devem ser aceitas como
de fé divina e católica todas as verdades contidas na palavra de Deus, escrita ou
transmitida pela Tradição, e que a Igreja, seja por uma decisão solene, seja por
seu ensinamento ordinário e universal, propõe à nossa crença como divinamente revelada.)
O Primeiro Concílio do
Vaticano distinguiu um duplo ensinamento da Igreja:
1º. Ensinamento estabelecido
por definições solenes;
2º. Ensinamento do magistério
ordinário. Denominando este último ordinário, o Concílio entende tratar-se do ensinamento
que mais habitualmente nos deve guiar, e que a Igreja disponibiliza para seus filhos
em condições normais. Está contido principalmente:
1ª nos escritos da Santa
Sé destinados à Igreja universal; embora
não contendo definições expressas, pretendem expor a doutrina tradicional da Igreja
sobre algum ponto de doutrina;
2ª nas instruções dos bispos
aos seus diocesanos -- catecismos, cartas pastorais -- aceitos como a expressão
do ensinamento comum da Igreja;
3ª nas orações litúrgicas
universais, às quais se aplica o adágio Lex orandi, lex credendi. (O que se reza
é o que se crê) Evidentemente a Igreja não colocaria na boca dos seus filhos fórmulas
de orações litúrgicas contrárias à fé. Segundo o Primeiro Concílio do Vaticano,
portanto, as verdades que nos são propostas pelo ensinamento ordinário da Igreja
se impõem à nossa adesão tanto quanto as que foram definidas por uma decisão solene
do Papa ou por um Concílio. O cristão que recusa as segundas com obstinação é tão
herege como se recusasse as primeiras. (Denzinger-Bannwart, 2200.
Depois do Batismo, se uma
pessoa admitida como cristã nega ou põe em dúvida obstinadamente qualquer verdade
que é obrigada a aceitar como de fé divina e católica, essa pessoa é herege.)
Tem sido este, aliás, o
ensinamento constante da Igreja. Santo Irineu e outros escritores eclesiásticos
dos três primeiros séculos fornecem longas listas de heresias que a Igreja de seu
tempo rejeitou. Até o Concílio de Nicéia, em 325, nenhum Concílio ecumênico e nenhum
Papa em definição excathedra intervieram para condenar tais novidades. Porém, como
elas eram contrárias aos ensinamentos tradicionais, isso bastava aos bispos para
fazê-las rejeitar pelos fiéis. Por outro lado, todos os filhos da Igreja professavam
a presença real de Jesus na Eucaristia, a virtude especial dos sacramentos, o valor
das indulgências, a existência do purgatório, etc. Não se tratava de opiniões mais
ou menos prováveis, e sim de verdades admitidas como absolutamente certas desde
muitos séculos antes da condenação dos erros de Lutero pelo Concílio de Trento.
Sem dúvida, nem sempre
é fácil determinar se uma proposição pertence ao ensinamento ordinário da Igreja
tanto quanto outra que foi objeto de decisão solene. Em caso de dúvida, o assentimento
não se impõe, mas a História mostra que a grande maioria dos fiéis jamais teve longas
hesitações a propósito das diversas afirmações religiosas, e para quem procura com
simplicidade conhecer e viver o pensamento da Igreja elas são fáceis de estabelecer.
Quem não queira admitir
como absolutamente indiscutível, por exemplo, a virgindade de Maria, sua maternidade
divina e sua Imaculada Conceição, e que trate como puras opiniões livres as afirmações
relativas aos seus outros privilégios, estará se arriscando a cometer falta não
só quanto à sua piedade em relação a Maria, mas também quanto à sua própria fé.
Dentre esses privilégios, alguns são reconhecidos como parte do ensinamento ordinário
da Igreja, e exigem de nosso espírito assentimento tão firme quanto em relação àquelas
três grandes prerrogativas.
Ao lado desses dois critérios,
que se apoiam sobre a autoridade da Igreja docente, há um terceiro que consiste
na atitude geral dos fieis (Igreja dicente) em relação a alguma afirmação. Essa
atitude é uma manifestação do ensinamento da Igreja, pois a generalidade dos fieis
não professaria tal ponto de doutrina se não o tivesse aprendido dos seus pastores.
O valor dessa atitude dos
fieis resulta ainda de outro fator que já mencionamos: a presença constante do Espírito
Santo na Igreja, para preservá-la de todo erro. Jesus prometeu permanecer com ela
até o fim dos tempos, e não pode permitir que o conjunto dos fieis se engane sobre
um ponto de fé. Assim sendo, aquilo que é convicção comum é ensinamento certo; e o maior filósofo, mesmo sendo considerado santo,
incorrerá necessariamente em erro se admitir uma opinião contrária ao sentimento
universal.
Sempre se considerou como
característica mais evidente de ortodoxia o sentimento universal da Igreja. Para
se pronunciarem nos concílios, os bispos não invocam suas razões teológicas pessoais,
mas a convicção dos fieis das suas respectivas dioceses. E o próprio Papa, antes
de definir uma proposição como dogma de fé, consulta os pastores do mundo inteiro
a fim de conhecer por intermédio deles o sentimento das diversas igrejas sob sua
jurisdição.
O que aqui não se afirma
é que algum fiel só tenha o direito de sustentar as verdades explicitamente admitidas
pelo conjunto dos cristãos. Por uma intuição genial, ou pelo instinto do amor, alguém
pode adivinhar aquilo que ainda não está claro para o resto dos fieis. Este pode
discernir com mais rapidez e mais claramente que os outros, mas não pode, sem incidir
em erro, entender de modo que diverge dos outros. Só pode estar certo de suas conclusões
quando os outros afirmam: Nosso pensamento é o mesmo que o seu.
Este critério do sentimento
universal dos fieis é extremamente precioso em mariologia. Um teólogo que estudou
longamente a evolução do dogma reconheceu que "é como se todos os dogmas relativos
a Maria tenham sido confiados à guarda e à explicação do coração amoroso do bom
e leal povo cristão, mais que aos argumentos da teologia especulativa. Acontece
que todos esses dogmas têm sua origem na digna maternidade divina, e os postulados
dessa digna maternidade são discernidos com mais segurança pelo coração afetuoso
e sensível do filho do que pela lógica fria e seca do sábio.
Antes de Nestório, outros
teólogos e bispos como ele tinham difundido opiniões não menos errôneas que as dele
sobre a união das duas naturezas em Nosso Senhor Jesus Cristo. Mas os simples fiéis
não tinham compreendido grande coisa das suas subtis elucubrações. Quando ele tirou
delas uma consequência que atingia a Santíssima Virgem, no entanto, choveram imediatamente
protestos veementes de todos os lados. O povo não era capaz de refutar os argumentos
do bispo heresiarca, mas sentiu logo como falsa essa conclusão contrária às suas
convicções sobre a Mãe de Deus. Esse sentimento do povo é o que foi reconhecido,
pelo Concílio de Éfeso, como conforme à fé ortodoxa. Sabe-se também que o mesmo
aconteceu mais tarde a respeito da Imaculada Conceição. A atitude do povo cristão
contou com a objeção de uma longa lista de adversários, tanto mais temíveis porque
não se tratava de hereges, e sim de teólogos extremamente sábios, muitos deles santos
de altar.
Sem dúvida, Jesus deve
ter dirigido ao Pai, mais de uma vez, este brado de reconhecimento: "Eu vos
louvo, ó Pai, Senhor do Céu e da Terra, por terdes escondido estas coisas aos grandes
e aos capazes, e de as ter revelado aos pequenos. Sim, ó Pai, pois este foi o vosso
agrado".
Concluindo
Para estabelecer a respeito
de uma grandeza marial o caráter de verdade revelada, procuraremos o que a Sagrada
Escritura nos apresenta de afirmações, ou ao menos de indicações convergentes. Em
seguida veremos como, no curso dos séculos, os fieis tomaram dela consciência cada
vez mais nitidamente, mencionando as hesitações e, quando necessário, as discussões
que ela originou. Por fim examinaremos até que ponto se pode afirmar sobre ela a
certeza, com base nos três critérios que expusemos acima.
PARTE,
1º. AS FUNÇÕES DE MARIA SANTÍSSIMA
As grandezas de Maria podem
ser divididas em dois grupos. O primeiro é constituído pelas que representam sobretudo
funções: maternidade divina, maternidade espiritual, mediação universal, papel de
Maria no apostolado católico, realeza universal. O segundo grupo engloba as grandezas
que representam privilégios concedidos a Maria em razão de suas funções, ou como
consequências delas: Imaculada Conceição, virgindade, plenitude de graça, etc. Esta
divisão didática que fazemos não tem nada de absoluto, pois as funções de Maria
são também privilégios, e os seus privilégios são também funções. Porém algumas
dessas grandezas são sobretudo funções, e outras se afiguram principalmente como
privilégios. Estes dois grupos de grandezas de Maria Santíssima são abordados respectivamente
na primeira e segunda partes deste livro.
Capítulo,
1º. A MATERNIDADE DIVINA, GRANDEZA FUNDAMENTAL DE MARIA
A grandeza fundamental
de Maria, razão de ser de todas as outras, é a maternidade divina. De acordo com
uma percepção comum, a maternidade divina não é somente a razão de ser das outras
grandezas, mas também da própria existência de Maria, pois Ela foi criada especificamente
para tornar-se a Mãe de Deus. Na bula Ineffabilis, o Papa Pio IX ensina, ao definir
a Imaculada Conceição de Maria, que "a origem de Maria e a Encarnação da Sabedoria
divina foram decididas por um único e mesmo decreto". Assim, a maternidade
divina explica tudo em Maria, e sem essa maternidade nada nela pode ser explicado.
1º.
Significado da maternidade divina
A importância excepcional
da maternidade divina torna evidente a necessidade de se entender bem o que ela
significa, e deixar isso mal explicado equivale a deixar incompreendidos todos os
privilégios da Virgem. Além disso, neste caso nosso espírito se encontra diante
do mistério da Encarnação em toda a sua profundidade, mais do que ocorre em relação
a outras grandezas de Maria. O assunto ultrapassa também a doutrina marial propriamente
dita e se estende ao domínio da cristologia.
O Cardeal Newman, ao mencionar
em apoio de sua tese a história antiga e moderna do cristianismo, afirmou: "A
Virgem Maria é a guardiã da Encarnação". A maternidade divina de Maria é a
pedra de toque da ortodoxia cristológica, e todos os ensinamentos relativos à Encarnação
repousam nela como no seu próprio núcleo. Em certa medida a ortodoxia nesse assunto
garante a própria ortodoxia das nossas afirmações relacionadas à Santíssima Trindade
e a muitas outras verdades reveladas. Portanto é nosso dever estudar com rigor o
que significa esse título de Mãe de Deus, que a Igreja reconhece na Virgem.
O título de Mãe de Deus
não significa, nem jamais significou entre os fieis, aquilo de que Nestório nos
acusava no século 5 e certos protestantes e racionalistas nos acusam ainda hoje,
isto é, que consideramos Maria como mãe da divindade, ou como uma espécie de deusa
como as da mitologia. Afirmamos sim que Maria é Mãe de Deus, mas não que Ela é mãe
da divindade; Mãe de uma Pessoa que é Deus,
e não mãe dessa Pessoa enquanto Deus.
Para entender o que significa
a maternidade divina, é necessário compreender a união das naturezas divina e humana
na pessoa de Jesus, tanto quanto isso seja possível no que se refere a um mistério.
Antes de examinarmos o que a Igreja ensina, exporemos dois conceitos inexatos que
encontramos na história deste dogma.
O primeiro desses conceitos,
que existiu entre hereges dos primeiros séculos, é o de uma união inteiramente superficial,
limitada a uma habitação temporária da divindade na humanidade de Cristo. Jesus
seria apenas um homem sobre o qual o espírito de Deus desceu no momento do batismo
no Jordão, e do qual esse espírito se desprendeu pouco antes da Paixão, deixando
o homem Jesus sofrer e morrer. Como daí se depreende, Maria seria a mãe de um homem
destinado a ser transitoriamente a morada de Deus, e não de fato a Mãe de Deus.
O segundo conceito é o
de uma união moral muito íntima, consistindo não somente em habitação perpétua da
divindade na humanidade de Cristo, mas também na fiel cooperação desta com aquela.
Parece ter sido este o conceito de Nestório. De acordo com essa interpretação, a
humanidade de Cristo teria sido o templo da divindade desde o primeiro momento de
sua exis-tência. As duas naturezas teriam sempre agido em perfeita harmonia, o que
confere honra especial à natureza humana. Entretanto, a união assim entendida não
passava de união moral, pelo que Maria poderia ser chamada Mãe de Cristo, e não
Mãe de Deus.
Pode-se ver facilmente
que esses dois conceitos são tentativas de explicação racional do mistério da Encarnação,
e devem portanto ser a priori considerados falsos, pois qualquer explicação que
prescinda do mistério é necessariamente errônea neste caso.
Existe outro tipo de união
possível entre a humanidade e a divindade, denominada hipostática, ou seja, substancial
ou pessoal. A ideia mais exata dessa união corresponde à da alma com o corpo. A
alma e o corpo são dois princípios diferentes. Um é espiritual, o outro é material;
um não ocupa espaço, é imortal e independente
das leis físicas e químicas, o outro ocupa espaço, é regido pelas leis do mundo
visível e é destinado a se decompor. Esses dois princípios que constituem a pessoa
humana são unidos de modo a formar um todo único, a tal ponto que as qualidades
e ações das duas partes componentes podem ser atribuídas ao conjunto, à pessoa.
Um homem pode dizer eu me alimento, eu caminho, embora pareça que apenas o seu corpo
se alimenta ou caminha. Mas pode também dizer eu penso, eu me sinto livre, embora
quem pensa ou se sente livre seja a alma, e não o corpo. E falamos assim não apenas
para simplificar nossa linguagem.
De tal modo estamos convencidos
de que corpo e alma formam um todo único, que nos consideramos responsáveis pelas
ações de nossos corpos tanto quando pelos pensamentos, sentimentos e resoluções
de nossa alma. Permanece um mistério para os maiores filósofos essa capacidade de
dois elementos tão heterogêneos estarem unidos a esse ponto, porém nossa consciência
íntima não nos deixa a menor dúvida quanto à realidade dessa união.
Entre a humanidade e a
divindade de Nosso Senhor Jesus Cristo existe uma união muito semelhante à do corpo
com a alma, porém não idêntica. A natureza divina e a humana formam um único todo,
uma única pessoa, de tal modo que as ações de uma e outra podem ser atribuídas a
essa pessoa, e Ele pôde dizer: "Antes que Abraão existisse, Eu sou"; e também: "Minha alma está numa tristeza mortal".
A pessoa a que pertencem todas as ações de Cristo é divina, pelo que todas as suas
ações, mesmo aquelas praticadas pela natureza humana, tinham mérito infinito, pois
eram ações de Deus. Pode-se portanto afirmar com toda realidade que Deus pregou,
que Deus sofreu, que Deus morreu. Consequentemente pode-se também dizer que Deus
nasceu. Acontece que a mulher da qual um ser nasce é sua mãe. Como Deus nasceu de
Maria, Maria é Mãe de Deus.
A
alma humana só constitui normalmente uma pessoa quando em união com o seu corpo,
ao passo que o Filho de Deus era uma Pessoa antes da sua união com a natureza humana.
Poder-se-ia argumentar
que Jesus recebeu de Maria apenas seu corpo, e não sua divindade. Esta objeção teria
valor no caso de uma união moral, como aquela que Nestório elucubrou, não porém
no caso de uma união substancial. O corpo que Maria gerou era, desde o primeiro
instante, o de um Deus, portanto é de um Deus que Maria se tornou Mãe. Da mesma
forma nós recebemos de nossas mães apenas o corpo, mas somos plenamente seus filhos.
É verdade que a concepção
de um corpo humano exige naturalmente a criação e a infusão da alma, ao passo que
a concepção operada em Maria não exigia naturalmente a união do Filho de Deus com
a humanidade que a Virgem concebia. Não havia tal exigência do ponto de vista natural,
porém existia do ponto de vista sobrenatural, de modo mais sublime e mais digno
de Deus e de Maria do que tudo o que se passa na ordem natural. Tal concepção foi
preparada por meio de virtudes e privilégios únicos: concepção virginal, só adequada
a um Deus; concepção operada pelo Espírito
Santo, a qual, de acordo com a explicação do anjo, faria do filho de Maria o próprio
Filho de Deus; concepção consentida pela
Virgem, somente após ter Ela recebido a promessa de que culminaria com a geração
de um Deus
Maria é realmente Mãe de
Deus, da mesma forma que qualquer mulher é mãe de seu filho. De certa forma pode-se
afirmar que Ela merece mais este qualificativo do que as outras mães. Em primeiro
lugar porque ela sozinha, sem a contribuição de um pai, formou aquele corpo que,
desde o primeiro momento de sua existência, era o corpo de um Deus. Além disso,
porque foi chamada a cooperar para essa função em condições únicas. Houve jamais
uma mãe que, como Maria, foi escolhida por seu futuro filho e preparada por Ele
para essa função? Uma mãe que, como Maria, recebeu do Céu o aviso da missão reservada
ao seu filho e o convite para consentir em tal missão? Uma mãe que, como Maria,
cooperou com as intenções de Deus sobre seu filho e sobre Ela mesma, e se submeteu
plenamente às consequências dolorosas dessa cooperação?
Num exame superficial,
podemos ser tentados a acreditar que se joga com as palavras quando se dá a Maria
o qualificativo de Mãe de Deus. Porém um exame atento nos leva a indagar se é possível
imaginar uma maternidade de tal modo verdadeira e de tal modo plena como a de Maria
em relação ao Filho de Deus.
Podem essas explicações
e comparações que apresentamos ser plenamente satisfatórias ao nosso espírito? Respondemos
que, se elas o pudessem, seriam certamente falsas, pois fariam desaparecer o fator
mistério. Admitir que Maria é verdadeiramente Mãe de Deus não representa dificuldade
maior do que acreditar que Jesus nos resgatou verdadeiramente, sacrificando-se por
nós na cruz; ou em professar que Ele nos
une realmente à sua divindade quando nos dá o seu Corpo em alimento. Nos três casos
o mistério é o mesmo -- a união hipostática. A razão pode explicá-lo até certo ponto,
mas só a fé pode obter de nós o assentimento.
2º.
A maternidade divina, verdade revelada
A ideia da maternidade,
embora sem usar a expressão, já estava contida muito claramente no conhecimento
dos primeiros cristãos, e resultava naturalmente de duas verdades que lhes eram
familiares: Maria é verdadeiramente Mãe de Deus; Jesus é ao mesmo tempo Deus e homem.
Não resta nenhuma dúvida
de que Maria era reconhecida como Mãe de Jesus pelos judeus. Que Ele é homem, também
o admitiam todos. E também era evidente aos olhos dos cristãos primitivos que Ele
é Deus, pois havia falado e agido como só um Deus poderia fazer: atribuía-se direitos
que nenhuma criatura ousaria arrogar-se; pregava e mandava em nome próprio; perdoava os pecados por sua própria autoridade;
fazia milagres por seu próprio poder; exprimia se sobre suas relações com Deus como fazendo
com Ele um ser único. É possível que inicialmente os discípulos o tenham visto como
sendo apenas o Messias, e que no fim de sua vida mortal alguns dentre eles tenham
começado a reconhecer sua divindade, mas após a Ressurreição puseram-se todos a
pregá-la abertamente.
Desde antes de serem escritos
os evangelhos, pelo menos os três últimos, São Paulo havia proclamado Jesus "Aquele
que está acima de todas as coisas, o Deus eternamente bendito".
Essa humanidade e essa
divindade que os primeiros cristãos reconheciam no Filho de Maria apresentavam-se
a eles como unidas, numa união a mais íntima que se possa imaginar, a qual será
mais tarde denominada hipostática. Daquele que acabava de ser batizado no Jordão,
o Pai tinha dito: "Eis meu filho bem amado, no qual ponho minha complacência".
Após atravessar o lago
numa barca, Ele disse ao paralítico: "Homem, os teus pecados te são perdoados";
e como os fariseus se escandalizavam sobre
esse poder de perdoar os pecados -- pois só o reconheciam como pertencendo a Deus,
mas Ele o atribuía a si mesmo -- não argumentou que estariam sendo perdoados por
Deus habitando em mim, ou por Deus ao qual estou unido, mas proclamou em alto e
bom som que esse poder residia nele mesmo: "A fim de que saibais que o Filho
do Homem tem na terra autoridade para perdoar os pecados, [disse ao paralítico]:
Levanta-te, toma o teu leito e retorna à tua casa".
São Paulo registrou num
texto bem conhecido essa convicção dos primeiros cristãos sobre a união substancial
da divindade e humanidade em Jesus: "Tende os sentimentos de Cristo Jesus,
que subsistindo na natureza de Deus, não considerava uma usurpação a igualdade com
Deus. Porém Ele se aniquilou, tomando a forma de servo e tornando-se semelhante
aos homens, reconhecido como homem pela sua aparência".
Portanto o Apóstolo afirmava
que a natureza divina e a humana estavam reunidas em Jesus Cristo, e consequentemente
Ele era reconhecido pelos primeiros cristãos como sendo ao mesmo tempo Deus e homem.
Tendo Ele nascido de Maria, conferiam a Ela o título de Mãe de Deus.
A dedução acima é de todo
rigor, mesmo supondo-se que a Sagrada Escritura não aludisse também à divindade
do seu Filho, nas partes em que menciona a Mãe de Jesus. Porém, de fato a divindade
de Jesus está afirmada, ou pelo menos subentendida, em várias ocasiões em que se
menciona sua Mãe. O anjo Gabriel afirmou a Maria que Ela se tornaria mãe sem perder
a virgindade, porque "aquele que nascerá de ti será chamado Filho de Deus".
Qualquer que possa ter sido para os judeus de então o sentido da expressão Filho
de Deus, é fora de dúvida que a Virgem entendeu tal expressão como significando
algo diferente do que eles entendiam por Messias. Com efeito, o anjo lhe explicou
que o Messias que nasceria dela respeitaria sua virgindade, precisamente porque
tratava-se do próprio Filho de Deus.
É fora de dúvida também
que os primeiros cristãos, que ouviam contar ou liam a narração da Anunciação, atribuíam
à expressão Filho de Deus o sentido literal, o sentido pleno de segunda Pessoa da
Santíssima Trindade, e que portanto Maria era para eles Mãe de Deus, de acordo com
a declaração do enviado divino.
No episódio da Visitação,
entendiam que Izabel disse à sua jovem prima: "De onde me vem a graça de que
a Mãe do meu Senhor venha visitar-me?". Evidentemente Izabel dava à palavra
Senhor o sentido que encontrara ou ouvira nos textos sagrados, isto é, que significava
Deus. No próprio capítulo em que encontramos a pergunta feita por Izabel, a palavra
Senhor é mencionada outras quinze vezes, todas elas com o significado de Deus. Por
exemplo, logo após a saudação inicial, Izabel prossegue: "Ditosa aquela que
acreditou no cumprimento das coisas que lhe foram ditas da parte do Senhor".
Seguramente os primeiros cristãos entendiam igualmente neste relato a palavra Senhor
no sentido de Deus, e aí viam Maria honrada como Mãe de Deus.
Do mesmo modo eles se lembravam
de que Isaías, o maior entre os profetas messiânicos, havia predito que "uma
virgem conceberá e dará à luz Emanuel, que significa Deus conosco". Pouco importa
o modo como os contemporâneos de Isaías ou o próprio profeta entendiam que o Filho
da Virgem seria Deus conosco. Para os primeiros cristãos, a palavra designava Deus
feito homem, entendendo portanto que Ela havia concebido Deus e o dera à luz, sendo
portanto Mãe de Deus.
Antes mesmo da publicação
dos evangelhos, os cristãos ouviram de S. Paulo: "Quando se chegou à plenitude
dos tempos, Deus enviou seu Filho, concebido da mulher". Daí se conclui que
essa mulher era Mãe do Filho de Deus.
A expressão Mãe de Deus
era sem dúvida desconhecida dos primeiros cristãos. Não se pensou inicialmente em
criar um termo especial para designar o papel da Virgem, tanto mais que as atenções
nessa época eram quase sempre voltadas para Jesus, e não para Maria. Mas a ideia
contida nessa expressão, como acabamos de ver, já aparece então com nitidez.
A tradição não teve propriamente
que explicitar esse conceito, porém colocou-o pouco a pouco em relevo mais dominante,
graças às querelas cristológicas dos primeiros séculos. Ele era exposto mediante
novas formulações, e assim ostentado com luz sempre viva diante dos fieis. No início
do século 2, Santo Inácio de Antioquia afirmou: "Só existe um médico, [composto]
ao mesmo tempo de carne e espírito gerado, mas não criado. Nosso Senhor Jesus Cristo,
nascido de Deus e de Maria". Quando fala do nascimento de Jesus, substitui
a expressão Filho de Deus pela própria palavra Deus, o que sem dúvida deve ter facilitado
a criação da palavra Teotocos -- Mãe de Deus: "Nosso Deus, Jesus Cristo, foi
transportado ao seio de Maria".
Um século mais tarde, Tertuliano
afirma: "Deus nasceu no seio de uma mãe". Ele insiste sobre a unidade
de Jesus na sua dupla natureza divina e humana; e devido a isso, sobre a verdade de que Maria deu
à luz não um simples homem, pois "quem nasceu nela é Deus".
A tradição passou a dedicar
atenção mais frequentemente a Maria, ao seu papel nos mistérios da Encarnação e
Redenção, e em seguida a exprimir os conceitos primitivos não somente em função
de Cristo, mas relacionando-os mais diretamente com a Virgem. Assim procederam São
Justino, Santo Irineu, Tertuliano, etc. Quando e onde apareceu finalmente a palavra
grega Teotocos? Não se sabe. Mas ela correspondia tão claramente ao que sempre se
aceitou, que foi recebida desde o início sem a menor objeção.
Embora conhecido até pelos
pagãos, este título adquiriu validade indiscutível após mais de um século, quando
Nestório se mostrou chocado com ele, como se fosse uma novidade. Os cristãos se
escandalizaram com suas blasfêmias, os pastores protestaram e o refutaram, mas depois,
como todos os esforços se revelaram inúteis, reuniram-se em concílio ecumênico.
Em Éfeso, no ano 431, foi proclamado ante as aclamações entusiásticas da multidão,
em nome da Igreja universal: "Se alguém não aceitar que Emanuel é verdadeiramente
Deus, e que por este motivo a Santa Virgem é Mãe de Deus -- pois Ela deu à luz segundo
a carne o Verbo de Deus feito carne, conforme está escrito que o Verbo se fez carne
-- seja ele anátema!".
O trabalho de definição
estava concluído, mas o de piedade prosseguiria com novo impulso. O título Teotocos
de Maria -- primeiro atribuído, depois discutido, e finalmente reconhecido solenemente
-- exprimindo em sua enérgica concisão a união das duas naturezas na Pessoa de Jesus
Cristo, e o papel de Maria em relação a esse Deus-homem, punha em relevo abarcativo
a inconcebível dignidade da Virgem, e atraía os olhares de todos os fieis sobre
essa criatura única, santíssima, nova Eva, Mãe de Deus. Um período novo, de crescente
devoção, se abria na história da Mariologia.
3º.
Grandeza inefável da maternidade divina
O título de Mãe de Deus
soa tão familiarmente aos nossos ouvidos, que nem sequer conseguimos imaginar sua
espantosa grandeza. Por pouco que nos ponhamos a refletir sobre seu significado,
a avaliar o que representa o fato de uma criatura humana ter sido escolhida para
tornar-se realmente a Mãe do Criador, invade-nos uma sensação como de vertigem.
Percorrendo a escala de todos os seres em estado de graça -- desde a criança recentemente
batizada, passando pelos inúmeros graus de almas medíocres, almas fervorosas, almas
santas, e pelas hierarquias celestes até chegarmos àquele anjo ou homem que ocupa
a primeira posição entre os servos de Deus -- diante de nossos olhos se abre um
novo espaço, incomensuravelmente mais amplo, que se estende entre o maior dos servos
de Deus e a Mãe de Deus. Segundo Caietano, "a maternidade divina toca nos limites
da divindade".
Assim o explica Santo Tomás:
"A Santíssima Virgem possui certa dignidade infinita, devido à sua maternidade
divina, resultante do bem infinito que é Deus.
Nada de superior a Ela
pode ser feito por tal Criador, da mesma forma que nada pode existir superior a
Deus".
Ao contemplar essa grandeza,
e após ter acumulado títulos, qualificativos e comparações, os santos concluíram
sempre por confessar que nenhuma palavra humana poderia exprimi-la, nenhuma inteligência
humana poderia compreendê-la. Na verdade, nem a própria Virgem Maria, nem a inteligência
criada do próprio Nosso Senhor Jesus Cristo, pode compreendê-la inteiramente, pois
para compreender em toda sua plenitude a dignidade da Mãe de Deus seria necessário
compreender plenamente a dignidade de Deus, seu Filho.
Os próprios inimigos do
culto de Maria, pelo menos os que mantiveram a fé na sua maternidade divina, por
vezes têm manifestado seu espanto ante tal elevação. Lutero escreveu sobre Ela palavras
que um Padre da Igreja teria podido subscrever: "Essa maternidade divina lhe
valeu bens tão altos, tão imensos, que ultrapassam todo entendimento. Daí lhe vem
toda honra, toda santidade, a ponto de ser a única pessoa superior a todas, em todo
o gênero humano, e à qual nenhuma se iguala, pelo fato de possuir tal Filho em comum
com o Pai celeste. O simples título de Mãe de Deus contém toda honra, pois nenhum
outro a pode exprimir, ainda que houvesse na terra tantas línguas quantas são as
flores e ramos de ervas, quantas são no céu as estrelas, e no mar os grãos de areia".
No século 19, o anglicano
Pusey, depois de ter chocado todos os católicos de seu país com seus ataques contra
a devoção da Igreja a Maria, confessou que, por assim dizer, tinha sido "tomado
de assombro quando pela primeira vez, como num relâmpago, brilhou diante do seu
espírito a verdade de que uma criatura humana havia sido colocada tão perto de Deus,
acima dos coros de Anjos e Arcanjos, Dominações e Potestades, acima dos Querubins
que comparecem diante de Deus, dos Serafins com seu amor ardente, acima de todos
os seres criados, a única em toda a criação e em todas as criações possíveis, pelo
fato de que, no seu seio, se dignou tornar-se consubstancial com Ela aquele que
é consubstancial com o Pai".
Diante de tal elevação,
pode-se contemplar e admirar:
Contemplare et mirare Ejus celsitudinem; Dic felicem Genitricem, Dic beatam Virginem.
4º.
A Mãe de Deus e a Santíssima Trindade
É possível considerar alguns
aspectos especiais dessa dignidade, não tanto a fim de a compreender, mas de melhor
conjeturar sobre tal sublimidade. Veremos esses aspectos nas relações da Mãe de
Deus com a Santíssima Trindade, nas que existem entre a maternidade divina e os
outros privilégios de Maria, e ainda nos que a Virgem compartilha com o resto da
Criação.
Tornando-se Mãe de Deus,
Maria associou-se ao Pai na criação de Jesus, no sentido de que a mesma Pessoa que
é Filho de Deus é também Filho dela. O Pai gera eternamente o Filho, como Deus;
Maria o gera no tempo, como homem. Porém
não há dois filhos, dois seres gerados, pois o mesmo filho é Deus e homem. Como
o Pai não cessa de gerar seu Filho, gera-o como Deus ao mesmo tempo que Maria o
concebia como homem. Da mesma forma que o Pai, Maria pode dizer de Jesus: "Eis
meu Filho bem amado, no qual pus minha complacência".
Maria pode ainda ser denominada
Filha privilegiada do Pai. Todas as almas em estado de graça são filhas de Deus.
Maria, por causa de sua maternidade divina, é filha de Deus por muitos motivos especiais:
1º. Porque Deus a tomou
como sua Filha, antes de todas as outras criaturas. Por uma anterioridade de importância,
e não de tempo, pois Deus não está restrito ao tempo, para Ele tudo está no presente.
Nosso Senhor Jesus Cristo é "o primogênito entre todos os filhos", e como
a noção de Filho de Deus feito homem lembra imediatamente a de sua Mãe, Maria é
a primeira em importância entre todas as puras criaturas, a primogênita de todos
os filhos de Deus, "que a escolheu, e a escolheu antes -- elegit eam et prælegit
eam".
2º. Porque, sendo concebida
em graça devido à sua vocação para a maternidade divina, dentre todos os filhos
de Adão Ela era Filha de Deus desde o primeiro momento de sua existência.
3º. Porque Ela foi amada
por Deus e enriquecida de prerrogativas em medida absolutamente excepcional. Neste
sentido, pode-se dizer que Ela é Filha única de Deus.
Maria é filha não somente
do Pai, mas de toda a Trindade Santíssima. No entanto, como a paternidade é atribuída
à primeira Pessoa -- por apropriação, de acordo com a terminologia dos teólogos
-- pode-se também dizer, por apropriação, que Maria é a Filha privilegiada de Deus
Pai.
Com relação ao Filho de
Deus, Maria preenche as funções e usufrui os direitos de uma mãe em relação ao seu
filho. Como toda mãe -- melhor que todas elas, pois Jesus era somente dela -- Maria
formou com sua própria substância a substância de seu Filho, e se prolongava nele.
Depois de dar a existência humana àquele que criou o mundo, nutriu com seu leite
quem alimenta todas as criaturas, vestiu quem reveste de luz os seus anjos e adorna
os lírios dos campos, carregou em seus braços quem sustenta o universo. Bem mais
do que isso, Ela dava ordens ao Senhor soberano do céu e da terra, pois exercia
sobre Ele autoridade de verdadeira mãe. Como mãe, pouco a pouco Ela conduzia sua
educação humana, fazendo o Filho de Deus atingir o pleno desenvolvimento de todas
as suas faculdades. Quando amava seu Filho com amor materno, sobretudo Ela amava
a Deus.
Sendo Maria verdadeira
Mãe de Deus, seu Filho que é Deus cumpria diante dela todos os deveres da piedade
filial: obedecia, venerava, assistia, amava com um amor único, amor filial.
Atualmente, como se confere
a Maria o título de Esposa do Espírito Santo, parece contraditório denominá-la ao
mesmo tempo Mãe e Esposa de Jesus, por isso se dá preferência àquele título. Mas
os autores antigos atribuíram por vezes a Maria o título de Esposa do Verbo, tendo
em vista que:
1º. Todas as almas fieis,
sobretudo as almas virgens, apreciam seu qualificativo de esposas de Jesus, porque
se dão inteiramente a Ele. A Virgem das virgens é a este título sua Esposa por excelência.
2º. Graças a Maria, de
algum modo o Verbo desposou a natureza humana desde a Encarnação.
3º. Maria é a nova Eva,
ao lado do novo Adão que é Jesus Cristo.
4º. Como a Igreja, Ela
é a esposa imaculada de Cristo.
Graças à maternidade divina,
Maria tornou-se Esposa do Espírito Santo, pois foi mediante a ação do Espírito Santo
que Ela concebeu Jesus. De fato toda a Santíssima Trindade cooperou para o milagre
que a tornou fecunda, no entanto essa obra é atribuída por apropriação ao Espírito
Santo, porque se trata antes de tudo de uma obra de amor, e o Espírito Santo é o
amor do Pai e do Filho. Consequentemente, o fato de o Pai e o Filho terem cooperado
para produzir a humanidade de Jesus não subtrai nada à ação do Espírito, e é plenamente
verdadeiro o que professamos diariamente no Credo:"foi concebido do Espírito
Santo, nasceu de Maria Virgem"; e verdadeira
também a saudação que fazemos a Maria como Esposa do Espírito Santo. O Papa Leão
XIII, na encíclica Divinum Illud, (9/5/1897) refere-se a Maria como "Esposa
imaculada do Espírito Santo".
Elevando Maria à dignidade
de Mãe de Deus, as três Pessoas divinas estabeleceram com Ela relações de uma sublimidade
incompreensível; mas além disso, por essa
mesma maternidade, Maria confere às Pessoas divinas uma glória nova e única, motivo
pelo qual Ela tem sido por vezes chamada Complemento da Santíssima Trindade. Intrinsecamente
-- ou seja, dentro de si mesma -- nada falta à adorável Trindade, pois Deus é infinitamente
completo, infinitamente perfeito e infinitamente feliz. Mas extrinsecamente -- na
glória e no amor que alcançam a Trindade a partir do exterior e da sua relação sobre
o exterior -- Maria contribui de modo muito especial como instrumento, e não como
causa principal. (A expressão Complemento da Santíssima Trindade pode gerar certa
ambiguidade, implicando que a Trindade precisou ser completada, e que a Santíssima
Virgem é como uma quarta pessoa da divindade.
Por isso se deve dizer
Complemento extrínseco da Santíssima Trindade, o que descarta toda suposição nesse
sentido.)
Graças à maternidade divina
de Maria, o Pai adquire sobre o Filho -- que é igual a Ele na sua natureza e nas
suas perfeições -- uma autoridade real. Recebe desse Filho encarnado manifestações
de respeito, submissão e abandono, homenagens de adoração e amor superiores às que
lhe são rendidas por todo o conjunto das criaturas. O Pai ouve o Filho proclamar:
"Meu Pai é maior que eu"; contempla-o
oferecendo um sacrifício digno dele: "Não quisestes nem sacrifícios nem oblações,
porém preparastes para mim um corpo; os holocaustos
e vítimas expiatórias pelo pecado não vos foram agradáveis, portanto eu vos disse:
Eis-me aqui, ó Deus, eu venho para fazer a vossa vontade". Ele sabe que ininterruptamente
o Filho se dedica a revelar seu Pai aos homens, convidando-os a abandonar-se a Ele
com toda confiança, a orar todos os dias: "Pai nosso que estais nos céus".
Os homens, por seu lado,
compreendem melhor esse Pai depois que conheceram seu Filho nascido de Maria, e
instintivamente reconhecem que esse Pai celeste é verdadeiramente seu pai ao constatarem
ao seu lado a presença da Mãe celeste.
A maternidade divina de
Maria confere ao Filho uma existência nova, uma existência temporal. Graças a essa
maternidade, o Filho pode render ao Pai homenagens de submissão e adoração, reconhecimento
e reparação, que sua natureza divina não lhe permitiria oferecer. Trata-se de homenagens
reais, pois vêm de uma natureza inferior, no entanto são infinitamente agradáveis,
posto que oferecidas por uma Pessoa divina.
No que se refere aos homens,
a maternidade divina tornou o filho o Bem Amado da humanidade. Para o Filho dirigem-se
nossos pensamentos, nossos afetos e nossas vontades, antes que ao Pai ou ao Espírito.
É pelo Filho que se vive, se trabalha, se imola e se morre. Foi pelo pensamento
nesse Filho crucificado que os mártires alegremente deram sua vida. É ao Filho,
esposo das almas, que as virgens se sentem estimuladas a consagrar sua pureza. É
ao Filho na Eucaristia que se voltam os desejos ardentes de milhares de crianças
inocentes e de almas amorosas de todas as idades e condições. É aos pés do Filho
consolador, força e vida, que comparecem todos os que sofrem, sentem-se fatigados
ou desalentados. Ele é assim o centro de nossas almas, o centro da religião e da
humanidade, e isto se deve à maternidade divina.
Sendo o Espírito Santo
infecundo no que se refere à processão divina, graças à maternidade divina de Maria
Ele recebeu fecundidade para gerar o Filho, contribuindo para dar-lhe um corpo.
Ao mesmo tempo que torna esse Filho o grande adorador do Pai e o Bem Amado da humanidade,
adquire sobre Ele uma autoridade, à qual o Filho se submete durante toda sua vida,
como indica o Evangelho: "Jesus foi então conduzido pelo Espírito ao deserto";
"O Espírito do Senhor está sobre mim,
porque me conferiu a unção". Em relação aos homens, o Espírito Santo exerce
por meio de Maria uma fecundidade análoga, gerando nas almas a vida de Jesus, fortificando-a
e conduzindo-a com Ela à perfeição.
Por sua natureza, Maria
é infinitamente inferior à divindade. Sem esquecer que entre Deus e Maria existe
toda a distância que separa o agente principal do instrumento, devido às suas funções
Maria foi introduzida, em certo sentido, na própria família de Deus, tão próximo
da adorável Trindade como o canta um hino antigo:
Gaude Virgo, Mater Christi,
Quia sola meruisti, O Virgo piissima, Esse tantæ dignitatis Quod sis sanctæ Trinitatis Sessionne próxima.
O que a grandeza da maternidade
divina mostra, em segundo lugar, são as relações entre esse privilégio e os outros
privilégios da Mãe de Deus. Cada um deles situa Maria numa categoria à parte. Dentre
todas as criaturas humanas, somente Ela foi concebida sem pecado. Só Ela foi preservada
de toda concupiscência. Foi a única que sempre correspondeu plenamente aos menores
desejos de Deus. A única plena de graça. A única que é virgem e mãe. Só Ela foi
solicitada por Deus a dar seu consentimento para o resgate do mundo. É a única distribuidora
de todas as graças.
Todos esses privilégios
da Virgem decorrem estritamente da sua maternidade divina, em relação à qual eles
são a preparação ou a consequência, e nenhum deles lhe teria sido concedido sem
essa maternidade. Para avaliarmos quão grande é o significado dessa maternidade,
basta ter em vista que cada um dos seus requisitos ou consequências constitui prerrogativa
tão gloriosa e tão excepcional que torna a Virgem uma criatura absolutamente única.
5º.
A Mãe de Deus e o restante da criação
A grandeza da maternidade
divina se deduz, em terceiro lugar, da categoria à qual essa dignidade eleva Maria
em relação ao restante das criaturas. As características singulares dessa categoria
não podem deixar a menor dúvida: todas as outras criaturas, mesmo os mais sublimes
serafins, são apenas servos de Deus, porém Maria é Mãe de Deus. Quantos desses servos
valem uma mãe?
Quis o Criador elevar seus
servos à dignidade de filhos. Por filiação adotiva, sem dúvida, mas não como as
adoções humanas, que constituem uma ficção legal. Trata-se de uma realidade íntima,
que atinge a profundidade do ser e nos comunica a vida de nosso Pai celeste, nos
torna "participantes da natureza divina". Sem dúvida, dignidade incomparável.
Não obstante, a dignidade
da maternidade divina a eleva incomensuravelmente acima da que tem um filho de Deus.
Não só porque em qualquer família a dignidade da mãe é superior à dos filhos, mas
sobretudo porque a elevação da maternidade divina ultrapassa de modo inconcebível
a da nossa filiação. Por sua realidade, tanto quanto por sua dignidade, nossa filiação
é superior a qualquer outra adoção, porém permanece uma filiação adotiva, pois só
Jesus é Filho de Deus por sua própria natureza. Porém Maria não é mãe adotiva do
Filho de Deus, e sim sua Mãe verdadeira.
Por sua maternidade divina,
Maria pertence à ordem hipostática. Não pertence à união hipostática, e sim à ordem
hipostática, ou seja, ao conjunto das realidades que se orientam diretamente para
essa união, da mesma forma que a ordem da graça compreende o conjunto das realidades
que se orientam diretamente para a união com Deus por meio da graça habitual. Como
Mãe de Jesus, Maria contribuiu com a natureza humana de Cristo, que é um dos dois
elementos da união hipostática, e desde o primeiro instante a natureza humana de
Cristo esteve unida hipostaticamente à divindade do Verbo. Da mesma forma que a
ordem da graça ultrapassa de modo incomensurável a ordem da vida natural, também
a união hipostática ultrapassa de modo incomensurável a ordem da graça, e ainda
a ordem da glória. Maria ocupa portanto um lugar destacado na criação, infinitamente
abaixo de Deus, mas incomparavelmente acima de todas as outras criaturas.
Quando pela primeira vez
se leem algumas expressões dos santos, onde afirmam que Deus preferiria a Santíssima
Virgem ao conjunto de todas as outras criaturas, e que lhe concedeu uma graça superior
à de todos os anjos e santos reunidos, pode-se ser tentado a qualificar tais expressões
de exageradas. No entanto, o fato espantoso não é que a Mãe de Deus seja superior
ao conjunto de todas as outras criaturas, e sim que uma criatura tenha sido elevada
à dignidade de Mãe de Deus.
6º.
A maternidade divina, função de amor
A maternidade divina é
uma grandeza tão sublime, que nos arriscamos a ver nela somente sua sublimidade,
esquecendo que ela é uma função de amor, mais ainda do que qualquer outra maternidade.
Certos autores afirmam que a humilde Virgem teria preferido a este seu maior privilégio
algum outro, como sua Imaculada Conceição, sua virgindade, sua participação nos
sofrimentos de Cristo. O que parece justificar essa maneira de ver são algumas palavras
de Nosso Senhor e da Santíssima Virgem. Quando uma mulher do povo, enlevada de entusiasmo
diante do poder e da sabedoria de Jesus, bradou "bem-aventurados o ventre que
vos gerou e os seios que vos amamentaram", o Mestre respondeu: "Antes
bem-aventurado quem ouve a palavra de Deus e a põe em prática".
Com esta retificação, não
teria Ele declarado que acima da felicidade de ser Mãe de Deus está a felicidade
de ser fiel à palavra de Deus? A própria Virgem, quando o anjo Gabriel anunciou
que Ela seria Mãe de Deus, replicou: "Como se fará isso, se não conheço varão?".
Não terá Ela mostrado então
que preferia sua virgindade à maternidade divina?
Tais interpretações não
têm fundamento. A resposta de Jesus à mulher que o enaltecia só tinha por objetivo
combater nela e nos que a circundavam um preconceito inveterado no espírito dos
judeus, para quem os laços sanguíneos prevalecem sobre a conduta pessoal. Limitava-se
a mostrar-lhes que praticar a lei de Deus tem maior valor do que ser mãe de um profeta.
Jesus não pretendia definir
nada relativamente à maternidade divina de Maria, que tanto aquela mulher como a
multidão ignoravam. Quanto à pergunta de Maria a Gabriel, trata-se de um pedido
de explicações, não de uma objeção. Maria deseja saber como poderá cooperar com
as intenções de Deus a seu respeito, tendo em vista que Ela é virgem. Não lhe vem
ao espírito que Deus lhe pede para abandonar o voto de virgindade. Se tal ideia
lhe tivesse ocorrido, demonstraria insensatez em preferir suas tendências pessoais
aos desejos de Deus.
Não se pode portanto sustentar
esses pretensos argumentos escriturais, é preciso examinar a questão em si mesma.
Se quisermos ver na maternidade
divina apenas o fato fisiológico -- o qual, mesmo sob este aspecto limitado, seria
superior como dignidade à filiação adotiva -- seria evidentemente preferível a ele
o menor grau de graça santificante, e sem nenhuma dúvida Maria teria colocado acima
de tal honra a felicidade que lhe podia trazer algum outro privilégio: a Imaculada
Conceição, que lhe possibilitou ter sido sempre a bem amada de Deus, capaz de amar
seu Criador desde o primeiro momento de sua existência; sua virgindade, que lhe permitiu amar a Deus sem
compartilhamento; sua associação com Cristo
sofredor, que lhe possibilitou dar a Deus a prova suprema de seu amor.
Na sua realidade concreta,
tal como foi desejada e realizada por Deus e por Maria, a maternidade divina, acrescida
de todos os privilégios e graças que lhe trouxe, é infinitamente amada pela Virgem.
Tanto que, sob a inspiração do Espírito Santo, Izabel exclamou: "Bem-aventurada
sois, por ter acreditado no cumprimento das coisas anunciadas pelo Senhor!".
E Maria, enlevada num entusiasmo
divino, cantou: "Minha alma glorifica o Senhor, e meu espírito exulta de alegria
em Deus meu salvador. Eis que todas as gerações me chamarão bem-aventurada".
A maternidade rejubila
tanto o coração de Maria, não só porque Deus teve por bem acrescentar a ela toda
sorte de favores sobrenaturais. Pelas próprias exigências da sua natureza, a maternidade
divina foi fonte de infinita alegria para Maria, pois em relação ao próprio Filho
de Deus encarnado ela comporta tudo o que significa uma mãe humana em relação ao
seu filho. Toda verdadeira maternidade humana supõe um amor único da mãe pelo filho,
e atrai como consequência um amor único do filho por sua mãe. Sem esse amor, a maternidade
não passa de um ato animal, portanto uma maternidade monstruosa num ser humano.
Como mãe de Cristo por
verdadeira maternidade humana, Maria devia amar seu filho, e amá-lo por inteiro.
Uma mãe humana ama o corpo de seu filho, porém mais ainda a sua alma. E Maria, para
amar inteiramente seu filho, não poderia limitar esse amor à humanidade de Jesus,
(corpo e alma) tinha que estendê-lo muito mais à sua divindade. Portanto, devia
necessariamente estar em estado de graça. E Jesus devia amar sua Mãe como Deus e
como homem, pois era inteiramente seu Filho, e por mais esta razão Ela devia possuir
a graça divina. Como poderia amá-la, sendo Deus, se Ela tivesse sido sua inimiga?
O que afirmamos acima é
o que sempre entendeu a tradição cristã, ensinando que o Todo-Poderoso fez de Maria
uma digna Mãe de Deus. Assim o afirmou Santo Agostinho, declarando que a maternidade
material não teria em nada beneficiado a Virgem Maria se Ela não se alegrasse mais
em ter Jesus em seu coração do que em seu seio. Ele escreveu: "Quando se fala
de pecado, não admito que o assunto possa alcançar a Santa Virgem, por causa da
honra de Nosso Senhor". Trata-se da honra do Senhor a propósito da maternidade
divina. Santo Agostinho ainda afirma: "Essa tão grande graça foi dada a Maria
porque Ela mereceu conceber Deus e dá-lo à luz".
De
sancta virginitate, capítulo 3.
De natura et gratia, capítulo
36.)
A Santa Igreja o professa
na sua liturgia e nos seus documentos oficiais. Na oração da festa da Imaculada
Conceição: "Ó Deus, que pela Imaculada Conceição da Virgem preparastes uma
digna habitação para vosso Filho". Na oração que se segue à antífona do Salve
Regina: "Deus Todo-Poderoso, que preparastes pela cooperação do Espírito Santo
o corpo e a alma da gloriosa Virgem Maria, para que ela merecesse tornar-se a digna
morada de vosso Filho". Na bula Ineffabilis, que definiu o dogma da Imaculada
Conceição: "Convinha absolutamente que uma Mãe tão venerável brilhasse sempre
com os esplendores da santidade mais perfeita".
Segundo a doutrina da Igreja,
a maternidade divina exigia não apenas o estado de graça, mas exigia-o no seu grau
mais elevado possível. Ela o afirma expressamente, em especial na bula Ineffabilis,
a propósito da plenitude de graça em Maria. Pois Deus devia amar sua Mãe imensamente
mais do que a qualquer outra criatura; e
Maria devia amar seu Filho imensamente mais que às outras criaturas.
Para que Maria, em todas
as circunstâncias da sua vida, pudesse amar seu Filho com toda a perfeição concebível,
toda a pureza, toda a fortaleza, toda a continuidade possível, Deus lhe concedeu
junto com essa plenitude de graças uma multidão de outros privilégios realmente
excepcionais.
Para que pudesse amá-lo
desde o primeiro momento de sua existência, criou-a imaculada; para que pudesse amá-lo sem estar limitado o arrebatamento
desse amor, isentou-a de concupiscência; para torná-la capaz de amar sem fraquezas, preservou-a
de toda imperfeição; para poder amá-lo com
exclusividade, tornou-a Virgem das virgens; para lhe permitir amá-lo com um amor que atingisse
sua manifestação suprema, associou-a à sua Paixão redentora; para que o amasse com todo o seu ser, não tardou
em unir seu corpo glorioso à sua alma bem-aventurada; para que esse amor se comunicasse a todas as criaturas,
estabeleceu-a Mãe dos homens e distribuidora de todas as graças.
Sendo função de amor, de
acordo com a vontade de Deus, a maternidade divina está presente em todas as fases
da sua realização, e foi o amor que preparou Maria para receber esse privilégio.
Esse amor ultrapassava o dos serafins desde a sua Imaculada Conceição, e aumentou
a cada instante até a vinda do mensageiro que lhe anunciou sua escolha. Pode-se
dizer, de acordo com os santos e com a própria Igreja,que tal amor mereceu para
Maria essa infinita dignidade. Não se trata de um mérito dela em caráter absoluto,
pois uma dignidade tão sublime não podia, em estrita justiça, provir de uma pura
criatura. Mérito de conveniência, portanto, pois Maria correspondeu o mais perfeitamente
possível a todas as graças dessa maternidade. (Ver acima a oração do Salve Regina.)
Maria recebeu essa incomparável
dignidade numa perfeita disposição desse amor. São Lucas nos mostra o anjo Gabriel
anunciando-lhe os desígnios de Deus a seu respeito, e Maria pedindo explicações
para bem inteirar-se de tais desígnios. Ela conhecia através dos profetas, e também
pelo entendimento que Deus não podia negar-lhe, tudo que o seu consentimento acarretaria
para Ela. A vontade de Deus era clara, e a Virgem só podia responder "Eis a
serva do Senhor, faça-se em mim segundo a vossa palavra". Resposta de obediência,
resposta de amor, pois amar a Deus é fazer a sua vontade. Resposta também de um
amor incompreensível, que permite ao Filho de Deus realizar por meio dela sua incompreensível
obra de amor.
Não foi somente por sua
intensidade que o amor de Maria a Deus foi singular, mas também por tratar-se de
um amor materno. Há na terra muitas almas santas, e no céu milhões de espíritos
sublimes nos quais jamais houve pecado. Entretanto, o amor deles por Jesus jamais
terá essa característica exclusiva do amor de Maria, que é o de ser materno. Somente
Maria pode amar a Deus como seu Filho. O amor da jovem Virgem de Nazaré pelo pequeno
ser que durante nove meses carrega e molda em seu seio; o amor da terna Mãe, contemplando em seu leito
ou abraçando o mais belo dos filhos; o amor
da Mãe do divino adolescente, expandindo-se durante longos anos numa inefável intimidade;
o amor da Mãe do Messias, acompanhando ansiosamente
os êxitos e dificuldades do apostolado de seu Filho; o amor da Mãe dolorosa, unindo-se ao sacrifício
da divina vítima. Todos esses amores só podem ser da Mãe de Deus.
Maria os teria conhecido,
sem a maternidade divina?
Poder amar a Deus por um
amor tão singular, foi a primeira bem-aventurança que a divina maternidade concedeu
a Maria. Eis uma segunda, não menor que a primeira: saber-se amada por Deus com
um amor ainda mais singular. Se o Filho de Deus quis que Maria fosse uma digna Mãe
de Deus, também quis, desde o início, mostrar-se digno Filho de sua Mãe, e por isso
quis amá-la com o amor filial que cabe a um Deus. Qual não terá sido a consolação
de Maria, por se ver amada com um amor tão singular!
Amor incomensurável do
mais perfeito dos filhos dos homens, amor infinito de seu Deus; amor que a escolhia e predestinava antes de todas
as criaturas, juntamente com a humanidade de Cristo, que ao lado de Cristo era prometida
aos homens desde a queda de Adão, e que durante toda a Aliança lhes era apresentada
como sua grande consolação; amor que, já
na sua conceição, formava-a mais bela, mais pura, mais santa que todas as outras
criaturas, e que continuava a cumulá-la de graças e privilégios inauditos entre
os anjos e os homens; amor que levou o Criador
a receber de uma criatura, desde o início, sua substância humana; que o levou em seguida a receber todos os cuidados
exigidos no decurso de sua infância, a depender dela, a lhe ser submisso e a servi-la
como uma criança bem nascida serve à sua mãe; amor que a tornou digna de ser associada à Redenção,
a própria obra para a qual o Pai havia enviado seu Filho ao mundo;
amor pelo qual Ele a encarregaria
da distribuição de todas as graças; amor
que tornava a pobre serva do Senhor semelhante ao Homem-Deus durante sua vida, nas
suas graças e privilégios, nas suas virtudes e disposições, nas suas funções e retribuição,
em tudo o que não era incomunicável; amor
que chegou mesmo a fazer de um a imagem perfeita do outro, a Mãe e o Filho formando,
por assim dizer, uma só alma; enfim, amor
que levava o Verbo de Deus a ter mais afeição por sua Mãe do que por todas as outras
criaturas, mais alegria e mais glória na menor das ações de Maria, no menor dos
seus pensamentos do que no nascimento e nos atos mais heroicos dos seus santos e
dos seus mártires.
Entre o amor de Jesus por
Maria e seu amor pelos outros escolhidos existe ainda uma diferença não só de grau,
mas também de natureza. Às outras criaturas, o Filho de Deus ama como se ama a servos,
irmãos de adoção. Mas Jesus ama Maria como sua verdadeira Mãe. Ele a ama, e só a
Ela, com amor filial, chama-a minha Mãe desde o início, quando ainda criança, depois
como adolescente, depois como adulto, demonstrando-lhe infinito amor filial. Incomensurável
é essa bem-aventurança de saber que Ele a amou com esse amor filial desde toda a
eternidade, e que esse amor não terá fim, pois Jesus será sempre seu Filho, e sempre
Ela será sua Mãe.
Considerando pois a maternidade
divina -- não sob o aspecto abstrato de uma relação física com a humanidade de Cristo,
mas sem separar o que Deus uniu -- nós a contemplamos na sua realidade concreta,
tal como ela é e deveria ser. Quem não conclui então que, dentre os privilégios
da Virgem, é essa maternidade que goza de sua preferência? Qual outro privilégio
lhe possibilita ao mesmo tempo amar tanto a Deus e ser por Ele tanto amada?(A propósito
dessa preferência da Virgem pela sua maternidade divina dentre todos os outros privilégios,
pode-se perguntar se ela excluiria a possibilidade de uma devoção inteiramente especial
a algum outro de seus privilégios. A resposta é: de nenhum modo. A Igreja comemora
com a mesma alegria e pompa a festa de Natal, o Corpus Christi, a Santíssima Trindade.
Nossa sensibilidade se deixa tocar mais nas cerimônias das duas primeiras do que
na obscuridade metafísica da última.
Será também legítimo, em
tal época do ano, em tal santuário, em tal confraria ou sociedade religiosa, dedicar-se
mais a honrar a Imaculada Conceição de Maria, as suas dores, a sua Assunção, do
que honrar a maternidade divina. A aparente preferência que se dá a certos mistérios
secundários pode ser desejada por Deus, para melhor atrair a atenção dos fieis sobre
a inesgotável riqueza dos mistérios essenciais. Compreenderíamos menos bem a infinita
caridade da adorável Trindade sem a contemplação do Filho de Deus tornado criança
ou escondido sob as aparências de uma hóstia. Admiraríamos menos a inenarrável grandeza
da Mãe de Deus sem a meditação de sua Imaculada Conceição, de suas dores ou de sua
Assunção. Certas confrarias religiosas podem precisamente ter como missão providencial
a de contemplar e fazer contemplar um ou outro dos aspectos secundários do Filho
de Deus ou de sua Mãe. E a vontade de Deus deve reinar sobre todas as outras considerações.)
7º.
A maternidade divina, dos pontos de vista católico e protestante
Dentre os protestantes,
os que conservaram intacta a fé no mistério da Encarnação admitem a maternidade
divina de Maria. No entanto, divergem de nós por não a considerarem uma fonte de
grandezas incomparáveis. Para eles, Maria não passa de um instrumento físico necessário
à Encarnação, pois o Verbo precisava de uma mulher para ser gerado e nascer, e Maria
foi essa mulher, mas qualquer outra teria servido para a mesma finalidade. Ser chamada
para esta função constituiu para Ela, sem dúvida, uma distinção especial, mas segundo
eles isso não resultou em nenhum mérito real, como não foi maior o da mãe de Pascal
por ter gerado um matemático genial, ou o da mãe de Napoleão por ter dado à luz
o maior conquistador dos tempos modernos.
Completamente diferente
é a atitude dos católicos e a de certo número de cismáticos orientais. Aos olhos
destes, Maria foi escolhida não apenas como instrumento físico para uma obra material,
e sim como o instrumento moral de um mistério divino, agindo de modo consciente
e livre. Ela foi preparada, no que se refere ao seu corpo, para formar o corpo de
Jesus. E quanto à sua alma, para tornar-se digna Mãe de Deus.
Já mostramos como a atitude
católica se justifica com base na Sagrada Escritura. Também a justifica o procedimento
geral de Deus em relação aos instrumentos de que se serve para suas obras de misericórdia.
Quando Deus quer servir-se do homem para punir culpados, geralmente o toma como
instrumento inconsciente, não o elevando por isso a uma perfeição especial. Os madianitas
e os filisteus, no Antigo Testamento, serviram muito bem para castigar os israelitas
por sua idolatria; e Átila tornou-se o flagelo
de Deus no mundo cristão, sem para isso tornar-se santo. No entanto, tratando-se
de desígnios de misericórdia, em geral Deus não se serve dos homens como instrumentos
cegos. Mesmo não precisando de ninguém para realizar sua vontade, Ele se compraz
em escolher certos homens para se tornarem cooperadores livres em suas obras de
amor. Nesses casos, prepara os escolhidos para tal missão por meio de graças e aptidões
especiais.
Quanto mais a missão é
sublime, mais as graças e aptidões são excepcionais.
Aos onze Apóstolos que
escolheu para dar continuidade à sua obra, tornou-os santos. Cada vez que deseja
estabelecer na sua Igreja uma grande obra de amor, suscita como colaborador um homem
de virtude extraordinária, basta lembrar os fundadores de Ordens religiosas e os
grandes reformadores.
Poderia Ele agir de modo
diferente no que se refere àquela que viria a ser o instrumento de sua maior obra
de amor aos homens? O que são todas suas outras obras, comparadas à Encarnação?
Não são elas simples preparações, ou então consequências parciais? Para suas missões
secundárias, Deus sempre teve a preocupação de preparar dignos ministros. O que
não terá feito então no que se refere à criatura que escolheu desde toda a eternidade
para essa obra infinita, em torno da qual gira toda a História do céu e da terra?
A atitude dos católicos
em relação a Maria Santíssima é a única compatível com nossa ideia do amor de um
filho em relação à sua mãe, sobretudo quando Jesus Cristo é esse Filho.
A mãe é a obra-prima de
Deus, criatura maravilhosa, inefavelmente doce e terna, amorosa e sagrada. Para
formar seu filho, a mãe dá não somente sua cooperação física. Mais ainda, põe a
esse serviço sua inteligência, seu coração e sua vontade, tudo o que tem de melhor
em si mesma, para transmiti-lo ao pequeno ser que é seu prolongamento. Nenhum outro
dá de si tanto, nem durante tanto tempo, nem ao preço de tantos esforços, sacrifícios
e angústias. Existe algum outro amor criado que possa igualar-se a este?
Ao amor materno corresponde
a piedade filial. Todo filho bem nascido venera e ama sua mãe, tomando-a como um
ser infinitamente santo. Pouco importam seus defeitos, ela é sua mãe, é soberanamente
digna de respeito e afeição.
A criança conhecerá outros
sentimentos na sua vida, alguns deles mais arrebatadores, aos quais concederá algum
espaço antes destinado ao amor filial. Porém jamais conhecerá outro tão puro e desinteressado,
tão durável, tão apaziguador e nobilitante, pelo menos no campo da ordem natural.
Nas pessoas cuja piedade filial não teve a quem se manifestar, falta algo essencial
à alma, ainda que dotada de grande retidão. Naquelas em que a piedade filial deixou
de existir, toda nobreza está definitivamente extinta. Onde ela persiste, mesmo
em meio ao vício, a esperança de uma ressurreição continua a brilhar.
Deus é o criador da mãe,
tornando-a essa maravilha. É também o criador da piedade filial, posta no coração
de todos os filhos. Para que o filho jamais esqueça seus deveres em relação à sua
mãe, deixou expressamente um Mandamento no Antigo Testamento, inscrito no alto da
segunda Tábua da Lei. No Novo Testamento, o Filho de Deus feito homem reivindicou
altivamente para a mãe os seus direitos, contra as deformações hipócritas dos fariseus.
Acaso não teria esse mesmo
Filho de Deus compreendido as infinitas delicadezas do amor materno nem as sagradas
obrigações da piedade filial? Se nós, apesar de todas as nossas maldades, daríamos
à nossa mãe todas as perfeições que pudéssemos, teria tido o Filho de Deus menos
amor à sua Mãe do que nós pelas nossas? Não a honraria Ele tanto quanto pudesse?
O conceito católico sobre
a Mãe de Deus corresponde simplesmente à convicção de que Jesus foi um Filho perfeito,
no qual triunfou a piedade filial. Quanto ao conceito protestante, não passa da
suposição de que a piedade filial não é uma virtude, ou então que Jesus teria sido
um mau filho, pelo menos um filho que não conseguiu compreender um dos sentimentos
mais delicados e mais puros do coração humano.
Apesar das posições sustentadas
pelos teólogos protestantes, alguns dos nossos irmãos separados ousam venerar aquela
de quem Deus se dignou tornar-se filho, ou pelo menos sentem falta da piedade católica
nesse ponto, voltada para a humilde, doce, inteiramente virginal e inteiramente
amorosa Mãe de Jesus.
O que procuramos contemplar
nas páginas precedentes nos deixa entrever, ainda que vagamente, a glória inconcebível
e a felicidade sem limites da Mãe de Deus. Dessa glória e dessa felicidade nós participamos,
pois Maria nos pertence. Não foi entre os anjos, e sim na nossa raça decaída, entre
as nossas irmãs em Adão, que Deus escolheu uma criatura para torná-la sua Mãe, elevando-a
a tal grau, ornando-a com tal beleza, amando-a com tal amor, que ultrapassa tudo
o que jamais fez por todas as inteligências celestes.
Na maternidade divina há
algo que nos toca de mais perto ainda do que essa honra: a Mãe de Deus é também
nossa Mãe. Veremos que é pelo fato de ser Mãe de Deus que Maria é nossa Mãe. Os
Padres da Igreja afirmam: "Deus se tornou homem para que o homem se torne Deus".
E podemos acrescentar: "Tornando-se homem, Deus tomou para si uma Mãe humana,
para que o homem tivesse por Mãe uma Mãe de Deus".
Capítulo,
2º. MATERNIDADE ESPIRITUAL, COMPLEMENTO DA MATERNIDADE DIVINA
A Mãe de Deus é também
nossa mãe, por ser mãe do Corpo Místico de Cristo. De acordo com a eterna vontade
de Deus, Cristo se tornou a cabeça desse Corpo Místico que nós formamos junto com
Ele. Mas Deus não o determinou assim por dois decretos sucessivos -- pelo primeiro,
que o Filho se tornasse Filho de Maria; e
Chefe (cabeça) da humanidade pelo segundo. Por um único decreto, decidiu que seu
Filho se tornasse Filho de Maria, a fim de ser também Chefe da humanidade. Desde
o primeiro instante da sua maternidade, Maria tinha em seu seio Cristo unido a todos
os membros de seu corpo místico. Este é o ensinamento do Papa Pio XI na encíclica
Ad diem illum: "No próprio seio castíssimo da Virgem, Cristo se uniu a um corpo
espiritual, formado de todos os que deviam crer nele; e pode-se dizer que, tendo Jesus em seu seio, Maria
portava ainda todos aqueles aos quais a vida do Salvador devolvia a vida".
Deus não faz nada pela
metade, imprime em todas as suas obras um cunho de plenitude. Esse cunho, Ele o
devia imprimir especialmente em suas duas obras-primas -- Cristo e Maria. Era conveniente,
e quase se poderia afirmar ser imperioso, que Deus fizesse da Mãe de Cristo a Mãe
de todos os que formam com Ele um só corpo, se não quisesse parar no meio do caminho.
Isso se impunha tanto mais por ter Maria dado a humanidade ao Filho de Deus, precisamente
para que Ele pudesse tornar-se o Chefe do gênero humano.
Tornando-nos Filhos de
Deus com Cristo, ficamos em tudo identificados com Ele: Quem nos faz o bem, o faz
a Cristo; quem nos persegue, persegue a Cristo;
a vida dele é a nossa vida. Seus mistérios
e prerrogativas são também os nossos: Com Ele devemos sofrer, morrer e ser sepultados;
com Ele devemos reviver e ressuscitar; com Ele nos tornamos herdeiros do Pai, seremos
glorificados, ocuparemos lugar na morada celeste. Portanto, juntamente com Ele devemos
também ser filhos de sua Mãe.
É evidente que Maria não
pode tornar-se mãe dos homens por meio da vida natural, como o fez com Jesus. Mas
Cristo não é mesmo Cabeça da humanidade no que se refere à vida natural, e sim pela
vida divina, o mesmo devendo-se dizer a respeito de Maria. Jesus recebeu de Maria
a vida natural a fim de conseguir fazer-nos viver a vida sobrenatural; e Maria tornou-se Mãe natural de Jesus para tornar-se
nossa Mãe sobrenatural.
A união necessária entre
a maternidade espiritual de Maria e a maternidade divina conduz logicamente a que,
em qualquer tratado de Mariologia, o capítulo da maternidade espiritual deva ser
colocado imediatamente em seguida ao da maternidade divina, e não no fim do tratado,
como geralmente ocorre. Ainda outro motivo exige esta colocação, pois os outros
privilégios de Maria lhe foram dados não somente em vista da sua maternidade divina,
mas também em vista da sua maternidade espiritual, isto é, da sua função de Mãe
do Corpo Místico de Cristo. Cometi também este erro de perspectiva na primeira edição
deste livro.
1º.
Significado da maternidade espiritual de Maria
Até os católicos menos
instruídos sabem que Maria é sua Mãe. Antes mesmo de ter ouvido pronunciar as palavras
Imaculada Conceição, virgindade, Assunção, toda criança que já consegue balbuciar
uma oração sabe que a Mãe de Jesus é também sua Mãe. Mas qual o significado exato
deste título? Grande é o número dos cristãos que, mesmo sendo devotos da Virgem,
têm sobre a maternidade espiritual uma compreensão bem imperfeita e limitada. Nossa
piedade filial para com Maria, que tem seu fundamento nessa maternidade, não pode
deixar de ser imperfeita e limitada se ela é mal compreendida.
No entendimento de alguns,
Maria é chamada nossa mãe porque nos ajuda e nos ama como se fosse nossa mãe. Esse
nome suave, aplicado a Ela, exprimiria portanto apenas uma maternidade metafórica,
inefavelmente doce como se quiser, mas simples maternidade figurativa e não verdadeira.
Outros veem nesse título
de mãe a expressão dos cuidados que empreende para nos nutrir e ensinar. Ela nos
prodigaliza tantos favores espirituais para fortificar nossa vida sobrenatural,
para desenvolvê-la e preservá-la de todo perigo; cumula-nos de tantos favores naturais em saúde
e doença, em todas as circunstâncias da nossa vida, que jamais uma mãe verdadeira
fez a centésima parte disso para o mais querido dos seus filhos. Porém, cabe aqui
perguntar se uma enfermeira pode ser considerada mãe.
Para outros, Maria é nossa
mãe adotiva. No momento em que seu Filho único agonizava, designou para ocupar seu
próprio lugar o discípulo bem amado, João, e na pessoa dele todos os discípulos
atuais e futuros: "Mãe, eis aí vosso filho. Filho, eis vossa mãe". Nessa
hora, Maria teria adotado como filhos aqueles que o amor de seu Filho lhe confiava,
e daí em diante Ela os teria tratado como se os tivesse posto no mundo.
É verdade, como mostraremos
adiante, que a palavra de Cristo na cruz se referia à maternidade espiritual de
Maria, mas querer procurar nessa palavra o fundamento da sua maternidade resultaria
em fazer desta uma ideia bem superficial. Seria algo de puramente acidental, baseado
numa palavra que Nosso Senhor teria podido não pronunciar, de qualquer forma algo
extrínseco a Maria e a nós, tendo em vista que: uma adoção é apenas uma ficção legal;
a adoção confere ao adotado os direitos de
um filho, mas não pode fazer dele um filho verdadeiro; confere ao adotado os bens exteriores, mas não
pode fazer com que receba as características naturais do pai ou mãe adotivos. A
maternidade espiritual de Maria é de fato uma realidade bem mais íntima do que uma
simples adoção humana,uma realidade ligada a toda a missão, a toda a razão de ser
da Virgem. (Veremos adiante em que sentido podemos ser chamados filhos adotivos
de Maria.)
2º.
Maria nos transmite a vida sobrenatural
O que significa a maternidade
espiritual? Por ela entendemos que Maria nos deu a vida sobrenatural, tão verdadeiramente
como nossas mães nos deram a vida natural. Da mesma forma como nossas mães o fazem
para nossa vida natural, Ela alimenta, protege, desenvolve e expande nossa vida
sobrenatural a fim de conduzi-la à perfeição.
Todo homem compreende a
realidade da vida natural, pois a vemos, tocamos, sentimos e percebemos em todas
as nossas atividades exteriores e interiores. Por assim dizer, ela se confunde com
a nossa identidade, e só tomamos consciência da nossa individualidade sentindo-nos
viver. Ela é a grande realidade, de tal modo cara a nós que, se necessário, fazemos
por sua conservação o sacrifício de todos os nossos outros bens terrestres, fortuna,
prazeres, ambições.
A fé nos ensina que, ao
lado dessa vida, há para o cristão uma outra, dita sobrenatural ou espiritual, ou
ainda estado de graça. Porém, como esta vida não pode ser vista, tocada nem constatada
diretamente, a muitos cristãos ela parece algo vago, etéreo, inconsistente, algo
até negativo tratando-se da ausência de pecado grave. Ou então, se nela há algo
positivo, resume-se a uma relação exterior de amizade entre a alma e Deus. No entanto,
essa vida sobrenatural é uma realidade bem superior a qualquer outra realidade criada,
bem superior especificamente a essa vida natural que nos é tão cara. Os mártires
sacrificaram alegremente sua vida natural em favor dela, e nós também devemos estar
dispostos a perder nossa vida natural ao invés do estado de graça, a exemplo do
Filho de Deus, que encarnou e deu sua vida para que pudéssemos merecer essa vida
da graça.
Em que consiste essa vida
sobrenatural tão impalpável, no entanto tão preciosa? Ela é a própria vida de Deus,
a vida de Cristo em nós. São Pedro afirma que por meio dela nós nos tornamos "participantes
da natureza divina". São Paulo escreveu: "Já não sou eu que vivo, é Cristo
que vive em mim"; "Minha vida é
Cristo"; ensina ainda que nos tornamos
um só corpo com Jesus Cristo, que é nossa Cabeça. Em um corpo, a mesma vida que
anima a cabeça anima também os membros, e o próprio Jesus Cristo, antes de São Pedro
e São Paulo, ensinou aos seus discípulos: "Eu sou a videira e vós sois os seus
ramos. Aquele que permanece em mim, e Eu nele, produz muitos frutos". A mesma
seiva circula no tronco e nos galhos, a mesma vida circula em Cristo e em seus discípulos.
Essa participação na vida
infinita e eterna de Deus nos é comunicada por Maria. Como é que Ela o faz? A isso
se pode responder: Nossa vida é Cristo, e Maria nos deu Cristo, portanto nos deu
nossa vida. Pode-se responder ainda, tendo em vista que é por meio da graça que
partici-pamos da vida de Cristo: Sendo nossa vida sobrenatural a graça, Maria nos
dá nossa vida sobrena-tural por ter merecido para nós e distribuir-nos todas as
graças.
3º.
Ação de Maria no nosso nascimento sobrenatural
A fim de examinarmos mais
detidamente a ação de Maria no nosso nascimento sobrenatu-ral, podemos distinguir
nele três momentos. O primeiro momento é a Anunciação. Nossa regeneração espiritual
começou no mistério da Encarnação, sem a qual estaríamos ainda sepultados na morte
do pecado. Porém a Encarnação foi operada por Deus em Maria, que nesse mistério
não foi apenas um instrumento físico e cego. Conhecia por meio dos profetas as consequências
que sua resposta ao anjo Gabriel iria acarretar para Ela e para nós, e Deus certamente
a esclareceu ainda mais sobre isso naquele momento. Deu o seu consentimento, ciente
de que dele dependia nossa vida ou morte. Pelo seu fiat, consentia no nosso nascimento
sobrenatural, consentindo naquilo em que sua maternidade nos dizia respeito.
Supondo-se portanto que
Cristo não tivesse no Calvário confiado o discípulo João à sua Mãe, e supondo mesmo
que a Virgem tivesse deixado a terra imediatamente depois do nascimento de seu Filho,
ainda assim Ela seria em toda a realidade nossa Mãe.
Pode-se afirmar, de acordo
com certos autores e com o próprio Papa São Pio X, que ao conceber Jesus, cabeça
do Corpo Místico, Maria também concebeu a nós, pois somos os membros desse Corpo
Místico, e os membros estão unidos à cabeça num único conjunto. À primeira vista,
esse raciocínio pode parecer apenas um argumento analógico fraco, pois se passa
da ordem física à ordem espiritual, como se disséssemos: Maria concebeu fisicamente
a cabeça do corpo místico, e supõe-se que tenha dado aos membros a vida sobrenatural.
Mas é necessário considerar que à Cabeça Ela deu diretamente a vida física, e a
finalidade era que os membros viessem a receber dessa Cabeça a sua vida espiritual.
A intenção se transformava assim em fato -- pois desde então se inaugurava o mistério
da Redenção -- e os membros se achavam unidos à Cabeça.
Portanto não se trata de
simples analogia, e sim de uma realidade que se explica pelo fato de Maria carregar
todos nós espiritualmente em seu seio, com seu Primogênito.
O mistério da Encarnação
se completa com o da Redenção. Foi somente por sua morte que Cristo completou "a
destituição daquele que detinha o império da morte" e nos mereceu definitivamente
viver da sua vida. A cooperação de Maria para a Redenção foi não menos consciente
do que sua cooperação na Encarnação. Nossa regeneração espiritual, iniciada no mistério
da Encarnação, foi finalizada na Redenção. Da mesma forma a maternidade espiritual
de Maria, que começou na Anunciação e se completou na Redenção. Em Nazaré Maria
nos concebeu, no Calvário nos deu à luz. A mesma Virgem, a quem tanta alegria foi
dada no nascimento de seu Filho único, padeceu as angústias mais mortais por ocasião
do nascimento dos outros filhos que somos nós.
Antes de expirar, Nosso
Senhor quis dar-nos uma indicação dessa maternidade espiritual, proclamando que
sua Mãe é também nossa Mãe, e confiando-a a nós na pessoa de São João. Mas sua palavra
não criou essa maternidade, apenas a proclamou e a confirmou na hora mais solene
de sua vida. Nessa hora, tal maternidade se consumou pela consumação do mistério
da Redenção, e Maria estava então mais preparada para compreender toda a plenitude
do seu significado. Sem dúvida essa palavra, eficaz como todas as palavras divinas,
tornou mais profundos e mais vivos ainda os sentimentos maternos de Maria por nós.
4º.
Maria dá vida a cada alma, obtendo-lhe a graça divina
A função materna de Maria
não cessa com esse doloroso nascimento. Ao estudarmos a função de Mediadora universal,
mostraremos que Maria prossegue no céu sua missão de co-redentora, distribuindo
agora a cada alma as graças que as ajudou a merecer. Por essa mesma função, continua
sendo no céu nossa Mãe -- ou seja, Mãe de cada um de nós em particular -- após ter-se
tornado, em Nazaré e no Calvário, a Mãe de todos em geral.
Mesmo após nosso resgate
por Nosso Senhor, não nascemos no estado em que nasceríamos se Adão não tivesse
pecado. Do ponto de vista sobrenatural, somos todos natimortos no momento do nascimento,
e é preciso que a vida sobrenatural conquistada para todos pela morte de Cristo
seja infundida em cada um de nós individualmente. Mas a graça santificante, como
todas as graças, é obtida para nós por Maria. No batismo, o filho do pecado se torna
filho de Deus; no confessionário, o cadáver
espiritual se reanima, readquire a vida e se torna filho de Deus pela ação de Maria.
Sem a graça de vida que Ela obtém, a morte espiritual permaneceria. Ninguém renasceria
para a vida divina sem que Maria a tivesse obtido sobrenaturalmente.
Ao pé da cruz "Ela
estava triste, pois sua hora havia chegado". Hora de angústias indizíveis,
consequências da maldição de Eva. Mas o que existe atualmente é a inefável renovação
da alegria que teve no nascimento virginal, naquela hora inesquecível em que, na
gruta de Belém, deu ao mundo Jesus Cristo, seu Primogênito. Atualmente aquela alegria
se renova ao dar à luz os membros do Corpo Místico.
Por sua tríplice colaboração
na Encarnação, na Redenção e na distribuição das graças divinas -- a qual só é tríplice
no que se refere à execução, mas que é uma só na sua intenção -- Ela nos deu verdadeiramente
a vida sobrenatural e a colaboração para nosso nascimento como filhos de Deus, da
mesma forma que nossas mães contribuíram, segundo a natureza, para nosso nascimento
como filhos de Adão.
5º.
Perfeição da maternidade espiritual de Maria
Estaremos dizendo o suficiente
ao afirmar que Maria contribuiu verdadeiramente para nosso nascimento espiritual
tanto quanto nossas mães para nosso nascimento natural? Não terá ela contribuído
bem mais?
À primeira vista, é verdade
que a maternidade espiritual de Maria pode parecer menos real que a maternidade
natural de nossas mães. A vida sobrenatural da qual vivemos, foi Deus que a criou,
e não Maria, instrumento secundário na comunicação que dela nos faz Deus. Respondemos
que sem dúvida é assim, mas esse é precisamente o caso de nossas mães em relação
à nossa vida natural. Esse ser maravilhoso que é um filho não pode ser criado por
uma simples criatura humana. Só Deus cria os elementos que formarão seu corpo e
a vida que o animará. Só Deus cria e infunde nesses elementos a alma racional. A
mãe é apenas o instrumento secundário do qual Deus se serve para comunicar a vida
natural à criança. Da mesma forma, Maria é o instrumento secundário pelo qual Ele
quer nos comunicar nossa vida sobrenatural.
Como instrumento secundário,
Maria desempenha uma atividade incomparavelmente superior à de nossas mães, que
nem sequer sabem como elas próprias operam essa maravilha humana, nem quais serão
as qualidades da maravilha que elas operam. A mãe dos macabeus disse aos seus sete
filhos, no momento em que iam ser martirizados: "Não sei como aparecestes nas
minhas entranhas. Não fui eu quem vos deu o espírito e a vida, nem fui eu quem juntou
os elementos que compõem vosso corpo". Porém Maria conhece sua atividade sobrenatural,
na qual põe toda sua inteligência, todo o seu coração, toda a sua vontade, e nisso
pôs antes todas as suas angústias. Ela conhece exatamente todas as qualidades e
todas as energias sobrenaturais dos que gera para a graça.
É verdade ainda que nossas
mães deram uma parte da sua substância para nos comunicar a vida, e que Maria não
operou desse mesmo modo para nos fazer nascer sobrenaturalmente. Admitimos, mas
isso prova somente que Maria nos dá uma vida superior à vida física. No campo das
coisas materiais é necessário, para dar algo, desfazer-se daquilo que se dá, mas
no campo espiritual não se passa o mesmo. Sem desfazer-se do que possuem, o sábio
comunica sua ciência, o orador sua emoção, o santo seu amor por Deus. Vivendo plenamente
de Deus, Maria nos faz viver dessa vida divina da qual vive, embora conservando-a
inteira. Não é também assim que Deus nos dá a vida? Ele nos faz viver de nossa vida
natural e de nossa vida sobrenatural sem dispensar a posse de parte da sua substância,
no entanto é nosso Pai verdadeiro e único, pois "de toda paternidade é titular
no céu e na terra". De acordo com o ensinamento de Nosso Senhor, nós só temos
"um Pai, que está nos céus".
Essas mesmas objeções já
provam a superioridade da vida que recebemos de nossa Mãe espiritual, em relação
à vida natural, mas resplandece sobretudo pela comparação direta entre as duas vidas.
O que estabelece desde o início uma distância de algum modo infinita entre a vida
que recebemos de nossos pais e a que Maria nos comunica, é que esta última é a própria
vida de Deus. Sermos participantes da natureza divina, vivermos da vida de que vive
a adorável Trindade, podermos dizer que por essa vida nos tornamos um com Cristo,
que o princípio que o anima é o mesmo que nos anima, que seu Pai é nosso Pai --
todos estes são mistérios que nos deixarão encantados durante toda a eternidade.
E quem nos gera para essa vida é Maria. Tornando-nos participantes da vida divina,
Ela nos torna participantes também dos atributos dessa vida, de acordo com a medida
de nossa capacidade.
Para Ela, nós vivemos de
uma vida destinada a durar sem fim, como a de Deus. A vida que nossas mães naturais
nos dão termina em um instante, aparece como uma centelha e logo se extingue. Que
simulacro de vida esse, quando comparado a uma vida que ainda estará no seu começo
após milhares de séculos!
Por essa vida sobrenatural
nós vivemos de uma vida inefavelmente feliz, à semelhança da vida de Deus. Nossas
mães naturais nos geram na dor e também com a dor, dando-nos uma vida que se vive
num vale de lágrimas. Quem pode enumerar os sofrimentos, angústias, decepções e
arrependimentos de que ela é feita? No entanto a vida que recebemos de Maria é uma
vida de felicidade aqui na terra, em meio às provações da nossa vida natural. E
será também de incompreensível felicidade na eternidade, quando participaremos da
própria beatitude de Deus. Quão maravilhosa é essa maternidade que nos comunica
tal vida!
Ao lado dessas diferenças
essenciais entre as duas maternidades, há outras menos fundamentais, embora também
muito importantes. A vida que Maria nos concede pode ser-nos restituída, se a perdemos.
Quando morre um filho, sua mãe chora e se lamenta, mas as lágrimas e o desespero
da infeliz não restituem a vida ao cadáver, pois só uma vez ela pode comunicar a
vida a esse pequeno ser. Ao contrário, nossa Mãe celeste tem o poder de restituir
a vida aos seus filhos inúmeras vezes, até que, por uma decisão obstinada, escolhem
para si a danação eterna. Podem perdê-la cem vezes, mil vezes, até mesmo por uma
falta grave, e ainda recorrer a Ela para obter seu perdão. Ela mesma é quem os incita
a pedir a restauração da vida divina.
Após ter dado ao mundo
seus filhos, as mães terrestres os alimentam, ensinam, cuidam de suas necessidades
materiais e morais. Entretanto prodigalizam esses cuidados carinhosos apenas durante
alguns anos, pois chega o momento em que eles se distanciam para iniciar uma existência
independente. Não é isso o que ocorre com nossa Mãe celeste, que precisará intervir
durante toda nossa vida em todas as nossas necessidades espirituais. Durante toda
nossa permanência nesta terra, prosseguimos na condição de filhos que têm necessidade
da mãe para qualquer movimento, pois nada podemos fazer no campo sobrenatural sem
a graça, e todas as graças nos são dadas por nossa Mãe celeste. Como São Paulo,
porém com maior veracidade, Ela pode nos dizer: "Meus filhinhos, por quem sofro
novamente as dores do parto, até que Cristo não se tenha formado em vós".
É necessário estudar ainda
outro aspecto muito importante dessa maternidade. Uma palavra pode resumir a ideia
de mãe -- o amor. Mas o que pode valer o amor da mãe humana mais terna que se possa
imaginar, comparado ao amor que nos tem nossa Mãe celeste? Maria nos ama como só
é possível à mãe mais perfeita que a natureza e a graça puderam formar, ama-nos
com o mesmo amor que dedica a Jesus, pois somos um só com Ele.
Para se elevarem das qualidades
das criaturas até os atributos de Deus, os teólogos empregam um duplo método, que
é o da eliminação e o da eminência. Consiste o primeiro em eliminar das qualidades
tudo o que implicasse em uma imperfeição, e o segundo em levar a um grau supremo
o que implicam de perfeição positiva. Guardadas todas as proporções, parece-nos
que podemos também seguir método análogo para nos elevarmos da maternidade natural
das nossas mães terrestres até a maternidade espiritual de Maria. Tudo que nas nossas
mães constitui imperfeição, defeito, fraqueza, tudo que as impede de ser plenamente
mães, está ausente em Maria. Tudo que o conceito de mãe contém de perfeição e atividade
positiva encontra-se em nossa Mãe celeste, porém no grau mais alto que possamos
conceber em uma criatura. Maria, e somente Maria, possui em toda sua pureza e em
toda sua plenitude a maternidade, e nossas mães o são apenas na medida em que se
assemelham a essa Mãe ideal.
Vemos assim o quanto é solidamente fundamentada
a afirmação que fizemos anteriormente, de que somos verdadeiros filhos de Maria,
não simples filhos adotivos. Pode-se entretanto aplicar este último título aos cristãos,
se com isso queremos exprimir que eles não são seus filhos por natureza, como Jesus,
e que só se tornaram filhos no momento em que a vida sobrenatural lhes foi infundida.
Quanto a essa vida sobrenatural, não são seus filhos adotivos, pois nasceram de
Maria no momento em que nasceram para a vida sobrenatural. Sabe-se que os termos
humanos pelos quais exprimimos as realidades divinas não se aplicam a elas literalmente,
e sim por analogia, como dizem os teólogos. Portanto, quando dizemos que Maria é
nossa Mãe verdadeira, não queremos evidentemente dizer que Ela seja nossa Mãe no
sentido físico da palavra. Da mesma forma com relação ao sentido da palavra Pai,
que damos a Deus.
Entendemos que Ela é nossa
Mãe verdadeira no mesmo sentido em que Nosso Senhor nos disse que nosso Pai verdadeiro
é aquele que está nos céus.)
6º.
A maternidade espiritual de Maria, verdade revelada
O ensinamento do Novo Testamento
contém indicações suficientemente nítidas, que nos permitem ver na Mãe de Jesus
a Mãe de todos os homens, ou pelo menos pressenti-lo. Inicialmente a palavra de
Jesus na cruz, legando Maria a João e João a Maria. É o próprio São João que o relata:
"De pé ao lado da cruz de Jesus estavam sua mãe, a irmã de sua mãe, Maria Cléofas,
e Maria Madalena. Tendo visto sua mãe, e de pé ao lado dela o discípulo que amava,
disse à sua mãe Mulher, eis vosso filho. Em seguida disse ao discípulo Eis vossa
mãe. A partir dessa hora o discípulo levou-a para sua casa". Afirmamos acima
que a palavra do Senhor agonizante não criava a maternidade espiritual de Maria,
mas proclamava-a no momento mesmo em que tal maternidade se concluía sobre a terra.
Uma exegese rigorosa permite
ver realmente nessa passagem uma alusão à maternidade espiritual de Maria em relação
a nós. Ou seria a palavra de Jesus apenas um simples ato de piedade filial, confiando
ao discípulo amado aquela que, viúva após a morte de São José, iria daí em diante
permanecer sozinha na terra? É certo que Nosso Senhor teve essa preocupação. Mas
é certo também que sua palavra teve outro sentido mais profundo, que a Tradição
reconheceu após longos séculos.
Se São João nos relatou
esse episódio, é porque viu nele um significado simbólico. Ele conhecia sobre o
Mestre tantas coisas, que pôde afirmar: "Se fossem contadas detalhadamente,
o mundo inteiro não bastaria para conter os livros necessários para descrevê-las".
Menciona somente as que lhe parecem conter um mistério especial. Bem mais que os
outros evangelistas, desvenda sentidos ocultos nos fatos que relata. Para limitar-nos
ao relato da Paixão, ele nota uma profecia na palavra de Caifás aos representantes
do Sinédrio: "Vós não entendestes nada, nem considerais que é útil e necessário
um homem morrer por seu povo, a fim de que não pereça toda a nação". E acrescenta:
"Caifás não o disse por si mesmo, porém, como era o sumo sacerdote naquele
ano, profetizou que Jesus ia morrer por sua nação". Na própria cena da crucifixão,
pouco depois da palavra de Jesus a Maria e a ele, narra como do lado de Jesus transpassado
pela lança saía água e sangue.
E insiste: "Quem o
viu, deu seu testemunho, e seu testemunho é verdadeiro, e ele sabe que diz a verdade
a fim de que vós também o creiais". Evidentemente esse detalhe lhe parece tão
importante por causa do seu significado místico.
No episódio que estamos
estudando, se ele menciona o dom que Cristo agonizante lhe fez, evidentemente não
terá sido para exibir-se dentro dessa cena. Quando fala de si mesmo, só o faz movido
pela necessidade de explicar certos incidentes da vida do Mestre. Portanto ele via
um mistério na palavra de Jesus, e sem dúvida estava consciente de que Cristo, ao
confiar-lhe sua Mãe, dirigia-se a toda a coletividade dos discípulos, que ele representava.
Esta conclusão parece ainda
mais natural quando notamos que nesse momento João devia ter claramente na lembrança
as maravilhosas expansões do Senhor após a última ceia. Tanto o havia impressionado
esse discurso e prece sacerdotal -- no qual, depois de dar aos seus discípulos seu
corpo e seu sangue como alimento e como bebida, afirmava que sua própria vida era
a vida deles, que seu Pai era o Pai deles, e lhe enviaria seu Espírito, -- que os
relataria sessenta anos mais tarde no seu evangelho, com uma fidelidade comovida.
Nesse momento em que ouvia o Mestre confiar-lhe sua Mãe, era natural que considerasse
esse novo dom como o complemento dos outros dons, como a consequência natural da
vida de Cristo nele e em todos os discípulos.
Quanto a Maria, tão atenta
em meditar todas as palavras e ações de seu Filho desde que Ele nasceu, estava incalculavelmente
mais apta do que João a penetrar esses mistérios de amor, percebendo naquela suprema
recomendação de seu Filho a intenção de vê-la ocupar-se de todos os irmãos em Cristo
como uma mãe. Se Jesus tivesse apenas a intenção de confiar à solicitude do discípulo
amado o futuro material de sua Mãe, bastaria exprimir essa ideia uma vez, mas repete
duas vezes o mesmo pensamento, dirigindo-se em cada uma delas a uma das pessoas
interessadas, como querendo ressaltar a importância do dom que fazia. Dirige-se
inicialmente a Maria, dizendo Mulher, eis o vosso Filho, deixando claro que confiava
antes de tudo à sua Mãe uma missão. Depois, dirigindo-se a João, acrescenta Eis
aí vossa Mãe, confiando também a ele uma missão.
É de se ressaltar que Salomé,
mãe de João, estava presente no Calvário entre as santas mulheres, o que torna claro
que a maternidade de Maria em relação a João designava uma realidade de ordem superior.
É difícil avaliar até que ponto o discípulo entrevia o sentido místico dessa palavra,
mas o Mestre certamente lhe dava o significado espiritual que nós lhe atribuímos.
Ele não teria pronunciado essa palavra, ou não teria permitido que João a relatasse,
se nelas não tivesse incluído a intenção que a Igreja viria a descobrir. Basta-nos
que Jesus tenha pensado na maternidade espiritual de Maria, quando confiou sua Mãe
a João, para que tenhamos o direito de nos declararmos herdeiros desse legado de
amor. Depois do século 18, muitos Papas, sobretudo os mais recentes, têm frequentemente
atribuído esse sentido espiritual ao testamento de Cristo na cruz.
Do mesmo modo, o ensinamento
de São Paulo nos conduz a aceitar a maternidade espiritual de Maria. Paulo se alegrava
ao nos descrever as maravilhas do mistério pelo qual formamos um corpo único com
Jesus. Por sermos membros de Cristo, devemos participar nas diferentes fases da
vida de Cristo: Sofrer com Ele, ser crucificados com Ele, ser sepultados com Ele,
ressuscitar com Ele, reinar com Ele, ser com Ele filhos e herdeiros de um mesmo
Pai. Nada mais natural do que procurarmos a sua intenção e concluirmos que devemos
também ser concebidos e nascer de Maria com Ele, ter a mesma Mãe que Ele. Eis uma
conclusão tão legítima que, de acordo com o próprio São Paulo, Cristo nos mereceu
a adoção como filhos de Deus quando nasceu de Maria: "Chegada a plenitude dos
tempos, Deus enviou seu Filho nascido de uma mulher, a fim de resgatar os que estavam
sujeitos à lei, e para que recebêssemos a adoção de filhos.
A maternidade espiritual
de Maria foi ensinada explicitamente, mais rápido do que se poderia esperar. Em
torno do ano 200, Santo Irineu de Lyon afirmou que, com o nascimento de Cristo,
"o seio da Virgem fazia renascer os homens em Deus". É praticamente esta
a palavra de São Pio X no início do século 20: "Ao portar Jesus no seu seio,
Maria portava ainda todos aqueles para os quais a vida do Salvador continha a vida".
No século 4, ao refutar
a heresia dos antidicomarianistas, (inimigos do culto de Maria) Santo Epifânio ressaltou
que o grande nome de Mãe dos vivos só se refere à primeira mulher por alusão, pois
Eva foi exilada do Paraíso. Na realidade, refere-se a Maria, pois "dando à
luz o [Deus] vivo, tornou-se também Mãe dos Vivos". (Citam-se geralmente dois
ilustres Padres da Igreja como tendo ensinado nitidamente a maternidade espiritual
de Maria. O primeiro foi Orígenes, do século 3, no Comentário do Evangelho Segundo
São João: "O cristão verdadeiro não vive, pois é Cristo que vive nele. Maria
ouviu Cristo dizer sobre isso: Eis o teu filho, o Cristo. Mas o contexto mostra
que Orígenes não pretende atribuir a Maria uma função materna em relação ao cristão
perfeito, e sim provar que o cristão perfeito é um outro Cristo.
Cita-se ainda, com mais
frequência, um texto de Santo Agostinho, o maior dos Padres latinos, no tratado
De Sancta Virginitate: "Somente Maria, entre as mulheres, é mãe e virgem, não
apenas segundo o espírito, mas ainda segundo a carne. Segundo o espírito, Ela não
é mãe de nossa Cabeça, o Salvador Jesus, do qual ela mesma, mais do que isso, nasceu
espiritualmente. Mas Ela é mãe de seus membros, que somos nós, pois colaborou por
meio da sua caridade para que nascessem na Igreja os fieis, que são membros dessa
Cabeça. Segundo o corpo, Ela é Mãe da própria Cabeça". A afirmação da maternidade
espiritual de Maria é clara. Mas o santo doutor reconhece a mesma maternidade espiritual
a todas as almas virgens que, "por sua caridade fecunda, dão à luz os membros
de Cristo". Portanto não se trata aqui dessa maternidade espiritual própria
a Maria, que se fundamenta na cooperação nos mistérios da Encarnação e Redenção.)
Entretanto o nome de mãe
parece ter sido dado a Maria só raramente até o fim da Idade Média. São Bernardo
ainda não o conhecia, e nesse tempo Maria era sobretudo a Dama, (Senhora) Nossa
Senhora, à qual se erguiam maravilhosas catedrais, todas dedicadas ao seu nome.
Porém as funções maternas de Maria -- dar-nos a vida e fazê-la crescer em nós --
eram nitidamente proclamadas. A doutrina da maternidade espiritual era portanto
afirmada, mas em geral não se dava o mesmo com a palavra. Da mesma forma, nas origens
do cristianismo a doutrina da maternidade divina era universalmente admitida, sem
que se pensasse durante quase três séculos em aplicar à Virgem o título de Mãe de
Deus.
Pouco depois de São Bernardo,
o nome de Mãe dado a Maria aparece de cá e de lá, cada vez mais frequentemente.
Sobretudo a partir do século 15, parece que as pessoas gostam de ver na Virgem não
somente a Dama, mas também a Mãe. A piedade se junta a isso, e a denominação se
difunde rapidamente. Não cessou de ganhar adeptos depois disso, a ponto de tornar-se
a preferida, senão no campo da teologia, pelo menos no da devoção. Para muitos fiéis
atualmente, a Mãe de Deus tornou-se não somente sua Mãe, mas sua Mamãe.
Como a ideia de mãe parece
suficientemente clara, muitos se contentaram com ela, sem se preocupar em explicar
o sentido exato e o fundamento da maternidade de Maria. Quando certos pregadores
e autores espirituais refletiram sobre a explicação, pensaram ter encontrado um
argumento fácil nas palavras de Cristo agonizante a Maria e a São João. Pelo fato
de verem nessas palavras mais que a simples afirmação de tal maternidade, e seu
próprio fundamento, atribuíram-lhe uma espécie de força sacramental, como se elas
pudessem realizar aquilo que significavam, criando em Maria todas as características
de uma Mãe perfeita. Sem dúvida isso significava reconhecer na Virgem mais que uma
maternidade comum de adoção, que leva consigo apenas relações exteriores, não significando
no entanto atribuir-lhe uma maternidade verdadeira, baseada na transmissão da vida.
Aconteceu neste caso o
que por vezes ocorre quando queremos explicar coisas que sentimos, mais do que vemos
-- uma afirmação que as pessoas sentiam ser sólida passou a basear-se em fundamentos
muito fracos. Não é raro encontrar ainda essa exegese em nossos dias, na boca ou
na pena de pregadores e autores espirituais.
Outros autores, no entanto,
vincularam com mais acerto a maternidade espiritual de Maria ao seu papel nos mistérios
da Encarnação e Redenção e na distribuição da graça. No seu Tratado da Verdadeira
devoção a Maria, São Luís Grignion de Montfort explica que Maria é nossa Mãe porque
formamos com Cristo um só corpo, e "uma mãe não põe no mundo a cabeça (ou o
chefe) sem os membros, nem os membros sem a cabeça, e se não fosse assim seria um
monstro". Para cada um de nós, Cristo é nossa vida, o fruto das entranhas de
Maria, e Maria nos forma em seu seio em conformidade com Cristo. (Tratado da verdadeira
devoção a Maria, números 32-33.)
No início do século 19,
outro grande servo de Maria, o Padre G. J. Chaminade, julgou dever insistir mais
ainda nos fundamentos da maternidade espiritual de Maria. Aos membros de suas florescentes
congregações de Bordeaux, sobretudo aos religiosos do Instituto das Filhas de Maria
e da Sociedade de Maria, que fundara para prosseguir por meio deles o seu apostolado
mariano, expôs uma devoção essencialmente filial a Maria. Consiste na reprodução
mais fiel da piedade filial do próprio Jesus em relação à sua Mãe, devendo conduzi-los,
na sua missão apostólica nos tempos modernos, a se associarem a Maria da mesma forma
que outrora Cristo quis associar Maria à sua missão redentora. Daí o Pe. Chaminade
mostrar a necessidade de os seus discípulos compreenderem que são, em Cristo, verdadeiros
filhos de Maria.
Consequentemente ele se
aprofundou na doutrina da maternidade espiritual da Virgem, e a expôs com uma clareza,
uma amplitude e uma força de convicção com as quais, ao que parece, jamais o assunto
havia sido tratado antes dele. Na seção que expõe o significado dessa maternidade,
o que fizemos foi apenas reproduzir ou resumir os seus argumentos.
Após os estudos sobre a doutrina mariana que suscitaram a definição da Imaculada
Conceição, em particular os trabalhos recentes sobre o papel de Maria como co-redentora
e distribuidora de todas as graças, os verdadeiros fundamentos da maternidade de
Maria são cada vez mais bem compreendidos, e a realidade dessa maternidade crescentemente
reconhecida.
Os Papas recentes deram
à maternidade espiritual de Maria uma confirmação oficial. São Pio X, na encíclica
Ad diem illum publicada por ocasião do jubileu da Imaculada Conceição, além de afirmar
ante o universo a doutrina da maternidade espiritual de Maria, acrescentou sobre
o assunto uma exposição que, sem pretender esgotá-lo nem tratar dele ex professo,
é dotado de uma força notável dentro da sua concisão. Reproduzimo-lo a seguir, e
se verá que os dois motivos apresentados como fundamento para essa maternidade são
a nossa incorporação a Cristo e o papel de Maria no mistério da Encarnação:
"Sendo Maria a Mãe
de Deus, é portanto nossa Mãe. É necessário reafirmar o princípio de que Jesus,
Verbo feito carne, é também o Salvador do gênero humano. Enquanto Deus e Homem,
Ele tem um corpo como os outros homens. Enquanto Redentor de nossa raça, tem um
corpo espiritual -- ou, como se diz, um corpo místico -- que corresponde ao conjunto
dos cristãos ligados a Ele pela fé: Todos nós constituímos um único corpo em Jesus
Cristo. Ora, a Virgem não só concebeu o Filho de Deus a fim de que recebesse a natureza
humana e se tornasse homem, mas também para, por meio dessa natureza recebida dela,
tornar-se o Salvador dos homens. Essa é a explicação da palavra dos anjos aos pastores:
Nasceu-vos um Salvador, que é o Cristo, o Senhor.
"Da mesma forma, no
próprio casto seio da Virgem, onde Jesus tomou carne mortal, associou-se um corpo
espiritual, formado por todos os que viriam a crer nele, e se pode afirmar que,
portando Jesus em seu seio, Maria portava ainda todos aqueles para os quais a vida
do Salvador continha a vida.
"Portanto, todos nós
que estamos unidos a Cristo somos os membros do seu corpo, como diz o Apóstolo,
e nos devemos considerar originários do seio da Virgem, de onde saímos um dia como
um corpo ligado à sua cabeça.
"Por isso, num verdadeiro
sentido espiritual e místico somos chamados os filhos de Maria, que por seu lado
é Mãe de todos nós -- Mãe segundo o espírito, sem embargo Mãe verdadeira dos membros
de Jesus Cristo, como somos todos nós".
Também o Papa Pio XI afirma
a maternidade divina de Maria em relação aos homens como verdade admitida. Ao convidar
todo o universo para participar das festas programadas para a comemoração do 15º
centenário do concílio de Éfeso, que proclamou a maternidade divina da Virgem, ele
explicou: "É necessário que a Igreja universal comemore esse feliz acontecimento,
pois, sendo todos os homens filhos da Virgem Mãe de Deus, conforme proclamou Cristo
agonizante, convém que todos se alegrem com a sua glória".
Na encíclica Lux veritatis,
ao expor a imensa importância do Concílio de Éfeso, Pio XI reafirma a maternidade
de Maria em relação aos homens e indica os fundamentos dessa verdade: "O que
para nós é causa de alegria e doçura especiais é que a Mãe de Deus, pelo fato de
ter dado à luz o Redentor do gênero humano, é também, em certo sentido,a benigníssima
mãe de todos nós, que Cristo Nosso Senhor quis ter como irmãos". (Quodammodo,
isto é, em sentido analógico. Ver esclarecimento em nota acima.)
No epílogo da encíclica
sobre o Corpo Místico de Cristo, o Papa Pio XII lembra que, pela cooperação na Paixão,
"aquela que corporalmente foi Mãe de nosso Chefe (Cabeça) tornou-se espiritualmente
a Mãe de todos os seus membros, por um novo título de sofrimento e de glória".
O desejo de que a maternidade
espiritual de Maria seja declarada dogma de fé tem sido manifestado nos últimos
anos por muitas autoridades eclesiásticas. Ao que parece, as explicações fornecidas
neste capítulo mostram que não haveria sobre isso nenhuma objeção do ponto de vista
doutrinário. Por outro lado, uma proclamação solene dessa verdade, seja estabelecendo-se
uma festa universal, seja promulgando uma definição, seja ainda de algum outro modo
que só à Santa Sé cabe determinar, e se uma tal definição se inclui nos desígnios
de Deus, seria um meio poderoso de intensificar a piedade dos fieis para com a Virgem,
e assim conduzir as pessoas a Cristo por meio de Maria, Mãe dele e nossa.
7º.
Harmonias entre a maternidade espiritual de Maria e suas outras grandezas
Já vimos como a maternidade
espiritual de Maria decorre naturalmente da maternidade divina. Sobre esta última,
dissemos que Maria, ao tornar-se Mãe do Filho de Deus, associou-se também ao Pai
na geração do Filho e tornou-se Esposa do Espírito Santo. Sua maternidade espiritual
lhe permite também realizar mais plenamente o alcance desses dois títulos. Ela é
Associada ao Pai na geração de seu Filho, mas o Pai tem ainda outros filhos.
O Filho de Deus se encarnou
para tornar-se "o primogênito entre muitos irmãos". Depois de Jesus, todos
os que foram resgatados por Ele dizem "Pai nosso, que estais nos céus".
Por uma sublime harmonia, a maternidade espiritual de Maria a torna igualmente associada
ao Pai na geração de todos os seus outros filhos. Precisamente no momento em que
o Filho nasce de Maria, nascem esses outros filhos do Pai celeste, pelo menos do
ponto de vista do direito. E é também no momento em que cada alma recebe por Maria
a graça santificante, a graça da adoção divina, que por isso mesmo se torna filha
do Pai celeste e de Maria.
Maria é Esposa do Espírito
Santo, que nos faz filhos de Deus. Ele gera em nós as disposições filiais, e pelo
"Espírito de adoção bradamos: Aba, Pai". O Espírito Santo nos torna por
direito filhos de Deus, ao tornar Maria fecunda. Também é assim quando, pela prece
da distribuidora de todas as graças, Ele vem habitar em nós pela graça santificante.
Podem-se assim aplicar a todos os filhos de Deus as palavras do Credo: "Foi
concebido do Espírito Santo, nasceu de Maria Virgem". Veremos a seguir as harmonias
que unem a maternidade espiritual de Maria aos seus outros privilégios. Como estes
lhe foram conferidos diretamente para torná-la digna Mãe de Deus, tiveram também
por efeito torná-la perfeita Mãe dos homens. A Imaculada Conceição, a virgindade
e a Assunção tornaram Maria uma mãe mais admirável. Sua plenitude de graças e de
santidade tornaram-na uma Mãe mais venerável. Seu título de Rainha do céu, uma Mãe
mais auxiliadora.
Por enquanto, basta mencionarmos
aqui essas relações.
Paralelamente às harmonias
que há entre a maternidade espiritual de Maria e os seus vários privilégios, podem-se
mencionar muitos outros que a ligam a outras verdades da fé. Para concluir, lembremos
somente que essa maternidade se harmoniza perfeitamente com a própria característica
da Religião que o Salvador nos revelou. Conduzidos por Jesus à vida sobrenatural,
doravante devemos comportar-nos em relação ao Pai celeste como verdadeiros filhos
do mais perfeito dos pais. Devemos tratar o Filho de Deus como verdadeiros irmãos
tratam o filho mais velho, amando infinitamente aquele que, pelo preço de seu sangue,
nos reconciliou com o Pai. Devemos amar-nos uns aos outros como filhos desse Pai
e irmãos desse Filho, graças aos vínculos de caridade que o Espírito estabeleceu
entre nós.
O que nos permite viver
em família com Deus e com o próximo é sem dúvida a graça, mas a maternidade espiritual
de Maria contribui para essa graça de modo maravilhoso, adaptando-a perfeitamente
à nossa natureza. A família é constituída não somente pelo pai e os filhos, completa-se
pela presença da mãe. Do mesmo modo, sobrenaturalmente nos sentimos plenamente em
família, entendendo bem que o Pai do Verbo é nosso Pai, que Jesus é nosso irmão
mais velho, que os homens são nossos irmãos, as mulheres nossas irmãs, ao mesmo
tempo que percebemos ao lado do Pai a nossa Mãe celeste, e ao lado do Filho aquela
da qual todos nascemos com Ele.
A maternidade espiritual
nos faz compreender melhor outra verdade, da qual diversos trechos da Revelação
constituem apenas expressões parciais: "Deus é amor". Como poderíamos
deixar de crer no amor desse Deus, se Ele quis que sua própria Mãe fosse também
nossa Mãe?
Capítulo,
3º. A MEDIAÇÃO UNIVERSAL
Chama-se mediador aquele
que se interpõe entre duas pessoas em vista de as unir, quer se trate de obter uma
reconciliação ou favores. Para preencher essa função, o mediador deve ser aceito
pelas duas pessoas, e quanto mais próximo de ambas, mais sua mediação será eficaz.
Na ordem sobrenatural, as duas pessoas a aproximar são Deus e o homem, que foram
separados devido ao pecado.
Enquanto homem, Jesus é
o mediador perfeito entre Deus e o homem, estando hipostaticamente unido a Deus
e constituído por Ele chefe espiritual do gênero humano. Só Jesus é um mediador
perfeito, porque só Ele podia merecer, com toda justiça, nossa reconciliação com
Deus e as graças que o Deus reconciliado nos daria. São Paulo proclama que há apenas
um Deus, e também que o único mediador entre Deus e os homens é Jesus Cristo, que
se deu por nós como expiação. Ninguém pode estabelecer outro alicerce que não seja
Jesus Cristo.
Posto este fundamento,
os fieis atribuem a Maria, ao lado de Jesus, certa função de mediação. Sendo Mãe
de Deus e mãe dos homens, parece também indicada para servir de ligação entre Deus
e os homens. Mas a sua mediação, longe de reduzir a de Cristo, é ao contrário uma
consequência e algo como uma expansão. Ela se exerce abaixo de Cristo e em união
com Ele, de quem obtém toda sua eficácia.
O encargo de nosso grande
Mediador é duplo: em primeiro lugar, merecer para todo o gênero humano a graça da
reconciliação; em seguida, aplicar essa graça
a cada uma das unidades que compõem essa enorme coletividade. Em outros termos,
de nos dar primeiramente a graça da reconciliação, adquirindo para nós um direito,
em seguida efetivando-a. A primeira função, Jesus a consumou pela Redenção, a segunda
pela distribuição da graça. Uma e outra são funções de mediação, porque para ambas
Cristo se interpôs entre Deus e o homem, servindo-lhes de ligação.
O sentimento cristão associa
Maria a seu Filho nessas duas funções. Portanto, da mesma forma que na mediação
de Jesus, a de Maria é também dupla, exercendo-se no mistério da Redenção e na distribuição
da graça. Portanto, age erradamente quem pretende reduzi-la à cooperação terrestre
na missão de Jesus, como fazem alguns, e os que a reduzem à sua função celeste de
distribuidora da graça, como querem outros. Trataremos do assunto sob ambos os aspectos.
1º.
A co-operação de Maria na Redenção
A cooperação de Maria para
a Redenção não foi ainda definida pela Igreja, e ainda é objeto de discussões entre
certos teólogos, não geralmente quanto ao fato em si mesmo, mas quanto ao seu alcance
exato. Antes de fornecer sobre o assunto o significado exato, temos de consultar
o sentimento da Tradição sobre ele. Podemos desde já afirmar provisoriamente os
pontos seguintes: O sentimento universal da Igreja atribui a Maria uma parte na
obra de nossa salvação, ao lado do Redentor; essa parte não se reduz ao fato físico de ter dado
ao Filho de Deus a natureza humana, pela qual Ele pôde nos resgatar, mas implica
certa união entre as vontades, os sofrimentos e a oblação de Jesus e Maria; Deus acrescentou essa cooperação à obra de seu
Filho e lhe atribuiu verdadeiro valor redentor; de tal modo que podemos dizer que fomos salvos
em primeiro lugar por Cristo, e secundariamente pela ação de Maria, de modo subordinado
à ação de Cristo.
A noção de Redenção é uma
das ideias fundamentais do Novo Testamento. Nosso Senhor começou a expô-la aos seus
discípulos nos últimos meses de sua existência terrena. Como narra a Escritura,
Pedro e João, e sem dúvida também os outros apóstolos, a ensinaram claramente aos
primeiros fieis. São Paulo tornou-se particularmente o mestre dessa ideia, estudando-a
sob todos os seus aspectos e pregando-a em todas as ocasiões. Isto porque os israelitas
haviam esperado de fato um Messias redentor, mas tinham em mente uma redenção completamente
diferente. Era necessário fazê-los compreender, como também aos pagãos, a verdadeira
noção da Redenção que Cristo trouxe -- por meio da cruz, e que os livrava do pecado
e da morte.
Nessa época não havia razões
particulares para atrair a atenção dos fieis sobre a participação de Maria nessa
obra. Importava fazer compreender logo de início o papel de Cristo, mas podia-se
imaginar desde então a participação de Maria no mistério de nosso resgate. Através
de São Lucas, sabia-se como Deus havia pedido a Maria sua cooperação para a obra
da salvação, e também que Ela havia livremente consentido nessa cooperação, depois
de ter examinado e refletido sobre o assunto.
Aprendia-se pela leitura
da epístola aos hebreus que, desde o primeiro instante de sua Encarnação, Cristo
se havia oferecido ao Pai como vítima de obediência e expiação, e que portanto o
seio de Maria tinha sido o lugar em que a Redenção teve início, Via-se na cena da
Apresentação de Jesus no Templo como a Virgem ouviu o profeta Simeão proclamar solenemente
a missão redentora de seu Filho e a participação que era chamada a oferecer. Lia-se
em São João, e sem dúvida se havia aprendido pela tradição oral antes de ser escrito
o quarto evangelho, como a Virgem se havia associado ao seu Filho agonizante na
cruz.
Finalmente, ouvia-se o
doutor da Redenção expor o plano de Deus para o nosso resgate, e explicar que, tendo
a desobediência do primeiro Adão perdido a todos nós, a obediência do novo Adão
nos salvara. Não havia necessidade de muito esforço de reflexão para se passar do
papel do antigo Adão ao da antiga Eva, e do papel do novo Adão ao da nova Eva.
No início dos Livros Sagrados,
uma profecia bem conhecida parecia convidar os fieis a estabelecer esse paralelo.
Na cena que descreve o castigo de nossos primeiros pais estava contida a previsão
da vingança divina: "Deus disse à serpente: Porei inimizades entre ti e a mulher,
entre a tua descendência e a dela. Ela te esmagará a cabeça". Essa profecia
mostrava a Mãe e o Filho intimamente associados. Para os cristãos desse tempo, habituados
a ver no Antigo Testamento o prenúncio ou figura do novo, não era difícil concluir
que Cristo trazia a vitória sobre a serpente por meio de sua Paixão, e que nessa
vitória Maria desempenhara ao seu lado um papel providencial.
Os cristãos chegaram logo
a essa conclusão, percebendo o papel de Maria na Redenção, e o afirmaram com uma
nitidez que não se esperaria nessa época. São Justino, em meados do século 2, opõe
uma Eva incrédula e desobediente, que gera a desobediência e a morte, a Maria Fiel
e obediente, Mãe daquele que livra da morte e do pecado. Mas é sobretudo Santo Irineu,
no fim do século 2, que analisa a ação de Maria na nossa salvação e a expõe de forma
que ainda não foi ultrapassada. Ele se empenha em ressaltar o paralelismo entre
Adão e Jesus, e mostra como um paralelismo semelhante exigia a Virgem Maria como
reparadora e advogada de Eva, pelo que ela havia feito: "Como Eva, pela sua
desobediência, foi para si mesma e para todo o gênero humano uma causa de morte,
do mesmo modo Maria, por sua obediência, foi causa de salvação para si mesma e para
todo o gênero humano. O que Eva prendera devido à sua incredulidade, a Virgem Maria
libertou por sua fé.
Da mesma forma que o gênero
humano foi condenado à morte por uma virgem, foi salvo por outra Virgem".
Esse paralelismo entre
Eva e Maria, que correspondia perfeitamente à doutrina de São Paulo sobre a salvação,
foi reeditado por quase toda a patrística. Inventaram-se inúmeros títulos novos,
por vezes estranhos, para exprimir a participação da Virgem na nossa Redenção: "Causa
de nossa salvação, triunfadora dos demônios, nosso medicamento, nosso único remédio",
etc. Mais do que dedicar-se a aprofundar ainda mais a doutrina, o esforço nos séculos
seguintes se porá em tirar as conclusões práticas relacionadas com a invocação e
a devoção à Mãe de Deus.
Os Padres da Igreja haviam
insistido sobretudo na obra redentora de Maria na Encarnação. Pouco a pouco, especialmente
a partir das Cruzadas, a piedade dos fieis se apoiou principalmente na Virgem ao
pé da cruz. Gostava-se de participar dessa dor desmedida, e enquanto procuravam
compreender seu significado profundo, cada vez mais claramente ele se manifestava
na união de Maria com o Redentor.
O estudo teórico do papel
de Maria na obra da Redenção avançou sobretudo nos últimos cinquenta anos, recebendo
maior precisão teológica. A própria oposição que essa doutrina encontrou em certos
meios serviu para expor com luz mais resplandecente a parte de Maria no nosso resgate.
No século 20, essa piedosa
doutrina devia dar outro passo adiante, passando do campo da piedade e da teologia
aos documentos oficiais da Santa Sé. Na encíclica Ad diem illum, São Pio X ensina
que a Virgem, "associada por Cristo à obra da salvação humana, mereceu para
nós de congruo o que Cristo nos mereceu de condigno". Bento XV afirmou em 1918:
"Com seu Filho sofredor e agonizante, Maria padeceu o sofrimento e quase a
morte. Abdicou os seus direitos maternos sobre seu Filho a fim de obter a salvação
dos homens. E para aplacar a justiça divina tanto quanto lhe era possível, imolou
seu Filho, de tal modo que se pode afirmar com razão que, juntamente com Cristo,
Ela resgatou todo o gênero humano". Pio XI, pouco após sua elevação à cátedra
de São Pedro, escreveu: "A Virgem das dores participou com Jesus Cristo na
obra da Redenção".
Alguns anos mais tarde,
por ocasião do Ano Santo destinado a celebrar o XIII centenário do mistério da Redenção,Que
Ano Santo é esse? 1933? Seria o XIX centenário?declarou: "A augusta Virgem
concebida sem pecado foi escolhida para Mãe de Cristo a fim de tornar-se participante
da Redenção do gênero humano". Na sua encíclica sobre o Corpo Místico de Cristo,
Pio XII retomou o argumento de Bento XV: "Foi Ela que, isenta de qualquer falta
pessoal ou hereditária, sempre estreitamente unida a seu Filho, o apresentou sobre
o Calvário ao Pai eterno, associando o holocausto dos seus direitos e de seu amor
de Mãe, como uma nova Eva, para todos os filhos de Adão que carregam a mancha do
pecado original".
2º.
Como Maria colaborou na Redenção
De acordo com os dados
da Revelação interpretada pela Tradição, em que consiste exatamente a cooperação
de Maria na obra de nossa Redenção?
O título de Nova Eva, dado
tão universalmente e desde a mais alta antiguidade à Virgem, marca bem exatamente
seu papel na nossa salvação, por comparação com o papel de Eva na nossa condenação.
Eva não foi a causa direta da nossa condenação, pois de Adão dependia nossa salvação
ou ruína. Mesmo se Eva tivesse sido fiel, o pecado de Adão nos teria perdido; e se Adão não tivesse desobedecido, a falta de
Eva não nos teria prejudicado. Poderíamos no entanto afirmar que Eva não cooperou
para a nossa ruína? O fato concreto é que ela foi a ocasião e a instigadora. Da
mesma forma, não foi Maria que diretamente nos salvou, foi Nosso Senhor que operou
nossa Redenção. Ele poderia ter conseguido isso sem Maria, e Maria sozinha não poderia
fazer nada pela nossa salvação. No entanto Ela foi o instrumento de nossa Redenção
devido à sua cooperação consciente e livre com os desígnios de Deus.
Se a Escritura pode dizer
que "pela mulher o pecado começou, e por meio dela todos morremos", pode-se
também dizer que pela Mulher se iniciou a libertação do pecado, e por ela todos
passamos a viver. Uma diferença entre o caso de Eva e o de Maria é que Eva só procurou
diretamente a sua satisfação, e não nossa ruína -- pode-se mesmo dizer que nós fomos
prejudicamos apesar dela -- ao passo que Maria cooperou consciente e livremente
para a nossa Redenção.
Examinando como se deu
em si mesma essa cooperação de Maria, ela parece ter sido tríplice, ou se apresenta
em tríplice aspecto embora seja única:
1º. no consentimento da
Virgem à proposta divina no momento da Anunciação;
2º. na identificação da
sua vontade com os desejos íntimos do Redentor;
3º. na união dos seus sofrimentos
com os sofrimentos de Cristo.
Desde o início houve o
consentimento da Virgem com a proposta divina. No momento da Anunciação Gabriel
lhe revelou que Ela viria a ser Mãe do Messias-Deus. Todos os israelitas sabiam
e repetiam que o Messias seria o redentor do seu povo. Maria sabia-o melhor do que
muitos dos seus compatriotas, e melhor do que eles havia estudado os profetas, compreendendo
o papel redentor daquele que agora pedia para nascer dela. Afinal, o próprio nome
desse Messias-Deus anunciava claramente seu papel, devendo chamar-se Jesus, que
significa salvador. Foi bem isso o que Ela entendeu, e alguns dias mais tarde exaltaria
a misericórdia de Deus em relação aos homens, em particular ao seu povo, e encarnando-se
nela esse Deus o tomava sob sua proteção de acordo com suas antigas promessas.
Consentindo com a proposta
divina, Ela consentia portanto em cooperar com a nossa redenção. Não é que se tornaria
mãe de um Filho de Deus, e só mais tarde este se tornaria salvador do mundo, como
aconteceu a Raquel tornar-se mãe de alguém que no futuro se tornaria salvador do
Egito. Jesus nasceria dela com a finalidade específica de tornar-se o Redentor,
ou melhor, para começar desde então nela sua obra redentora. São Paulo ensina: "Vindo
ao mundo, Cristo disse: (a seu Pai) Não quisestes nem sacrifício nem oblação, porém
me destes um corpo. Não vos satisfizeram holocausto e sacrifícios pelo pecado, então
eu disse (como está escrito no livro a meu respeito) Eis-me aqui, ó Deus, para fazer
a vossa vontade". Não há dúvida de que foi pela efusão de seu sangue que Cristo
nos resgatou, mas a ação de Cristo desde o primeiro momento de sua existência possuía
já um valor redentor infinito.
Não se pode dividir a vida
do Salvador em uma série de atos separados, pois toda a sua existência constituiu
um longo ato de redenção, cujo ponto culminante foi sua Paixão e morte. O preço
desse ato, que é o nosso resgate, só foi completado nesse último momento, porém
o seu mérito começara desde o início.
Desse modo, a partir do
momento em que pronunciou seu fiat, Maria já era de fato a colaboradora de Cristo
na obra de nossa redenção, e mereceria esse título ainda que tivesse renunciado
a essa missão após o nascimento do seu Filho. O que teria sido feito de nós, se
Ela tivesse recusado essa colaboração? Deus poderia evidentemente salvar-nos por
outros meios incontáveis, mas aprouve a Ele tornar dependente da cooperação de Maria
a atual economia de nossa salvação, que sem dúvida é aos seus olhos a mais perfeita.
Pelo seu fiat, Maria consentia
em fornecer a vítima cuja imolação nos resgataria. Mas sua ação na obra de nossa
salvação não devia limitar-se a essa ajuda material. Muito mais do que pelo seu
corpo, a Virgem tornou-se Mãe de Deus pela sua alma, e sua cooperação com o Redentor
se daria mais pelo espírito do que pela carne. De acordo com as leis da biologia,
o aspecto físico de Jesus tinha a semelhança mais perfeita com o de Maria. E a alma
de Maria tinha, por consonância com o amor divino, a semelhança mais perfeita com
a de Jesus. Ela pensava, sentia, e acima de tudo amava como Jesus. Como Jesus só
desejava cumprir a obra da Redenção, para a qual o Pai o havia enviado ao mundo,
Maria também só tinha como objetivo manter-se unida a Ele em vista dessa mesma Redenção.
A união dos seus desejos
com os do Salvador começou ao mesmo tempo que sua preparação para a maternidade
divina, pois só se tornaria Mãe de Deus para ser a Mãe do Redentor. A partir do
momento em que praticou seu primeiro ato de amor -- sem dúvida, já no momento da
sua Imaculada Conceição -- ofereceu-se para a missão à qual Deus a destinava, e
esse oferecimento era implicitamente renovado a cada novo ato de amor. Já em certos
momentos dos seus primeiros anos de vida, a consagração total à obra que a misteriosa
vontade de Deus lhe confiaria era acompanhada de uma intensidade de vontade inteiramente
particular. Por exemplo, quando foi apresentada no Templo, quando fez voto explícito
de virgindade, quando se casou com São José.
Gabriel lhe revelou qual
seria essa obra. A partir desse momento a Virgem entrevia as consequências consoladoras
e terríveis que seu consentimento lhe acarretaria, e se deu sem reservas por meio
de seu fiat salvador. Com não menor generosidade, renovava-o a cada instante de
sua vida, preparando a vítima para o espantoso sacrifício. Algumas vezes Deus exigia
que renovasse esse fiat de modo particularmente forte e solene, como na Apresentação
de Jesus no Tempo, na partida de Jesus para o início da sua carreira pública, sobretudo
na hora do sacrifício supremo. O preço de nosso resgate foi a Paixão e Morte do
Salvador, e nesse ato Maria devia se identificar com seu Filho, levando assim ao
extremo limite a sua colaboração com a obra do Redentor.
Não precisamos analisar
detalhadamente o que deve ter sido a dor de Maria durante a Paixão. A piedade dos
fieis se compraz em admirar em muda contemplação a imagem da Mater dolorosa, mas
seu martírio havia começado muitos anos antes da subida ao Calvário. Antes mesmo
da visita do anjo Gabriel, deve ter sofrido como jamais ser humano sofreu. Sobre
estes sofrimentos, Deus nada nos revelou diretamente, mas devemos entender que ultrapassaram
o que se possa imaginar. Sabe-se pela vida de muitos santos quanto eles lamentaram
e sofreram ao ver que o Amor não mais era amado, quantos eram os pecados que se
cometiam, quantas eram as almas que se perdiam. Analogamente, Maria deve ter sofrido
imensamente desde os seus primeiros anos de vida, diante dos crimes de tantos dos
seus compatriotas e de tantos idólatras.
Entretanto esses sofrimentos
eram leves em vista dos que a esperavam após a Encarnação: nas hesitações de São
José, no Nascimento em Belém, diante de Simeão no Templo, na fuga para o Egito,
na perda de Jesus no Templo, durante a vida oculta de Cristo; sobretudo durante sua vida pública, diante das
notícias cada vez mais ameaçadoras, das contestações, dos ódios, das conspirações
que Ele suscitava.
Afinal veio a hora do Calvário.
A Virgem que se ocultara durante os triunfos de seu Filho achava-se ao pé da cruz.
Não se incluía nos desígnios de Deus que Ela derramasse seu sangue como o Redentor,
mas todos os sofrimentos físicos de seu Filho dilaceravam seu coração materno. E
os sofrimentos da alma de Jesus, os mais terríveis de todos, deviam repercutir diretamente
na alma de Maria. Em dois momentos da Paixão, Jesus manifestou a sua intolerável
agonia interior. No Getsêmani: "Minha alma está triste até a morte. Pai, afastai
de mim este cálice!". No alto da cruz: "Meu Deus, meu Deus, por que me
abandonastes?". Qual foi a participação da cooperadora na sua agonia? Ela sofria
tanto mais quanto mais amava, pois sofria porque amava.
E esse amor era maior que
o de todos os anjos e todos os santos reunidos... Todos esses sofrimentos, Ela os
uniu aos de seu Filho, e com Ele ofereceu-os ao Pai para reparar sua glória e redimir
os homens.
Mais do que isso, Ela ofereceu
ao Pai a vida de seu Filho, e a sua própria vida com a dele. Bento XV e Pio XII
afirmam: "Ela abdicou os seus direitos maternos sobre seu Filho". Não
se devem entender direitos maternos como sendo jurídicos, pois Jesus tinha maioridade;
e também não se tratava de direitos sobre
suas atividades, pois Jesus devia, por sua missão, ocupar-se das coisas de seu Pai.
Eram os direitos que a natureza concede a todas as mães: o filho é a substância
de sua mãe; sua vida é o prolongamento da
vida da mãe; as alegrias e sofrimentos são
as de sua mãe; ultrajar o filho é ultrajar
a mãe; fazer o filho sofrer é fazer sofrer
a mãe; suprimir a vida do filho é destruir
a razão de ser da mãe.
Isto é verdade no que diz
respeito a todas as mães, e muitíssimo mais à Mãe de Jesus. Sua substância só tinha
sido transmitida a Ele; Ela havia sido criada
apenas para Ele; a honra, a felicidade, a
vida de seu Filho eram-lhe mais caras do que sua própria honra e felicidade; fazê-lo morrer, era mais do se o fizessem a Ela.
Maria fez o holocausto de tudo isso para a glória do Pai e para a nossa salvação.
Duas vidas, dois seres em uma única oblação, pois os desígnios de Deus e a sua própria
vontade eram um só com os dele.
3º.
Valor redentor da cooperação de Maria com a obra de Jesus
Essa tríplice colaboração
de Maria na obra de seu Filho não basta para que nela o seu papel tenha sido de
mediadora. Tratava-se de reconciliar Deus com o homem, portanto é preciso ainda
que Deus a tenha admitido a isso. Ele aceitou para esse efeito o fiat da Anunciação,
o que é uma consequência da própria natureza das coisas, posto que fizera depender
disso a Encarnação do Redentor. Mas tratava-se aí de uma cooperação longínqua para
a nossa redenção. Terá Ele aceito a união dos sofrimentos e intenções de Maria com
os de Jesus, tratando-se de uma cooperação direta? Ou terá sido essa união apenas
um ato heroico de amor da parte de Maria, muito meritório por si mesmo, porém sem
mérito para nós?
O sentimento dos fieis
é que Deus aceitou essa união moral de Maria com o Redentor como uma verdadeira
causa de nossa salvação. Esse sentimento se baseia inicialmente na conduta geral
de Deus quando se utiliza de cooperadores humanos. De acordo com Santo Agostinho,
"Deus nos criou sem nós, mas não quer salvar-nos sem nós". Cada homem
deve não apenas cooperar com a graça do Redentor em vista de sua salvação pessoal,
mas Deus decidiu ainda, como regra geral, não salvar os homens sem a cooperação
de outros homens. Por isso, quando pregava na terra e se sacrificava pessoalmente,
Jesus quis associar a si os apóstolos, para o ajudarem na sua missão. Recomendou-lhes
que orassem, pedindo ao Mestre o envio de operários para a messe, e fundou uma Igreja
para perpetuar sua obra.
Podemos também constatar
em todos os períodos da história da Igreja que o seu sangue redentor, embora infinitamente
eficaz por si mesmo, só realiza sua eficácia na medida em que as almas apostólicas
pregam, rezam e sofrem.
Foi à luz dessa doutrina
que São Paulo se esforçou para "completar na sua própria carne o que faltava
nos sofrimentos de Cristo para o Corpo de Cristo, que é a Igreja". Inspirados
nessa mesma doutrina, tantas almas nas Ordens contemplativas e penitentes rezam
e se imolam para a salvação do mundo. Constitui honra infinita para elas estarem
desse modo associadas à mais nobre das obras de Deus, posto que dar a um ser humano
a vida divina é mais sublime do que semear no espaço milhares de mundos.
De acordo com o sentimento
cristão, é para essa honra que Deus quis chamar sua Mãe a colaborar, em vista da
nossa redenção, unindo suas intenções, suas preces e seu sofrimento com os de seu
Filho. Mas enquanto os servos de Cristo só o ajudam na aplicação da Redenção às
almas, sua Mãe o assiste na própria Redenção.
Uma consideração adequada
para confirmar nos fieis o conceito de co-redentora é a função já mencionada de
nova Eva naquilo que se tem denominado plano do revide.
São Paulo se dedica a mostrar
a obra de Cristo como o inverso da obra de Adão. Se o pecado e a morte entraram
no mundo por Adão, a vitória sobre o pecado e a morte nos foi conquistada por Cristo;
se Adão nos perdeu por sua desobediência,
Cristo nos salvou por sua obediência. Esta doutrina de São Paulo conduziu em geral
o pensamento cristão a considerar o plano divino de nossa salvação como a réplica
da obra de nossa perda. Não somente vemos Cristo, o novo Adão, anteposto ao primeiro
Adão, mas ainda a árvore da cruz diante da ciência do bem e do mal; diante do anjo tentador, o anjo da Anunciação;
diante de Eva incrédula e desobediente, Maria
fiel e submissa.
A primeira Eva colaborou
para a nossa ruína, não tanto fisicamente, mas moralmente. Deus terá desejado que
a cooperação da nova Eva fosse menos uma cooperação física do que o concurso das
disposições de sua alma. E sua cooperação para a nossa salvação terá sido mais perfeita
que a cooperação de Eva para a nossa ruína, porque "onde o pecado foi abundante,
é preciso que a graça seja superabundante".
Esse sentimento dos fiéis,
segundo o qual Deus aceitou a união moral entre Maria e o Redentor como uma verdadeira
causa de nossa salvação, está implicitamente contido no papel importante atribuído
por eles à co-redentora. Os últimos Papas o têm explicitamente confirmado, como
se pode ver nos textos seguintes. Leão XIII: "Maria não somente presenciou
os mistérios de nossa Redenção, mas neles tomou parte -- non adfuit tantum sed interfuit".
São Pio X: "Por meio dessa união de sofrimentos e de vontades entre Maria e
Cristo, Ela mereceu dignamente tornar-se a reparadora do mundo perdido".
Bento XV: "Com seu
filho sofredor e agonizante, Maria suportou o sofrimento e quase a morte, a fim
de conseguir a salvação dos homens". Pio XI declara que a Virgem "foi
escolhida para Mãe de Cristo a fim de tornar-se participante da Redenção do gênero
humano", e em seguida suplica a Ela: "Conservai em nós e aumentai sem
cessar os preciosos frutos da Redenção e da vossa compaixão". (Leão XIII, Parta
humano generi. Pio X, Ad diem illum. Bento XV, Inter sodalicia. Pio XI, Auspicatus,
Osserv, Romano, 29/04/1935.)
Resta dizer uma palavra
sobre uma dificuldade que impede certas pessoas de dar adesão firme à doutrina aqui
exposta: Se a própria Virgem precisou receber a graça da Redenção, como pôde colaborar
com Cristo para que essa graça fosse adquirida? Supondo-se que essa dificuldade
devesse ficar sem resposta satisfatória, isso não seria motivo para rejeitar uma
doutrina comumente aceita pelos fiéis e ensinada expressamente pelos Papas. Acaso
deveríamos rejeitar a doutrina da presença real de Cristo na Eucaristia, devido
à dificuldade para entendermos como Ele possa estar inteiro em cada uma das hóstias
consagradas?
No caso que estamos estudando,
a dificuldade é apenas aparente. A objeção teria força se a graça de Redenção só
tivesse sido aplicada a Maria no momento em que Ela a mereceu. Porém, como o declara
a Igreja no Ofício da Imaculada Conceição, Maria foi preservada de todo pecado,
na previsão da morte de seu Filho, ex morte filii prævisa. Tal preservação lhe foi
concedida como crédito, por assim dizer, pois Deus tinha certeza de que seu Filho
pagaria superabundantemente o preço da Redenção. Desse modo, no momento da Encarnação
do Verbo aquela que era cheia de graça encontrava-se nas condições perfeitas para
cooperar com Cristo na reparação da glória divina e na Redenção do gênero humano.
Mas alguém ainda insistirá:
Pelo menos se pode dizer então que Maria não pôde cooperar com Cristo no que se
refere à sua própria redenção. Admitindo que seja assim, permanece de pé que Ela
pôde cooperar com Cristo na nossa redenção, e é apenas isso que afirma o sentimento
geral da Igreja. Nada se afirma -- e também nada se nega -- sobre a ação de Maria
na sua própria redenção. (Terá sido impossível para Ela cooperar na sua própria
redenção? Se se tratasse de pagar o preço necessário à sua redenção, ou ao menos
uma parte desse preço, de fato a resposta seria negativa. Mas o preço necessário
foi pago por Cristo, e de modo superabundante. Por que não teria Ela podido pagar
por si mesma um suplemento de resgate, da mesma forma que veio a pagar por nós?
Mas este não é o local adequado para se discutir o assunto.)
Se Deus quis aceitar a
colaboração de Maria na obra de seu Filho, qual pode ter sido o gênero de eficácia
de sua colaboração? A obra da Redenção apresenta dois aspectos: O primeiro se refere
a Deus, e o segundo aos homens.
4º.
Eficácia da colaboração de Maria na obra do Redentor
O primeiro aspecto da Redenção
é a reparação oferecida a Deus, ofendido devido ao pecado. Nós corremos o risco
de lançar apenas um olhar bastante distraído sobre essa tarefa de Cristo, porque
nosso egoísmo só se preocupa com nossos interesses pessoais. No entanto, a primeira
coisa que Jesus proclamou no momento de sua encarnação foi o seu desejo de oferecer
ao Pai uma homenagem de reparação capaz de agradá-lo. "Ao entrar no mundo,
Cristo diz: Não quisestes sacrifícios nem oblações, mas formastes-me um corpo; não vos agradaram holocaustos nem vítimas expiatórias.
Então eu disse: Eis-me aqui para fazer, ó Deus, a vossa vontade".
A grandeza de um insulto
se mede antes de tudo pela grandeza da pessoa insultada. Uma bofetada aplicada por
um operário em seu filho que mentiu, a um companheiro com o qual discutimos, ao
patrão que fez uma repreensão, ao juiz que efetuou uma condenação, ao rei que recusou
a remissão de uma pena, constitui em todos os casos um ultraje, mas o grau varia
evidentemente de acordo com a dignidade de quem foi ultrajado. Sendo o pecado um
insulto a Deus, por isso mesmo é de certa forma infinito, e somente uma reparação
de valor infinito era capaz de apagá-lo adequadamente. Uma reparação assim só poderia
ser oferecida por um ser cujas ações têm um valor infinito, que é o Filho de Deus
feito homem. Em estrita justiça, Maria Santíssima não poderia reparar a infinita
ofensa de um único pecado.
Poder-se-ia perguntar se
a colaboração da Virgem com a obra de seu Filho não teria sido inútil, pois a necessária
reparação infinita tinha sido feita por Ele. A resposta é que de nenhum modo ela
pode ser encarada assim. Suponhamos, por exemplo, que um súdito do rei São Luís
IX ofendeu gravemente o rei de Castela. Nem o culpado nem nenhum dos seus amigos
estaria à altura de reparar adequadamente tal ofensa, nem mesmo a própria rainha-mãe
Branca de Castela. Só o rei São Luís poderia oferecer ao seu primo de Castela uma
reparação adequada. Porém, supondo-se que a rainha tenha desejado unir à reparação
de São Luís o seu pedido pessoal de perdão, ninguém poderia acoimá-lo de reparação
inútil. Bastava de fato a reparação apresentada por São Luís, mas quem não sente
que essa reparação oferecida pela rainha, mesmo não sendo necessária, acrescentava
aos olhos das pessoas uma glória para o rei de Castela, inclinando-o a perdoar de
bom grado o ofensor?
Do mesmo modo, a reparação
oferecida a Deus por Maria, pelos pecados de seus filhos, era insuficiente por si
mesma para obter-lhes o perdão. Mas sendo oferecida juntamente com a de seu Filho,
dava glória a Deus e o inclinava a esquecer mais inteiramente aqueles pecados. Além
das razões que são evidentes no exemplo citado, há outras ainda mais fortes, que
passaremos a analisar.
Primeiramente, devemos
ter em vista a dignidade quase infinita da Mãe de Deus e o amor inconcebível que
lhe votava a Santíssima Trindade. Além disso, devido à natureza intrínseca da reparação,
Ela era dotada de valor incomensurável, quase infinito sob certo aspecto. Maria
não oferecia a Deus apenas um pedido de perdão honroso, em dado momento de sua vida,
mas também toda a sua vida de sofrimentos, de identificação com os desígnios de
seu Filho. Como veremos a propósito da santidade de Maria, sua capacidade de amar
ultrapassa a de todos os homens e anjos reunidos, e por consequência ultrapassa
também a capacidade de ódio de todos os homens. Seu amor é maior que a maldade dos
nossos pecados, e em cada ato de reparação oferecido por Ela havia mais amor do
que a malícia existente em todos os pecados dos homens. Quão numerosos terão sido
esses atos durante toda sua vida?
Segundo Bento XV e Pio
XII, mais do que toda uma vida de amor e sofrimentos, Maria oferecia seu Filho,
"abdicando seus direitos maternos e imolando-o, tanto quanto dependia dela,
para aplacar a divina justiça".
Há ainda outro aspecto
a considerar. Se tivesse feito essa oblação por sua própria iniciativa, e Deus a
tivesse aceito, seu valor seria incomparável, como dissemos. Mas devemos notar que
Maria tinha ciência de que Deus a chamara para ser associada do Redentor, e de todo
coração concordou com os desígnios divinos. Desde então sua oblação era uma só com
a de Jesus, e assim participava da sua eficácia. Jesus apresentava ao Pai a sua
própria oblação e a de Maria, e Maria apresentava ao Pai a oblação de Jesus e a
dela. Considerando-se as pessoas que a faziam, o valor era infinito no que se refere
a Jesus e finito na de Maria, mas quanto ao próprio objeto, a oblação era a mesma
de um lado e do outro.
Assim, durante toda a eternidade,
diante dos anjos, homens e demônios, haverá mais glória para a Santíssima Trindade
pelo fato de a reparação oferecida por Cristo pelos pecados dos homens estar associada
à que fez Maria.
5º.
Aquisição da graça para os homens
O segundo aspecto da obra
da Redenção é que por meio dela os homens foram restabelecidos na condição de filhos
de Deus, correspondendo à graça da salvação. Qual foi a eficácia da colaboração
de Maria na aquisição dessa graça?
Duas condições devem ser
preenchidas, para que se possa adquirir qualquer coisa:
1º. Que o objeto esteja
à venda;
2º. Que se pague o preço
estipulado. É evidente que, se falta uma das duas condições, é impossível efetivar
a compra. Mesmo que se ofereça um pagamento muito superior ao valor real, ou então
quando não se dispõe do necessário para pagar o preço, a aquisição é impossível.
O preenchimento dessas
duas condições, especialmente da segunda, pode basear-se em um triplo fundamento:
1º. Fundamento de justiça
absoluta, baseado na equivalência entre o valor do objeto e o preço pago. Quando
o bem a ser adquirido tem determinado valor, e o interessado paga esse valor, a
aquisição se faz a título de justiça absoluta.
2º. Fundamento de justiça
relativa, baseado em um compromisso. Mesmo que o interessado não pague o valor real
do bem, pode adquiri-lo quando o seu proprietário aceita o pagamento de um valor
menor. Neste caso o comprador adquire um verdadeiro direito de justiça, pois paga
o preço pedido, porém não se trata de justiça absoluta, pois o valor pago não equivale
ao valor real.
3º. Fundamento de conveniência,
quando o preço a pagar não corresponde ao valor real em razão de amizade, retribuição
ou qualquer outro motivo. Neste caso não há justiça propriamente dita, simplesmente
conveniência.
Sendo a graça uma participação
na vida divina, Nosso Senhor podia adquiri-la para nós por justiça absoluta. Ele
detinha o direito estrito de fazer tal aquisição, pois o decreto da Encarnação estipulava
que o Filho se tornaria homem para salvar os homens -- Qui propter nos homines et
propter nostram salutem descendit de cœlis, como afirmamos no Credo. Podia ao mesmo
tempo oferecer um preço não só equivalente, mas muito superior às graças que queria
adquirir para nós. A graça é uma participação na vida divina, tem portanto algo
de infinito, mas a participação dos homens nesse bem é limitada por sua capacidade,
que não é infinita. O mérito do Redentor não tinha essa limitação, pois sendo de
uma pessoa divina, era ilimitado.
Nenhum homem pode merecer
os bens sobrenaturais em justiça absoluta, porque o finito não pode merecer o infinito.
No entanto, uma vez conquistado o estado de graça pelos méritos de Jesus Cristo,
o homem preenche de certo modo as duas condições necessárias para merecer por si
mesmo a vida eterna. Ele tem o direito de merecer, resultante de um mandato -- uma
promessa implícita -- de Deus, que o convidou à vida eterna, e com isso se comprometeu
a concedê-la se o homem evitar o mal e fizer o bem. E pode também oferecer um preço,
não propriamente equivalente, mas até certo ponto proporcional às graças que recebe
pela virtude do Espírito Santo que habita nele. Esse mérito é apenas de justiça
relativa, vinculado a uma livre disposição divina.
Nossos méritos não podem
beneficiar aos outros em razão de justiça, pois essa função social universal não
nos foi conferida por meio da concessão da graça, ao contrário do que se passava
com Adão antes da queda. Entretanto, como somos irmãos uns dos outros em Adão, e
sobretudo em Cristo, devemos interessar-nos pela salvação de nossos irmãos. Podemos
assim merecer até certo ponto as graças de santificação e salvação para os outros,
mas trata-se de simples mérito de conveniência: "Como o homem em estado de
graça cumpre a vontade de Deus, convém que Deus realize a vontade do homem em relação
à salvação de outro, de acordo com a proporção da amizade divina".
O que se pode afirmar quanto
aos méritos da Santíssima Virgem na aquisição de graças para nós? Pode fazê-lo por
direito de justiça absoluta? Respondemos que isto não lhe é possível, pois esse
privilégio pertence a Cristo em virtude da união hipostática. Mas equivale isto
a afirmar que, da mesma forma que nós, Ela só pode merecer por conveniência? Ou
será que Ela pode merecer para nós de acordo com a justiça relativa, que cada um
de nós tem em relação a si mesmo? Esta última hipótese é a que parece exprimir a
verdade. E quem lhe conferiu esse direito? O próprio Deus, dispondo que Ela se tornasse
nossa Mãe.
Deus quis tornar Maria
nossa Mãe segundo a graça, e só é nossa Mãe porque nos faz viver da graça. Nossas
mães segundo a carne devem ocupar-se da nossa vida sobrenatural, mas mesmo que negligenciem
esse dever, permanecem ainda nossas mães, pelo fato de nos terem dado a vida natural.
Maria, ao contrário, foi chamada a ser nossa Mãe espiritual, e só é nossa mãe se
nos dá a vida da graça e a faz crescer em nós. Sendo essa a essência da sua maternidade,
ela cessaria de ser nossa Mãe se lhe fosse suprimido o poder de nos conceder a graça.
Ora, tendo sido realmente chamada a ser nossa Mãe, é necessariamente chamada a nos
obter a graça, e o faz não em virtude de simples conveniência, mas por motivo de
uma disposição divina.
A vocação de Maria para
a maternidade da graça lhe confere uma função social análoga à de Cristo. A graça
social de Cristo, Chefe (Cabeça, Caput) da humanidade, é chamada graça capital,
e a graça social de Maria, Mãe dos vivos, será uma graça materna.
Analisando as diferenças
entre o mérito da co-redentora e os do Redentor, vemos que Maria nos mereceu a graça
do perdão por mérito de conveniência, e Jesus no-lo obteve por estrita justiça.
Maria nos mereceu a vida sobrenatural e as graças de santificação e salvação por
mérito de justiça relativa, e Jesus nos mereceu essas graças por mérito de justiça
absoluta.
Se quisermos contrapor
os dois méritos de modo abrangente, sem entrar nas distinções, como o faz São Pio
X no texto acima citado, devemos dizer com ele que Maria "nos mereceu de congruo
(por mérito de conveniência) o que Jesus nos mereceu de condigno". (por mérito
de justiça absoluta) Afirmar sem matizes que Maria nos mereceu todas as graças de
condigno seria usar uma fórmula parcialmente falsa, como também parcialmente perigosa:
Falsa no sentido de que Maria nos teria obtido a graça do perdão de condigno; perigosa porque pareceria ter-nos obtido as graças
de vida sobrenatural por méritos equivalentes aos de Jesus, ao passo que de fato
ela os mereceu por mérito de justiça relativa, e Jesus por mérito de justiça absoluta.
Por outro lado, a fórmula
não matizada é exata no sentido de que Maria só nos obteve de congruo a graça do
perdão, e que o mérito de justiça relativa pelo qual nos obteve as graças de vida
sobrenatural repousa sobre uma graciosa disposição de Deus, que livremente a convidou
a ser nossa Mãe. Repousa em última análise sobre uma conveniência, pois convinha
sem ser estritamente necessário que a Mãe de Cristo fosse também nossa Mãe.
Se queremos exprimir a
natureza do mérito de Maria por uma fórmula mais matizada, devemos dizer que nos
obteve por mérito de conveniência a graça do nosso perdão; por mérito de justiça relativa, nosso restabelecimento
na vida sobrenatural e as graças de santificação e salvação; ao passo que Jesus nos obteve todas essas graças
por mérito de justiça absoluta.
6º.
Importância excepcional de Maria como co-redentora
Seria difícil exagerar
a importância da missão que fez de Maria a cooperadora de Jesus na redenção do gênero
humano. Compreende-se facilmente a importância excepcional do privilégio da maternidade
divina -- que eleva a Virgem "às fronteiras da divindade" -- e esta é
a razão de ser de todas suas outras grandezas. Mas pode-se ser tentado a considerar
equivalentes todas as outras grandezas, por serem elas consequências da maternidade
divina. Sem dúvida, a função de Maria no mistério de nossa Redenção é também uma
dessas consequências. Muitos nem veem nela uma razão de ser, julgando-a inútil ao
lado da mediação de Cristo, nosso único Redentor necessário e suficiente. No entanto,
após a maternidade divina e a maternidade espiritual, ela ocupa um papel de importância
especial entre todas as prerrogativas da Virgem.
Já vimos que Maria apresentou
à Santíssima Trindade uma reparação incomensurável, infinita em certo sentido, e
como consequência dela uma glória incomparável diante dos anjos, dos homens e dos
demônios. Confere também a Deus essas homenagens de afeto e confiança filiais que
a devoção a Ela inspira aos homens em relação a Deus. O fato concreto é que a devoção
a Maria só é tão eficaz devido à sua missão co-redentora, que torna Maria semelhante
ao Filho de Deus feito homem. Não somente no que se refere a uma ou outra das prerrogativas
pessoais de Cristo, mas ainda quanto à sua própria missão, quanto à grande obra
em vista da qual "o Verbo se fez carne e habitou entre nós".
Esta função foi também
para Maria a causa de uma consolação inefável. Poder participar na terrível tarefa
de seu Filho; poder trabalhar, sofrer e se
imolar com Ele pelos seus objetivos; poder
contribuir para a eficácia dessa missão -- tudo isso lhe trouxe imensa alegria,
que se estenderá até o fim dos tempos, pois essa colaboração lhe possibilitará ajudar
a converter os pecadores, a santificar os justos, a multiplicar o número dos filhos
de Deus na terra e dos bem-aventurados no céu.
A associação de Maria com
o Redentor tem ainda outra importância para Maria, pois foi essa a condição para
realizar suas outras funções sociais: Sua maternidade espiritual, pois só é nossa
Mãe porque nos obteve a graça da vida sobrenatural; sua função de distribuidora de todas as graças,
pois tal distribuição resulta de tê-las adquirido; sua missão apostólica no mundo, que é apenas a
continuação de sua missão redentora; sua
realeza, pois um dos grandes merecimentos para essa realeza é o fato de tê-lo conquistado
pela co-redenção.
No que se refere a nós
mesmos, a colaboração de Maria para a nossa salvação confere sentido próprio à nossa
devoção a Ela. Sem essa colaboração, Maria não seria verdadeiramente mãe, seria
apenas uma mãe diminuída, e como consequência nossa devoção deixaria de ser filial.
Poderia ser uma grande devoção, maior até do que aos santos, mas restrita apenas
à mesma natureza desta última. Além disso, seria uma devoção facultativa. Não se
trataria mais dessa devoção que nos leva a amar Maria com amor tão terno e a pôr
nela uma confiança absoluta, por estarmos certos de que trabalhou tanto, sofreu
tanto e tanto se sacrificou para nos gerar para a vida. Não seria essa devoção viril,
ativa e apostólica, tão maravilhosamente eficaz, que todos os verdadeiros devotos
de Maria praticaram.
Por não terem compreendido
a missão redentora de Maria, certos católicos professam em relação a Ela apenas
uma piedade sentimental, intermitente e pouco fecunda. Ao contrário, os que compreenderam
o papel que Deus quis confiar-lhe na obra de nossa redenção conferem-lhe um papel
essencial na sua própria vida. Quanto mais meditam sobre a missão da Virgem, mais
se adestram em associá-la a todas as suas atividades espirituais e apostólicas,
vendo assim a sua fé ser recompensada pelos resultados que obtêm.
Uma contraprova para a
importância desse papel de Maria pode ser vista na atitude dos adversários da devoção
que lhe professamos. Os protestantes que mantiveram a fé no mistério da Encarnação,
geralmente reconhecem pureza, piedade e amor excepcionais na Mãe de Deus, mas se
recusam a reconhecer qualquer participação consciente dela na obra de nossa redenção.
Eles sentem que, se admitirem sua cooperação real na nossa salvação, isso os obrigaria
a admitir toda a piedade católica em relação à Virgem. Quando deparam casualmente
com Maria, inclinam-se diante da Mãe de Jesus, mas não querem abrir para Ela um
papel na sua vida religiosa. Essa atitude pode nos ensinar a avaliar melhor a inefável
grandeza de Maria como co-redentora do gênero humano, e assim vivenciá-la ainda
mais. (Atualmente o título de co-redentora é admitido por praticamente todos os
católicos. A Congregação do Santo Ofício atual Congregação para a Doutrina da Fé) -- utilizou-o
em duas ocasiões.
O Papa Pio XI deu solenemente
esse título à Virgem, ao abençoar os peregrinos de Lourdes em 28/04/1935: "Ó
Mãe de piedade e misericórdia, que acompanhastes vosso doce Filho quando cumpria
a Redenção do gênero humano no altar da cruz, vós que sois nossa co-redentora e
participante nas suas dores, nós vos pedimos que conserveis em nós e façais crescer
a cada dia os preciosos frutos de nossa redenção e de vossa compaixão". Ninguém
tem motivo, portanto, para protestar contra esse título e se mostrar mais católico
que o Papa.)
7º.
Significado da distribuição universal da graça
Dentre os privilégios da
Virgem, talvez não haja nenhum outro cuja importância em conhecer seus limites seja
tão grande quanto o da distribuição da graça. Não que ele represente uma verdade
por demais abstrata para ser compreendida, tanto é assim que contém uma doutrina
das mais populares. Porém, precisamente pelo fato de ser popular, fica exposta a
deformações que ocorrem com as verdades populares, como o exagero quanto ao real
e a materialização do que é espiritual. Como se trata atualmente de elevar ao grau
de dogma este privilégio da Virgem, determinar o seu sentido exato constitui duplamente
uma obra de piedade.
Descartemos de início um
sentido herético, que consiste em atribuir a Maria o papel de autora da graça. Sem
dúvida tal heresia não ocorrerá ao espírito de nenhum fiel, pois a graça é obra
divina, que Maria não pode criar. O que se trata de estudar, portanto, não é a origem
da graça, e sim a sua distribuição.
Descartemos também um sentido
material, que pode ser erroneamente entendido por alguns devido às metáforas geralmente
usadas para descrever essa função. Fala-se de Maria como distribuidora, dispensadora,
tesoureira das graças, o que poderia levar algumas pessoas a imaginar a Virgem como
alguém que mantém em suas mãos as graças de Deus para distribuí-las aos seus clientes,
da mesma forma que o fazem os tesoureiros com moedas de ouro. A graça, bem ao contrário,
não é um ser material como uma moeda, nem mesmo um ser espiritual com vida própria,
como uma alma ou um anjo, e sim uma maneira de ser. Ela não pode ser contida nas
mãos, mesmo que essas mãos fossem celestes, da mesma forma que a humildade e o amor
não podem ser contidos nas mãos. Trata-se de uma maneira de ser, que Deus produz
diretamente na alma, sem que precise ser tocada por Maria. A distribuição que Ela
realiza se dá porque Deus a concede devido à sua intervenção.
Ainda outro conceito errôneo
consiste em confundir a universal distribuição da graça com a necessidade de uma
universal e constante invocação de Maria. Como veremos adiante, Ela distribui graças
também aos que não a invocam, e mesmo aos que nem a conhecem. Por vezes até prefere
que se invoque outro servo de Deus, em vez de invocá-la. Quando quer que Deus seja
honrado por meio de outro dos seus servos, parece surda a quem a invoca, mas atende
as súplicas dirigidas a esse servo de Deus. Faria dela uma ideia muito mesquinha
e injuriosa quem a imaginasse ocupada somente dos seus devotos.
Como se deve então entender
essa intervenção de Maria, pela qual distribui a graça? Não se trata aqui da intervenção
geral, que consistiu na união da co-redentora com o Redentor, por meio da qual contribuiu
para merecer todas as graças que viriam a ser distribuídas aos homens. Seria mesmo
desnecessário fazer aqui esta ressalva, se alguns não quisessem reduzir a apenas
este papel a distribuição da graça por Maria. O que se analisa aqui é a distribuição
individual, isto é, a aplicação de cada graça especial a cada ser em particular.
Essa intervenção efetiva
da Virgem na distribuição das graças deve ser comparada antes de tudo a uma intercessão,
porém com tais características que a tornam possível apenas no céu. Não se deve
imaginar a Virgem constantemente distraída da contemplação divina, para conhecer
as necessidades e ouvir as súplicas de centenas de milhões de seres humanos, e ao
mesmo tempo diligenciando diante de Deus Todo-poderoso pelo seu atendimento. O que
de fato acontece é que a Virgem ama a Deus e o contempla face a face, e nessa contemplação
e amor vê em Deus, como em um espelho de infinita pureza, o que o próprio Deus está
vendo. Ela não vê tudo o que Deus vê, pois Deus é infinito, mas vê a parte que interessa
à sua missão de atender as necessidades dos que a Ela recorrem.
Maria participa do conhecimento
de Deus, vendo nele os homens com todas as suas necessidades e preces, e também
o desejo que Deus tem de ajudá-los por meio dela. Para interceder em favor dos homens,
basta-lhe contemplar a Deus, e essa contemplação lhe diz mais do que qualquer oração
nossa. Se nas relações entre os homens os olhos falam mais que os lábios, não se
dará o mesmo no céu? A Mãe olha para seu Filho com um sorriso de confiante súplica,
e o Filho responde com um sorriso de amoroso consentimento. (Discute-se a opinião
de que Maria tem na distribuição da graça não só um papel de intercessão no céu,
mas também uma influência pessoal direta sobre os que recebem essa graça. A que
ponto pode chegar essa influência? Que um pedido seja atendido, já é um dado essencial,
mas existe ainda a maneira de dar, que por vezes vale mais que o próprio benefício.
Como analogia, pode-se entender que o rei encarregue um de seus secretários de conferir
o benefício.
Mas se a própria rainha
vai comunicar o atendimento do pedido, quão maior será a alegria da pessoa, como
também a da rainha! O mesmo ocorre quando a Rainha do céu intervém diretamente na
transmissão do favor celeste. Sua ação poderá consistir em preparar a alma para
receber a graça, pois se está mal preparado o terreno em que é depositada, não germinará
ou não produzirá frutos. Se intervém a própria Rainha, a graça será acolhida com
mais alegria, mais generosidade, fazendo-a frutificar melhor. Certos místicos que
descrevem uma ação sensível de Maria na sua alma parecem supor uma atividade desse
gênero. Uma questão consiste em saber se essa ação física de Maria na concessão
da graça pode ser confirmada pela teologia; e também se ela se daria em relação a todas as
graças ou somente em relação às graças con-cedidas a certas almas escolhidas.
Não é este o local adequado
para a discussão deste assunto, que no entanto é admi-tido por número crescente
de autores conceituados.)
Essa intervenção universal
e incessante da Virgem nos assuntos humanos não prejudica em nada o gozo tranquilo
de sua incompreensível bem-aventurança. Mais do que isso, essa intervenção constitui
parte dessa bem-aventurança. Nosso dever na terra consiste em amar não somente a
Deus, mas também ao próximo, e no cumprimento desse dever consiste nossa felicidade.
Como disse Nosso Senhor, há mais felicidade em dar do que em receber. Podemos então
indagar se no céu a nossa felicidade seria reduzida nesse aspecto de dar, ou se,
pelo contrário, ela será aumentada além do que possamos imaginar. Santa Teresa do
Menino Jesus declarou antes de sua morte que passará seu céu fazendo o bem sobre
a terra, e sabemos que ela manteve sua promessa. O que a santa carmelita predisse
sobre si mesma, e que se aplica a todos os amigos de Jesus, vale com mais razão
para Maria, estendendo-se neste caso tal afirmação a todas as graças.
Se a intercessão constante
de Maria se harmoniza perfeitamente com sua bem-aventurança, harmoniza-se não menos
ditosamente com a ordem de Deus. Em primeiro lugar, trata-se da execução de um decreto
geral da divindade, além disso atende soberanamente aos decretos particulares relativos
a cada alma individualmente. A fim de tornar mais palpável o poder de mediação de
Maria, por vezes ela é apresentada como disputando com Deus, por assim dizer --
do mesmo modo que Moisés intercedendo pelos israelitas prevaricadores -- a fim de
obter para algum de seus fieis uma graça que a justiça de Deus quereria inicialmente
recusar. É verdade que, sem a intervenção de Maria, a justiça divina seguiria seu
curso, mas o próprio Deus quer que a Virgem recorra à sua misericórdia. Proclama-se
ainda que Maria obtém todas as graças que deseja, para quem Ela as deseja e do modo
como deseja.
São afirmações muito justas,
desde que não sejam tomadas como caprichos maternos, que prevaleceriam contra os
justos desígnios de Deus.
A Virgem não pode ter outro
desejo que não seja o desígnio de Deus, e só pede para seus protegidos o que sabe
corresponder ao que Deus queria que Ela pedisse.
8º.
Distribuição universal da graça por Maria
Explicamos até aqui o modo
como se dá a distribuição das graças por Maria. Resta expor o que se deve entender
pela sua universalidade, que constitui o objetivo deste estudo.
Esclarecemos inicialmente
que temos em vista a graça concedida aos homens, e não as que Deus aplicou aos anjos.
Em segundo lugar, dentre as graças distribuídas aos homens, esse privilégio de Maria
só pode englobar as que os homens receberam depois da Assunção. Sem dúvida a Virgem
contribuiu para merecer todas as graças, e consequentemente para obtê-las, mesmo
as que foram dadas aos homens antes de Ela nascer. Também foi mediadora universal
para estas últimas, mas em caráter geral, pois não pode ter intercedido individualmente
por elas antes de Ela mesma existir. O próprio Cristo não pôde fazê-lo.
Maria é distribuidora de
graças de tipos diferentes: graças ordinárias e graças sacramentais, que pedimos
diretamente a Ela ou a Deus, a Cristo ou aos santos; graças que solicitamos e graças que não solicitamos.
Maria intervém em todas essas graças, mesmo naquelas que os hereges e os blasfemadores
da Virgem recebem, pois também Deus "faz levantar seu sol sobre os bons e os
maus, e chover sobre os justos e os injustos". Maria obtém graças para todas
as almas santas ou pecadoras que vivem neste mundo.
Feitas estas restrições
e colocadas estas precisões, a universalidade das graças distribuídas por Maria
deve ser tomada no seu sentido estrito, não admitindo nenhuma exceção. É possível
provar, ou então mostrar por meio da Revelação, que Deus confiou tal função a Maria?
Respondemos que sim, pois isso é possível.
9º.
Distribuição universal da graça, verdade revelada
Não se deve imaginar que
os contemporâneos dos apóstolos professassem fé explícita em algum privilégio da
Virgem, o que só se deveria iniciar depois da Assunção. Mas tinham indicações próprias
a orientar o espírito em relação a essa fé, e isso certamente os levaria mais tarde
a dar-lhe seu assentimento, na medida em que o desenvolvimento da mariologia estivesse
suficientemente avançado.
O Novo Testamento ensina
como Cristo nos mereceu todas as graças por meio da sua vida e morte, e como prossegue,
na posse atual de sua glória, a obra de mediador e nosso advogado ante o Pai. A
graça que conquistou para todos nós, e o fez para sempre, se aplica a cada alma
em particular. São João nos lembra que devemos ter confiança, embora sendo pecadores,
"pois Jesus Cristo, o justo, é nosso advogado diante do Pai" E São Paulo,
explicando mais claramente esse papel de Cristo glorificado, proclama: "Se
Deus está a nosso favor, quem será contra nós? Aquele que não poupou seu próprio
Filho, e o entregou à morte por nós, como não haveria de nos dar todas as outras
coisas? Quem acusará os eleitos de Deus? Se Deus os justifica, quem os condenará?
Cristo morreu, mais que isso ressuscitou, está à direita de Deus e intercede por
nós".
A epístola aos hebreus
desenvolve essa ideia quando descreve o sacerdócio de Cristo, isto é, sua função
de mediador. Mostra como Jesus mereceu essa função por meio das suas orações e por
sua morte, e continua a exercê-la no céu: "Pelo fato de assistir continuamente,
possui um sacerdócio eterno, podendo assim salvar para sempre os que se aproximam
de Deus por meio dele, que vive eternamente para interceder por nós.
A associação constante
de Maria com os diversos mistérios de Jesus na terra parece destiná-la igualmente
à união com Cristo no seu papel celeste. Não seria também Ela, com Ele e abaixo
dele, nossa advogada diante do Pai? Há um motivo mais direto e mais imperioso do
que essa associação, para nos levar a concluir pela existência de tal função no
céu. A função de Cristo enquanto intercessor celeste é apresentada, nos textos citados
acima, como a consequência natural da sua função de Redentor: Ele morreu por nós,
e é por isso que, depois de ressuscitado, intercede por nós; seu sacerdócio, que conquistou na terra pelas suas
orações e sua morte, é um sacerdócio eterno; Cristo permanece sempre vivo para interceder por
nós. A própria natureza das coisas indica essa relação: a distribuição da graça
é apenas a aplicação individual da sua aquisição, e esta se fez por meio da Redenção.
Tendo cooperado para a
Redenção, Maria colaborou para essa aquisição. Não será natural concluir que, como
co-redentora na terra ao lado do Redentor, Ela também se tenha tornado no céu advogada
ao lado do Advogado? Nosso espírito ficaria desconcertado se Deus tivesse disposto
as coisas de modo diferente, isto é, se aquela que se associou a Ele na Redenção
não se tornasse também associada dele na aplicação da Redenção, que é a distribuição
das graças.
São Paulo declarou expressamente:
"Os dons e o chamado de Deus são irrevogáveis". Nossos desejos e métodos
mudam, porque somos imperfeitos. Mas Deus, que conhece desde o princípio os caminhos
mais adequados para atingir os objetivos, é imutável nos seus decretos e constante
no uso dos seus instrumentos, salvo se estes o forçam a rejeitá-los. Porém a Virgem
foi concebida sem pecado original, e durante sua vida nunca a manchou qualquer pecado,
portanto não desmereceu sua vocação. Desde o primeiro fiat dela na Encarnação até
o último e terrível fiat no Calvário, o Evangelho a mostra invariavelmente dócil
à vontade de Deus. Se no mundo houve alguma adesão irrevogável à vocação, essa foi
com toda certeza a de Maria. E se Cristo permanece no céu o Advogado de todos, não
será Ela também, mas em grau inferior, a advogada de todos?
A própria vida da Virgem
nos apresenta certo número de episódios próprios a fazer pressentir essa mesma conclusão,
mostrando-nos que todas as vezes que Cristo quis conceder aos homens uma graça de
gênero particular, sua Mãe serviu de intermediária.
Maria foi seu instrumento
para santificar o Precursor São João Batista e encher a alma de Izabel com o Espírito
Santo; tinha-o no colo quando se revelou
aos judeus na pessoa dos pastores, e aos gentios na pessoa dos Reis Magos; entregou Jesus ao profeta Simeão e à profetisa
Ana, que assim cumpriram seus desejos; um
pedido de Maria levou-o a fazer o primeiro milagre nas bodas de Caná, alegrando
os convivas e poupando dissabores aos anfitriões, além de confirmar a fé dos seus
primeiros discípulos; na presença de Maria
Ele quis concluir no Calvário a nossa Redenção; a vinda do Espírito Santo no cenáculo, quando Cristo
já se tornara nosso Advogado no céu, deu-se na presença de Maria, com quem os apóstolos
permaneciam em oração.
Esses são dons relatados
no Novo Testamento, mas todas as pessoas que tiveram a felicidade de se aproximar
de Maria durante sua vida sentiram certamente sua benéfica influência. Esse conjunto
de fatos não autoriza a afirmação categórica da intercessão universal da Virgem
após sua Assunção, mas contém indicações que orientam o espírito nesse sentido.
Os primeiros séculos nos
legaram poucos documentos adequados a constatar o pensamento cristão que caminha
desses dados primitivos para a clara visão da universal distribuição da graça por
Maria. Não espanta que tenha havido esse silêncio, pois a fé na intercessão dos
santos se manifesta na prática pela oração, embora não a exija. Mas nos primórdios
do cristianismo as orações eram assunto privado, exceto a prece litúrgica, a recitação
dos salmos e do Pai nosso. Não havia fórmulas consagradas a fim de exprimi-las,
mas um papiro descoberto recentemente no Egito, datado do século 3, ou 4 pelos papirólogos,
contém o Sub tuum præsidium em grego, com texto quase igual ao atual. A forma geral
do pedido endereçado à Mãe de Deus faz supor a convicção do seu autor e dos contemporâneos
sobre a intercessão universal de Maria: "Não desprezeis nossas preces nas nossas
necessidades, mas afastai-nos do perigo".
O entendimento do papel
co-redentor da Virgem adquiriu bem cedo uma nitidez surpreendente, como vimos acima.
Quando se chegou a entender esse papel na aquisição da graça, seguiu-se quase necessariamente
o entendimento do seu papel na distribuição da graça. Quase instantaneamente se
nota, a partir do século 5, que em muitos lugares se recorre à Mãe de Deus, atribuindo-se
à sua intercessão os benefícios mais diversos nas necessidades mais variadas. Ela
é invocada como podendo obter para os homens todas as graças. O Ave maris stella,
cuja existência é mencionada desde o início do século 9, traduz bem essa atitude.
Com exceção da primeira estrofe, essa prece é uma longa enumeração de todos os benefícios
de alma e de corpo que esperamos da Mãe de Deus: Mala nostra pelle, bona cuncta
posce -- Afastai de nós os males, implorai [para nós] todos os bens.
Posteriormente se afirmou
-- de início confusamente, depois com nitidez -- que a Virgem é a distribuidora
de todos os favores celestes. São Germano de Constantinopla, no início do século
8, é extremamente categórico nessas afirmações: "Ninguém se salvou, a não ser
por vosso intermédio, ó Santíssima Virgem. Ninguém se livrou do mal, a não ser por
vós, ó puríssima Virgem. Ninguém recebe graças, a não ser por vós, ó inocentíssima
Virgem. Ninguém obtém o auxílio da graça, a não ser por vós, ó augustíssima Virgem".
No Ocidente, São Bernardo
exorta todos os fiéis justos e pecadores, em termos inflamados, a esperar de Maria,
nossa benigna Mediadora junto a Jesus nosso Mediador, todos os bens de alma e de
corpo. Lembremos, por exemplo, suas insistentes exortações à invocação da Virgem,
na sua homilia Super Missus est, a propósito do nome Maria, que ele interpreta como
Estrela do mar: "Nos perigos, nas angústias, nas perplexidades, pensai em Maria,
invocai Maria! Que seu nome não se distancie dos vossos lábios, não se distancie
do vosso coração! E para garantir o apoio de sua oração, não abandoneis os exemplos
da sua vida! Se a seguirdes, não vos extraviareis; se a invocardes, não perdereis a esperança; se pensardes nela, não tomareis caminhos falsos.
Se Ela vos sustenta, não caireis; se vos
protege, não temereis; se vos guia, não sentireis
o cansaço; se vos é propícia, atingireis
o objetivo".
Dante Alighieri também
colocaria na boca de São Bernardo estas palavras: "Mulher, és tão grande e
podes tanto, que desejar a graça sem recorrer a ti é pretender que tal desejo voe
sem ter asas". (A propósito da distribuição de todas graças por Maria, cita-se
frequentemente esta palavra de São Bernardo: "Veneremo-la, pois essa é a vontade
daquele que quis que tenhamos tudo por intermédio de Maria". Entretanto, como
mostra o contexto, São Bernardo faz essa afirmação a propósito do papel de Maria
na Encarnação, e não na distribuição da graça. Sem dúvida, a formulação exprimiria
também seu pensamento em relação à distribuição da graça. A Divina Comédia, canto
33,13 seguintes)
Durante muitos séculos,
a distribuição universal da graça foi admitida praticamente por todos os fieis.
No século 18, foi atacada por alguns eruditos e gloriosamente defendida por Santo
Afonso de Ligório. Com exceção de certos espíritos ainda aferrados a uma ou outra
das objeções que discutiremos adiante, atualmente a mediação universal de Maria
na distribuição da graça é admitida por toda a Igreja. É afirmada como doutrina
corrente nas encíclicas e outros documentos de vários Papas desde Bento XIV, (século
18) especialmente de Leão XIII, São Pio X, Bento XV e Pio XI.
Leão XIII o ensina em várias
encíclicas, como a Adjutricem populi, (5/09/1895) onde afirma: "De acordo com
um decreto divino, a partir de sua Assunção Maria começa a velar sobre a Igreja,
a nos assistir e nos proteger como Mãe. Tendo sido a colaboradora no mistério da
Redenção, foi também do mesmo modo colaboradora na graça que emanaria para sempre
desse mistério, confiando-se a Ela para esse efeito um poder praticamente ilimitado".
Note-se que o Soberano Pontífice vincula a distribuição da graça à sua aquisição
pela Redenção.
São Pio X nos dá afirmação
e explicação equivalentes na encíclica Ad diem illum: (5/02/1904) "Por essa
união de sofrimentos e vontades entre Maria e Cristo, Ela mereceu com muita dignidade
tornar-se a reparadora do mundo perdido, e pelo mesmo motivo tornou-se também a
dispensadora de todos os dons que Jesus nos adquiriu por sua morte e seu sangue".
Bento XV afirma a mesma
doutrina com base nos mesmos motivos: "Por causa da união da Virgem com Jesus
na sua Paixão redentora, as graças de todo gênero que recebemos do tesouro da Redenção
nos são distribuídas, por assim dizer, pelas mãos redentoras da Virgem das dores".
Em 1921, aprovou o ofício e a missa em honra de Maria, Medianeira de todas as graças.
É oportuno lembrar que "a regra da oração é a regra da fé".
Pio XI, quando a concedeu
como Padroeira da França sob a invocação da Assunção, refere-se a Maria como a Mediadora
de todas as graças diante de Deus. Na encíclica Ingravescentibus malis, sobre o
mistério do Rosário, faz suas as palavras de São Bernardo, acima citadas, aplicando-as
à distribuição da graça: "Invocamos diante de Deus a mediação da Bem-aventurada
Virgem, que lhe é tão agradável. Servindo-nos das palavras de São Bernardo, essa
é a vontade de Deus, cujo desejo foi que recebêssemos tudo por Maria".
Resta-nos ainda o último
passo, que é a proclamação desse ensinamento como dogma revelado. Sabe-se que tal
proclamação é aguardada em toda a Igreja.
10º.
Respostas a algumas dificuldades
Mostramos que vários Papas
afirmaram a distribuição de todas as graças por Maria. Entretanto, certos espíritos
ainda têm dificuldades sobre a universalidade dessa função. Reconhecem à Mãe de
Jesus um excepcional poder de intercessão, porém não conseguem ver qual o fundamento
sólido que possamos estabelecer para uma intercessão absolutamente universal. As
objeções desses podem ser assim resumidas:
1º. Deus precisa de Maria
para distribuir todas as graças?
2º. Não pode Ele distribuir
certas graças diretamente por meio de outros santos?
3º. Como pode Maria intervir
na distribuição das graças sacramentais?
Evidentemente Deus não
tem necessidade de Maria para distribuir seus dons aos homens, e poderia ignorá-la
para esse efeito, como também poderia dispensá-la quando quis efetivar os mistérios
da Encarnação e Redenção, e ainda dispensar a Igreja para o efeito de obter a conversão
do mundo. Mas o problema está mal posto, pois não se trata de saber se Deus deve,
e sim de saber se quer se servir de Maria para a distribuição da graça. E não se
trata de saber se a distribuição de todas as graças por Maria é intrinsecamente
necessária, mas sim se ela é necessária por um livre decreto de Deus. É claro que
Deus poderia conceder-nos algumas graças diretamente, e até mesmo todas as graças.
Mas há alguma indicação
providencial em favor da suposição de que Deus tenha preferido agir dessa forma?
Se é certo que quis a contribuição de Maria para a aquisição de todas as graças,
sem exceção, por qual motivo quereria privá-la da distribuição dessas mesmas graças
que Ela ajudou a merecer? Se aos outros santos Deus consente em distribuir inúmeras
graças, para cuja aquisição eles não contribuíram, por que negaria a Maria a distribuição
das graças para cuja aquisição Ela contribuiu com o preço de tantas orações e sofrimentos?
"Se Ela participou do sofrimento, é justo que também participe da glória".
Resposta análoga deve ser
dada à segunda objeção. Sem dúvida Deus pode conceder, por meio dos santos, benefícios
para seus devotos. Mas surge também aí a dúvida: Será que Ele quer fazer isso? Por
qual motivo?
Na base dessa segunda objeção
se encontra, frequentemente de modo inconsciente, a falsa ideia de que a primeira
razão para a Virgem ser distribuidora de todas as graças é sua supereminente santidade:
Maria é mais santa que todos os servos de Deus reunidos, portanto distribuirá mais
graças do que todos eles. Aceitemos por ora esta conclusão, para efeito de argumentação.
Mas se o decisivo no caso é o grau de santidade, e os santos também têm algum grau
de santidade, devem distribuir também algumas graças. O raciocínio é exato, mas
o verdadeiro motivo da distribuição universal da graça por Maria não é a sua grande
santidade, e sim sua cooperação na Redenção. Se algum santo tivesse cooperado nos
mistérios da Encarnação e Redenção -- o que significa a aquisição da graça -- estamos
no direito de concluir que esse também poderia, da mesma forma que Maria, participar
na sua distribuição.
Reveste-se de caráter absolutamente
único a distribuição da graça por Maria, pois sua cooperação na aquisição da graça
foi também absolutamente única. Os santos nos obtêm graças, mas por meio de Maria,
como foi também por meio de Maria que eles próprios conseguiram santificar-se. (Sem
dúvida alguma São José cooperou nesses mistérios, por isso goza de certo poder universal
de intercessão. Porém, como sua cooperação para a Redenção não foi direta, além
disso foi inferior à de Maria, seu poder de intercessão é também inferior ao de
sua esposa e indireto, exercendo-se por meio dela.)
Seria de temer que essa
doutrina coloque em posição humilhante os outros santos? Eles também figuram diante
de Deus, mas assim estariam na situação de cortesãos subalternos, sem crédito diante
do rei, e teriam de recorrer a um personagem mais poderoso a fim de obter algum
benefício para seus amigos. Mas o fato é que diante de Deus os santos não são cortesãos,
e sim seus filhos juntamente com Jesus, que também é Filho. Mas esses filhos só
querem obter os benefícios de Deus por intermédio de sua Mãe, que os conduziu a
conseguiram tudo o que são. Bem mais do que isso, são felizes por recorrerem sempre
a Ela, pois conhecem sua bondade e o poder de seu merecimento diante de Deus. Agindo
por meio dela, apresentam-se diante de Deus com a segurança de obterem o que pedem,
porque Ele também os ama, e sobretudo ama aquela que torna seus os pedidos deles.
O assunto recebeu uma solução,
que quase se pode dizer oficial, por ocasião da canonização de Santa Joana d'Arc.
Embora os milagres obtidos pela invocação simultânea de dois servos de Deus não
possam ser usados como prova infalível da santidade de um deles, o Papa Bento XV
admitiu como prova em favor da santidade de Joana d'Arc uma cura devida à invocação
a ela e a Nossa Senhora de Lourdes. E a explicação foi a seguinte: "Deve-se
reconhecer em todos os fatos miraculosos a mediação de Maria, por meio da qual Deus
quer que nos cheguem todas as graças. Assim sendo, não se pode afirmar que a mediação
da Santíssima Virgem tenha se manifestado de modo especial em um dos milagres documentados.
Pensamos que Nosso Senhor dispôs assim a fim de lembrar aos fieis que jamais se
pode excluir a lembrança de Maria, ainda que um milagre pareça dever ser atribuído
à intercessão de um bem-aventurado ou santo".
Na sua encíclica sobre
o santo Rosário, Pio XI professa a mesma doutrina como sendo uma verdade admitida.
Lembrando a cura quase miraculosa que o beneficiara recentemente, afirmou: "Atribuímos
esta graça à especial intercessão de Teresinha do Menino Jesus. Não obstante, sabemos
que tudo o que Deus nos concede vem pelas mãos de Maria".
Pode-se perguntar se um
tipo comum de graças, que são as sacramentais, está também vinculado à universal
intercessão de Maria. É sabido, por exemplo, que a absolvição de um sacerdote ao
pecador arrependido se realiza por virtude própria -- ex opere operato, de acordo
com a expressão teológica. Haveria necessidade da intervenção de Maria também nesses
casos, para que se complete o perdão de Deus ao culpado arrependido? Não se pode
ver aí um tipo de graças que escapa à universal mediação de Maria?
Essa objeção parece forte
para certos espíritos, a ponto de impedir seu pleno assentimento a essa doutrina,
apesar de também eles a desejarem reconhecida universalmente. Porém, apesar de parecer
forte, essa objeção é enganosa. Podemos dizer inicialmente que ela envolve um sofisma,
pois estaria voltada também contra a universal intercessão de Cristo, não apenas
contra a de sua Mãe, podendo-se aplicar aí o provérbio o que prova demais, nada
prova.
Em segundo lugar, quando
se examina de perto o assunto, nota-se que a intervenção de Maria no caso das graças
sacramentais é a mesma de todas as outras graças, obtendo que a alma se mova no
sentido de receber aquela que o sacramento confere. Para nos servirmos de um exemplo
material, podemos imaginar uma pessoa que intercede junto a um amigo rico a fim
de obter para um pobre uma grande esmola, e ao mesmo tempo convence o pobre a fazer
pessoalmente o pedido.
Pode-se mesmo afirmar que
Maria intervém mais na distribuição da graça sacramental do que na distribuição
das outras graças, pois precisa atuar não apenas sobre quem recebe a graça, como
mais ainda sobre o distribuidor da graça. Intercede portanto para a pessoa ter as
disposições necessárias a fim de receber a graça sacramental, e ainda para encontrar
um distribuidor (sacerdote, ministro) que possa e queira conferir-lhe o sacramento.
11º.
Harmonias
Já insistimos sobre a estreita
relação que liga a distribuição da graça à co-redenção e à maternidade espiritual.
O mesmo acontece com as outras grandezas de Maria.
Examinemos inicialmente
a sua plenitude de graça. Cristo possui a plenitude da graça, tanto em si mesmo
como para todas as criaturas em conjunto, pois "nós recebemos tudo da plenitude
que Ele tem". Guardadas todas as proporções, aquela que o anjo saudou como
"cheia de graça" recebeu de Deus uma superabundância de graças tão grande,
que basta para si mesma e para todos os homens, de modo que tudo nós recebemos da
plenitude dela.
Já mostramos que a distribuição
de todas as graças por Maria se fundamenta antes de tudo na sua colaboração no mistério
da Redenção, mas a sua excepcional santidade acrescenta a esse principal motivo
um outro, que é extremamente poderoso. É fácil compreender que, se a carmelita de
Lisieux pode derramar sobre a terra uma maravilhosa "chuva de rosas",
isso se deve ao fato de ser maravilhosamente santa. E convém à santidade única de
Maria -- maior diante de Deus do que a de todos os anjos e santos reunidos -- que
a ela corresponda um poder de intercessão também único.
É sobretudo a maternidade
divina que confere a Maria esse poder único de intercessão. Os santos se alegram
em repetir com insistência que Cristo não saberia recusar nada a Maria. E o que
poderiam recusar o Pai à Filha privilegiada, e o Espírito Santo à Esposa bem amada?
Os vários privilégios que
acabamos de mencionar exigiam, por motivo de conveniência, que fosse conferida a
Maria a função de distribuidora de todas as graças, ou ao menos a preparavam para
isso, tornando-a particularmente apta a tal função. Esta mesma função a preparava
para outras prerrogativas, como sua missão apostólica e sua realeza universal.
12º.
Maria Mediadora ao lado de Jesus Mediador
Na sua dupla função de
Mediadora, como vimos, Maria está associada a Cristo, Redentor e intercessor. Ela
não o substitui, pois só Ele permanece nosso Mediador necessário, suficiente e perfeito.
Pondo-se diante de Cristo, Maria não o esconde, pois só a vemos como Mediadora à
luz de Cristo Mediador. Bem ao contrário, Ela encaminha nossos olhares para Cristo,
de quem recebe todo poder de co-redentora e advogada. Por essa irresistível atração
materna que exerce sobre todos os homens que a contemplam na simplicidade do seu
coração, Maria toma posse da alma para conduzi-la infalivelmente a Cristo. Como
a experiência mostra, aproximam-se cada vez mais de Cristo, com confiança e amor
crescentes, aqueles que são conduzidos pelas mãos da universal Mediadora, caminho
imaculado que Ele mesmo escolheu para nos procurar. Por ser Maria Mediadora, Jesus
é mais eficazmente Mediador.
Capítulo,
4º. A MISSÃO APOSTÓLICA DE MARIA
Geralmente os tratados
de mariologia não mencionam uma missão apostólica da Virgem. No entanto, o conhecimento
dessa função social de Maria é de muito grande importância prática, sobretudo na
hora atual.
1º.
Significado da missão apostólica de Maria
O que se deve entender
por missão apostólica de Maria? O Evangelho narra como Nosso Senhor escolheu entre
os seus discípulos doze que denominou apóstolos, significando enviados. Esses doze
deveriam ajudá-lo na missão para a qual Ele mesmo havia sido enviado ao mundo: "Assim
como meu Pai me enviou, eu vos envio. Todo poder me foi dado no céu e na terra.
Ide, pois, ensinai todas as nações, batizando em nome do Pai e do Filho e do Espírito
Santo, e ensinando-as a praticar tudo o que vos mandei. Eis que estarei convosco
até a consumação dos séculos".
Portanto a missão de todo
apóstolo é como a de Cristo, que consiste em resgatar as almas ao demônio, santificá-las
e salvá-las. O conceito de apóstolo compreende dois elementos:
1º. Ser enviado por Cristo;
2º. Em nome e pelo poder
de Cristo, trabalhar para a conversão e santificação dos homens.
Missão apostólica de Maria
é a função que lhe foi confiada por seu Filho, de ajudá-lo até o fim dos tempos
a libertar da escravidão do demônio, santificar e salvar todas as almas que vêm
a este mundo. Veremos que essa missão apostólica de Maria é única, diferente da
que tiveram os apóstolos devido à sua universalidade. A ação de todos os apóstolos
é limitada no espaço e no tempo, mas a de Maria se estenderá a todos os tempos e
a todos os lugares, por ser universal como a de Cristo.
Outra diferença é com relação
ao grau, por ser missão de dirigente, enquanto a deles é de subordinados. Maria
recebeu diretamente de Deus a missão de santificar e salvar todas as almas. Os outros
apóstolos eram comandados, e seu trabalho participava do trabalho de Maria, quer
tivessem ou não consciência disso. Era dela a função de generalíssima, e deles a
de soldados ou oficiais do exército apostólico. (Subordinados do ponto de vista
da atividade apostólica direta -- que consiste em fazer a alma viver da vida de
Cristo -- e não do ponto de vista do sacerdócio ou do governo, que são apenas meios
nem sempre eficazes, tendo como objetivo essa ação apostólica.)
2º.
A missão apostólica de Maria, verdade revelada
Terá Cristo confiado verdadeiramente
tal missão à sua Mãe? Sim, sem nenhuma dúvida, pois essa missão deriva diretamente
das funções de Maria que temos analisado, e se confunde com elas até certo ponto.
Além disso, o sentimento da Igreja sempre reconheceu à Virgem tal missão, sobretudo
nos últimos tempos.
Unida a seu Filho, Maria
contribuiu para a Redenção do gênero humano, como vimos. A Redenção foi merecida
por Cristo no Calvário para todos os homens, mas só se realiza para cada homem na
medida em que este se acha em condições de gozá-la. Antes de ir para junto do Pai,
o Salvador enviou seus discípulos a todos os povos a fim de prosseguir sua obra
junto aos homens e levar-lhes a salvação. A missão da Igreja é consequência direta
da Redenção, e não estaria completa sem ela. De acordo com as palavras de Cristo,
a Igreja é a própria Redenção: "Assim como meu Pai me enviou, eu vos envio".
Ou seja, como o Filho foi enviado para a Redenção, os discípulos o foram para o
apostolado. Redenção e apostolado são portanto a mesma coisa.
Maria cooperou na Redenção,
para toda a Redenção, e deverá cooperar também para toda a missão da Igreja. Em
outros termos, deve cooperar para todo o apostolado católico. Sem essa segunda cooperação,
a obra da co-redenção ficaria inacabada, e Cristo teria agido em relação a sua Mãe
como o homem do qual se fala no Evangelho, que começa a construir uma torre e não
a consegue concluir. Afirmar a missão apostólica universal de Maria no mundo significa
afirmar que Deus é fiel e constante em relação à sua Mãe; que "seus dons e seus chamados são sem arrependimento";
que mantém para a co-redentora a missão que
lhe confiou, associando-a à obra de seu Filho.
A missão apostólica de
Maria mantém relações muito estreitas com a missão de Mãe dos homens. Cada mãe é
a primeira apóstola de seu filho, tendo como missão preservá-lo do pecado e fazê-lo
viver a vida sobrenatural. Se ela o confia a outros educadores, estes se tornam
seus auxiliares, permanecendo ela a primeira responsável por essa missão.
Por motivo ainda mais forte,
Maria é a primeira apóstola de seus filhos. Não só por ser a mais perfeita das mães,
mas sobretudo por ser mãe sobrenatural. Uma mãe comum que negligencia a alma de
seu filho será considerada má, mas apesar disso continuará sendo sua mãe, pois lhe
deu a vida física. O caso de Maria é completamente diferente, pois sua maternidade
se limita à vida sobrenatural. Se não nos faz viver a vida de Cristo, deixa de ser
apóstola e o título de mãe perde seu sentido. Se Deus quis que o título de Mãe dos
homens se tornasse realidade e não apenas uma palavra vã, tem que ter confiado a
Maria uma missão apostólica universal.
A vocação para as funções
de co-redentora e Mãe dos homens mostra que Maria precisa ter recebido de Deus uma
missão apostólica, e seu papel de distribuidora de todas as graças mostra que de
fato recebeu tal missão. Com efeito, nenhum trabalho apostólico é eficaz sem a graça:
a vocação de um cristão para o apostolado é uma graça; sua fidelidade em responder a essa vocação é uma
graça; sua boa disposição para exercer o
apostolado em favor da alma é uma graça; o sucesso junto à alma é uma graça. Quando uma
alma é posta em contato com o apóstolo, quando ouve docilmente sua palavra, quando
se deixa converter, quando persevera no bem -- tudo isso se deve a graças sucessivas
concedidas à alma.
Porém todas essas graças,
sem exceção, vêm para o apóstolo e para a outra alma por intermédio de Maria. Se
a graça deixar de agir, por um momento que seja, a ação do apóstolo perderá sua
eficácia. Portanto, quando Maria concede constantemente tais graças, está exercendo
uma supereminente obra de apostolado. A missão apostólica de Maria é assim um aspecto,
e o mais importante, da sua missão de distribuidora universal da graça. Afirmar
uma coisa equivale a afirmar a outra.
Essas diversas funções
da Virgem mostram igualmente por que pudemos afirmar acima que seu apostolado se
exerce a um título único, pela sua universalidade e pelo seu grau. Por sua universalidade,
porque é Mãe de todos os homens, além de co-redentora universal e distribuidora
de todas as graças. Por seu grau, devido à sua posição de chefe, sendo de subordinados
a missão dos outros apóstolos. Com efeito, somente Ela foi cooperadora de Cristo
na obra da Redenção, portanto será somente dela a missão de completar essa obra,
e os demais apóstolos só a ajudam nessa missão. Sendo a distribuidora de todas as
graças, dela dependem todos os apóstolos para a eficácia do seu apostolado. Sendo
a mãe das almas, as outras mães são apenas suas auxiliares na educação dos filhos.
Depois de Cristo, e por
meio dele, Maria é portanto a verdadeira apóstola. Os outros homens que merecem
esse título são simplesmente seus instrumentos. Quer percebam ou não, o que fazem
é complementar a obra de Maria, a Ela confiada desde o início por Deus. No seu limitado
raio de ação, e por tempo limitado, executam a missão da qual Maria foi incumbida
em todo tempo e lugar, são soldados ou oficiais batalhando no exército de Cristo,
cuja generalíssima é a Virgem.
Esses paralelos entre a
missão apostólica de Maria e suas funções de Mãe, co-redentora e distribuidora de
todas as graças possibilitam reconhecer nela o caráter de missão revelada. De fato
ela não se reduz a uma simples consequência lógica daquelas três funções, que são
reveladas, mas constituem um aspecto particular ou uma de suas partes constitutivas,
a ponto de confundir-se com elas. Corresponde, com outro nome, à sua função de co-redentora,
especialmente sua função de Mãe e distribuidora de todas as graças. Como consequência,
essa missão participa com toda a certeza nessas três funções, e se poderia afirmar
que é revelada tanto quanto essas funções, mesmo se a tradição jamais tivesse mencionado
explicitamente uma missão apostólica de Maria. Desde que a ideia seja revelada,
não é necessário que a denominação o seja.
A Sagrada Escritura e a
Tradição atribuem a Maria uma atividade junto às almas, que se apresenta sob o aspecto
de apostolado. Logo nas primeiras páginas, uma profecia clara explicita essa missão
da Virgem. A maldição de Deus contra Satanás afirma: "Porei inimizades entre
ti e a mulher, entre tua descendência e a dela. Ela te esmagará a cabeça, e armarás
ataques ao seu calcanhar". Se este texto pôde ser invocado a justo título como
prova da Imaculada Conceição, também estabelece de modo geral o papel claramente
vitorioso de Maria. A Imaculada Conceição é um momento, solene entre todos, da sua
luta contra a serpente, mas essa luta não é profetizada como devendo reduzir-se
a um momento. Pelo contrário, trata-se de uma inimizade, portanto de uma situação
durável, que se estende da Mulher e da serpente à posteridade de ambas.
Quanto à última parte --
armarás ataques ao seu calcanhar, -- não se realizou na Imaculada Conceição, mas
somente mais tarde na Paixão de Cristo e nas derrotas parciais da Igreja.
O texto hebraico vincula
o sujeito da oração -- Ela te esmagará a cabeça -- à posteridade da Mulher, e não
à própria Mulher, mas é também verdade que proclama entre a Mulher e a serpente
uma inimizade extensiva à posteridade de ambas. Nessa inimizade a Mulher aparece
unida à sua posteridade -- Cristo e seus outros filhos -- que deve esmagar a cabeça
da serpente. Nossa afirmação é precisamente que, por sua união com seu Filho e conosco,
Ela esmagou e esmagará sempre o inimigo infernal. (Para sustentar essa luta prolongada,
não se poderia tomar como ponto de apoio o plural inimicitias, que se encontra na
Vulgata, pois o texto hebraico usa o singular.)
O último livro da Escritura
faz eco ao primeiro, confirmando nossa interpretação. O capítulo 12 do Apocalipse
descreve uma vez mais a guerra da Mulher e da sua posteridade contra o dragão, que
inicialmente é todo-poderoso, e finalmente vencido. São João afirma expressamente
que esse dragão é a antiga serpente.
No seu simbolismo oriental,
o Antigo Testamento nos faz pressentir aquilo cuja realização o Novo Testamento
deixa entrever. Este relata que Maria praticou livre e conscientemente um ato apostólico
de valor infinito, do qual resultaria todo o apostolado futuro, e que nos deu Jesus
Cristo, o Apóstolo por excelência; faz-nos
ver ou adivinhar a ação de Maria junto aos principais dentre os que participariam
no apostolado de Jesus; por uma visita de
Maria, foi santificado e ungido pelo Espírito Santo o maior dos profetas, que deveria
caminhar adiante do Senhor a fim de preparar-lhe as vias.
Diante de Maria, os pastores
de Belém tornaram-se os primeiros apóstolos do Messias junto aos judeus, e os magos
o foram junto aos gentios; quando afinal
os profetas Simeão e Ana puderam ter o Menino Jesus em seus braços no Templo, receberam-no
de Maria, e proclamaram para as almas piedosas de Jerusalém o surgimento do Cristo
que elas tanto aguardavam; o milagre que
Maria obteve em Caná confirmou na fé os cinco primeiros apóstolos; Jesus agonizante confiou a Maria o apóstolo São
João, num ato em que este representava os doze apóstolos e os apóstolos de todos
os tempos; enfim, foi junto a Maria que os
apóstolos receberam no cenáculo o Espírito Santo, que consumou-lhes a formação apostólica
e os enviou, poderosos em palavras e obras, a todo o universo.
Os cristãos dos primeiros
séculos mantiveram o sentimento da missão de Maria na Igreja. Comprova-o, por exemplo,
o relato de São Gregório de Nissa sobre a aparição da Virgem a São Gregório Taumaturgo,
para lhe dar por meio de São João o símbolo da fé. Esse sentimento tornou-se mais
vivo à medida que o pensamento da nova Eva atraía mais a atenção dos fieis. No início
do século 5, São Cirilo proclamou em Éfeso, na tarde em que se definiu a maternidade
divina de Maria, o papel da Teotokos na conversão e santificação do mundo:
"Honra e glória a
ti, ó Santa Trindade, que nos convidaste para esta celebração! Honra também a ti,
Santa Mãe de Deus! Por ti a Trindade é venerada, por ti a cruz preciosa é celebrada
e adorada em todo o universo. Por ti o céu exulta, os anjos e os arcanjos se rejubilam,
os demônios são postos em fuga e os homens são convidados ao céu. Por ti todas as
criaturas mergulhadas nas trevas da idolatria são conduzidas ao conhecimento da
verdade, os que creem atingem o santo batismo, e em todo o universo se constroem
igrejas. Por teu auxílio as nações praticam a penitência. O que mais? Por ti o Filho
único de Deus, luz verdadeira, brilhou diante dos que jaziam nas trevas e nas sombras
da morte. Por ti os profetas previram, os apóstolos pregaram a salvação aos povos.
Quem poderá enumerar todas as tuas grandezas, ó Maria, Mãe e Virgem?"
Nesse panegírico, o grande
defensor da maternidade divina intercala as maravilhas realizadas por Maria durante
a vida do Redentor com as que Ela pratica depois da sua morte. De fato essas maravilhas
provêm da mesma fonte, que é a cooperação de Maria na nossa Redenção.
Os Padres da Igreja e os
escritores eclesiásticos dos séculos seguintes dão a Maria os títulos mais variados
e mais curiosos -- muitos deles intraduzíveis, devido à sua concisão enérgica --
para exaltar sua ação universal e totipotente em favor das almas: terror dos demônios,
destruidora do inferno, nosso escudo de defesa, proteção do mundo, fortaleza do
povo cristão, nosso único remédio, curadora da miséria humana, nossa âncora, nosso
asilo, nossa advogada, padroeira dos pecadores, retorno dos desgarrados, solução
de todos os problemas, etc.
Desde o século 9, encontramos
na liturgia a célebre aclamação: "Alegrai-vos, ó Maria, pois sozinha esmagastes
todas as heresias no mundo inteiro!". Essa vitória de Maria sobre todas as
heresias não se limita ao seu papel nos mistérios da Encarnação e Redenção, é vista
como uma vitória em todos os tempos. Por isso, cada vez que surge um erro novo,
o povo cristão, estimulado por seus pastores, recorre àquela que é a Guardiã da
fé, pedindo-lhe que novamente esmague a cabeça da antiga serpente. Da mesma forma,
quando a Igreja é ameaçada pelos inimigos externos do nome cristão -- os turcos
em particular, -- volta-se para Maria, com a segurança de que obterá por meio dela
triunfos miraculosos. Lembremos, neste sentido, as vitórias de Lepanto em 1571,
de Viena em 1683, de Peterwardein em 1716, como também as festas do Santo Nome de
Maria e do Rosário, instituídas para comemorar as intervenções daquela que é sempre
vitoriosa.
Em vários países da cristandade,
apóstolos converteram milhares de pagãos e pecadores, e o mais notável é que todos
eram grandes devotos da Virgem, atribuindo a Ela os sucessos mais brilhantes quando
pregavam suas misericórdias e grandezas. Um dos mais famosos é São Luís Grignion
de Montfort, que nos primeiros anos do século 18 exerceu maravilhosa influência
apostólica na Vandéia e na Bretanha, pela pregação do Rosário e da santa escravidão
a Maria.
No texto do Gênesis sobre
as inimizades entre a Mulher e a serpente, compartilhadas pelas descendências de
ambas, ele percebe a afirmação de uma luta eterna entre o demônio e a Virgem, entre
o exército de Satanás e os servos de Maria: "Deus formou uma única inimizade
-- a mais irreconciliável, que permanecerá e aumentará até o fim do mundo -- entre
sua digna Mãe e o diabo, entre os filhos e servos da Santa Virgem e os filhos e
sequazes de Lúcifer, de tal modo que a mais terrível inimiga que Deus criou contra
o demônio é Maria, sua santa Mãe.
O poder de Maria sobre
todos os demônios brilhará particularmente nos últimos tempos". Dele é uma
profecia célebre sobre os apóstolos dos últimos tempos, quando a Santíssima Virgem
suscitará grandes santos, apóstolos irresistíveis porque estarão entregues a Ela
de corpo e alma e participarão do seu poder. (São Luís Grignion de Montfort, Tratado
da verdadeira devoção à Santíssima Virgem, nos 47-59.)
Um século mais tarde o
Pe. Chaminade, que não conhecia os escritos de Montfort, ensinou doutrina similar:
"A vida da Igreja foi sempre assinalada pelos combates e gloriosos triunfos
da augusta Maria. Depois que Deus insuflou a inimizade entre Ela e a serpente, foi
sempre dela a vitória sobre o demônio e o inferno. Todas as heresias, segundo a
Igreja, tiveram de curvar-se diante da Santíssima Virgem, e pouco a pouco foram
por Ela reduzidas ao silêncio do nada. Em nossos dias a grande heresia dominante
é a indiferença religiosa, adormecendo as almas no torpor do egoísmo e no marasmo
das paixões". Em seguida, apresentando o quadro das devastações feitas pela
impiedade no início do século 19, o Pe. Chaminade prossegue: "Esta descrição
tristemente fiel da nossa época está longe de nos desanimar. O poder de Maria não
diminuiu, e cremos firmemente que Ela vencerá essa heresia, como venceu as outras.
Hoje como ontem, Ela é
a Mulher por excelência, prometida para esmagar a cabeça da serpente, e Jesus Cristo
nos ensina que Ela é a esperança, a alegria, a vida da Igreja e o terror do inferno.
A Ela está reservada em nossos dias uma grande vitória, pois lhe pertence a glória
de salvar do naufrágio a fé ameaçada".
A fé do Pe. Chaminade na
missão conquistadora da Virgem Imaculada inspirou-lhe, como consequência prática
de grande porte, a fundação de muitas associações, verdadeiros batalhões de soldados
de Maria destinados a colaborar com Ela na conquista das almas, em sua luta secular
contra Lúcifer. Inicialmente foram as congregações de Bordeaux, "santas milícias
que avançam em nome de Maria e são conduzidas por Ela, com o propósito de combater
as potências infernais em obediência a quem esmagou a cabeça da serpente".
Após afirmar aos seus discípulos
a sua fé na "vitória reservada a Maria em nossos dias", o Pe. Chaminade
prossegue: "Compreendendo esse pensamento celeste, apressamo-nos em oferecer
a Maria nossos fracos serviços, para trabalhar sob suas ordens e combater ao seu
lado. Alistamos-nos sob sua bandeira, como seus soldados e ministros, e nos engajamos
por um voto especial a ajudá-la na sua nobre luta contra o inferno, com todas as
nossas forças, até o fim de nossas vidas. Uma Ordem célebre assumiu o nome e o estandarte
de Jesus Cristo [jesuítas], e como ela assumimos o nome e o estandarte de Maria,
prontos a voar para onde Ela nos chamar, a fim de difundir seu culto, e por meio
dele o reino de Deus nas almas".
A voz de Roma confirmou
o sentimento da Tradição sobre a missão apostólica de Maria, e o fez de modo muito
claro. Além das festividades do Santo Nome de Maria e do santíssimo Rosário, acima
mencionadas, outras como a de Nossa Senhora da Piedade e Maria Auxílio dos Cristãos
foram instituídas por razões análogas, e também aprovados a missa e o ofício de
Maria Rainha dos Apóstolos. Sobretudo os últimos Papas se dedicaram a inculcar no
povo cristão o papel de Maria nas lutas e conquistas do apostolado católico.
Na encíclica Adjutricem
populi, (1895) Leão XIII explica: "Não parece exagerado afirmar que foi principalmente
sob a direção da Santíssima Virgem, e com a sua ajuda, que a sabedoria e a lei do
Evangelho, apesar de extremas dificuldades, se expandiram tão rapidamente a toda
a terra, levando consigo nova ordem de justiça e paz". Passando às consequências
práticas desse pensamento, afirma: "Há muito tempo desejamos tornar a salvação
da sociedade humana dependente da expansão do culto a Maria, fazendo-a repousar
assim sobre uma cidadela inexpugnável". Ordenou ainda a recitação pública do
Rosário, "a fim de que no nosso tempo de grandes provações e tempestades prolongadas
a Santíssima Virgem, que tantas vezes foi vitoriosa sobre os inimigos terrestres,
nos faça também triunfar dos inimigos infernais". (Ofício do Santíssimo Rosário.)
São Pio X, com seu propósito
de restaurar tudo em Cristo, indicou desde o início do seu pontificado, como grande
meio dessa restauração, um aumento da piedade em relação à Virgem: "Quem não
considera ainda estabelecido que não existe caminho mais seguro nem mais rápido
do que Maria, para unir os homens a Jesus Cristo a fim de obter por meio dele essa
perfeita adoção de Filho, que nos torna santos e sem mancha diante de Deus? A partir
do momento em que o Filho de Deus é o autor e consumador da nossa fé, é totalmente
necessário que Maria seja reconhecida como participante dos divinos mistérios, de
algum modo sua guardiã, e sobre Ela repousa a fé de todos os séculos, como seu mais
nobre fundamento abaixo de Jesus Cristo.
Tendo em vista que aprouve
à Divina Providência dar-nos o Homem-Deus por meio da Virgem, que se tornou fecunda
pela virtude do Espírito Santo, o que existe para nós mais natural do que receber
Jesus das mãos de Maria? Ninguém no mundo conhece Jesus tanto quanto Ela, ninguém
é melhor mestre nem melhor guia para tornar Jesus conhecido. Daí se conclui que
ninguém consegue unir os homens a Jesus tanto quanto Ela". (Ad diem illum,
2/02/1904.)
Bento XV, por ocasião do
primeiro centenário da Sociedade de Maria, escreveu ao Pe. Hiss, Superior geral,
uma carta que corresponde a uma aprovação dos conceitos do Pe. Chaminade sobre o
apostolado mariano: "Não foi sem uma aprovação divina que o Pe. Chaminade se
exilou em Saragoça. Visitando lá o santuário de nossa augusta Soberana, compreendeu
que o desígnio da misericórdia divina é reconduzir sua pátria a Jesus por meio de
Maria. Sem sombra de hesitação, sentiu que lhe estava reservada uma parte importante
nesse apostolado, e pela meditação e a prece preparou-se para tal missão aos pés
da augusta imagem. Não constitui vão elogio, sem dúvida, distinguir Maria pelo título
de Rainha dos Apóstolos. Do mesmo modo que assistiu com seus conselhos e sua ajuda
os Apóstolos, educadores da Igreja nascente, é necessário afirmar que Maria sempre
auxilia os herdeiros do trabalho apostólico, que na Igreja adulta se esforçam para
preparar as conquistas ou reparar os desastres".
O Papa Pio XI, que "desde
o início de seu pontificado volveu os olhos e o coração para a dulcíssima Virgem,
como esperando por meio dela a salvação universal", não somente aproveitou
todas as ocasiões para demonstrar sua devoção à celeste protetora, como ainda reafirmou
o papel apostólico de Maria em duas encíclicas nas quais fala do apostolado -- uma
sobre as missões, outra sobre a unidade da Igreja. A primeira dessas encíclicas
conclui com esta prece: "Que desçam sobre todos os empreendimentos [missionários]
o sorriso e o favor da santíssima Rainha dos Apóstolos, cujo coração materno, tendo
recebido no Calvário a responsabilidade sobre todos os homens, cubra com sua solicitude
e seu afeto aqueles que ignoram ter sido redimidos por Cristo, como também os felizes
beneficiários dessa Redenção".
Na encíclica sobre a unidade
da Igreja, depois de exprimir o desejo de que retornem ao seu regaço todos os cristãos
separados, Pio XI acrescenta: "Em assunto de tanta importância, tomamos e queremos
que todos tomem como advogada a Bem-aventurada Virgem Maria, Mãe da divina graça,
destruidora de todas as heresias e socorro dos cristãos, para que nos obtenha o
quanto antes a vinda desse dia tão desejado em que todos os homens ouvirão a voz
de seu Filho, chamando-os à unidade de espírito nos vínculos da paz". Na sua
carta ao Primaz da Espanha, por ocasião do congresso mariano de Sevilha, retorna
à mesma ideia, acrescentando a afirmação de que, particularmente em nosso tempo,
é somente de Maria que o povo cristão deve esperar sua salvação.
Quanto a Pio XII, quem
não se lembra do ato solene de 31 de outubro de 1942, pelo qual consagra o mundo
ao Coração Imaculado de Maria? Trata-se de uma afirmação explícita do papel vitorioso
de Maria em todas as lutas da Igreja contra os sequazes de Satanás e em todas as
atividades de apostolado católico: "Rainha do santíssimo Rosário, socorro dos
cristãos, refúgio do gênero humano, triunfadora em todas as batalhas de Deus, nós
nos prosternamos suplicantes diante de vosso trono, certos de obter misericórdia
e encontrar graça e socorro oportuno para as calamidades atuais".
Em seguida suplica à Virgem
que envie aos homens "as graças que em um momento podem converter os corações
humanos; fazer com que o Sol de Justiça ilumine
os infiéis e todos os que ainda permanecem nas sombras da morte; reconduzir ao único aprisco de Cristo os povos
separados pelo erro ou a discórdia; obter
paz e liberdade completas para a Igreja de Deus; estancar o dilúvio invasor do neopaganismo; aumentar nos fieis o amor à pureza, a prática da
vida cristã e o zelo apostólico, a fim de que os povos que servem a Deus aumentem
em merecimento e em número".
Conclui por um ato de fé
no triunfo do reino de Deus pela intervenção de Maria: "Que vosso amor e vosso
patrocínio apressem o triunfo do reino de Deus, e que todas as gerações humanas,
pacificadas entre si e com Deus, vos proclamem bem-aventurada e convosco entoem
de um extremo a outro do mundo o eterno Magnificat de glória, amor e reconhecimento
ao Sagrado Coração de Jesus, único em que se podem encontrar a verdade, a vida e
a paz".
3º.
Consequência prática
Não é este o momento de
detalhar as consequências práticas da doutrina exposta neste capítulo, mas é fácil
entrever sua extrema importância. Se Cristo confiou à sua Mãe a alta direção do
apostolado católico em todo tempo e lugar, convém a todos os que se ocupam do apostolado
entrar nas intenções divinas e exercer sua atividade sob a dependência de Maria.
Trabalhando em favor das almas na união mais estreita possível com a Virgem imaculada,
podemos contar com infalíveis sucessos, pois estaremos atraindo as bênçãos de Deus
e participando da grande vitória daquela que deve, para todo o sempre, esmagar a
cabeça da serpente. Nossa época, que é a da Ação Católica, é por excelência a época
do apostolado. Para dar à atividade apostólica seu máximo de rendimento, é importante
exercê-la sob a direção da Rainha dos Apóstolos e aplicar-nos a instaurare omnia
in Christo, Maria duce. (restaurar tudo em Cristo sob a direção de Maria)
Essa ideia, que já no século
13 se encontra na base do apostolado dos Servitas de Maria, é como o leit-motiv
da atividade de certo número de associações apostólicas recentes. Ela inspira o
apostolado dos religiosos e religiosas fundados por São Luís Grignion de Montfort,
Pe. Chaminade, São Vicente Pallotti, e tende a renovar o espírito de outras congregações,
há muito satisfeitas com uma piedade um tanto preguiçosa. A mesma ideia deu nascimento
a três grupos de apóstolos principalmente leigos, fundados em diferentes pontos
do globo, independentemente uns dos outros, mas todos movidos pela mesma confiança
em Maria, a celeste antagonista de Satanás.
Realizam maravilhas absolutamente
espantosas, nos mesmos locais onde os esforços do clero se tornaram aos poucos impotentes
diante de obstáculos aparentemente intransponíveis: Ação Mariana, fundada há uma
dezena de anos na África do Sul; Milícia
de Maria Imaculada, que surgiu na Polônia em 1917 e se difundiu na Itália e no Japão;
Legião de Maria, criada na Irlanda em 1921,
que depois de 1927 se expandiu com extrema rapidez nos cinco continentes, contando
hoje (1945) na França com 350 centros e continua se expandindo, como também prossegue
nos outros países sua marcha conquistadora. Além disso, nos movimentos especializados
de Ação Católica uma proporção crescente de jovens apóstolos se convence da eficácia
notável do apostolado resultante da consagração a Maria, Rainha dos Apóstolos.
Capítulo,
5º. A REALEZA DE MARIA
Os títulos de rainha, soberana
e senhora foram dados a Maria pelos padres, teólogos e santos. A antiga iconografia
se comprazia em representar a Mãe de Jesus com as características de rainha ou imperatriz,
mais até do que com as características de mãe. A Idade Média viu surgir maravilhosas
catedrais nos países cristãos, além de inúmeras outras igrejas, quase todas dedicadas
a Maria sob a invocação de Notre Dame, isto é, nossa Soberana. Na ladainha lauretana
a Igreja invoca Maria como rainha sob onze títulos. Os Papas, em particular Leão
XIII e São Pio X, conferem-lhe com frequência esse título. Pio XI enviou seu legado
para consagrar com o título de Rainha do mundo a catedral de Port Saïd.
Pio XII, em carta de 15/04/1942
ao Cardeal Maglione, pede uma cruzada de orações à Santíssima Virgem durante o mês
de maio seguinte, a fim de obter a paz: "Como todos sabem, da mesma forma que
Jesus Cristo é Rei dos reis e Senhor dos senhores, assim também sua augusta Mãe
é honrada por todos os fieis como Rainha do mundo".
1º.
Fundamentos da realeza de Maria
Cristo é rei como Deus,
por ser o Senhor soberano de todas as coisas; e também como homem, em virtude da união hipostática
que torna sua humanidade e sua divindade uma só Pessoa. Pio XI afirma na encíclica
Quas primas, sobre Cristo Rei: "Os anjos e os homens não devem adorar Cristo
apenas como Deus, mas também obedecer e submeter-se a Ele pela autoridade que possui
como homem, pois sua própria união hipostática lhe confere poder sobre todas as
criaturas".
A realeza de Maria se fundamenta,
como a de seu Filho, na sua participação nos mistérios da Encarnação e Redenção,
e ainda na sua função de Mãe de todos os homens. Maria é Mãe do Homem-Deus, que
é rei; e a mãe do rei é rainha, participando
em certa medida da sua soberania. Este princípio, que é verdadeiro no caso das mães
de reis comuns, é ainda mais verdadeiro no que se refere a Maria. Inicialmente porque
Jesus, no seu infinito amor por sua Mãe, a fez participar em todas as suas prerrogativas,
na medida em que podem ser transmitidas a uma criatura: Conceição imaculada, isenção
do pecado e da concupiscência, plenitude de graça, glorificação antecipada de seu
corpo, etc. Por que a deixaria sem participação na sua realeza? Em segundo lugar,
porque Maria deu Jesus ao mundo para ser rei, de acordo com a mensagem do anjo afirmando
que "Ele reinará para sempre".
Dependeu do consentimento
de Maria para adquirir essa realeza, tornando-se rei no momento em que se tornou
filho de Maria, não depois do seu nascimento. Daí resultou para Ele a obrigação
especial -- não de estrita justiça, mas de piedade filial -- de partilhar com Ela
sua soberania.
Toda realeza pertence ao
Pai, juntamente com o Filho e o Espírito Santo. Por sua ação na Encarnação, Maria
foi associada ao Pai na produção do Filho de Deus feito homem. Efetivou assim o
poder de Cristo sobre toda a criação, que Deus havia feito em vista do Filho. Ninguém
pode estranhar, portanto, que Deus tenha desejado e concedido a Maria a participação
com seu Filho no poder sobre toda a criação. Sendo o Espírito Santo autor e rei
de toda a criação, juntamente com o Pai e o Filho, é natural que também Ele tenha
levado a participar na sua realeza aquela que o seu poder tornou Mãe de Cristo-Rei.
Na encíclica Quas primas,
Pio XI ensina: "Cristo reina sobre nós, não apenas por direito de natureza,
mas ainda por direito adquirido, isto é, pelo direito de redenção. Não se esqueçam
os homens do alto preço que nossa salvação custou a nosso Salvador. Nós não pertencemos
a nós mesmos, pois Cristo nos resgatou por alto preço".
Maria participa com seu
Filho desse segundo título de soberania, pois é co-redentora ao lado do Redentor.
Associada por Cristo à obra da salvação humana, mereceu para nós, por conveniência,
o que Cristo mereceu por justiça, como afirma São Pio X. Esse título conquistado
coloca-a em posição destacada em relação à de todas as rainhas, (que se limitam
a gozar as prerrogativas pertencentes a seus filhos ou esposos) pois conquistou
sua soberania em união com seu Filho, ao custo de não sabemos quantos sacrifícios.
A função de Mãe dos homens
confere igualmente a Maria a dignidade de Rainha do mundo. Toda mãe é rainha no
pequeno reino da sua família, e nesse reino governa, julga, pune, recompensa, faz
reinar a ordem na paz e no amor. Maria é Mãe da imensa família humana, e como sua
rainha quer fazer reinar a ordem e a paz de Cristo.
2º.
Como se exerce a realeza de Maria
Pertencendo a realeza de
Maria a uma mãe, trata-se antes de tudo de um reinado de bondade e misericórdia.
A celeste Rainha exerce suas funções difundindo alegria e benefícios aos seus súditos
fieis, tanto no céu como na terra.
No céu, Maria contribui
para a alegria dos anjos: Eles são felizes por se verem ultrapassados em pureza
e glória pela Mãe de seu Rei; felizes por
ter sido escolhido um dentre eles para tratar com Ela em nome de Deus; por terem sido seus guardiães em diversas circunstâncias
da sua vida terrestre; por serem escolhidos
atualmente como mensageiros para execução dos seus desígnios de amor aos homens;
felizes talvez por se lembrarem de que no
início dos tempos eles foram admitidos às alegrias celestes por terem consentido
em adorar o futuro Filho de Maria.
Para a alegria dos bem-aventurados:
Dos patriarcas e profetas que previram e anunciaram sua vinda; dos pagãos fieis à sua própria consciência; dos que na terra a amaram e serviram com presteza;
de todos, sem exceção, pois todos reconhecem
que, depois de Deus, devem a Ela sua bem-aventurança, e o céu seria menos belo sem
Maria.
Na terra Maria distribui
socorro, confiança e vitória à Igreja militante. Na religião dos cristãos que ignoram
ou esquecem a Virgem, falta um elemento de simplicidade, abandono e alegria, que
dilata a alma. Como a vida celeste é o prolongamento e aperfeiçoamento da vida na
terra, tanto lá quanto aqui a presença de Maria acrescenta uma nota de suavidade
especial à nossa bem-aventurança.
Além de Rainha da Igreja
triunfante e militante, Maria o é também da Igreja padecente, levando consolo, alívio
e libertação ao Purgatório.
A realeza de Maria não
se reduz a essa incessante distribuição de graças e alegrias. Em relação aos seus
súditos, as rainhas terrestres limitam sua atuação a obter-lhes favores, não costumam
participar no governo. Mas devemos observar que Deus quis associar Maria a todos
os mistérios de seu Filho, por meio de uma participação tão ativa quanto fosse compatível
com sua condição. Consequentemente, devemos esperar que também participe ativamente
na realeza de seu Filho, resultante desses mistérios. Reinar consiste em exercer
dominação sobre os súditos, e Cristo reina sobre as inteligências, os corações,
as vontades, como também sobre os corpos dos fieis, além de distribuir benefícios.
Maria exerce influência
análoga sobre seus súditos. Reina sobre as inteligências, fazendo-as compreender
melhor a doutrina de Cristo, sobretudo a que se relaciona com a devoção ao Pai e
seu amor aos homens; reina sobre os corações,
atraindo-os pelos encantos do seu afeto materno a fim de conduzi-los a Jesus; reina sobre as vontades, inclinando-as suavemente
a observar todos os mandamentos de seu divino Filho, mesmo os mais rigorosos; reina sobre os corpos, ensinando os homens a submeter-se
à lei de Deus pela prática da temperança e da castidade. Quanto mais Maria reina
numa alma, tanto mais domina nela a realeza de Jesus.
Reinar consiste ainda em
lutar para ampliar o domínio sobre todos os que, por direito, devem estar submissos
à autoridade do soberano, tanto os que dela se distanciaram quanto os que ainda
não lhe estão submissos. A realeza de Cristo está longe de ser proclamada em todo
o mundo. Mal conhecida, e até combatida em nações cristãs, é ainda desconhecida
completamente por dois terços da humanidade. Cristo deve submeter todas essas multidões,
e nesse trabalho de conquista Maria tem seu papel a desempenhar. Sua realeza sobre
a terra é sem dúvida de amor, mas também militante e conquistadora. Da mesma forma
que os pastores e os reis magos, os hereges e idólatras encontrarão Jesus junto
a Maria. É preciso que Maria reine para que venha o reinado de Cristo, a fim de
realizar-se plenamente a prece que o Senhor nos ensinou a repetir diariamente: Adveniat
regnum tuum. Apressar a vinda do reino de Maria é apressar a vinda do reino de Cristo.
PARTE,
2º. OS PRIVILÉGIOS DE MARIA
Como já vimos, as grandezas
de Maria podem ser divididas em dois grupos. O primeiro é constituído pelas que
representam sobretudo funções: maternidade divina, maternidade espiritual, mediação
universal, papel de Maria no apostolado católico, realeza universal. O segundo grupo
engloba as grandezas que representam privilégios concedidos a Maria em razão de
suas funções, ou como consequências delas: Imaculada Conceição, virgindade, plenitude
de graça, etc. Esta divisão didática que fazemos não tem nada de absoluto, pois
as funções de Maria são também privilégios, e os seus privilégios são também funções.
Porém algumas dessas grandezas são sobretudo funções, e outras se afiguram principalmente
como privilégios. Já abordamos as funções de Maria na primeira parte deste livro,
e passaremos a abordar nesta segunda parte os privilégios de Maria.
Capítulo,
6º. IMACULADA CONCEIÇÃO
Não é raro encontrar pessoas,
mesmo instruídas, com ideias estranhas sobre a Imaculada Conceição de Maria. Paras
alguns, trata-se da conceição virginal de Jesus por Maria. Outros pensam que Maria
foi concebida de Santa Ana e do Espírito Santo, do mesmo modo como Jesus foi concebido
de Maria e do Espírito Santo. É evidente que tais conceitos são reprovados pela
Igreja.
Para se entender a Imaculada
Conceição, é necessário conhecer duas afirmações de fé: a justiça original e o pecado
original.
A justiça original consistia
na retidão e harmonia de todas as potências do homem. Compreendia em primeiro lugar
a submissão da razão e vontade do homem a Deus, por meio da graça santificante.
Ao dom da graça santificante acresciam-se as virtudes ditas infusas e os sete dons
do Espírito Santo, que acompanham sempre o estado de graça e nos são dados para
podermos participar da vida sobrenatural. Além disso havia os dons de integridade,
definidos pela teologia como dons particulares destinados a aperfeiçoar a própria
natureza humana. Enquanto a razão e a vontade de Adão se mantinham submissas a Deus,
as potências inferiores de sua alma eram perfeitamente submissas à razão e à vontade.
Seu corpo era também submisso à alma, devendo ser preservado de toda doença e também
da morte.
Nosso primeiro pai havia
recebido essa justiça original não só para si mesmo, mas também para todos os seus
descendentes, aos quais devia transmiti-la como herança, da mesma forma que um rei
transmite sua situação à sua posteridade.
Tendo cometido o pecado,
Adão perdeu a justiça original. Sua razão e vontade livres se revoltaram contra
Deus. Ao mesmo tempo, suas faculdades inferiores se revoltaram contra sua razão
e vontade, e o corpo cessou de agir como instrumento dócil da alma. Daí as denominadas
chagas do pecado original: ignorância do espírito, fraqueza da vontade, desordem
ou concupiscência das faculdades inferiores, sofrimento e morte do corpo. Essas
chagas não se identificam com o pecado, representam seu aspecto material e suas
consequências, consistindo o pecado na perda voluntária da amizade de Deus.
Perdendo a justiça original,
Adão não mais podia transmiti-la aos seus descendentes, da mesma forma que um rei
não pode transmitir aos filhos um reino que perdeu. Como consequência, todos os
homens nascem no estado em que se encontrava Adão depois do seu pecado. A diferença
é que a situação de Adão decorria da sua culpa pessoal, ao passo que a nossa se
deve à culpa de Adão, equivalendo à situação de príncipes destituídos do direito
ao reino pelo fato de o rei tê-lo perdido. É verdade que Adão se penitenciou e mereceu
reencontrar a amizade de Deus para si mesmo, mas não para sua posteridade. Exemplo
semelhante é o de Saul, cujos filhos perderam o direito ao reino por culpa dele,
embora ele mesmo o tenha mantido até o fim da vida. Quanto a Adão, jamais pôde reaver
os dons especiais que lhe haviam sido concedidos com o estado de justiça original,
e cuja perda fora consequência do seu pecado.
A Imaculada Conceição de
Maria consiste essencialmente na sua isenção do pecado original. Ela jamais esteve
nesse estado de inimizade em relação a Deus, no qual todos os homens se encontram
antes do batismo. Desde o primeiro momento de sua existência, sua alma foi ornada
pela graça santificante, que a tornava filha amada de Deus.
Examinaremos a seguir como
Maria se tornou isenta da lei do pecado. Esclareçamos desde já que esse privilégio
lhe foi dado por pura liberalidade de Deus, e não como consequência de um direito
próprio. A Igreja define que esse privilégio lhe foi concedido por Deus "na
previsão dos méritos do seu Filho". (Ver a oração da festa da Imaculada Conceição
e a bula Ineffabilis.)
Antigamente alguns teólogos
rejeitavam a Imaculada Conceição sob o pretexto de que, se Maria tivesse sido concebida
sem o pecado original, não teria participado dos frutos da Redenção que seu Filho
mereceu para todos os homens, e isso estaria em contradição com o fato de Jesus
ter morrido para a redenção de todos os homens, sem exceção. Mas o fato é que a
Imaculada Conceição não anula nem contradiz a universalidade da Redenção. Maria
foi também redimida, e até mais completamente do que nós, pois sua graça de redenção
foi mais eficaz que a nossa, sendo nós libertados de um pecado efetivamente cometido,
e Ela sendo preservada de um pecado que teria sido cometido sem a intervenção de
Deus.
Os defensores da Imaculada
Conceição apresentam uma metáfora que torna mais compreensível a afirmação acima.
Segundo eles, pode-se socorrer de duas maneiras quem é vítima da lama: a primeira
é ajudá-lo a sair da lama em que caiu; a
segunda, em evitar que ele caia na lama. Evidentemente esta segunda maneira é muito
preferível. Transpondo o exemplo para o caso da Imaculada Conceição, vemos que Nosso
Senhor nos resgatou depois que fomos atingidos pelo pecado original, e Maria foi
resgatada antes de ser por ele atingida.
Outra comparação ressalta
a mesma ideia. De acordo com a lei antiga, todos os filhos de escravos nascem escravos.
Um benfeitor pode libertar os escravos depois que nasceram, mas pode também escolher
um para ser libertado antes de nascer ou de ser concebido. Neste último caso, se
fossem aplicadas as normas do direito, essa criança seria escrava, mas de fato a
escravidão nunca a atingiu. Nossa libertação em relação ao pecado se deu do primeiro
modo, no momento do batismo. Maria foi libertada do segundo modo, por meio da sua
Imaculada Conceição.
1º.
Imaculada Conceição, verdade revelada
A revelação sobre Maria,
feita aos primeiros cristãos, não continha explicitamente a Imaculada Conceição,
mas permite supô-la e predispõe o espírito a afirmá-la. O que aparece imediatamente
nos relatos sobre a origem humana de Jesus é a pureza virginal de sua Mãe, claramente
desejada por Ela e ainda mais fortemente por Deus, que fez um milagre absolutamente
único para preservá-la.
Aos olhos dos primeiros
fieis, como também aos nossos, a pureza de corpo é um meio e um símbolo de outra
pureza incomparavelmente mais necessária, que é a pureza de alma. Jesus se opôs
várias vezes aos escrúpulos hipócritas dos que atribuíam tanta importância às purificações
legais, e afirmou que a verdadeira pureza deve residir no coração, sendo a condição
essencial para se aproximar de Deus: "Bem-aventurados os que têm o coração
puro, pois verão a Deus". Portanto, a pureza virginal de Maria -- desejada
por Ela e por Deus em função de seu Filho -- era antes de tudo o meio e o símbolo
da pureza que devia reinar na sua alma.
O Evangelho não induz a
restringir a pureza de Maria ao momento da Encarnação. Como ocorre com os outros
benefícios que recebeu de Deus, essa pureza pode ser entendida naturalmente na sua
mais ampla extensão, a partir dos seus primeiros instantes e durante toda a sua
vida. Para os contemporâneos de São Paulo, que insiste com frequência na ideia da
predestinação e do chamado, Maria é apresentada como chamada e predestinada desde
suas origens para ser a Mãe do Deus de pureza. O Evangelho mostra as quedas ou imperfeições
dos apóstolos, ainda que momentâneas, mas não deixa transparecer em Maria nenhuma
mancha.
Sem dúvida, uma pureza
assim representa algo de excepcional. A maternidade divina contém em relação a Jesus
uma dignidade e intimidade verdadeiramente excepcionais.
Bem mais ainda, a Sagrada
Escritura permite conjecturar em Maria, antes mesmo da Encarnação, uma santidade
excepcional:
O anjo a saúda com deferência
inaudita; proclama-a cheia de graça, o que
significa que está cheia da pureza de alma, que é a graça mais necessária para se
aproximar de Deus; declara que o Senhor está
com Ela, evidentemente para torná-la uma criatura privilegiada; repete que encontrou graça diante de Deus, isto
é, que diante de Deus é objeto de favor especial; a maternidade divina exige condições muitíssimo
especiais; Izabel, cheia do Espírito Santo,
a exalta como bendita entre todas as mulheres, portanto única entre elas, bendita
como é bendito o fruto de suas entranhas, Deus de toda pureza; sob a inspiração do Espírito Santo, Maria louva
a Deus, que fez nela grandes coisas; não
apenas uma grande coisa, que é a maternidade divina, mas grandes coisas, o que inclui
além dessa maternidade todos os privilégios que ela supõe.
Quando descreve no Apocalipse
a luta do dragão contra a mulher que daria à luz um filho, São João explica que
o dragão é "a antiga serpente, o demônio e Satanás, o sedutor de toda a terra".
Essa visão do último livro inspirado lembra a profecia do primeiro, a propósito
da mesma serpente. Antes de condenar nossos primeiros pais prevaricadores, Deus
diz à serpente: "Porei inimizades entre ti e a mulher, entre a tua descendência
e a dela. Ela te esmagará a cabeça". Nesta profecia, que mostra de um lado
Satanás e seus asseclas, de outro Maria e Jesus, logo no início a Mulher não está
do lado de Satanás, passando depois para o lado do Filho, mas surge decididamente
do lado de Jesus, oposto a Satanás e à sua raça, portanto não tendo nunca estado
sob seu domínio. (Os judeus do Antigo Testamento viram nessa mulher e na sua descendência
apenas Eva e sua posteridade, mas isso não reduz em nada para os fieis a força da
profecia, cujo autor é Deus.
O significado que nela
colocou ultrapassa o sentido óbvio das palavras, de acordo com a interpretação abalizada
da Igreja, que tem a assistência do Espírito Santo. São João, autor inspirado, nos
convida a reportarmo-nos à história da antiga serpente, sedutora de toda a terra.)
A revelação nos mostra
Maria como uma criatura totalmente pura, para que sua pureza perfeita a torne digna
Mãe de Deus. Reconhece em Maria uma pureza excepcional, da mesma forma que são excepcionais
sua vocação e suas graças. Mostra ainda uma pureza constante, que permanece durante
toda a vida.
Teriam as primeiras gerações
de cristãos reconhecido a Virgem como puríssima desde o primeiro momento de sua
conceição? Esse assunto não se levantava nessa época, porque a doutrina do pecado
original não ocupava ainda o espírito dos primeiros cristãos, ainda que ensinada
por São Paulo. De qualquer forma, o ensinamento existente nessa época não fornece
nenhuma indicação que permitisse supor alguma mancha nessa pureza da Mãe de Deus,
seja no início ou em qualquer outro momento de sua existência. Mais ainda, se uma
graça excepcional era necessária para que Maria fosse pura já nesse primeiro momento,
o próprio Evangelho nos ensina que Deus lhe concedeu graças excepcionais, sendo
uma delas um milagre inaudito em favor de sua pureza.
Durante muitos anos, as
gerações cristãs continuaram a considerar a pureza de Maria genericamente, sem se
dedicarem a contemplá-la especialmente no primeiro momento da sua existência. No
entanto houve progresso na afirmação da sua Imaculada Conceição, no sentido de que
se insistia com mais contentamento nessa pureza da Mãe de Jesus. Sua virgindade
teve de ser posta em relevo, para defender contra os hereges a divindade de seu
Filho, resultando daí um esforço maior para mostrar Maria como criatura totalmente
pura. Enquanto isso, sob a influência do ascetismo nascente, a castidade virginal
foi exaltada como o meio e o símbolo de toda pureza e santidade, e a virgindade
miraculosa de Maria levou a venerá-la como a criatura pura por excelência. Ela era
chamada Virgem pura, Virgem santa, Santíssima Virgem, etc. Depois se acrescentaram
palavras novas: toda pura, toda imaculada, absolutamente imaculada Virgem, etc.
Por outro lado, as características
inteiramente excepcionais de Maria, situando-a quase fora da humanidade e totalmente
próxima de Jesus, surgiram com evidência cada vez mais resplandecente, à medida
que as lutas cristológicas atraíram mais a atenção sobre seu papel nos mistérios
da Encarnação e Redenção, fazendo ver nela a nova Eva ao lado do novo Adão, que
era Jesus.
Desse modo estavam postos
todos os elementos para ser reconhecida sem hesitação a sua pureza original, quando
a questão fosse levantada. Essa ocasião surgiu quando, em alguma igreja do Oriente,
foi instituída uma festa em honra da sua conceição. Sem dúvida o objetivo direto
da festa não era afirmar a ausência de pecado original em Maria, o que se queria
era simplesmente honrar a sua origem, da mesma forma que se honrava a de seu Filho
com a festa da Anunciação, e o fim da existência terrena de Maria com a festa da
Dormição. Porém, tendo em vista que a Igreja não estabelece uma festa para honrar
o que não seja puro e santo, afirmava-se implicitamente por meio dessa festa litúrgica
que Maria tinha sido totalmente pura desde a sua origem. A festa se difundiu no
Oriente, logo depois no Ocidente, e durante muitos séculos não encontrou oposição.
A partir do século 12,
muitos grandes teólogos levantaram dúvidas e contradições sobre essa doutrina, ou
ao menos contra a oportunidade da festa da Conceição de Maria. Entre eles havia
santos muito devotos da Virgem, sustentando ser necessário atribuir à Mãe de Deus
todos os privilégios que não fossem incompatíveis com a fé, mas não viam como se
poderia atribuir-lhe o da Imaculada Conceição. Para alguns, esse privilégio exigiria
também a conceição virginal de Santa Ana; para outros, excluiria Maria da Redenção, que foi
universal. No entanto, a Tradição não autoriza nenhuma destas duas alegadas exigências.
Isso gerou grande desentendimento entre os estudiosos, mas o povo em geral não se
embaraçava com essas dificuldades, continuava venerando Maria como toda pura. A
própria festa da Imaculada Conceição não cessou de se propagar.
Outros teólogos sustentavam
esse privilégio de Maria, afirmando que a Imaculada Conceição não a excluía da Redenção
universal. Pelo contrário, supunha uma redenção bem mais perfeita, tal como convinha
à Mãe de Deus.
A oposição serviu para
fazer brilhar ainda mais a pureza original da Virgem: Algumas universidades assumiram
o compromisso de defendê-la; Ordens religiosas
foram erigidas em sua homenagem; a própria
corte pontifícia começou a celebrar essa festa; concílios ecumênicos a afirmaram ou a supuseram,
embora sem defini-la com autoridade infalível; os Papas proibiram que ela fosse atacada. Assim
a Imaculada Conceição se tornou o grande privilégio da Virgem, da mesma forma que
sua virgindade o fora durante os quatro primeiros séculos, e sua maternidade divina
depois do ano 431.
A piedade e a teologia
se ocuparam do assunto de modo cada vez mais constante e amoroso. Como o Antigo
Testamento foi a prefigura do Novo, foram nele encontradas inúmeras alusões, profecias,
símbolos e tipos da Virgem Imaculada. Um franciscano compôs com esses dados uma
graciosa compilação, denominada Pequeno Ofício da Imaculada Conceição, recitado
ainda hoje nas Congregações Marianas e nas sociedades religiosas especialmente dedicadas
ao culto de Maria Imaculada.
A glória da Imaculada brilhava
assim desde a origem do mundo, atravessando os séculos do Antigo e do Novo Testamento.
Com o passar do tempo já não se ouviam vozes discordantes entre os fieis, quando
o Papa Pio IX decidiu acrescentar a essa piedosa convicção a distinção mais sublime,
elevando-a à dignidade de dogma. Após consultar os bispos do mundo inteiro, e tendo
encomendado o exame do assunto por vários grupos de teólogos, em 8 de dezembro de
1854 declarou, pronunciou e definiu: "A doutrina que sustenta que a Bem-aventurada
Virgem Maria foi preservada de toda mancha e culpa original no primeiro instante
de sua conceição, por uma graça e privilégio singular de Deus Todo-Poderoso, em
vista dos méritos de Jesus Cristo, Salvador do gênero humano, foi revelada por Deus,
e deve consequentemente ser firme e constantemente admitida por todos os fieis".
Este triunfo da Imaculada
Conceição foi sem igual, pois os dogmas anteriores, inclusive o da maternidade divina,
haviam sido proclamados para refutar as heresias, enquanto a Imaculada Conceição
foi definida diretamente para a glória de Maria.
Resumindo:
1º. Desde a origem do cristianismo,
a Mãe de Jesus se apresenta aos fieis como uma Virgem toda pura durante toda sua
vida;
2º. Em seguida se pensa
em honrar de modo particular sua pureza no primeiro momento de sua existência;
3º. Depois alguns contestam,
com base em argumentos a priori, que nesse primeiro momento Ela era também portadora
da mancha original;
4º. Examinando mais atentamente,
descobre-se que não está aí nenhuma mancha, e sim um ponto particularmente brilhante;
5º. Todos se dedicam então
a comemorar ostensivamente a pureza imaculada da Mãe de Deus;
6º. A Igreja define a Imaculada
Conceição como dogma de fé.
2º.
Harmonias entre a Imaculada Conceição e os outros privilégios de Maria
Maria foi criada a fim
de tornar-se Mãe de Deus. Portanto sua maternidade divina goza de anterioridade
de vocação em relação à sua condição de filha de Eva. Consequentemente, deveria
ser imaculada como Mãe de Deus, e não manchada como filha de Eva.
Já vimos que todas as graças
adequadas a quem mereceu a condição de Mãe de Deus devem ser atribuídas a Maria.
Evidentemente é mais próprio à Mãe de Deus não ser concebida no estado de inimizade
com Deus, e sim no de amizade. Para avaliarmos a importância deste argumento, lembremo-nos
de que Maria se tornou, como consequência da maternidade divina, associada do Pai
no nascimento do Salvador, Mãe do Filho de Deus e Esposa do Espírito Santo.
Se cada um de nós tivesse
o poder de tornar nossa mãe inteiramente pura, é claro que o faríamos. Sendo Maria
Mãe do Filho de Deus, Jesus Cristo tinha esse poder, portanto criou-a totalmente
imaculada: Potuit, decuit, ergo fecit -- podia, era adequado, logo fez, segundo
a fórmula de Duns Scot. Jesus Cristo tinha mesmo motivos especiais para agir desse
modo. Inicialmente, porque seu amor filial é infinitamente maior que o nosso; se tivesse sido concebida no pecado, Maria estaria
assim em estado de inimizade em relação ao seu Filho, o qual teria um motivo de
aversão à própria Mãe; se a Mãe de Cristo
devia servir de modelo para nossas mães, como poderia realizar-se isso, caso Ela
própria não tivesse gozado sempre o estado de graça?
Sendo Mãe do Filho de Deus,
Maria é Mãe do Salvador, que veio para resgatar o gênero humano. Convinha que o
resgate da sua própria Mãe se fizesse de modo mais excelente que o do resto da humanidade,
e esse modo excelente consistiu numa preservação, em lugar de uma libertação. Maria
é a esposa do Espírito Santo, cuja obra é de santificação. Era justo que o Espírito
de amor santificasse a alma de sua Esposa de modo mais sublime que o das outras
almas, isto é, impedindo que o pecado entrasse nela, em vez de removê-lo depois.
Maria é superior aos anjos.
Tendo sido os anjos criados em estado de pureza, como poderíamos supor que a Rainha
dos anjos fosse criada em estado de pecado? Maria é superior aos homens. Tendo sido
nossos primeiros pais criados em estado de inocência, Maria seria em algo inferior
a eles, se fosse criada em estado de pecado. Maria é cheia de graça, e isso exige
que tenha recebido também a primeira graça de santificação.
Na Imaculada Conceição,
admiramos a pureza absoluta de Maria no primeiro momento da sua existência, e a
maternidade divina é de certo modo a extensão da sua pureza a um segundo momento
da vida. A virgindade durante o parto excluiu Maria da maldição recebida por Eva:
"Darás à luz mediante a dor". Isso exige também que tenha sido isenta
do pecado original, causa dessa maldição.
Maria tem como missão ser
a grande adversária do demônio, portanto não devia jamais ter estado sob sua influência.
Seria inadmissível que o demônio pudesse lançar contra Ela: Houve um tempo em que
eu era superior a vós, pois fui criado sem mancha, ao passo que fostes concebida
com a mancha do pecado.
Maria deveria ser mediadora
entre uma raça pecadora e um Deus ofendido. Como poderia desempenhar essa missão,
se tivesse começado como inimiga desse Deus e cúmplice do ofensor? Maria estava
destinada, juntamente com Cristo, a resgatar os homens do pecado e do demônio, por
isso deveria ser inteiramente livre dessa escravidão. Maria foi chamada a ser nossa
Mãe em todas as nossas necessidades e tentações. Portanto é necessário podermos
recorrer a Ela com essa veneração e confiança absolutas que só podem ser inspiradas
por uma alma inteiramente pura e amiga de Deus.
Todo pecado é consequência
de um egoísmo, e a pureza perfeita é o esquecimento completo de si, o dom total
de si mesmo a Deus, e às almas por causa de Deus. Se em nossa Mãe tivesse havido
em algum momento menos força e frescor no seu amor, se não tivesse sido inteiramente
pura em algum momento de sua existência, nós o sentiríamos. A Imaculada Conceição
faz de Maria uma Mãe mais amorosa.
Maria foi elevada ao céu
em corpo e alma, pois sua Imaculada Conceição a preservou da corrupção do túmulo.
Outras harmonias podem
ainda ser encontradas num exame cuidadoso da Imaculada Conceição de Maria e dos
seus outros privilégios, mas os que acima apresentamos dão uma ideia da sua beleza
e grandeza.
3º.
Consequências da Imaculada Conceição
Como a Imaculada Conceição
consiste essencialmente na ausência do pecado original e na posse da graça santificante
desde o primeiro momento da existência, nesse momento a alma de Maria tinha as características
da alma de uma criança batizada. Essa graça inicial foi nela de tal plenitude, que
ultrapassa tudo que possamos imaginar. Trataremos deste ponto a propósito da santidade
de Maria.
Juntamente com essa graça
inicial foram concedidos a Maria inúmeros outros favores. Em primeiro lugar a posse
dos principais dons de integridade concedidos ao primeiro homem, e como consequência
a ausência das lesões do pecado original. Em Maria jamais houve concupiscência,
essa "lei do pecado", que São Paulo lamentava encontrar nos seus membros,
a qual o levava ao mal que não queria e o impedia de fazer o bem que queria. Não
existiu para Maria essa lei, que nos faz gemer devido a tantas fraquezas, tentações,
dificuldades e lutas. Em Maria tudo era ordem, harmonia e paz divina. Convinha que
assim fosse, pois a carne, que para nós é o maior obstáculo à vida sobrenatural,
iria tornar-se nela instrumento da divina maternidade e era destinada a tornar-se
a carne de um Deus.
Na Imaculada, nenhuma ignorância
moral ou religiosa que estivesse em desordem. Não sendo infinita, não sabia tudo,
porém sabia todas as coisas que lhe convinha saber, em particular tudo o que lhe
era necessário ou útil para evitar todo erro de conduta, e para sempre agradar a
Deus o mais perfeitamente possível. Sobretudo no que se refere às verdades divinas,
sua inteligência era dotada de poder de penetração, que lhe permitia entender mais
os mistérios eternos do que qualquer outra inteligência criada, com exceção da de
Nosso Senhor Jesus Cristo.
Sem nenhum desequilíbrio
na sensibilidade, Maria amava com ternura e suavidade, e ao mesmo tempo com ardor
e veemência superiores aos amores mais doces ou mais fortes que jamais tenham abrasado
um coração humano. Entretanto, em nenhum momento sua afeição impedia ou perturbava
a razão ou a graça.
Fraqueza, hesitação ou
desvio da vontade jamais a desviaram do bem, pois seu querer a orientava somente
para o soberano Bem, desejando-o suaviter et fortiter -- mais suavemente do que
a mais terna das criaturas, e mais fortemente que todos os santos e todos os mártires.
Jamais a alcançaram desordens
corporais, doenças ou enfermidades propriamente ditas. Entretanto Ela podia sofrer,
e quis sofrer como seu Filho: no corpo, sofrer fome e sede, calor e frio, cansaço
e esgotamento; sobretudo na alma, sofrer
angústias indizíveis, mais do que todos os mártires, a ponto de tornar-se sua rainha.
Não se tratava de sofrimentos desordenados, tais como lamentos, escrúpulos, remorsos.
Eram sofrimentos de amor ao seu Filho, que desejava resgatar-nos por meio de suas
dores, e de amor também por nós, de quem desejava ser a co-redentora.
Maria deveria morrer, pois
também seu Filho morreu, embora a justiça original do gênero humano, que Ela possuía,
lhe garantisse a imortalidade. Teve a morte como nós, não porém da mesma maneira
nem pelas mesmas razões: Sua morte não foi uma luta, uma agonia, mas um êxtase de
amor; não uma expiação por pecado pessoal
ou herdado, mas um ato de conformidade com Jesus, que morreu por nossos pecados.
Em suma, se Maria não recebeu certos dons de integridade que Adão havia recebido,
isso se fez em vista de maior perfeição: a possibilidade de amor e merecimento ainda
maiores.
Estas consequências da
Imaculada Conceição não estão claramente contidas no ensinamento primitivo, e também
não fazem parte da definição do dogma por Pio IX, porém se baseiam na convicção
católica de que Deus concede aos seus amigos dons em toda a sua extensão, e assim
agiu com sua Mãe. Portanto, se adornou a alma de Maria com a justiça original, como
a de nossos primeiros pais, conferiu-lhe também dons de integridade, como fez com
eles.
Além disso, essas consequências
podem ser deduzidas diretamente de um texto da bula de Pio IX sobre a Imaculada
Conceição. Não fazem parte da definição infalível, mas exprimem nitidamente a universal
convicção da Igreja católica. Eis o que afirma Pio IX: "Deus cumulou Maria
da abundância de todos os favores celestes extraídos do tesouro da divindade, mais
do que a todos os espíritos angélicos e mais que ao conjunto dos santos. De modo
tão maravilhoso que, sendo preservada absolutamente de toda mancha, inteiramente
bela e perfeita, teve em si tal plenitude de inocência e de santidade, que não se
pode conceber outra maior abaixo de Deus, e nenhum pensamento que não seja o de
Deus pode alcançá-la".
Seria possível afirmarmos
que Maria foi mais cumulada de favores do que os espíritos angélicos e o conjunto
dos santos, caso não tivesse recebido também os dons de integridade? Poderíamos
afirmá-la inteiramente bela e perfeita, e que não se pode conceber maior plenitude
de inocência e santidade? Se assim fosse, haveria a possibilidade de conceber maior
perfeição, que seria a de quem unisse os dons da integridade aos seus outros dons.
Conforme uma opinião generalizada,
outro dom excepcional concedido a Maria, como consequência de sua Imaculada Conceição,
foi o uso da razão desde o primeiro momento de sua existência. Não há acordo unânime
dos teólogos sobre este ponto, que só foi explicitado claramente após o século 16.
Alguns teólogos pensam que a alma de Maria despertou para a vida psicológica algum
tempo após seu nascimento, como a das outras crianças. Outros supõem que gozou miraculosamente
o uso da razão no momento de sua conceição, mas que em seguida talvez só o tenha
possuído durante alguns intervalos, até o momento em que sua consciência psicológica
atingiu seu desenvolvimento normal. Ainda outros admitem que Ela a possuía de modo
contínuo depois da sua Imaculada Conceição, e que desde esse primeiro momento conheceu
Aquele que a criou assim perfeita, correspondendo ao amor infinito de Deus por Ela
com um arrebatamento de amor inconcebível, que cresceu sempre em pureza e intensidade.
Adiante exporemos as razões
pró e contra esta opinião.
De acordo com as leis da psicologia, o conhecimento racional não pode preceder
o conhecimento sensível, pois nada existe na inteligência que não tenha inicialmente
estado nos sentidos.
Além disso, vemos pela
História que frequentemente Deus deixa seus amigos numa certa ignorância que, embora
incompatível com a perfeição do céu, não prejudica sua perfeição terrestre. Assim
aconteceu com os apóstolos, que durante muito tempo tiveram ideias falsas sobre
a realeza de Jesus, sua paixão, sua ressurreição, seu retorno à terra; e também com Maria, que não compreendeu desde o
início a razão de Jesus ter ficado em Jerusalém na idade de doze anos, nem o significado
de sua resposta nessa ocasião. Por que Deus não teria agido do mesmo modo com Ela
por ocasião da sua conceição, quando sua perfeição não se havia desenvolvido tanto?
Enfim, para se poder afirmar
um privilégio como esse, seria necessário encontrar pelo menos alguma indicação
nesse sentido na Sagrada Escritura. Parece que o Evangelho não a contém, e até indica
o contrário. Independentemente desse desconhecimento de Maria no que se refere à
perda de Jesus no Templo, o Evangelho nos dá a entender que Ela não foi, na sua
condição natural, diferente do resto da humanidade. Somente na sua perfeição sobrenatural
Ela era uma criatura especial.
Deixemos claro inicialmente
que a posse da razão desde a conceição não deve ser considerada em Maria como um
fenômeno natural, e sim como um dom sobrenatural. Não supõe uma ciência experimental
adquirida pelo uso prévio dos sentidos, mas uma ciência infusa, posta na alma em
determinado instante pela ação divina. Não teria Deus podido fazer um dom assim
à Imaculada? Negá-lo, seria negar tal possibilidade para o próprio Jesus, tendo
em vista que, do ponto de vista natural, o desenvolvimento fisiológico e psicológico
de Nosso Senhor era semelhante ao nosso. Esse dom teria sido concedido a Maria,
não em vista da sua perfeição humana, mas em vista da sua perfeição sobrenatural.
O uso da razão é necessário
para alguém amar ou merecer. Se Maria não tivesse o uso da razão no momento de sua
conceição, estaria inconsciente das maravilhas que nela operou a graça de Deus,
portanto lhe seria impossível amar a Deus e agradecer-lhe, ficando assim numa situação
inferior, neste aspecto, à dos anjos; inferior
também à dos homens em estado de graça, que podem praticar atos de amor a Deus.
Ser-lhe-ia então impossível adquirir méritos e crescer em graça e santidade. Muito
diferente disso é a aparente ignorância que se manifestou na perda de Jesus no Templo,
que em nada desmereceu sua santidade.
Parece que Deus concedeu
o uso da razão a certos santos, muito antes da idade normal. Como narra o Evangelho,
no momento da Visitação São João Batista exultou de alegria no ventre de Izabel,
três meses antes do nascimento. Fato semelhante ocorreu com outros santos, como
narram seus biógrafos. E é perfeitamente possível que Deus tenha querido conceder
privilégio semelhante a Maria no momento de sua conceição. Se criou os anjos e nossos
primeiros pais na posse da razão e do livre arbítrio, por que teria concedido menos
a Maria, futura rainha dos anjos e a nova Eva? Pode-se argumentar que os anjos são
puros espíritos, e que nossos primeiros pais foram criados já na condição de adultos,
portanto em ambos os casos o uso da razão era natural, ao passo que no caso de Maria
não era natural o uso da razão no momento da conceição. Argumenta-se em sentido
contrário que em Maria isso seria um privilégio, e ninguém pretende afirmar que
se tratava de condição natural.
Verifica-se aqui o mesmo
que se deu em relação ao pecado original, pois nos nossos primeiros pais e nos anjos
esta era uma condição natural, mas em Maria foi um privilégio. (Por exemplo, o suíço
São Nicolau de Flue, quando ainda no seio de sua mãe; Claires Noes, [1823-1895] no dia seguinte ao do
seu nascimento, por ocasião do batismo.)
Deus concedeu a Maria privilégios
sem conta, muitos deles pelo menos tão extraordinários quanto este. Por exemplo,
levou Maria para sua companhia no céu, muitos séculos antes do momento fixado para
a glorificação dos corpos dos outros homens. Por que não poderia ter-lhe concedido
o conhecimento e o amor consciente a Deus antes do prazo fixado para o uso da razão
pelos homens? A Mãe de Deus é uma criatura de tal modo superior ao resto da criação,
que um privilégio excepcional não tem por que nos surpreender. Julgar a sua psicologia
sobrenatural pela nossa, equivale a pretender submeter às nossas mesquinhas medidas
aquela que Deus fez incomensurável.
Os argumentos apresentados
são apenas razões de conveniência, que nos levam a presumir, e não a afirmar uma
certeza. O que diz a Revelação sobre o assunto? Seguramente não nos fornece ensinamentos
explícitos, no entanto nos permite adivinhar que em tudo Maria é uma criatura excepcional,
superior a todas as outras criaturas, tão perfeita quanto possível. Ela é semelhante
a Jesus em todos os seus privilégios e funções, exceto no que se refere à união
hipostática.
Sobre Jesus, a teologia
nos ensina que teve o uso da razão e do livre arbítrio desde sua conceição, de acordo
com indicações da Sagrada Escritura. Parece portanto que a Revelação nos orienta
de preferência para a aceitação do ponto que estamos tratando. Grande número de
santos e teólogos modernos são favoráveis a essa piedosa crença, mas ela não foi
ainda proposta aos fieis de modo tão generalizado que o sentimento universal pudesse
manifestar-se. Sem dúvida os fieis a acolherão favoravelmente, como estando mais
em harmonia com a ideia da Igreja sobre a liberalidade de Deus em relação a Maria,
e também sobre a conformidade da Mãe com o Filho. Parece portanto que a opinião
a favor do uso da razão em Maria desde sua Imaculada Conceição é pelo menos muito
provável, e pode-se acreditar que as gerações futuras lhe conferirão a certeza.
A certeza sobre esse ponto
parece poder-se depreender da bula Ineffabilis, quando afirma que Deus concedeu
à sua futura Mãe "tal plenitude de inocência e santidade, que não se pode conceber
de nenhum modo outra maior abaixo de Deus, e só o pensamento de Deus poderia abarcá-la".
Admitindo-se que Maria não gozou o uso da razão desde sua Imaculada Conceição, ou
que só o gozou transitoriamente enquanto permanecia no seio de sua mãe, estaria
aberta a possibilidade para se conceber uma situação de maior plenitude de inocência,
santidade e mérito, ao contrário do que afirma o texto citado da bula Ineffabilis.
Qual seria essa situação? Aquela que estamos discutindo, ou seja, que Ela de fato
gozou constantemente o uso da razão e do livre arbítrio desde sua Imaculada Conceição,
pois somente o gozo deste privilégio constitui "plenitude de inocência e santidade
maior abaixo de Deus".
4º.
Grandeza desse privilégio
A Imaculada Conceição é
em primeiro lugar um mistério de pureza singular. Existem no céu e na terra almas
totalmente puras, entretanto a pureza da Imaculada foi única, pois só Maria foi
pura desde a sua conceição; é também única
pela revogação da lei universal decorrente do pecado original, que só existiu neste
mistério. É verdade que nossos primeiros pais e os anjos foram criados imaculados,
mas neles a ausência do pecado estava de acordo com a lei da sua condição. Maria,
pelo contrário, foi sempre imaculada apesar da sua condição, que a sujeitaria ao
pecado original da mesma forma que se aplicou aos outros seres humanos. As consequências
desse privilégio único foram também únicas: plenitude de graça, dons de integridade,
perfeição espiritual e corporal. A Imaculada Conceição foi também uma preparação
para a maternidade divina, que em Maria é outra dignidade única.
Por ser a Imaculada Conceição
um mistério de pureza, é também um mistério de amor, pois a pureza é uma condição
para o amor a Deus. Desse ponto de vista, a pureza original de Maria deve agradar
sumamente a Deus, mais ainda do que sua pureza virginal, pois poderia não ofender
a Deus se sacrificasse a segunda, ao passo que sem a justiça original Ela estaria
privada dessa pureza sem a qual a amizade com Deus não é possível. Graças à sua
pureza original, seu amor a Deus adquire uma característica inteiramente singular.
Compare-se isso com a diferença de sentimentos entre uma esposa que admitiu um pensamento
de infidelidade a seu marido durante um momento e outra que sempre manteve inviolável
a fidelidade; ou ainda a que existe entre
uma alma que num só instante consentiu numa sugestão má, e outra que, em meio a
todos os ataques de Satanás, conservou sua pureza batismal.
Por mais que as duas primeiras
de ambos os exemplos tenham reparado suas faltas, nos corações das outras duas há
uma satisfação íntima que lhes dá a consciência de terem sido sempre fieis. Uma
satisfação assim, porém incomparavelmente maior, deve ser a de Maria, por jamais
ter permanecido em estado de inimizade com Deus. Como Imaculada, Ela se sente a
filha bem amada do Pai, abraça seu Filho e se une ao Espírito Santo, com simplicidade,
confiança e delicadeza de amor que só pertencem a Ela, pois somente nela não existe
a lembrança de um momento em que tal atitude foi permitida.
Nós participamos da alegria
da Imaculada, exultamos ante o pensamento de que uma criatura humana livrou-se inteiramente
das tentações de Satanás, e sabemos também que essa criatura é nossa Mãe, nascida
de uma raça universalmente manchada, mas se manteve mais pura e brilhante do que
o mais sublime dos anjos.
Pelo mistério da Imaculada
Conceição, Maria triunfou sobre Satanás, autor de todo mal, com um triunfo sem precedentes.
Sob o calcanhar dela, Satanás sofreu sua primeira derrota completa, absoluta e irreparável,
como jamais sofrera desde o início do mundo. Foi um triunfo a própria proclamação
desse mistério, apesar de tantos obstáculos. Pela sua proclamação, a solene afirmação
do reino da graça triunfou contra o materialismo invasor, que parecia desfechar
os últimos golpes sobre a fé em realidades sobrenaturais; e ao mesmo tempo reafirmou a autoridade pontifícia,
num momento histórico em que todos os poderes humanos e infernais estavam conluiados
contra Ela.
A Imaculada Conceição não
faz lembrar apenas o longínquo triunfo da Virgem no dia de sua conceição no seio
de Santa Ana, ou sua glorificação por todo o universo católico em 1854. Trata-se
do símbolo e anúncio de um triunfo mais amplo e mais durável. Somos interessados
nesse triunfo, pois pertence também a nós a causa de Maria, que juntamente com sua
posteridade deve esmagar a cabeça da serpente, e essa posteridade somos nós, começando
por Jesus. A guerra entre o demônio e a raça da Mulher, que começou no início do
mundo, durará até o fim dos tempos, e a glorificação da Imaculada Conceição deu
realce surpreendente ao papel da Mulher nessa guerra. Cada vez mais manifestamente,
é sob a direção dela -- Maria duce -- que a luta deve prosseguir; e para sermos vencedores, é em seu nome que os
soldados devem combater. Com Ela a vitória é certa, pois debaixo dos seus pés a
serpente se contorce impotente.
Portanto, a Imaculada Conceição
é um triunfo para Maria, mas também para nós.
A definição desse privilégio
foi a proclamação do reino de Maria nos tempos atuais e do apostolado mariano completo,
que é o apostolado por meio dela e sob o seu comando. Isso é o que todos os católicos
sentiram, pelo menos vagamente. Alguns o compreenderam claramente, inspirando-se
nessa indicação providencial para imprimir orientação francamente mariana à sua
vida e ao seu apostolado. E os fatos deram razão à sua fé.
Capítulo,
7º. A VIRGINDADE DE MARIA
Nos últimos séculos, a
pureza de Maria na sua conceição entusiasmou de modo particular os fieis. Nos primeiros
séculos, sobretudo sua pureza virginal atraiu os olhares dos cristãos. Para eles,
Maria era a Virgem-Mãe, e assim permanecerá para sempre. O que a Igreja sempre ensinou
é que Maria foi virgem antes, durante e depois do parto -- ante partum, in partu,
post partum.
1º.
Significado da virgindade antes do parto
A virgindade antes do parto
ou na conceição de Jesus é explicada no Evangelho. Maria era virgem no momento da
vinda do anjo Gabriel e permaneceu virgem ao se tornar Mãe de Deus, pois concebeu
Jesus sem nenhuma cooperação humana, tornando-se miraculosamente fecunda pela ação
do Espírito Santo, para cujo poder nada é impossível. São José foi o guardião providencial
e testemunha da sua virgindade.
A virgindade antes do parto
foi explicitamente revelada aos primeiros cristãos. Quando tomaram conhecimento
de que era Filho de Deus eterno aquele Jesus que foi crucificado e ressuscitou,
muito provavelmente manifestaram curiosidade em saber qual tinha sido sua origem
humana. Interrogando sobre isso os que viveram na intimidade de Maria ou de José,
e talvez a própria Virgem Maria, foi-lhes revelada a história maravilhosa da conceição
sobrenatural. Ela está consignada, com todas as circunstâncias concomitantes, nos
evangelhos de São Mateus e São Lucas, cujos relatos são absolutamente independentes
um do outro. (As diferenças aparentes entre os dois relatos se explicam plenamente
pela diferença de pontos de vista dos dois evangelistas.
Os racionalistas e certo
número de protestantes atuais rejeitam os testemunhos de São Mateus e São Lucas,
sob o pretexto de que não são concordantes um com o outro, mas o motivo real dessa
atitude em relação à conceição virginal de Jesus é a mesma que manifestam em relação
à divindade e a tudo o que significa uma característica sobrenatural. Na realidade,
todos os que aceitam a filiação divina de Nosso senhor e a possibilidade do milagre
aceitam também a conceição virginal.)
Os primeiros cristãos provavelmente
encararam essa revelação com toda naturalidade, como um corolário lógico da divindade
de Jesus. Ademais, certamente se lembraram de uma profecia do maior dos profetas
messiânicos: "Uma virgem conceberá e dará à luz um filho, que será chamado
Emanuel". (Deus conosco) Para honra de sua Mãe, sem dúvida Deus não quis deixar
neste ponto os fieis expostos às hesitações e perplexidades que podem surgir de
uma revelação puramente implícita, nem permitir que sequer uma sombra de dúvida
lhes aflorasse ao espírito em matéria tão delicada.
As gerações seguintes não
tiveram que explicitar uma convicção que era tão clara desde o início. Tiveram no
entanto que defendê-la contra certos hereges, tais como cerintianos e ebionitas,
que rejeitavam a divindade de Cristo, e nessa lógica atribuíam a Jesus um nascimento
comum. As afirmações da ortodoxia tiveram como efeito natural destacar ainda mais
a virgindade de Maria, e consequentemente sua pureza, sua santidade e seu papel
na nossa redenção.
Desde a introdução dos
catecúmenos na fé cristã, eles eram instruídos no conhecimento desse privilégio
da Mãe de Deus, ocasião em que aprendiam a recitar o Símbolo dos Apóstolos. Nas
suas diversas formulações, este sempre continha invariavelmente este artigo: "Creio
em Jesus Cristo, que nasceu da Maria Virgem". Rapidamente a palavra Virgem
tornou-se o nome próprio da Mãe de Deus, mais usado até do que seu nome de Maria.
Harmonias
da virgindade antes do parto
Por que era necessário
Maria conceber seu Filho permanecendo virgem? Inicialmente, devido à própria divindade
desse Filho. Sempre foi instintivamente admitido, tanto por crentes quanto por não
crentes, que um homem-Deus deveria nascer de modo diferente de um homem comum. Mesmo
sendo semelhante a nós por sua humanidade, Jesus deveria, sendo Deus, ter origem
temporal que de algum modo fosse divina. Os Padres da Igreja repetiam exaustivamente:
"Deus só poderia nascer de uma virgem, e quem nascesse de uma virgem só poderia
ser Deus".
Em teoria, Deus teria podido
nascer de um pai e de uma mãe de acordo com sua humanidade. Não se vê o que poderia
impedir o Todo-Poderoso de contrair união hipostática com uma natureza humana assim
formada. Mas na prática, a própria divindade de Jesus corria o grande risco de não
ser reconhecida, se sua origem não tivesse sido virginal. A história dos hereges,
desde os ebionitas do século 1, até os modernistas do século 20, deixa claro que
todos os adversários da virgindade de Maria foram igualmente adversários da divindade
de Jesus. Quanto aos que se empenharam em sustentar a virgindade da Mãe, eles o
fizeram principalmente por sentirem que, ao defendê-la, estavam também defendendo
a divindade do Filho. A correlação entre a virgindade de Maria e a divindade de
Jesus pode não ser estritamente lógica, mas é profundamente psicológica.
Dentre os atributos da
divindade, é sobretudo a pureza que exige essa origem virginal. Na realidade o matrimônio
é puro em si mesmo, mas uma impressão de desordem se mistura instintivamente às
características do seu uso, por efeito da nossa natureza corrompida pelo pecado
original. Mesmo que se descarte essa impressão, paira sempre acima da pureza matrimonial,
que é uma pureza terrestre, o brilho resplandecente, incomparavelmente mais radioso
e mais delicado da pureza virginal, que é também um brilho celeste. Para a humanidade
do Deus de pureza infinita era necessária a pureza mais perfeita que se possa conceber.
Quantos homens conseguiram,
antes de Jesus, observar até mesmo a castidade conjugal? No entanto Ele vinha propor
a esse mundo assombrado o ideal de uma castidade absoluta. O pensamento de que Cristo
quis nascer de uma Virgem deve ter contribuído poderosamente para fazer seus discípulos
compreenderem e amarem seus ensinamentos sobre a virgindade. Do pensamento de Jesus
emana instintivamente a impressão de pureza perfeita, e pelo menos em parte essa
impressão resulta da lembrança da conceição virginal. Esse pensamento levou inúmeras
almas amorosas a deixar todo amor terreno para possuir inteiramente a pureza, como
afirmou Santa Inês: "Sou noiva de Cristo, de quem partilharei o aposento nupcial,
daquele cuja Mãe é virgem e cujo Pai não conheceu mulher. Tendo-o amado, sou casta;
quando o tiver tocado, serei pura; quando o tiver recebido, serei virgem".
Acaso essa lembrança da
pureza de Cristo seria tão delicada, tão forte, tão eficaz, se Jesus tivesse nascido
de acordo com as leis comuns do matrimônio, ao invés de ser o fruto virginal de
Maria?
Outros motivos análogos
requerem de Maria a conceição virginal. Poderia Jesus, que se compraz entre as virgens,
excluir de sua companhia preferida essa Mãe que Ele amava mais que a todas as virgens
reunidas? Ele a queria superior a todas as criaturas, e sem a conceição virginal
Ela teria sido, no campo da pureza, inferior às virgens cristãs.
Tornando-se Mãe de Jesus,
Maria se tornou também nossa Mãe, e nessa condição devia ser capaz de socorrer seus
filhos nos perigos e necessidades. Mas quem não sabe que, dentre todos os perigos
que nos ameaçam, o mais fatal para a maioria são as tentações impuras? É exatamente
o pensamento da virgindade de Maria que nos ajuda tão eficazmente a recusá-las.
Como mostra a experiência, a lembrança da Virgem nos faz imediatamente adquirir
confiança em meio às tentações, o que frequentemente basta para desfazer toda solicitação
malsã. A imagem daquela que é tão pura nos faz amar mais a pureza e desprezar toda
baixeza, ao mesmo tempo que a sentimos pronta a obter facilmente de Deus a graça
de a Ele nos assemelharmos.
2º.
Significado da virgindade durante o parto
Maria concebeu seu Filho
de modo totalmente puro, e foi também de modo totalmente puro que o deu ao mundo.
Não tendo participado do pecado de Eva, não participou da sua maldição, pois concebeu
sem concupiscência e deu à luz sem dor. Ao nascer dela, o Filho de Deus não rompeu
o selo de sua virgindade, consagrando assim sua pureza virginal, e de inviolada
a fez inviolável. Este é o ensinamento da virgindade durante o parto, sobre o qual
assim se exprime o Concílio de Trento:
"Se a conceição do
Salvador está acima de todas as leis da natureza, também se dá o mesmo com o seu
nascimento, que é divino. E o fato extremamente prodigioso, que ultrapassa todo
pensamento e toda expressão, é que Ele nasceu de sua Mãe sem prejudicar em nada
sua virgindade. Mais tarde Jesus saiu também do seu túmulo sem romper o selo que
o mantinha preso, e com as portas fechadas entrou na casa em que estavam seus discípulos.
Para limitar nossas comparações aos fenômenos comuns, sem romper o selo da virgindade
Jesus Cristo saiu do seio de sua Mãe assim como os raios do sol atravessam o cristal,
sem o romper nem danificar, porém o fez de forma ainda mais maravilhosa. Honramos
nela, com toda razão, uma perpétua virgindade e uma integridade perfeita. Esse privilégio
inaudito foi obra do Espírito Santo, que dessa forma a assistiu na conceição e no
parto de seu Filho, comunicando-lhe a fecundidade da Mãe e conservando-lhe a integridade
da Virgem". (Parte 1, capítulo 4, § 11.)
Virgindade
durante o parto, verdade revelada
Pode-se afirmar com suficiente
verossimilhança que a virgindade durante o parto foi revelada aos primeiros cristãos
ao mesmo tempo que a virgindade antes do parto. Para satisfazer a piedosa curiosidade
dos primeiros cristãos sobre a origem humana de Cristo, Maria ou outros a quem Ela
informou sobre esse mistério ensinaram sobre a conceição miraculosa do Salvador,
e ao mesmo tempo devem tê-los ensinado sobre seu nascimento não menos miraculoso.
Sem essa revelação, não se conseguiria compreender a unanimidade com a qual a virgindade
durante o parto é afirmada desde os primeiros séculos. Não se poderia explicá-la
com base apenas na difusão do Livro de Tiago, apócrifo do século 2, que menciona
expressamente o nascimento virginal, pois tal virgindade é admitida por pessoas
que parecem ter ignorado a existência desse livro, ou que o tacharam de fábula.
(Ver E, Neubert, Marie dans l'Église anténicéenne, pg, 159-190.
Santo Efrém, que não conheceu
os apócrifos nem os escritos dos Padres gregos, afirma e enaltece a virgindade durante
o parto, com ainda maior força e entusiasmo do que alguns desses últimos. Ver Hammersberger,
Die Mariologie der Ephremischen Schriften, 47-49.)
Os evangelhos não mencionam
em termos formais a virgindade durante o parto, mas de fato não havia necessidade
dogmática de mencioná-la, ao contrário da que existe no caso da virgindade antes
do parto. São Lucas relata o nascimento de Jesus, dizendo que Maria "deu à
luz seu primogênito, envolveu-o em panos e o colocou numa manjedoura", e essa
descrição se harmoniza muito mais com a virgindade durante o parto do que com a
condição de uma mulher esgotada pelas dores e fraquezas de um primeiro parto.
Seja como for, mesmo supondo-se
que o fato só tivesse chegado pouco a pouco ao conhecimento da maioria, todos estavam
preparados para aceitá-lo. A conceição de Jesus e seu nascimento constituem dois
momentos do mesmo ato, que é a origem humana de Jesus. Essa origem foi miraculosamente
pura no primeiro momento, e devia sê-lo também no segundo. Mais do que em qualquer
outro assunto, deve-se aqui considerar os favores divinos em seu sentido mais amplo,
e acreditar que Deus agiu com largueza. Por outro lado, a própria palavra do profeta
que predisse a conceição virginal anunciou seu nascimento virginal: "Eis que
a Virgem conceberá e dará à luz um Filho".
As gerações seguintes provavelmente
não tiveram que explicitar sua convicção da virgindade durante o parto, e puderam
contentar-se em transmiti-la tal como a receberam. Em todo caso, professaram-na
unanimemente e por meio de grande variedade de formas: alusões, afirmações, explicações,
comparações, provas e figuras. Logo depois ela acompanhará quase sempre a referência
à virgindade antes do parto. Será cantada e introduzida no ofício litúrgico. O Papa
Martinho -- a fará constar numa definição dogmática do Concílio de Latrão, em 649,
a propósito da condenação dos monotelitas: "Se alguém não confessa, de acordo
com os Padres da Igreja, que a santa, sempre virgem e imaculada Maria é propriamente
e verdadeiramente Mãe de Deus, pois concebeu do Espírito Santo o Verbo de Deus e o deu à luz sem corrupção, permanecendo sua virgindade
indissolúvel mesmo após o parto, que seja anátema".
O Concílio de Trento igualmente
o ensina, ao condenar os erros dos unitarianos.
Grande número de nossos
hinos e preces a Maria mencionam esse privilégio; o prefácio de todas as festas da Virgem o canta;
o ofício da Circuncisão e da véspera da Epifania
o celebra várias vezes.
Harmonias
da virgindade durante o parto
As conveniências da virgindade
durante o parto são quase as mesmas que as da virgindade antes do parto, da qual
ela é apenas a conclusão. Convinha melhor à divindade e pureza infinita de Jesus,
e mostrava quanto valor atribuía à virgindade. Convinha a Maria por ser mais digna
de uma Mãe de Deus, de uma criatura superior a todas as outras, a Mulher chamada
a ser o ideal da pureza e a protetora dos seus filhos nas tentações e lutas.
A virgindade durante o
parto mostra, melhor em certo sentido do que a virgindade antes do parto, a estima
em que Jesus tem a pureza virginal, e sobretudo a infinita delicadeza de seu amor
à sua Mãe, pois conservava nela, por meio desse milagre, não somente o que constitui
a verdadeira essência da virgindade, mas também aquilo que constitui da virgindade
apenas a perfeição material. Para os primeiros cristãos, esta era uma prova evidente
daquilo que sentiam de modo mais ou menos obscuro: Jesus queria que sua Mãe fosse
perfeita em todos os sentidos, mesmo em seu corpo, tanto quanto seja possível a
uma criatura, ainda que para isso fosse necessário um milagre inaudito.
Era também uma indicação
da incorruptibilidade do seu corpo, na qual se inspirarão quando vierem a afirmar
essa incorruptibilidade e a gloriosa assunção. Para todas as gerações, este é um
motivo de admiração e alegria, um convite também para irmos, em companhia de Jesus,
tão longe quanto possível na veneração à sua Mãe.
3º.
Significado da virgindade depois do parto
Por virgindade depois do
parto, ou virgindade perpétua, entende-se o fato de que, sendo virgem na conceição
e no parto de Jesus, Maria permaneceu virgem até o fim de sua vida, portanto não
deu à luz nenhum filho além de Jesus.
Virgindade
depois do parto, verdade revelada
A virgindade perpétua de
Maria deve ter sido claramente conhecida de muitos dos primeiros cristãos. Não era
difícil aos discípulos da Galiléia e da Judéia interrogar os parentes de Jesus,
e certamente uma piedosa curiosidade os levava a isso, daí conhecerem que Maria
jamais teve outro filho além de Jesus. Quanto aos cristãos de fora da Palestina,
alguns dentre eles devem ter perguntado sobre isso aos apóstolos e aos cristãos
provenientes da Palestina, obtendo deles essas informações. Além disso, a tradição
mais antiga é unânime sobre este ponto.
A virgindade perpétua não
é explicitamente relatada nos Evangelhos, mas isso não exclui que ela tenha sido
claramente conhecida pelos cristãos da época. Não havia nenhuma razão para relatá-la
formalmente, pois o fato era sobejamente conhecido, além de não representar, por
si mesmo, nada de miraculoso.
A virgindade depois do
parto pode ser deduzida indiretamente, mas com certeza, a partir dos dados encontrados
no Evangelho. Antes de examiná-los, convém explicar certos termos do Novo Testamento,
os quais parecem não estar em harmonia com a afirmação da virgindade perpétua. Alguns
os interpretam separando-os do contexto, ou então de acordo com nossas línguas atuais
ou clássicas, e não com o significado que tinham no hebraico.
São Lucas narra nestes
termos o nascimento de Jesus: "E Maria deu ao mundo seu Filho primogênito".
A dúvida que se levanta é que, se Jesus foi o primeiro filho, (este é o significado
de primogênito) houve outros filhos depois dele. De nenhum modo isso se pode afirmar,
pois na Sagrada Escritura as palavras filho primogênito aplicam-se apenas a um filho
que nasceu antes de qualquer outro, mas não afirmam que houve outro depois dele.
A expressão consta no texto de Moisés, prescrevendo que todo filho primogênito seja
apresentado ao Senhor quarenta dias após seu nascimento. Acontece que era impossível
saber, quarenta dias depois do nascimento, se nasceria outro filho,portanto a expressão
não envolve nenhuma afirmação sobre outro filho. São Lucas refere-se a filho primogênito
exatamente na perspectiva da apresentação de Jesus no Templo, de acordo com a prescrição
de Moisés. (-- Mesmo atualmente isso ainda é muito difícil, com as técnicas modernas.)
A mesma expressão foi usada
por São Mateus, embora os manuscritos mais seguros não a contenham. Parece que se
trata de acréscimo tomado como empréstimo a São Lucas. Mesmo nos dias atuais, fala-se
correntemente que uma mulher deu à luz seu primeiro filho. E também se costuma dizer
que uma mulher morreu ao dar à luz seu primeiro filho. (que obviamente foi o único)
De acordo com São Mateus,
Maria engravidou antes de Ela e José habitarem juntos. Seria possível concluir daí
que ambos conviveram depois que Jesus nasceu? Mais adiante ele observa que José
não conheceu Maria até Ela dar à luz seu Filho. A consequência seria que ele a conheceu
depois do parto? Em ambos os casos, o objetivo do evangelista é relatar o que aconteceu
antes do nascimento de Jesus. Não se ocupa do que aconteceu depois, estando fora
da sua perspectiva fatos posteriores. Muitas outras expressões ou descrições são
feitas com perspectivas semelhantes, não tendo por objetivo relatar o que veio ou
não depois: Desde a conceição até sua morte, Maria jamais cometeu a menor imperfeição;
o corpo de Maria foi reunido à sua alma antes
que a corrupção do túmulo a tocasse.
No primeiro caso, não se
pretende insinuar que Ela cometeu imperfeições após sua morte; nem no outro, que a corrupção atingiu seu corpo
depois que este se reuniu à sua alma. (Provavelmente a expressão habitar juntos
designa apenas a circunstância de morarem na mesma casa, o que representava o sinal
próprio do casamento.)
Outra expressão que à primeira
vista pode parecer mais desconcertante é irmãos e irmãs do Senhor, que encontramos
várias vezes no Novo Testamento. Tanto quanto as anteriores, essa expressão não
pode servir de argumento sério contra a virgindade perpétua de Maria, pois as palavras
irmão e irmã são usadas livremente no hebraico para designar filhos do mesmo pai
e da mesma mãe, como também todo tipo de parentesco: sobrinhos, sobrinhas, tios,
tias, cunhados, cunhadas, primos, primas, etc. O hebraico dessa época não possuía
palavras adequadas para designar esses diversos graus de parentesco. Os irmãos do
Senhor poderiam ser quaisquer parentes de Jesus, e veremos adiante que se tratava
de seus primos. O Novo Testamento foi escrito em grego, língua que possui palavras
especiais para delimitar os diversos graus de parentesco. Porém, sendo irmãos do
Senhor uma expressão consagrada do hebraico, os judeus convertidos a usavam e os
evangelistas a traduziram literalmente.
Essas diversas expressões
são destituídas de valor contra a afirmação da virgindade depois do parto. Por outro
lado, outros textos permitem estabelecer com segurança tal convicção.
O Novo Testamento apresenta
frequentemente Jesus como Filho de Maria, ou em termos equivalentes. Esta expressão
só é aplicada a Ele, nunca aos outros irmãos. São Marcos relata que os de Nazaré
perguntam: "Não é este o filho de Maria?". Se faltasse o artigo masculino,
poder-se-ia pensar em algum outro, porém eles sabiam que Jesus era o único filho
dela. O texto é tanto mais significativo quando se considera que em grego o uso
do artigo antes de um substantivo qualificativo tem caráter excludente.
São Mateus e São Marcos
nos informam os nomes dos irmãos do Senhor, ao mencionarem o espanto dos habitantes
de Nazaré quando Jesus pregava no meio deles: São Mateus: Não é este o filho do
carpinteiro? Sua mãe não se chama Maria, e seus irmãos Tiago, José, Simão e Judas?
E suas irmãs não se acham todas entre nós? São Marcos: Não é este o carpinteiro,
o filho de Maria, irmão de Tiago, José, Judas, Simão? E suas irmãs não se acham
aqui entre nós?
Outras passagens dos Evangelhos
referentes à crucifixão e à ressurreição de Jesus nos permitem identificar a mãe
de pelo menos dois desses irmãos: São Mateus: Havia lá muitas mulheres que observavam
de longe. Entre elas se encontravam Maria Madalena, Maria mãe de Tiago e de José,
e a mãe dos filhos de Zebedeu. São Marcos: Havia também mulheres que observavam
de longe, entre elas Maria Madalena, Maria mãe de Tiago o menor e de José,e Salomé.
São Lucas: Todos os amigos se mantinham à distância, e as mulheres que o haviam
seguido a partir da Galiléia. São João: Perto da cruz de Jesus estavam sua mãe,
a irmã de sua mãe, Maria de Cléofas, e Maria Madalena. (São Marcos usa a forma abreviada
José nas duas vezes que cita a dupla Tiago e José, e somente nesses casos. Em outros,
fala de José de Arimatéia.)
São Mateus: Depois do sabbat,
desde o raiar do primeiro dia da semana, Maria Madalena e a outra Maria foram visitar
o sepulcro. São Marcos: Depois que passou o sabbat, Maria [mãe] de Tiago e Salomé
compraram aromas. São Lucas: Voltando do túmulo, elas anunciaram tudo isso aos onze
e a todos os outros. Eram Maria Madalena, Joana e Maria mãe de Tiago.
Note-se inicialmente que
São Mateus e São Marcos mencionam como presente no Calvário uma certa Maria -- mãe
de Tiago e José, segundo Mateus; de Tiago
e José, segundo Marcos -- isto é, dois homens portadores dos mesmos nomes que os
dois primeiros dentre os irmãos do Senhor, que os evangelistas mencionam mais acima.
Essa Maria evidentemente não é a Santíssima Virgem, pois se fosse, os evangelistas
a teriam designado como a mãe de Jesus. São Lucas menciona essa mulher simplesmente
como mãe de Tiago e Marcos faz o mesmo na narração da ressurreição. Tiago e José,
sobretudo Tiago, deviam ser dois personagens bem conhecidos dos primeiros cristãos,
para que o seu simples nome fosse suficiente para distinguir sua mãe.
Conhecemos dois Tiagos
célebres: Tiago filho de Zebedeu e irmão de João; Tiago irmão do Senhor, o primeiro bispo de Jerusalém,
que representou papel tão importante na Igreja primitiva, ao lado de São Pedro e
São Paulo.
A mulher em questão não
era a mãe do primeiro Tiago, pois esta se chamava Salomé e é mencionada como presente
no Calvário ao lado da mãe de Tiago. A alternativa que resta é identificá-la como
a mãe do segundo Tiago, irmão do Senhor. Portanto, Tiago e José, os dois primeiros
dentre os que são identificados como irmãos do Senhor, não eram filhos da Santa
Virgem. Os dois últimos também não o eram, pois se o fossem, seriam mencionados
antes dos dois outros. O segundo dentre eles, Judas, se apresenta no início de sua
epístola católica como irmão de Tiago e servo de Jesus Cristo.
Entre as mulheres que permaneciam
ao pé da cruz, São João assinala a irmã da Mãe de Jesus, Maria de Cléofas, mas não
menciona a mãe de Tiago. Não seria essa Maria de Cléofas aquela que os outros evangelistas
chamam Maria, mãe de Tiago e José? Sendo irmã -- ou cunhada -- da Virgem, pode-se
compreender por que seus filhos seriam chamados irmãos do Senhor, pois seriam seus
primos. Veremos adiante que o historiador Hegesipo confirma esta hipótese.
Além disso, sabemos por
São João que Maria lhe foi confiada pelo Senhor agonizante, e que daí em diante
ele a levou para sua casa. Essa atitude de Jesus teria sido estranha se sua Mãe
tivesse outros filhos, dos quais Ele a teria separado para confiá-la a um estranho;
só se compreende no caso de, por sua morte,
Ele a ter deixado sozinha.
O próprio testemunho de
Maria nos garante sua perpétua virgindade. Quando o anjo lhe anuncia que será mãe
do Messias, Ela menciona sua resolução de permanecer virgem: "Como se fará
isso, se não conheço varão?". Fica sabendo então que Deus conservará intacta
sua virgindade por meio de um milagre. Tendo decidido permanecer virgem antes mesmo
de tornar-se Mãe de Deus, não seria concebível que violasse sua resolução depois
que Deus, por um milagre tão surpreendente, consagrou sua virgindade e escolheu
sua carne para tornar-se a carne puríssima do Verbo encarnado.
A obra da Tradição no caso
da virgindade perpétua de Maria deve ser encarada sob duplo aspecto: Em primeiro
lugar, quanto à própria afirmação da virgindade perpétua; depois, no que se refere à solução da dificuldade
criada pela referência aos irmãos do Senhor.
No que se refere à virgindade
perpétua, a Tradição foi explícita e unânime na Igreja Católica desde as origens.
Somente foi contrariada por alguns espíritos transviados, que a Igreja devidamente
condenou.
Não houve propriamente
avanços quanto ao objeto dessa afirmação, mas avançou-se muito no que se refere
à sua frequência e veemência. Ante o entusiasmo crescente pela prática da castidade
virginal e pelo culto à Virgem Maria, a perpetuidade da sua virgindade foi mencionada
quase sempre que se mencionava sua própria virgindade, chegando-se mesmo a criar
para isso uma expressão nova -- Sempre Virgem Maria, em vez de simplesmente Virgem
Maria. Além disso, as blasfêmias dos detratores da virgindade de Maria provocaram
as refutações mais indignadas dos Padres da Igreja e da Santa Sé. A virgindade perpétua
de Maria foi incorporada em várias definições dogmáticas e em grande número de símbolos
ou de profissões de fé. (Concílios de Constantinopla, [553] Latrão; [649] profissões de fé de Leão IX, do 4º Concílio
de Latrão, [1215] Concílio de Lyon, [1274] etc.)
A solução da dúvida sobre
os irmãos do Senhor se deu na Tradição após algum tempo de hesitação. Ninguém duvidava
de que os irmãos do Senhor não eram filhos de Maria. Mas quem eram eles?
Entre os cristãos da Palestina
nos primeiros séculos, a dúvida nem se punha, pois entendiam que se tratava de parentes
próximos de Jesus, de acordo com o significado da palavra irmão em aramaico, por
eles bem conhecida. Um deles era Hegesipo, que realizou pesquisas especiais sobre
os parentes de Jesus, e nos informa que Cléofas era irmão de São José. Isso explica
o motivo de Maria, mulher de Cléofas, ser apresentada como irmã (isto é, cunhada)
da Santíssima Virgem, e também o motivo de os filhos dessa Maria serem irmãos do
Senhor. (isto é, seus primos) A propósito de um desses últimos, chamado Simão ou
Simeão, Hegesipo menciona expressamente que ele era primo do Senhor. (Não se compreenderia
que o mesmo nome Maria fosse dado a duas irmãs vivas.)
Para os cristãos de origem
grega, que nessa época já deviam constituir a imensa maioria, o assunto oferecia
alguma hesitação. Na língua grega há uma palavra para designar primos, e a palavra
irmão tem o sentido restrito que lhe dão as línguas modernas. Daí, como explicar
a presença desses irmãos do Senhor? Como não se tratava de filhos de Maria, só uma
explicação era possível: deviam ser filhos de José, nascidos de um primeiro casamento.
O Protoevangelho de Tiago (apócrifo) inventou ou consigna esta interpretação, que
pouco a pouco foi adotada em muitos lugares durante os séculos 3, e 3, e ainda é
admitida na Igreja grega.
No século 4, o monge infiel
Helvidius, muito relaxado para suportar o jugo do celibato, pôs-se a exaltar o casamento
em prejuízo da virgindade. Para apoiar sua tese, divulgou que Maria tinha tido outros
filhos, os irmãos do Senhor, depois do nascimento de Jesus. Deu-se muito mal, pois
São Jerônimo -- entusiasmado panegirista da vida virginal, exegeta sem igual dos
tempos antigos -- tomou da pena e lhe respondeu. Seus argumentos, de força invencível
e eloquência implacável, reduziram a nada as argúcias e a reputação do monge imprudente.
São Jerônimo deixou vitoriosamente estabelecido que Maria permaneceu sempre virgem,
e que também São José praticou a virgindade, sendo os irmãos do Senhor apenas primos
de Jesus. Este ensinamento prevaleceu desde então em toda a Igreja latina. Em resumo,
eis o que a Igreja ensina:
1º. No Novo Testamento,
só Jesus é Filho de Maria.
2º. A expressão irmãos
do Senhor pode aplicar-se a alguns parentes próximos de Jesus.
3º. Os mais ilustres desses
irmãos do Senhor, sobre os quais se conhecem indicações de parentesco, têm outra
mãe que não é a Virgem Maria.
4º. Essa outra mãe parece
ser a irmã ou a cunhada da Virgem, mulher do irmão de São José. Os irmãos do Senhor
seriam então primos de Jesus.
5º. A tradição católica
foi hesitante durante algum tempo sobre a identidade dos irmãos do Senhor, mas não
vacilou na afirmação da virgindade perpétua de Maria.
Harmonias
da virgindade depois do parto
A virgindade depois do
parto completa a virgindade antes do parto e a virgindade durante o parto. Da mesma
forma que elas, a dignidade e pureza de Jesus e Maria a exigem.
O respeito pela pessoa
de Jesus exige que um cálice sagrado que conteve o corpo ou o sangue de Cristo não
seja usado para nenhuma finalidade profana. Seria admissível que servisse para outras
conceições e partos de homens pecadores o seio de Maria, vaso incomparavelmente
mais sagrado que qualquer cibório ou cálice de ouro? Esse vaso foi preparado pelo
próprio Espírito Santo, não só para conter o corpo de Cristo, mas também para lhe
fornecer sua carne e seu sangue; é um vaso
tão puro, que o próprio Deus o conservou miraculosamente intacto na sua conceição
e no seu nascimento.
Na antiguidade, o Papa
Siricius disse sobre Bonosius, detrator da virgindade perpétua: "A consciência
cristã recua com horror ante o pensamento de que outros filhos tenham saído do mesmo
seio virginal do qual nasceu Cristo segundo a carne".
Se alguns cristãos chegaram
ao ponto de levantar uma hipótese como essa, o motivo sempre foi a antipatia contra
a doutrina de Jesus sobre a superioridade da virgindade sobre o casamento. Helvidius
e Bonosius, na antiguidade, são nisso predecessores dos protestantes modernos. Todos
eles sentem muito bem que na Mãe de Cristo a virgindade perpétua não representa
apenas um fato único. Muito mais do que isso, tem o valor de uma doutrina, e o que
eles não querem aceitar é exatamente essa doutrina. Todo esse esforço deles para
enfraquecer os argumentos em favor da virgindade perpétua de Maria tem como objetivo
conseguir a qualquer preço negar a virgindade.
Há ainda outro conceito
que eles conhecem muito bem: Se Maria sacrificou voluntariamente sua virgindade
depois do nascimento de Jesus, não passa de uma mulher vulgar, e toda a devoção
dos católicos a Ela desmorona pela base. Para alguns protestantes, é indispensável
que Maria tenha sido não mais que uma mulher comum, por isso se aferram a toda palavra
ou hipótese suscetível de interpretação em sentido desfavorável à virgindade perpétua.
É curioso constatar como alguns deles, depois de terem defendido o artigo do Símbolo
dos Apóstolos natus ex Maria virgine, contra seus correligionários racionalistas,
o que fizeram com bastante zelo e ciência, tenham se esforçado para provar que a
Mãe de Jesus perdeu sua virgindade depois do parto do Filho único de Deus,como se
quisessem desculpar-se por essa ortodoxia marial.
Estranha atitude! Será
que alguém já indagou deles o motivo de se empenharem tanto contra a reputação de
Maria? Se é certo que cada um de nós se empenharia, caso isso fosse possível, em
conseguir que nossa mãe fosse dotada de toda dignidade, por que se empenham tanto
em afirmar que o próprio Filho de Deus teve por sua Mãe menos piedade filial do
que nós?
A atitude dos católicos
é completamente outra, e sustentam com todas as forças de sua alma esse privilégio
da Mãe de Deus. Grande parte deles não consegue compreender que é melhor não se
casar. Muitos nem mesmo entendem na prática que só podem ser verdadeiros discípulos
de Cristo se observarem a castidade no seu estado. Mas todos compreendem que Maria
permaneceu virgem até o fim de sua vida. Todos, mesmo os menos fervorosos, se revoltam
ante o simples pensamento de que se ponha em dúvida essa prerrogativa da Mãe de
Deus.
O
triunfo da virgindade
À medida que a doutrina
marial progrediu, os fieis puderam admirar outras prerrogativas da Mãe de Deus.
Mas a sua virgindade manteve-se para eles como um dos seus grandes privilégios.
A Virgem, a Santa Virgem, ou a Santíssima Virgem, é sempre assim que gostam de chamá-la.
Em uma das mais populares orações a Maria, a Ladainha Lauretana, mais de um quarto
das invocações lembra sua pureza virginal, também celebrada nos cânticos mais variados,
que a louvam incansavelmente -- Inviolata, integra et casta es, Maria.
Maria não é apenas virgem,
é a Virgem das virgens. Antes da conceição de Jesus, sua virgindade já era incomparavelmente
superior a toda outra virgindade. A partir da Encarnação, tornou-se uma virgindade
absolutamente única, miraculosa, fecunda -- e fecunda de um Deus.
Por amor à sua pureza virginal,
Maria renunciara às alegrias da maternidade. Por causa dessa mesma virgindade, conheceu
as alegrias de uma maternidade que devia elevar-se infinitamente acima de toda outra
maternidade. Sendo virgem, tornou-se Mãe de Deus e de uma incontável multidão de
filhos de Deus.
Capítulo,
8º. A SANTIDADE DE MARIA
No homem, a santidade exige
vários elementos. Inicialmente um trabalho negativo, que é a purificação do pecado;
em seguida um trabalho positivo para se aproximar
constantemente do ideal de toda santidade, que é Deus tornado visível em Cristo,
e por isso mais fácil de ser imitado. Esse trabalho se faz de dois modos: a parte
do homem, que é o esforço de vontade para se desvencilhar do pecado e praticar a
virtude; e a parte de Deus, que por meio
da graça ajuda o homem no seu esforço e lhe permite realizar o que, se o homem estivesse
sozinho, jamais conseguiria completar.
Neste capítulo analisaremos:
1ª. ausência em Maria de
toda mancha de pecado;
2ª. sua plenitude de graça;
3ª. suas virtudes;
4ª. sua santidade até o
fim da vida.
1º.
-- Significado da isenção de todo pecado
A convicção universal da
Igreja Católica é que Maria jamais cometeu pecado, seja mortal ou venial, nem imperfeição
voluntária, como seria a resistência a uma inspiração da graça em assunto não obrigatório,
nem mesmo imperfeições involuntárias, tais como atos de irreflexão, primeiros movimentos
de impaciência ou vaidade, que em nós escapam antes até de serem percebidos, e que
imediatamente recusamos.
Essa impecabilidade de
Maria devia-se à conjugação de três fatores, o primeiro dos quais era a ausência
de concupiscência, pois não era assaltada por essas tentações que dão origem à maioria
dos nossos pecados. Esse primeiro fator não bastava, pois os próprios anjos se revoltaram
contra Deus, embora por sua natureza fossem inacessíveis à concupiscência; e nossos primeiros pais desobedeceram a Deus antes
de experimentarem essa lei do pecado sob a qual todos gememos. Para que alguém se
oponha aos preceitos divinos, basta abusar de sua vontade livre, sem orientar-se
pela evidência do bem.
Para permanecer isenta
de todo pecado, Maria precisou de outros recursos, que foram o pensamento constantemente
voltado para Deus, e ainda graças inteiramente especiais. Nós caímos no pecado depois
que perdemos Deus de vista. Os bem-aventurados do céu não podem mais pecar, porque
veem Deus face a face. Maria não contemplava Deus como os bem-aventurados, mas vivia
sempre em presença de Deus. Muitos santos puderam permanecer conscientes da presença
de Deus, quase sem interrupção durante toda sua vida, como se pode ler em sua hagiografia.
Não há dificuldade, portanto, em acreditar que Maria estava sempre com o pensamento
voltado para Deus, o que a impedia de encontrar prazer em qualquer coisa fora dele.
Maria era também acompanhada
constantemente por graças particulares. Deus a cumulou com superabundância de luz
e fortaleza, que a tornavam praticamente incapaz de cometer a menor imperfeição.
Todo pecado é cometido por um erro, que consiste em pensar que o bem ou a felicidade
podem ser encontrados onde não estão, mas as graças especiais faziam Maria ver que
todo verdadeiro bem e toda verdadeira felicidade só podem ser encontrados em Deus.
Como consequência do caráter vacilante da nossa vontade, podemos escolher o erro
apesar de sabermos que se trata de erro. Mas as graças davam à vontade de Maria
retidão absoluta e inabalável.
A graça é evidentemente
o fator mais importante, alçando a pureza da alma de Maria incomparavelmente acima
da que foi dada ao homem em estado de inocência, e também da que tinha o anjo mais
sublime antes de sua admissão à visão beatífica.
Ausência
de todo pecado em Maria, verdade revelada
Os primeiros cristãos,
sem terem a visão dessa total pureza interior de Maria, certamente tinham sobre
Ela essa impressão. Em primeiro lugar, não viam pecado em nenhuma ação dela, ao
passo que foram constatadas fraquezas em todos os que conviveram intimamente com
Jesus, com exceção talvez de São José e São João Batista. Na Mãe de Jesus, nenhuma
imperfeição, mantendo-se inabalavelmente fiel nos momentos em que vacilaram os mais
meritórios dos seus amigos. Zacarias duvidou da palavra do anjo, e por isso foi
punido; Maria acreditou, e sua fé foi recompensada
pelo cumprimento das promessas divinas. Os apóstolos fugiram quando Jesus foi aprisionado,
e até o chefe deles renegou o Mestre; Maria
se manteve de pé junto à cruz; São João Evangelista
também estava junto à cruz, mas havia fugido por um instante, e Jesus o havia mesmo
advertido: "Não sabeis de que espírito sois feitos".
Além disso, os primeiros
fieis sabiam que a pureza do corpo de Maria, em razão de seu Filho, havia sido consagrada
por um milagre absolutamente único. Como vimos acima, a pureza miraculosa de seu
corpo constituía aos olhos deles um meio e um sinal da pureza maior e ainda mais
miraculosa de sua alma. Por outro lado, sentiam que a intimidade com o Filho de
Deus, santidade infinita, exigia um certo patamar de igualdade. Deveria ser uma
pureza maior que a humana, cujo limite corresponde à de um pecador ou infeliz pedindo
perdão ou cura. Sabiam que Jesus quis receber de Maria sua humanidade inteira, com
todos os cuidados que sua condição de Filho exigia; quis amá-la como mãe; quis ser submisso a Ela; quis passar ao seu lado trinta anos de sua vida.
Para ser digna de tal intimidade com o Deus de toda pureza, era necessário a Virgem
ser sempre isenta da mínima mancha de pecado e até de imperfeição.
As experiências pessoais
dos primeiros cristãos lhes mostravam que uma pureza como essa não estava ao alcance
das forças humanas, e que para atingi-la eram necessárias graças especiais, o que
os levava a ver em Maria uma criatura inteiramente excepcional e cheia de graça.
Sem dúvida não avaliavam deste modo as diversas indicações da pureza de Maria, mas
pelo menos era esse o seu sentimento em relação a Ela, daí a convicção de que para
Maria não se punha a possibilidade de pecado.
Esta impressão foi também
a das gerações seguintes, e até se intensificou à medida que a virgindade de Maria
foi cada vez mais contemplada e admirada, associando-se ao nome da Virgem os qualificativos
de pura, santa, imaculada.
Entretanto, um ou outro
escritor eclesiástico entendeu descobrir alguma fraqueza na vida de Maria: certo
movimento de vaidade em Caná, alguma falta de fé no Calvário. Mas não falavam em
nome da Tradição, apenas recorriam a argumentos de sua própria invenção, elucubrados
a partir de textos da Escritura que não haviam compreendido. Não passavam de opiniões
isoladas e dispersas ante o imenso exército de Padres da Igreja e fieis, que professavam
a total ausência de pecado em Maria devido às suas singulares relações com Jesus.
No século 4, Santo Efrém
a enaltecia no Oriente: "Em verdade, Senhor, vós e vossa Mãe sois os únicos
inteiramente belos, pois em vós e em vossa Mãe não se encontra nenhuma mancha, nenhum
pecado". No Ocidente, Santo Agostinho lhe fazia eco por meio de uma formulação
teológica: "Para honra do Senhor, não quero que de nenhum modo se fale de pecado
em Maria, pois sabemos que lhe foi conferida uma graça excepcional para vencer o
pecado em qualquer lugar, merecendo conceber e dar à luz aquele que evidentemente
era sem pecado". (Santo Agostinho, De natura et gratia, capítulo 36.)
Os séculos seguintes só
fizeram confirmar essa tradição, e o Concílio de Trento, embora sem erigi-la em
dogma formal, reconheceu-a como a expressão da convicção comum, consagrando-a com
esta declaração: "Se alguém disser que o homem, após sua justificação, pode
evitar durante sua vida todo pecado, mesmo venial, sem depender de um privilégio
especial de Deus, como a Igreja acredita no que se refere à Bem-aventurada Virgem,
que seja anátema!".
Mencionamos acima a ausência
em Maria de toda imperfeição voluntária ou mesmo involuntária. Não nos deteremos
mais sobre o assunto, pois a solução se acha implicitamente contida em outras afirmações.
Na prática, as imperfeições voluntárias são frequentemente faltas veniais, e sua
ausência é uma decorrência da ausência de todo pecado. A ausência de imperfeições
involuntárias é uma consequência natural da ausência da concupiscência, além do
socorro de graças superabundantes. Se em Maria nunca houve concupiscência, se tudo
era ordem e harmonia nas suas potências inferiores, na sua inteligência, vontade
e sensibilidade, e se a todo momento uma graça maravilhosa a sustentava, como poderia
haver nela condições para imperfeições desse gênero?
Voluntárias ou involuntárias,
essas hipotéticas imperfeições são contrárias à ideia que os fieis têm da santidade
de Maria, convictos de que Deus a fez tão perfeita quanto lhe era possível. É sob
este aspecto positivo que a piedade dos fieis gosta de contemplar a Virgem. Menos
preocupados com silogismos sobre o que pode não ter havido nela, preferem admirar
o dom que o Espírito Santo de fato lhe deu, conforme Ele mesmo profetizou: "Sois
toda bela, minha amada, sois toda bela".
2º.
-- Significado da plenitude de graça
Sobre a plenitude de graças,
devemos dizer que Maria possuía todas as que lhe era possível possuir. Não eram
as mesmas que as de Jesus, fonte primeira de todas as graças. Tanto Maria como nós
recebemos as graças dessa plenitude que é de Jesus.
Como consequência da união
hipostática, em Jesus a plenitude era completa desde o primeiro momento, portanto
sem possibilidade de acréscimo. Em Maria ela era limitada, mas suscetível de aumento.
A alma de Maria era como um vaso que se dilatava indefinidamente à medida que ia
sendo enchido. Por ocasião de sua morte, era também plena de graça, mas a capacidade
da sua alma nesse momento era indefinidamente maior que no momento da saudação angélica,
por exemplo. Pode-se aqui fazer uma analogia com os rios, que estão cheios na nascente
e também na foz, mas com volumes muitíssimos diferentes.
Estabelecidas essas distinções,
a plenitude de graça em Maria ultrapassa toda concepção e desafia toda comparação.
Plenitude
de graça em Maria, verdade revelada
A doutrina da plenitude
de graça em Maria não se encontra explícita na Revelação evangélica, que de fato
contém a saudação do anjo Ave, gratia plena, mas esta expressão latina significa
mais um comentário do que uma tradução literal do texto grego de São Lucas, sendo
que os primeiros fieis só conheciam a saudação de Gabriel sob sua forma grega ou
aramaica. Entretanto, o particípio perfeito usado pelo evangelista, significando
fundada ou estabelecida na graça, indicava para eles ao menos uma superabundância
de graças que lhe preenchiam a alma.
Outras indicações se somam
a esta, reforçando a impressão que ela produzia no espírito dos fieis. Na mesma
entrevista com a Virgem, o anjo repetiu: "Encontrastes graça diante de Deus".
A insistência não deixava de ser significativa, pois o anjo anunciava uma manifestação
particular dessa graça que era um prodígio inaudito -- uma maternidade virginal
-- fazendo supor que a graça concedida por Deus revestia-se de características absolutamente
únicas.
Porém, o que sem dúvida
dava aos discípulos da primeira geração o sentimento mais vivo da plenitude de graça
na alma de Maria era a vocação para a maternidade divina. De acordo com a observação
muitas vezes repetida, a ideia que tinham sobre o procedimento de Deus com relação
aos seus instrumentos de amor, e de Maria em particular, os predispunha naturalmente
a concluir que, chamando a Virgem para tal função, Deus deve tê-la preparado dignamente,
isto é, por meio de uma superabundância excepcional da graça.
Na Igreja latina, a convicção
da plenitude de graça em Maria encontrou desde logo sua formulação na tradução das
palavras do anjo, Ave, gratia plena. Certamente ela não criava tal convicção, pois
se o fizesse, estaria também atribuindo igual plenitude de graça ao diácono Santo
Estêvão, de quem a Escritura diz expressamente, inclusive no texto grego, que era
cheio de graça. A expressão foi adotada por exprimir adequadamente a ideia que a
primeira geração tinha legado às subsequentes. Como a Igreja grega não dispunha
de tal formulação, importou-a da Igreja latina nos primeiros séculos, movida por
seu zelo e entusiasmo em celebrar a riqueza sobrenatural da Teotocos.
Cada nova geração se sentia
mais atraída a contemplar a doce figura de Maria; seus privilégios se manifestaram aos olhos dos
fieis com uma luz sempre mais clara; seu
papel na obra de nossa Redenção tornou-se cada vez mais evidente; o amor do Filho de Deus por sua Mãe foi sentido
e compartilhado com perfeição crescente; compreendeu-se cada vez melhor que Deus tinha dado
a sua Mãe todos os dons que seu poder e sua sabedoria podiam conceder.
A convicção da plenitude
de graça em Maria, sem estar ainda formalmente definida, foi mesmo expressamente
ensinada pela Igreja em um documento da mais alta autoridade, a bula Ineffabilis,
que proclamou o dogma da Imaculada Conceição. Transcrevemos acima parte desse texto,
que aqui incluímos na sua íntegra:
"O Deus inefável,
desde o início e antes de todos os séculos, escolheu e deu a seu Filho uma Mãe da
qual, fazendo-se homem, nasceria na feliz plenitude dos tempos. Dentre todas as
criaturas, Ele a amava com amor singular, e nela se alegrou com toda a complacência
de sua vontade. Cumulou-a da abundância de todos os favores celestes tirados do
tesouro da divindade, bem mais ainda do que todos os espíritos angélicos e o conjunto
dos santos, e de maneira tão maravilhosa que, sempre preservada absolutamente de
toda mancha do pecado, toda bela e toda perfeita, teve em si plenitude tal de inocência
e santidade, que não se concebe de nenhum modo maiores abaixo de Deus, nem pode
concebê-la nenhum pensamento, exceto o de Deus. Era inteiramente conveniente que
uma Mãe tão augusta brilhasse sempre com os esplendores da santidade mais perfeita,
e que, isenta também do pecado original, obtivesse triunfo completo sobre a antiga
serpente".
Portanto o Papa reconhece:
1ª. Em Maria houve uma
plenitude de santidade que não pode ser concebida maior abaixo de Deus;
2ª. Essa santidade lhe
foi concedida por ter sido escolhida para ser Mãe de Deus.
Alguns
aspectos especiais dessa plenitude
Não podemos, nesta terra,
contemplar todas as incomensuráveis riquezas dessa plenitude. Entretanto não nos
é proibido considerar à distância um ou outro aspecto particular dela.
A graça, como se sabe,
distingue-se em habitual e atual. A graça atual é um socorro transitório concedido
por Deus em vista de um ato especial a praticar, destinada a esclarecer a inteligência,
animar o coração ou excitar e fortificar a vontade a fim de tornar sua realização
possível ou pelo menos mais fácil. É evidente que Maria possuía em cada momento
todas as graças de luz, fortaleza e amor necessárias para praticar a ação do momento
com a maior perfeição concebível. Sem isso teria faltado algo à sua plenitude, e
Ela não teria atingido "plenitude tal de inocência e santidade, que não se
concebe de nenhum modo maiores abaixo de Deus".
A graça habitual é uma
maneira de ser permanente, divina, que nos torna participantes da própria natureza
de Deus, um poder de vida que nos faz viver da vida divina. O poder de vida pode
ser maior ou menor, e a participação em qualquer coisa pode ser mais completa ou
menos. O poder de vida de um tuberculoso não é o mesmo de um homem robusto, e um
raio de sol não tem o mesmo brilho quando visto através de um vidro sujo ou de um
diamante límpido. Qual era, em Maria, esse poder de vida divina, essa participação
na natureza de Deus? Examinaremos o assunto a propósito sobretudo de dois momentos
da sua existência terrena: a Imaculada Conceição e a elevação à maternidade divina.
Como poderia ter sido a
graça inicial da Imaculada? Quanto mais pudermos compreender esse privilégio, melhor
poderemos admirá-la e amá-la. No entanto, qual criatura seria suficientemente poderosa
para avaliar sua imensidade? Sem a possibilidade de compreendê-la por um exame direto,
tentou-se recorrer a comparações. Afirmou-se que a graça inicial de Maria foi superior
à graça perfeita de qualquer santo ou anjo. Isto se compreende, pois desde a Imaculada
Conceição Maria foi preparada por Deus para sua futura dignidade de Mãe de Deus,
a qual ainda na sua preparação já a elevava acima da dignidade final de qualquer
servo de Deus, por mais elevado que seja seu grau, pois nas obras de Deus a qualidade
da graça corresponde à da vocação.
Por outro lado, Deus amou
desde então sua futura Mãe mais do a qualquer servo, e as graças que concede são
de acordo com a proporção de seu amor. É bem assim que o entende o sentimento cristão,
pois não conseguiria suportar a ideia de que em algum momento um dos servos fosse
mais caro a Deus do que sua Mãe.
Esta opinião é muito generalizadamente
aceita pelos teólogos. Alguns deles pensam mesmo que a graça inicial de Maria a
elevava acima da graça final de todos os anjos e santos reunidos. Esta última opinião
encontra menos receptividade em outros mestres da ciência sagrada, mas parece poder-se
sustentá-la com argumentos sólidos. Inicialmente, porque os dois argumentos invocados
em favor da primeira opinião valem também para a segunda:
1º. A graça corresponde
à vocação. Desde sua Imaculada Conceição, Maria era chamada à maternidade divina,
a qual é uma dignidade que, mesmo na sua preparação, a elevava acima da dignidade
final de qualquer servo. Por que não a elevaria acima da dignidade de todos os servos?
2º. Deus dá sua graça de
acordo com a proporção de seu amor. Ora, desde a Imaculada Conceição, amava sua
futura Mãe mais que a qualquer servo. Por que não a amaria mais do que a todos os
servos reunidos? Se um pai ama seu filho mais do que a qualquer servo, antes mesmo
de ele nascer, e ainda sem saber se esse filho será digno dele, por que não o amaria
acima do conjunto dos servos?
Do ponto de vista lógico,
a segunda opinião parece tão provável quanto a primeira. Acaso existe alguma oposição
entre as duas opiniões? Podem-se comparar as fortunas dos dois homens mais ricos
de uma cidade ou a fortuna do mais rico com a de todos os outros juntos, pois a
fortuna material é composta de objetos que podem ser somados e subtraídos. Mas será
que ocorre o mesmo quando se passa da ordem da quantidade para a da qualidade? É
certo que não se podem adicionar duas qualidades para obter uma qualidade superior.
Os números conferem precisão na apreciação da quantidade, mas são desprovidos de
sentido quando se trata de qualidade. Por exem-plo, não se podem somar duas cores
vermelhas para obter uma cor vermelha duas vezes melhor. O que posso fazer é a comparação
da cor vermelha de duas rosas, e concluir que uma é mais vermelha do que a outra.
Posso afirmar também que
aquela mesma rosa mais vermelha é mais vermelha do que todas as outras rosas, tanto
consideradas isoladamente quanto em conjunto.
Outra comparação pode ser
feita no caso da inteligência humana, pois não tem sentido dizer que um homem é
duas ou dez vezes mais inteligente que outro.
Pergunta-se então: a graça
é uma qualidade ou uma quantidade? Todos afirmam que é uma qualidade, pois trata-se
de uma maneira de ser, uma potência de vida sobrenatural, uma participação na natureza
de Deus. Dizer, portanto, que a graça inicial de Maria era superior à graça final
de qualquer santo ou anjo, corresponde a dizer que era também superior à graça final
de todos os santos e anjos reunidos. Não somente de todos os santos e anjos existentes,
mas também de todos os santos e anjos possíveis. Nesta mesma doutrina baseia-se
o texto da bula Ineffabilis, acima citado, que menciona uma plenitude de inocência
e santidade tais, que não se podem conceber outras maiores.
A comparação da santidade
inicial de Maria com a graça consumada de tal santo ou anjo, ou de todos os santos
e anjos reunidos, pode impressionar a imaginação humana e causar espanto ante a
imensidade que essa comparação deixa entrever. É útil fazê-la, mas trata-se de termos
de comparação muito imperfeitos. Para se avaliar a imensidade da graça concedida
a Maria, é preciso considerar não a grandeza das outras criaturas, mas a grandeza
da sua dignidade própria, que "toca nas fronteiras do infinito".
Por mais sublime que tenha
sido a graça de Maria na sua Imaculada Conceição, a luz dessa graça não passava
do clarão do alvorecer, comparado ao esplendor do sol do meio-dia que existiu no
momento da Encarnação do Verbo. Desde o distante chamado para essa dignidade única,
Deus lhe fizera o dom de uma graça da qual não nos podem sequer dar uma ideia as
graças do conjunto das outras criaturas, mesmo as que atingiram seu auge.
Também sobre este ponto,
procurou-se recorrer a comparações que permitam entrever a excelência dessa graça:
São João Batista, ainda no seio de Santa Izabel, sentiu a presença de Jesus no seio
de Maria, e apesar da distância, em apenas um instante essa presença o purificou
do pecado e o preparou para sua missão futura; o Evangelho narra o caso da mulher que sofria de
uma hemorragia, e em um instante foi curada simplesmente por tocar na túnica de
Jesus; o corpo eucarístico do Salvador produz
maravilhas de santificação nos fieis bem preparados. Que dizer então das maravilhas
que Jesus terá operado naquela que se achava em contato físico com sua humanidade,
não através de intermediários, mas diretamente, imediatamente, por uma união tal
que fazia dos seus corpos apenas um, e não apenas por um instante, mas durante nove
meses?
Todas essas comparações
mostram apenas uma diferença de graus, sem dúvida prodigiosa, porém limitada a graus.
Mas a união entre Jesus e Maria na Encarnação era não só mais íntima e mais durável
que as uniões que acabamos de mencionar, eram ainda de natureza diferente. Por sua
cooperação na Encarnação, Maria tocava na união hipostática, pois trazia em si o
próprio autor da graça, formava-o, dava-lhe um corpo. Cristo recebeu inteiramente
de Maria sua humanidade, que trouxe para nós a graça. É claro, portanto, que a comparação
entre a Encarnação do Verbo e a recepção do corpo de Cristo na comunhão exprime
apenas um aspecto secundário da plenitude de graça da Virgem na Encarnação. Pela
comunhão, recebemos em nós a fonte de toda graça, mas Maria forneceu o terreno em
que a graça germinaria. Não era apenas beneficiária da graça, tornou-se Mãe da divina
graça.
Desde então se estabeleceu
entre Jesus e Maria uma comunicação inefável: Maria dava a Jesus sua humanidade,
Jesus dava a Maria uma participação sempre crescente na sua divindade; a substância de Maria modelava e nutria a substância
de Jesus, Jesus formava e elevava na semelhança com seu amor o amor de Maria; o sangue de Maria circulava no corpo de Jesus,
a graça de Jesus circulava na alma de Maria; a Mãe fazia viver em si o Filho de sua vida, o
Filho fazia viver em si a Mãe de sua vida.
Tanto quanto o Verbo feito
homem, o Pai enriquecia sem medida a alma daquela que, nesse momento, compartilhava
consigo a honra de gerar um Filho comum. Com esse Filho, em quem punha toda a sua
complacência, Ele devia compartilhar também seu amor. E para que também Ela pudesse
compartilhar tal amor, dava-lhe uma graça proporcionada, isto é, sem limites, tal
como esse amor. Da mesma forma o Espírito Santo, ao concluir em Maria e por Maria
a obra-prima de sua caridade, concedia à sua Esposa um dote digno de si mesmo e
digno daquele de quem Ela se tornava Mãe. Desse modo a Santíssima Trindade se ocupava
em ultrapassar sua própria munificência por meio dos mistérios de graça e amor que
realizava nessa hora divina.
3º.
-- As virtudes de Maria
A cooperação da vontade
humana com a graça divina resulta na prática das virtudes. Se estas forem levadas
suficientemente longe, constituem a perfeição ou santidade. Antes de examinarmos
as principais virtudes de Maria, convém lembrar que a virtude não consiste numa
série de atos exteriores, e sim numa disposição interior, numa fortaleza e prontidão
da alma para praticar o bem. Os atos podem manifestar essa disposição, mas não são
eles que constituem a virtude. O gesto exterior poderá ser o mesmo em um homem imperfeito
e num santo consumado, mas a disposição interior será completamente diferente.
Qual era a disposição interior
de Maria em relação ao bem? Desde o primeiro momento de sua existência, a força
da sua vida sobrenatural ultrapassava a de todos os santos no fim de suas vidas.
Da mesma forma que neles, e imensamente melhor que neles, essa força era dotada
de aptidões especiais, que os teólogos denominam virtudes infusas e dons. Desde
então, o mínimo movimento interior, o menor passo, a ação aparentemente mais insignificante
eram em Maria animados por tal disposição de amor e realizados com tal perfeição,
que jamais foram constatadas nos atos mais heroicos dos maiores santos. É importante
ter sempre em vista esta observação ao examinar qualquer virtude de Maria e a sua
vida.
Dispomos de um recurso
para determinar qual deve ter sido a atitude particular de Maria a propósito de
cada virtude. Não nos referimos às passagens em que o Evangelho nos fala dela, embora
sejam mais ricas em ensinamentos do que parecem à primeira vista. Trata-se do estudo
das virtudes do próprio Nosso Senhor Jesus Cristo, pois Deus fez Maria tão semelhante
à humanidade de seu Filho, e de tal forma Maria meditou em seu coração tudo o que
via em seu Filho, que todas as disposições da alma de Jesus encontravam-se reproduzidas
na alma de Maria, tão exatamente quanto podiam reproduzir-se numa simples criatura.
Sobre o interior de Jesus,
o Evangelho nos fornece bem mais indicações do que sobre o de Maria. Para fazermos
uma ideia de quais eram os pensamentos, sentimentos e ações da Mãe, basta-nos portanto
estudar as virtudes do Filho. Este método nos abre horizontes imensos para as virtudes
de Maria, e permite que nos enlevemos com as maravilhas praticadas. Porém devemos
estabelecer um limite, e nos restringiremos principalmente às indicações diretas
do Evangelho, examinando-as à luz do princípio que acabamos de expor.
Os teólogos dividem as
virtudes em teologais (fé, esperança e caridade) e cardiais, (prudência, justiça,
fortaleza e temperança) e todas as outras se prendem a estas. Seguiremos esta divisão,
no entanto sem a preocupação de analisar todo o catálogo das virtudes morais. Nossa
análise se restringe às principais, em particular àquelas das quais o Evangelho
nos permite observar algumas manifestações na Mãe de Jesus, e ainda assim nos limitaremos
aos aspectos mais importantes. O estudo das virtudes de Maria cabe melhor na meditação.
Em lugar de definir, dissecar e catalogar, a meditação permite à alma contemplar,
admirar, amar e esforçar-se para imitar.
1ª.
-- Virtudes teologais
A
virtude da fé em Maria
"Bem-aventurada és
tu, que acreditaste" -- disse Izabel à sua visitante. Pode parecer-nos natural
que Maria tenha acreditado na palavra de Deus, mas um exame mais detido nos permite
entrever a que ponto sua fé foi heroica. A fé é feita de luzes e obscuridade --
luzes suficientes para que a inteligência possa aderir à palavra divina; e obscuridade suficiente para que a sua adesão
seja meritória. Em Maria, luzes e obscuridade foram únicas. Graças escolhidas iluminavam
seu espírito; sua inteligência excepcionalmente
penetrante, jamais perturbada por qualquer paixão, apreendia o sentido profundo
das Sagradas Escrituras. Mas essas graças escolhidas não eliminavam todas as obscuridades,
não eram graças de visão; apesar da acuidade
excepcional de sua inteligência, mesmo para Ela as profecias permaneciam obscuras
por diversos lados, e os mistérios continuavam sendo mistérios.
Além disso, na sinagoga
aqueles que deviam guiar o povo davam sobre as profecias interpretações destinadas
a falsear-lhes o sentido.
O anjo anunciou a Maria
mistérios novos, de tal monta que ultrapassavam tudo o que as mais amplas esperanças
dos judeus ousavam aguardar. O próprio Deus se faria homem, não apenas a fim de
libertar um pequeno povo do jugo estrangeiro, mas libertar o universo inteiro da
condenação eterna. E havia ainda algo mais difícil de acreditar, pois Ela mesma
deveria ser a mãe desse Deus encarnado. Por um milagre sem precedente, seria mãe
permanecendo virgem. Quando uma felicidade ou honra inesperadas nos são anunciadas,
quanto esforço e quanto tempo precisamos para acreditar! Ante o anúncio dessa felicidade
e dessa honra infinitas, Maria permaneceu calma, como se lhe parecesse coisa natural.
A dúvida que Ela apresenta
-- como se fará isso, se não conheço varão? -- não é a de quem duvida ou hesita,
mas de uma alma que indaga como poderá cooperar com os desígnios de Deus. Logo que
recebeu a explicação solicitada, manifestou seu consentimento com a vontade divina.
Os Padres da Igreja gostam
de ressaltar a oposição entre a fé da nova Eva, que nos salvou, com a incredulidade
da primeira Eva, que nos levou à condena-ção.
A partir de então, Maria
possui em si mesma aquele que é todo verdade e luz. Sua fé se transformou então
em visão? Não. Perdeu algo de sua obscuridade? Sob certo ponto de vista, sim, porém
novas obscuridades se formam em torno dela, que se espanta com as palavras de Simeão
e ignora o sentido da resposta de Jesus no Templo: "Por que me procuráveis?
Não sabeis que devo cuidar das coisas de meu Pai?" dições. Como conciliar a vida de seu Filho com
as promessas divinas? O anjo lhe informara que Jesus se sentaria no trono de David.
Porém, quando Ele vai à cidade de David, não só não é rece-bido pelos seus, mas
deve fugir precipitadamente ante o usurpador do trono de seu antepassado. Seguem-se
trinta anos de tranquilidade, mas essa mesma tranquilidade é de molde a abalar uma
fé mais robusta que a dela.
Logo depois do nascimento,
seu Filho suscitara os ciúmes de Herodes, o que tornava mais fácil reconhecer Deus
nesse Filho recém-nascido do que na criança ou no adolescente que crescia e se desenvolvia,
brincava ou trabalhava como qualquer outra criança ou adolescente.
A vida pública de Jesus
começou por um milagre realizado a pedido da Virgem, em favor dos esposos de Caná.
Deve-se ressaltar o caráter particular da fé que demonstrou nessa ocasião. O pedido
dela não foi como o do pai -- Se podeis fazer algo, tende compaixão deles. Não foi
também como o do centurião, cuja fé Jesus louvou -- Dizei uma só palavra, e os odres
deles se encherão de vinho. Contentou-se em mencionar a situação de necessidade
em que se encontravam os anfitriões: "Eles não têm vinho". Confiou em
que não precisaria insistir, embora não o tivesse visto ainda fazer milagres.
Jesus começa a pregar,
a curar os doentes, a ressuscitar os mortos, e as multidões o seguem com entusiasmo.
É certo que houve oposições da parte dos sacerdotes e fariseus, mas apesar deles
houve sua entrada triunfal em Jesusalém, enquanto a multidão exclamava: "Hosana
ao Filho de David!". Parecia que a profecia de Gabriel estava para se cumprir,
porém uma semana depois era aprisionado, condenado à morte e cravado numa cruz.
O que era feito da missão de seu Filho? Um fracasso proclamado ante o mundo inteiro,
nessa festa de Páscoa. Seus inimigos triunfam, seus amigos se escondem. O próprio
Deus Pai parece desaprovar aquele que se declarara seu Filho: "Meu Deus, meu
Deus, por que me abandonastes?".
Onde estava o cumprimento
da promessa do anjo, de que o filho dela se sentaria no trono de David, reinaria
para sempre na casa de Jacob, e seu reino não teria fim? O trono de David era um
patíbulo? Reinar sobre um povo cujos líderes o renegaram? Onde estava, naquele momento,
a fé dos apóstolos, que Jesus queria tomar como colunas da sua Igreja?
Apesar de tudo isso, a
fé da Virgem permanecia inabalável. Bem-aventurada aquela que acreditava, pois em
menos de três dias veria o cumprimento das coisas que lhe haviam sido ditas pelo
enviado do Senhor!
A
virtude da esperança em Maria
A fé conduz à esperança.
Quem acredita firmemente nas promessas de Deus infalível, infinitamente bom e poderoso,
aguarda com confiança o objeto de suas promessas. E o objeto delas é o próprio Deus,
com poder para realizá-las eternamente.
Maria tinha motivos poderosos
para esperar a eterna posse de Deus. Ela a possuía desde sua Imaculada Conceição,
e se achava enriquecida com graças maravilhosas. A cada momento, sentia crescer
sua intimidade com Deus e a abundância das suas graças. A partir da Encarnação,
seu título de posse era único, pois seria sua Mãe por toda a eternidade. Como poderia
não possuí-lo para sempre?
Entretanto, ao lado desses
motivos particulares de esperança, teve também motivos particulares para hesitar.
Para si mesma, devia esperar favores absolutamente singulares, não os bens comuns.
No entanto, conhecia mais do que ninguém a profundidade da sua pequenez, sua condição
de pobre filha de Nazaré, humilde serva do Senhor. Como ter esperança nessa maternidade
divina, virginal, mais adequada a quem fosse o ser mais perfeito depois de Jesus,
superior ao mais sublime dos anjos?
Maria devia esperar para
seu Filho o cumprimento das profecias, que lhe anunciavam triunfos sem precedentes.
No entanto, os fatos se sucediam um após outro, desde o nascimento num estábulo
até a morte na cruz, e tudo parecia fornecer um desmentido estrondoso a todas essas
predições.
A esperança de Maria devia
abranger o mundo inteiro, pois esse era o alcance do perdão e da salvação. Incluía
também a missão de colaborar pessoalmente para o perdão e a salvação da humanidade.
Daí em diante tornar-se-ia mãe de todos os homens, para os quais deveria obter as
graças necessárias, e existe uma causa comum entre a mãe e seus filhos. Quantas
vezes teve de esperar contra toda esperança, mantendo a esperança porque desejava
a plena realização das promessas divinas. Infinitamente mais do que seu real antepassado,
teve motivos para agradecer ao Senhor a esperança singular na qual Ele a havia colocado:
Quoniam tu, Domine, singulariter in spe constituisti me.
A
virtude da caridade em Maria
Deus é amor, segundo a
definição de São João. Guardadas todas as proporções, não poderíamos afirmar o mesmo
daquela que é a imagem perfeita de Deus? Maria é amor, tudo nela se explica pelo
amor ou se volta para o amor. Cada um de seus atos foi um ato de amor, cada uma
de suas virtudes foi um aspecto de seu amor. Se sua fé foi tão ardente, sua esperança
tão firme, sua pureza, sua humildade, sua fortaleza, sua prudência tão perfeitas,
é porque seu amor por Deus foi perfeito além de tudo que se possa conceber.
Para podermos entrever,
mesmo que longinquamente, a grandeza e o caráter singular desse amor, reportemo-nos
ao que foi dito acima a respeito da maternidade divina, privilégio de amor, e da
grandeza de sua graça, isto é, da sua força de amar. Contentemo-nos em lançar aqui
um olhar sobre a manifestação essencial desse amor, que é a conformidade de Maria
com a vontade de Deus.
"Aquele que me ama,
observe os meus mandamentos". Maria deu constantemente essa prova de amor,
muitas vezes ao preço de alguns heroísmos: "Eis a serva do Senhor, faça-se
em mim segundo a vossa palavra". Toda a sua vida cabe nesta resposta. Quer
Deus lhe fale por meio de um anjo, por São José, por um imperador pagão ou pelos
acontecimentos, reconhece sempre sua vontade e se submete com a mesma prontidão
e simplicidade. Entretanto, mais de uma vez terá deparado com uma ordem bem desconcertante,
como na ocasião em que teve de se unir a São José apesar da sua resolução de permanecer
virgem; ou quando, nas vésperas de seu parto,
foi obrigada a viajar até Belém; ou ainda
na noite em que recebeu a ordem de fugir para o Egito por causa do usurpador do
trono de seu Filho.
Por outro lado, era sempre
escrupulosa em agir de acordo com a vontade de Deus, mesmo que lhe parecesse dever
agir de outro modo. Por exemplo, Deus a informara de que seria Mãe e Virgem, mas
não lhe pediu que desse conhecimento disso a São José. Calou-se, preferindo ser
objeto de dúvidas angustiantes ao invés de antecipar-se a uma ordem divina. Conhecia
mistérios inefáveis sobre seu Filho, e podia ocorrer-lhe a ideia de que seria mais
sábio revelá-los aos amigos, a fim de preparar o caminho para a missão de Jesus.
Como Deus não lhe dera nenhum sinal de sua vontade a esse respeito, contentou-se
em deixar o assunto no silêncio e na obscuridade durante os trinta primeiros anos
da vida de seu Filho.
Durante toda a sua existência,
permaneceu a serva do Senhor. Se pronunciara um fiat em Nazaré, coube-lhe pronunciar
também outro fiat muito mais doloroso no alto do Calvário.
Ao lado do amor a Deus,
a virtude teologal da caridade compreende o amor ao próximo. Ama-se também a Deus
por meio do amor ao próximo, seja porque Deus vive nele ou para que Deus viva nele.
São João nos informou que a pedra de toque do nosso amor a Deus é o nosso amor ao
próximo. Assim, para compreendermos o amor de Maria ao próximo, devemos compreender
seu amor a Deus. Pela luz da graça, via Deus tão claramente nos homens, compreendia
tão perfeitamente o desejo infinito de Deus em se comunicar a eles, que deve tê-los
amado com amor sem limites logo que os conheceu.
A Encarnação lhe trouxe
novas luzes e a colocou em novas relações com a humanidade. A partir desse momento,
não via nos homens somente as criaturas queridas de Deus, mas também seus próprios
filhos, como Jesus, ao qual os devia tornar semelhantes, com amor que nos custa
imaginar.
O Evangelho nos fornece
sobre esse amor dois exemplos especiais. Inicialmente, na visita a Santa Izabel.
Sem dúvida, um santo entusiasmo levou-a a permanecer junto de sua prima. Porém,
não se pode imaginar que o faria se não tivesse grande espírito de caridade e desinteresse,
pois teve de empreender uma viagem de vários dias para chegar a um vilarejo perdido
em meio às montanhas, numa província distante, prestando aí os cuidados que o nascimento
de João Batista iria exigir.
O segundo exemplo é a conduta
de Maria em Caná, onde seu espírito de caridade se mostra mais claramente. Não se
tratava de purificar e santificar um profeta, nem mesmo de aliviar reais necessidades
corporais, mas apenas de poupar aos anfitriões uma pequena confusão. Para isso Ela
devia pedir a Nosso Senhor o que jamais havia pedido para suas necessidades pessoais
mais urgentes. Tratava-se de obter um milagre, demonstrando seu poder divino, e
parece que nunca o tinha visto operar outro antes.
Esses dois episódios foram
apenas manifestações acidentais de sua incomensurável caridade em relação aos homens.
A grande prova dessa caridade, deu-a na sua cooperação com o mistério da Redenção.
"Ninguém tem maior amor do que quem dá a vida pelo seu amigo", e na sua
colaboração com o mistério da Redenção Maria sacrificou pelos homens não apenas
sua vida, mas ainda aquilo que lhe era infinitamente mais caro, que era a vida de
seu Filho. Esse sacrifício não durou apenas algumas horas, mas trinta e três anos.
2ª.
-- Virtudes morais
A virtude da prudência
em Maria -- Os Padres da Igreja se comprazem em ressaltar a prudência da Virgem
na entrevista com o anjo Gabriel, que se contrapõe à entrevista de outra mulher
com outro anjo, este decaído, na qual a imprudência de Eva nos conduziu à perdição.
A prudência não consiste
em decidir em função de uma pressão atual da sensibilidade diante de um bem a conquistar
ou de um mal a evitar, mas sim em decidir por motivos que levam em consideração
o futuro. Há dois tipos de prudência: carnal e espiritual. Nesta última há vários
graus. Quem resolve abraçar a vida religiosa, não por uma atração cega ou por um
motivo natural, e sim para melhor garantir sua própria salvação, age por prudência
sobrenatural. Mas essa prudência, como também o motivo que a inspira, está longe
de ser a mais perfeita possível.
A única coisa sobre a qual
Maria desejava ter certeza, antes de tomar uma decisão, não era sua vantagem pessoal,
mesmo tratando-se dos bens celestes, mas sim a vontade de Deus. Antes de conhecer
a vontade de Deus, fazia calar todos seus sentimentos pessoais, antepondo a eles
o impulso de sua alma a fim de considerar com calma e vagar as indicações da vontade
divina. Nela os sentimentos não procuravam antepor-se à razão.
A preocupação de perscrutar
unicamente a vontade de Deus alimentava a prudência de Maria com seu motivo mais
perfeito, e ao mesmo tempo simplificava maravilhosamente a sua operação, tornando-a
infalível para a previsão do melhor resultado final. Não havia nenhuma necessidade
de pesar longamente as razões a favor ou contra, com todas as consequências certas,
prováveis ou possíveis. Desde que Deus infinitamente sábio desejava tal coisa, bastava-lhe
conformar-se à sua vontade para estar absolutamente segura do sucesso maior possível.
Para manter sempre essa
prudência sobrenatural, Maria precisava de um autodomínio heroico, por vezes no
mais alto grau. Quando o anjo Gabriel saudou-a como cheia de graça, portanto objeto
de uma eleição especial de Deus, falava de favores sobrenaturais. Quem não se rejubilaria
com tal situação? No entanto, ficou perplexa com essas palavras e refletia sobre
seu significado. O anjo a tranquilizou: "Não temas!". Em seguida lhe explicou
que fora escolhida para ser Mãe do Messias, que toda a nação judaica desejava ardentemente,
e Ela mais do que qualquer outro israelita. Portanto estava destinada a dá-lo à
luz, mas ao invés de entregar-se a transportes de alegria, limita-se a pedir explicações.
Em seguida, tendo compreendido a vontade de Deus, concorda simplesmente, com uma
palavra de humilde submissão: "Eis a serva do Senhor, faça-se em mim de acordo
com vossa palavra!".
Se não conhecêssemos o
entusiasmo da Virgem diante de Izabel, poderíamos indagar se de fato havia entendido
a honra sem igual que lhe era oferecida. Acontece que, se há momentos para se demonstrar
alegria, há também momentos em que se deve refletir calmamente, e a prudência exige
que a reflexão preceda o entusiasmo.
Por mais impossível que
nos pareça uma deliberação tão calma nesse caso, há outro em que a prudência se
mostra talvez ainda mais heroica. Quando se sentiu grávida, vários motivos, inclusive
sobrenaturais, pareciam indicar-lhe que se explicasse. Era obrigada a cuidar da
própria honra, e ainda que não fosse por causa do Filho, tinha de manter São José
como indispensável protetor, evitando também angústias compreensíveis num esposo
tão digno. Isto era verdade, mas qual era a vontade de Deus? Todos os outros argumentos
deviam ceder diante deste. Calou-se, pois nada lhe indicava ser a vontade de Deus
que Ela falasse. Deus cuidou dela, e sua prudência foi recompensada.
Mesma prudência a propósito
da missão de seu Filho. Ao contrário de alguns dos seus parentes, impacientes para
verem a realização dos seus sonhos messiânicos, não insistia para Jesus se manifestar
ao mundo, levava em consideração apenas uma coisa, que era o cumprimento da vontade
de Deus, qualquer que ela fosse, e por isso teve pleno êxito na sua missão.
A virtude da justiça em
Maria -- Sobre a justiça de Maria em relação aos homens, o Evangelho não nos fornece
exemplos diretos, mas podemos imaginar o que ela terá sido, se nos lembrarmos da
sua indescritível caridade. Deixa-nos entrever no entanto o que deve ter sido, nessa
alma que vivia apenas para Deus, o sentimento de justiça em relação ao Criador.
Esta forma de justiça se manifesta pela virtude de religião.
A religião é o reconhecimento
dos direitos de Deus sobre nós e a disposição de nos submetermos a Ele. A religião
é interior e exterior. Interior é a religião da inteligência, do coração e da vontade,
que reconhecem e aceitam com amor os direitos do Altíssimo. Compreende quatro atos
principais: adoração, reconhecimento, expiação e súplica. (Adoração consiste em
reconhecer o domínio soberano e absoluto de Deus sobre nós.)
Maria compreendeu e cumpriu
melhor esse dever do que qualquer outro, quando respondeu simplesmente: "Eis
aqui a serva do Senhor, faça-se em mim de acordo com vossa palavra". No céu,
durante séculos cujo número ignoramos, miríades de anjos velam a face diante da
majestade de Deus, cantando sem cessar Santo, Santo, Santo! A partir do momento
em que Maria foi concebida, da terra se elevam ao soberano Senhor homenagens de
adoração incomparavelmente mais agradáveis que os louvores incessantes dos espíritos
celestes. Quanta alegria para a Virgem, por se ter aniquilado diante daquele que
quis contemplar a baixeza de sua serva, e que no excesso de sua condescendência
quis depender dela e ser-lhe submisso!
Deus é nosso soberano e
Senhor, mas também nosso benfeitor, daí nosso dever de reconhecimento. São Lucas
nos fornece no Magnificat um relato que é uma prova do reconhecimento de Maria a
Deus.
Os reconhecimentos não
têm todos o mesmo grau de perfeição, pois algumas pessoas pensam sobretudo nelas
mesmas e no bem recebido, enquanto outras meditam sobre o bem recebido para poderem
alcançar o benfeitor e agradecer-lhe. Esta última forma de reconhecimento foi a
de Maria, que admirou as grandes coisas que nela foram feitas, mas só as admirou
para melhor contemplar aquele que é o autor de todas essas maravilhas. Do início
ao fim do seu cântico, é a Deus que Ela contempla e nos convida a contemplar. Longe
de se deter na sua própria elevação, confunde sua causa com a dos pobres e pequenos,
para exaltar a misericórdia universal de Deus sobre todos os que reconhecem o seu
nada diante dele.
Terá sido o Magnificat
um episódio isolado na sua vida? Certamente não, pois foi concebida sem mancha e
reconheceu a singular bondade de Deus em relação a Ela, correspondendo a esse amor
infinito por um movimento de imensa gratidão. As graças inundaram incessantemente
sua alma com uma plenitude sempre crescente, enquanto continuamente o seu reconhecimento
se tornou mais amoroso, sobretudo a partir da Encarnação do Verbo.
Ao lado de seu reconhecimento
à Santíssima Trindade, Maria terá manifestado reconhecimento particular a Jesus,
Filho de Deus, que tinha se tornado Filho dela para resgatar a humanidade, aplicando-lhe
antes uma redenção especial. Conhecendo a alma de seu Filho, adivinhava quanto Ele
sofreria de angústias ao longo da vida por causa de sua missão redentora, culminando
em indizíveis torturas quando agonizava na cruz. Deixaria Ela de pensar que tais
sofrimentos eram suportados também em favor dela, e deixaria ainda de testemunhar-lhe
reconhecimento mais ardente por tão grande amor?
Outro motivo de reconhecimento era a compreensão de que o Redentor tinha
desejado associá-la à sua obra redentora, e que deveria merecer junto com Ele a
salvação dos homens, aos quais gerara espiritualmente para a graça quando deu à
luz seu Filho. Jesus se dignara permitir-lhe compartilhar os seus sofrimentos, não
a deixando ignorar durante a vida as angústias do seu coração; e na hora solene do supremo sacrifício, não quis
mantê-la longe das cenas espantosas de sua Paixão e morte. Dessa forma fora admitida
a sofrer juntamente com seu Filho tanto quanto lhe permitiam suas forças, bebendo
com Ele o mesmo cálice e tornando-se a Mãe das dores com o Varão das dores.
Os anos seguintes ao triunfo
de Jesus, que ressuscitou e subiu aos céus, foram indubitavelmente anos de ação
de graças para Maria, que sem cessar deve ter repetido seu cântico: "Minha
alma glorifica ao Senhor, pois fez em mim grandes coisas, e seu nome é santo".
Por fim foi também elevada ao céu, onde entoa para sempre seu Magnificat junto à
Santíssima Trindade.
O homem ousa ofender seu
Senhor e benfeitor pelo pecado, mas Deus não o rejeita como rejeitou os anjos prevaricadores.
Desde que aceite pedir perdão e expiar seus pecados, Deus restabelece sua graça
e amizade, daí um terceiro ato da virtude de religião, que é a reparação.
Maria não tinha nada a
reparar pessoalmente, pois jamais havia magoado o coração de Deus. No entanto devia
tornar-se a grande reparadora,assumindo uma causa que era a mesma dos homens, sobretudo
a de seu Filho. E assim pediu a Deus o perdão pelo pecado de Adão e Eva, dos seus
antepassados e de todos os homens, tornando-se a garantidora das dívidas assumidas
pelos culpados. Procedia como seu Filho, que viera como Salvador dos homens e também
como reparador da glória de Deus, e associou-se a Ele nessa obra. (Pio XI, Miserentissimus
Redemptor.)
Maria se incorporou perfeitamente
às disposições de Jesus, e juntamente com Ele podia dizer ao Pai: "Os holocaustos,
sacrifícios e oblações que os homens fizeram não vos foram agradáveis, e eu venho
para fazer a vossa vontade. Eis a serva do Senhor, faça-se em mim de acordo com
a vossa palavra". Ela se ofereceu a Deus, e ainda mais, ofereceu o Filho que
lhe pertencia. Como sua dignidade era quase infinitamente mais alta que a de todos
os homens, suas reparações prestaram a Deus mais honra e mais consolação do que
o suficiente para aplacar os crimes dos homens.
A infinita bondade de Deus
concede inúmeras graças ao homem durante toda sua vida, ainda que nada faça para
merecê-las. No entanto Ele quer que o homem, a partir do uso da razão, manifeste
livremente suas necessidades e lhe peça ajuda. Desse modo a súplica ou pedido é
parte das obrigações impostas pela virtude de religião. Será tanto mais perfeita
quanto mais viva for a compreensão da grandeza à qual a pessoa é chamada por Deus,
e da sua impotência radical para atingi-la por suas próprias forças. Com isso sua
confiança em Deus será mais inabalável.
Nenhuma criatura humana
foi chamada por Deus para missão tão sublime quanto a da Virgem; nenhuma teve tanto o sentimento de sua absoluta
incapacidade para fazer o menor bem por suas próprias forças; nenhuma teve tão invencível confiança na bondade
infinita de Deus. Desse sentimento elevava-se a prece mais perfeita que jamais outra
criatura dirigira a Deus. Jesus não precisou lembrar a Maria algo assim: "Até
agora nada me pedistes. Pedi e recebereis, para que vossa alegria seja perfeita".
Bem antes de Jesus formular esse preceito, Ela havia compreendido que é necessário
orar sempre, incansavelmente.
Maria pedia a Deus por
si mesma, para sempre cumprir plenamente a vontade de Deus; pedia pelos homens, a fim de obter socorros temporais
e espirituais para suas necessidades, que Ela adivinhava como em Caná e no Cenáculo;
pedia por seu Filho e em união com Ele, a
fim de que o Pai abençoasse seu apostolado e tornasse mais eficaz sua obra redentora.
Antigas representações mostram-na em atitude de oração, e de fato Ela orou sempre,
desde sua Imaculada Conceição até o fim de sua vida. Continua orando no céu pelos
seus filhos, enquanto algum deles precisar de socorro.
A religião reside essencialmente
nas disposições do coração. "Os verdadeiros adoradores adoram o Pai em espírito
e em verdade". Entretanto, sendo o homem composto de matéria e espírito, foi
criado para viver em sociedade e deve prestar a Deus um culto exterior e público.
Entre os israelitas, as prescrições desse culto se encontravam minuciosamente na
lei de Moisés. Embora muitos judeus reduzissem o culto a essas prescrições, elas
representavam autenticamente o culto exterior que Deus desejava. Submetendo-se a
elas em espírito de oração interior, especialmente no Templo, os judeus piedosos
prestavam a Deus uma glória única em todo o universo
Depois da sua conceição
sem pecado, Maria tinha Deus em seu coração. A partir da Encarnação, possuía em
seu seio ou na sua casa o Deus feito homem, que iria tornar-se daí em diante o centro
do nosso culto. Mas aceitava com toda simplicidade as prescrições da antiga Lei,
mesmo quando tinha boas razões para dispensar uma ou outra, tais como a circuncisão
e a apresentação de Jesus no Templo, além da sua própria purificação. Outras não
diziam respeito a Ela diretamente, como o convite para os homens adorarem Yahweh
anualmente em Jerusalém durante a Páscoa. Podem-se imaginar os sentimentos profundos
de religião com que cumpria essas disposições do culto tradicional, como também
a glória que assim prestava ao Altíssimo.
Mas esse culto antigo e
demasiadamente externo devia cessar, pois todos os sacrifícios da antiga aliança
deviam desaparecer ante uma vítima inteiramente pura, que seria imolada em todo
o mundo, do Oriente ao Ocidente, e cuja oblação constituiria o culto perfeito. Era
essa a vítima que Maria devia preparar, concebendo-a, formando-a com sua substância,
nutrindo-a e educando-a em função do sacrifício, entregando-a ao Pai e unindo suas
disposições às da própria Vítima. Na condição de sacrificador, devia permanecer
de pé no altar da imolação, onde seu Filho expirava pela glória do Pai e a salvação
da humanidade.
Na véspera dessa imolação,
Jesus dera a seus apóstolos a ordem de perpetuá-la ao longo dos séculos. O sacrifício
eucarístico iria prolongar o da cruz. Sabemos que em Jerusalém ele era oferecido
diariamente, portanto Maria pôde assistir a ele como ao sacrifício da cruz, com
as mesmas disposições, tendo em vista a glória de Deus e a salvação dos homens.
A virtude de religião é
aperfeiçoada pelo dom de piedade. A religião considera Deus como um Senhor, e o
homem como um servo, enquanto a piedade vê em Deus um pai, e no homem o seu filho.
Pela religião, reconhecemo-nos como parte do domínio de Deus, e pela piedade sentimo-nos
membros de sua família.
A piedade era desconhecida
dos pagãos e pouco conhecida pelos judeus, só se difundiu na religião de Cristo.
Jesus falava constantemente do Pai aos seus discípulos, e ordenou-lhes dizer Pai
nosso quando orassem. Daí em diante foram compreendidas as disposições filiais com
que se devia falar com Deus, que por meio de seu Filho tornara os homens participantes
da sua natureza e via neles irmãos do seu primogênito.
O espírito de piedade é
um dos sete dons do Espírito Santo, que em suas comunicações inenarráveis nos faz
bradar do fundo do coração Abba, Pai!. Seria possível duvidarmos que o Espírito
Santo concedeu esse dom à sua Esposa Imaculada, em toda a sua perfeição? Maria se
considerava Filha bem amada de Deus, envolvida por Ele numa ternura ilimitada, guardada
por uma solicitude de todos os instantes, atendida além de suas previsões. Não lhe
era possível deixar de ver nele um Pai infinitamente mais amoroso que todos os pais
terrenos; e se jamais perdeu de vista a infinita
distância que a separava dele, também jamais perdeu de vista o infinito amor que
o aproximava dela.
A piedade filial da Virgem
deve ter aumentado maravilhosamente a partir da Encarnação. Este mistério mostrava
não só que Ela era filha bem amada de Deus, mas a Filha bem amada e única de Deus,
elevada a uma tão grande intimidade com Ele, que ultrapassava até a dos espíritos
bem-aventurados. Por uma espécie de simpatia divina, suas conversas com Jesus durante
os trinta anos da vida oculta torná-la-iam diretamente participante da piedade filial
do Filho para com o Pai. De que se tratava nessas conversas, a não ser do Pai, do
seu amor, sua Providência, sua glória e sua vontade? Naquela casa de Nazaré, o que
se rezava devia ser: "Pai nosso que estais no céu, santificado seja o vosso
nome, venha a nós o vosso reino, seja feita a vossa vontade assim na terra como
no céu". Mais tarde, quando Jesus falou do Pai aos seus discípulos, a tal ponto
se entusiasmou com o amor do Pai, que um deles exclamou: "Senhor, mostrai-nos
o Pai, e isso nos basta!".
De quanto amor ao Pai não
terá Jesus conseguido inflamar a alma de sua Mãe? Como é certo que Jesus conseguiu
infundir no coração de Maria todas as suas próprias disposições, o que se poderá
dizer da piedade filial, que ocupava o primeiro lugar na sua alma, e que o havia
levado a encarnar e a morrer?
No seu sentido completo,
a piedade compreende todos os sentimentos dos membros de uma família uns com os
outros -- dos filhos para com os pais e dos pais para com os filhos; dos filhos entre si; dos esposos um com o outro. Na ordem sobrenatural,
a piedade geralmente designa os sentimentos dos homens para com o Pai celeste. Em
Maria, a piedade abrangia muito mais, por ser Filha de Deus e também sua Esposa.
Era Esposa do Pai, como sua associada na geração do Verbo encarnado; Esposa de Jesus, por ser a Virgem puríssima, e
mais ainda por ser a nova Eva ao lado do novo Adão; Esposa imaculada do Espírito Santo. Sobretudo era
Mãe, verdadeira Mãe de Deus e verdadeira Mãe dos homens. A piedade de Maria era
única, tanto por sua intensidade quanto por sua abrangência.
A religião e a piedade
se alimentam e se manifestam por uma constante vida de recolhimento e oração. São
Lucas relata que a Virgem conservava em seu coração tudo o que via e entendia sobre
seu Filho, e insiste duas vezes sobre isso. A intenção direta do evangelista parece
ter sido a de nos fazer entender que Maria era sua fonte no que se refere a este
relato. Contudo, acrescentando que Ela "guardava no seu coração todas essas
coisas" maravilhosas, faz-nos também constatar nela o hábito de meditar sobre
os mistérios de seu Filho. Foi esta a ocupação de toda a sua vida, e sua atitude
era sempre a do recolhimento.
Os trinta anos que passou
com Jesus em Nazaré foram para Maria de profunda meditação e união com Deus. Quando
Ele vai pregar, curar os doentes, levar consigo as multidões, Maria permanece na
sua solidão, sempre ocupada em meditar o que conhece e compreende sobre Ele. De
Pentecostes até a sua morte, continua a contemplar em silêncio os mistérios divinos,
enquanto os Apóstolos pregam a boa nova e governam a Igreja. "Ela escolheu
a melhor parte, que não lhe será tirada".
Tudo isso, no entanto,
é apenas o lado externo dessa vida de união com Deus. Falta explicar a realidade
interior, mas quem se aventurará a analisá-la? Algumas almas místicas nos deixaram
descrições detalhadas de seus estados sobrenaturais, dos quais compreende pouca
coisa quem nunca os experimentou. A união dessas almas com Deus nos seus períodos
mais elevados, que se conhece habitualmente com o nome de casamento místico, é apenas
uma sombra da união que tinha Maria. Pode-se dizer que a união delas termina onde
a dela começa, pois o seu primeiro ato de amor já era superior ao amor final dos
santos mais perfeitos. As riquezas insondáveis dessa união inigualável abismavam
no Criador a mais sublime das criaturas.
A virtude da fortaleza
em Maria -- Sobre a virtude da fortaleza, devemos ter em vista que alguns cristãos
veem Maria apenas como uma criatura infinitamente pura e delicada, a mulher mais
terna e mais doce que já houve. Correm assim o risco de ter em relação a Ela uma
devoção sentimental; ou então uma piedade
de comando, se são pessoas de índole mais categórica. Nunca percebem que essa Virgem
tão terna, essa Mãe tão doce, é também a mulher forte por excelência, e nunca houve
homem tão viril quanto essa Mulher.
A virtude da fortaleza
compreende dois atos principais, que consistem em empreender e sustentar. É necessária
a fortaleza para empreender ações árduas. Na ordem natural, pode-se recorrer à assistência
de Deus, mas ainda assim precisa-se de fortaleza heroica para assumir a responsabilidade
por certas tarefas. Têm-se visto homens dos mais corajosos ou mais santos recuar,
ante o espanto causado pelas missões que Deus desejava confiar-lhes. Basta lembrar
Moisés, Jeremias, Jonas e outros personagens do Antigo Testamento; na Igreja de Cristo, alguns servos de Deus se ocultaram,
ou mesmo se recusaram a assumir responsabilidades que outros desejavam colocar sobre
os seus ombros, como a direção de ordens religiosas, o episcopado ou o papado; outros, mesmo aceitando algum encargo por encará-lo
como a vontade de Deus, verteram lágrimas ou foram tomados por um movimento de espanto
ou medo.
Deus apresentou a Maria,
por meio do anjo Gabriel, uma missão superior à de todos os patriarcas, todos os
profetas, todos os bispos e Papas. Era uma missão sem igual, ao lado do Redentor,
da qual dependia a salvação do mundo e a realização dos decretos eternos de Deus.
Logo que compreendeu a vontade divina, respondeu simplesmente: "Eis a serva
do Senhor, faça-se em mim de acordo com a vossa palavra".
Se é necessária a fortaleza
para empreender uma obra árdua, muito mais se requer para prosseguir, e sobretudo
para conduzi-la a bom termo. Entre cem homens que iniciam um empreendimento difícil,
apenas cinco têm suficiente tenacidade para conduzi-lo ao objetivo final, pois pouco
a pouco vão se desgastando ante os obstáculos que constantemente se renovam. Para
Maria, as dificuldades cresciam cada vez mais depois da Encarnação, mas sua fortaleza
crescia mais ainda. Aquela mesma que admiramos em Nazaré, tão simples no seu consentimento,
perseverou nele, de pé diante do Filho crucificado, durante três horas de dolorosa
agonia.
Mais ainda do que para
agir, é necessária a fortaleza para sofrer. É sobretudo neste aspecto que se manifesta
a fortaleza de Maria. A piedade dos fieis a compreendeu, e se compraz em contemplar
a Mulher forte nas suas sete dores. O número sete é evidentemente simbólico, indicando
uma plenitude, uma vida inteira submetendo-se às provas mais terríveis. A Anunciação,
primeiro mistério gozoso, foi também um mistério doloroso, pela previsão de todas
as dores que a qualidade de Mãe do Redentor acarretaria para Ela. Daí em diante
as provas se sucediam às provas: angústias de São José, profecia de Simeão, fuga
para o Egito, perda de Jesus no Templo, perspectiva cada vez mais próxima de realização
das profecias amedrontadoras. Durante a vida pública, as notícias sobre as dificuldades
suscitadas a seu Filho, a movimentação sorrateira dos fariseus, seguida da oposição
aberta, os rumores de conspiração contra a vida de Jesus, e depois as horríveis
cenas da Paixão e o desenlace final.
Todos esses fatos nos mostram
apenas um aspecto exterior do sofrimento da Virgem. Para compreender o que se passou
no interior de sua alma, seria necessário avaliar o que se passava no interior da
própria alma de Jesus, tudo o que sofreu desde o primeiro momento em que se ofereceu
ao Pai como substituição dos holocaustos daí em diante recusados, até o momento
final em que expirou lançando um alto brado. Por uma união de alma infinitamente
delicada, todos os sofrimentos da alma do Filho repercutiam na alma da Mãe, que
precisava de incalculável fortaleza de alma para suportar essas dores sobre-humanas.
O martírio é o ato supremo
da virtude da fortaleza. Maria não foi mártir no sentido comum do termo, porém o
foi muito mais do que isso, tanto que a homenageamos com o título de Rainha dos
mártires. Seu martírio se coloca imensamente acima do que receberam todas as outras
testemunhas de Cristo, tanto pela duração quanto pela intensidade, pois foi um martírio
de amor. Amando mais do que todos os santos reunidos, Maria sofreu mais que todos
eles. Bastaria isso para avaliarmos a intensidade da fortaleza que demonstrou a
Rainha dos mártires, e também para medirmos a intensidade do seu amor a Jesus, ao
Pai e a todos os seus filhos espirituais. O amor a fez sofrer, e também a sustentou
no sofrimento.
A virtude da temperança
em Maria -- A virtude da temperança, tomada no seu sentido mais amplo, tem por objetivo
equilibrar os vários movimentos da alma, de acordo com a razão esclarecida pela
fé. Vista assim, abrange certo número de virtudes especiais: sobriedade, frugalidade,
modéstia, etc. É possível fazermos uma ideia do que foi a temperança de Maria, e
do grau que atingiram nela as várias virtudes particulares arroladas sob esse nome
genérico. Por exemplo, sua frugalidade no uso dos alimentos, seu desapego dos bens
terrenos, sua doçura, sua modéstia, seu constante domínio sobre si mesma. Limitaremos
aqui nossa exposição à pureza e humildade, duas virtudes sobre as quais o Evangelho
nos fornece alguns elementos.
Já tratamos da pureza de
Maria quando analisamos sua virgindade perpétua, porém limitando-nos mais ao lado
divino dessa pureza. Resta-nos focalizá-la agora principalmente do ponto de vista
humano, isto é, sua pureza enquanto revelando-nos uma disposição de sua alma.
Mesmo sob esse ponto de
vista humano, a pureza de Maria é única. Em meio à corrupção que nos circunda, por
vezes deparamos com o espetáculo de uma pureza que nos eleva: a inocência serena
que se lê no olhar límpido de certas pessoas, a atmosfera de virgindade que se respira
quando dela nos aproximamos, tornando impossível qualquer pensamento imundo. É algo
deslumbrante nessa terra emporcalhada. No entanto, a pureza de Maria foi incomparavelmente
mais deslumbrante, por isso mesmo difícil de analisar. Pode-se entretanto oferecer
uma frágil indicação das diferenças entre a virgindade de Maria e a de outras almas
totalmente puras.
Pela sua duração, a virgindade
de Maria foi mais elevada que a dos demais, pois remontava ao primeiro momento de
sua existência. Além disso, como o objetivo da virgindade é a consagração total
e sem restrição a Deus, a de Maria foi mais elevada por não ter tido precedente.
É bastante natural imitar o que se vê outras pessoas praticarem. Milhares de sacerdotes,
religiosos e religiosas se entregam atualmente ao celibato, e uma alma generosa
pode decidir-se a imitá-los. Mas o caso de Maria é inteiramente diferente, pois
não havia em torno dela, nem mesmo no Antigo Testamento, exemplo de vida virginal
ou algum conselho que a levasse a abraçar tal via.
Havia ainda os obstáculos
a ultrapassar. Não é difícil encontrar hoje condições favoráveis à prática da virgindade,
como em conventos, mosteiros, e mesmo na vida cristã no mundo. Mas seria enorme
a dificuldade para permanecer virgem numa sociedade estranha a toda ideia de uma
virgindade consagrada a Deus, e onde os costumes pareciam mesmo impor o casamento
a toda jovem honesta.
Entretanto, além dessas
diferenças que são antes de tudo superficiais, havia outra de caráter essencial,
que era a perfeição intrínseca da sua pureza, isto é, seu distanciamento em relação
a qualquer objeto criado que pudesse afastá-la da sua união com Deus. Neste sentido,
sua pureza a elevava acima de todas as purezas terrestres e angélicas, tanto quanto
a distância entre o nosso amor a Deus e o de Maria, do qual sua pureza era uma condição
e um aspecto. Para fazermos uma ideia de sua pureza, seria necessário termos uma
ideia verdadeira de seu amor.
Da mesma forma que a pureza
de Maria, sua humildade apresenta algo de singular. Para nós, a humildade é a vitória
sobre a vaidade e o orgulho; é a constante
lembrança de nossas faltas e de nossa corrupção; é a preocupação em não nos deleitarmos com superioridades
reais ou fictícias. Em Maria não havia nada de parecido com isso, pois para Ela
a palavra eu não era levada em conta, só existia Deus.
Desde o começo do mundo,
nenhum anjo se curvara diante de um ser humano, mas o anjo Gabriel se curvou diante
dela em nome de Deus e a proclamou cheia de graça. Ao invés de exultar de alegria
ante essa saudação inaudita, Maria ficou perplexa e refletiu. O anjo a tranquilizou
e explicou que se tornaria Mãe de Deus. Sua única resposta foi uma palavra de submissão,
pois se considerava serva de Deus.
Maria tinha noção clara
de sua superioridade sobre Izabel. No entanto, longe de aguardar que sua parenta
viesse até Ela, comparece diante da prima a fim de prestar-lhe cuidados de uma serva,
e a torna participante das suas graças. A prima percebe logo essa enorme distância
e se manifesta confusa diante de tanta hora: "Como me é dado que a Mãe de meu
Senhor venha até mim? Bem-aventurada sois, porque acreditaste". Sem pensar
em si mesma, Maria responde: "Minha alma glorifica o Senhor."
Voltando a Nazaré, sua
gloriosa maternidade pode dar ensejo às suspeitas mais injuriosas, mas nenhuma palavra
se ouve dela para dissipá-las. Sua atitude reservada e de modéstia é a mesma diante
dos pastores e magos, de Simeão e Ana. Mais tarde, quando ouve a resposta de seu
Filho reencontrado no Templo, nem sequer argumenta que não entendeu o que Ele quis
dizer. Sua presença nem é mencionada por ocasião da entrada triunfal de Jesus em
Jerusalém, embora certamente estivesse no meio da multidão. No entanto reaparece
ao pé da cruz, onde estava ao alcance da zombaria de judeus e romanos. Após a ascensão
de seu Filho, entra num completo olvido, a ponto de não conhecermos nem o lugar
nem a data de sua morte.
A humildade da Virgem nada
tem a ver com desconhecimento nem esquecimento. Ela não tem o falso pudor de esquecer
ou minimizar as maravilhas com que o Criador a cumulou, e o próprio Deus não a deixa
esquecer-se delas. Sabe perfeitamente que "grandes coisas lhe foram feitas",
e reconhece que "todas as gerações a chamarão bem-aventurada". Aos seus
olhos, no entanto, é evidente que tudo foi obra de Deus, e nem sequer lhe vem ao
espírito o pensamento de se comprazer nisso. É tão estranho a Ela o pensamento de
atribuir a si mesma todas essas maravilhas de Deus, que pode tranquilamente admirar
sua incomensurável dignidade sem conceber a mínima tentação. Não se rejubila consigo
mesma, pois vê todas as coisas em Deus, que é todo-poderoso e eleva os pequenos.
Pode ser vista portanto como a mais excelsa e ao mesmo tempo a mais humilde das
criaturas.
Ao lado de todas essas
virtudes, convém assinalar a simplicidade, que confere a todas as outras virtudes
e a toda a pessoa da Virgem um encanto particular. Como simplicidade, pode-se entender
uma qualidade geral ou uma virtude especial. Como qualidade geral, supõe a ausência
de afetação, de tudo que procura atrair a atenção. Neste sentido, pode-se dizer
que as virtudes de Maria, por mais sublimes que tenham sido, foram ao mesmo tempo
muito simples, de tal modo que, se os mais perfeitos dos homens jamais conseguirão
igualá-las, até os mais humildes podem imitá-las.
A virtude especial de simplicidade
é a condição de uma alma que tem Deus como único objetivo, e que caminha diretamente
para Ele. Exclui a procura inadvertida, mas real, de um segundo objetivo que é o
eu, isto é, toda segunda intenção, mesmo inconsciente, sobre vantagens pessoais,
lucro material, ambição, vaidade, complacência consigo mesmo.
O que podemos afirmar sobre
essa virtude em Maria? Ela pode ser inteiramente descrita com o retrato que deu
de si mesma na resposta ao anjo: "Eis a serva do Senhor, faça-se em mim de
acordo com vossa palavra". Não ignora a infinita grandeza nem os indizíveis
sofrimentos que a esperam, no entanto pronuncia com toda simplicidade sua palavra
de consentimento com a vontade divina. Para Ela, só o que importa é Deus. Suas grandezas
ou dores pessoais não podem entrar em consideração. Nem parece espantar-se com o
fato de Deus a ter escolhido, como quem perguntasse: por que eu e não outra? Como
Deus se manifestou, não há espaço para se levantar perguntas como essa.
Alguns dias depois da visita
de Gabriel, Ela explica à sua prima o motivo da escolha de Deus, que distribui seus
benefícios a quem sabe que não é nada. Não contesta os elogios de Izabel, mas aceita-os
simplesmente, contentando-se em colocar as coisas como de fato são. Quando a prima
a reconhece como bem-aventurada por ter acreditado, reconhece que "todas as
gerações me chamarão bem-aventurada". Por quê? "Porque o Senhor olhou
para a insignificância de sua serva e me fez grandes coisas".
Esta mesma simplicidade
de quem só procura a Deus e se esquece de si mesma, nós a encontramos nos outros
momentos de sua vida: diante da angústia de São José, em Belém, no Templo, no Egito,
na vida oculta e na vida pública de seu Filho, no Calvário, no cenáculo, nos últimos
anos de sua vida.
A atenção posta constantemente
em Deus, e nas outras coisas enquanto voltadas para Ele, constitui um dos principais
fatores da perfeição de suas virtudes. Tendo sempre Deus em mente, e encarando-o
como o amor infinito que Ele é, sua fé foi inabalável, sua esperança firme e constante,
seu amor a Deus inteiramente puro, além de pressurosa e humilde a sua caridade em
relação ao próximo. Considerando sempre a vontade de Deus, sua prudência jamais
se desviava. Apoiando-se somente em Deus, sua força nunca fraquejou. Descobrindo
em Deus seu Criador, seu Pai, seu Filho, teve uma religião incomparavelmente profunda,
uma piedade incomparavelmente terna. Procurando somente a Deus, consagrava-se a
uma pureza angélica. Compreendendo que Deus é tudo e Ela nada, foi naturalmente
a mais humilde das criaturas.
Essa simplicidade lhe conferia
uma beleza deslumbrante. Mesmo sendo grande a esse ponto, com uma grandeza que ultrapassa
a dos anjos mais sublimes, e que Ela mesma jamais poderá compreender, no entanto
só olhava para Deus, jamais lançava sequer um olhar furtivo sobre essa grandeza
para se embevecer consigo mesma.
Era necessário que Maria
tivesse uma grandeza assim, pois foi ao admirar sua própria perfeição que Lúcifer
lançou seu grito de revolta: Non serviam -- Não servirei. Adão também olhou para
si mesmo e se deixou convencer da perfeição que lhe prometia a serpente, daí desobedecer
a Deus. Maria nunca olhava para si mesma, e remetia a Deus tudo o que encontrava
em si, mantendo-se a mais amorosa e mais submissa, a mais tranquila e mais perfeita
das criaturas.
Essa simplicidade, que
tornou Maria tão bela e tão cara a Deus, deixa-nos inteiramente à vontade em relação
a Ela. Por mais elevada que seja por sua dignidade, manteve-se perto de nós por
sua simplicidade. Tão pouco pensa em se prevalecer de sua grandeza, tão pouco se
move a nos encarar com altivez, tão bem conhece que só a Deus deve sua própria superioridade,
que dela nos aproximamos sem o menor receio. Quando o anjo Rafael declarou a Tobias
e ao seu filho "sou um dos sete que assistem diante de Deus", eles tremeram
e caíram com a face em terra. Mas sentimos que não nos assustaríamos se Maria nos
aparecesse, e que nunca nos diria "sou aquela que está sentada à direita do
Filho de Deus". Diria que veio para nos conduzir àquele que é infinitamente
bom para os pequenos e humildes, como o foi com Ela mesma. Quanto mais é Mãe, mais
Ela é simples.
Crescimento
e perfeição final da vida sobrenatural de Maria
Até aqui procuramos entrever
a plenitude de graça em Maria, além de algumas das maravilhas que essa graça produziu.
Resta ainda lançarmos um olhar sobre o conjunto da sua vida sobrenatural, a fim
de podermos considerar seu crescimento e perfeição final.
A vida sobrenatural não
pode crescer do modo como cresce uma fortuna. Seu crescimento deve assemelhar-se
ao de uma capacidade espiritual, como a inteligência e o amor. Concordamos que a
inteligência de um homem possa crescer indefinidamente, desde as primeiras luzes
de sua razão até o pleno desenvolvimento de seu gênio; ou que seu amor possa desenvolver-se sem cessar,
depois do primeiro movimento de afeto um tanto egoísta até os atos de devotamento
mais heroicos. Mas não podemos exprimir esse crescimento por meio de números ou
de gráficos. O mesmo se passa com a vida sobrenatural, que não cresce por meio de
somatória de partes, e sim pela intensificação intrínseca; não como um reservatório de peças de ouro, e sim
como uma indefinida capacidade para compreender, desejar e amar. (Cf. Santo Tomás
de Aquino, Suma Teológica, II, 2, 24, 5.)
A quais fatores se deve
esse crescimento? Como qualquer outro tipo de vida, a vida sobrenatural cresce em
primeiro lugar pela sua própria atividade normal. A prática normal da vida sobrenatural
supõe a execução constante e amorosa da vontade de Deus, o que corresponde à fidelidade
à graça e ao cumprimento do dever quotidiano. Maria era dotada de uma "plenitude
de graça tal, que não se pode conceber outra maior abaixo de Deus". Todas as
suas ações, mesmo as comuns, eram praticadas com maior perfeição do que as mais
importantes que os santos desempenhavam. Essa perfeição ia aumentando sem cessar,
pois todo ato praticado com perfeição nos capacita a praticar melhor o seguinte.
De tal forma que, em igualdade de condições, um ato praticado aos cinquenta anos
é bem mais perfeito que aos vinte ou trinta anos.
Para melhor compreendermos
a perfeição crescente das ações de Maria, comparemos as diferenças entre o nosso
crescimento em perfeição com o que Ela teve. Inicialmente devemos notar que ao lado
das nossas ações sinceramente oferecidas a Deus há grande número de outras em que
procuramos a nós mesmos, o que interrompe ou retarda nosso movimento para a perfeição.
Mesmo nos nossos atos mais santos inserem-se negligências e motivos egoístas, que
os contaminam ora mais ora menos. Em Maria, pelo contrário, jamais se nota a procura
de si mesma. Em segundo lugar, mesmo quando estamos à procura somente de Deus, por
vezes nosso espírito se distrai do pensamento em Deus e da intenção real de lhe
agradar; outras vezes nossa liberdade se
acha cerceada por movimentos desregrados de nossa sensibilidade; pode também ocorrer um resfriamento do nosso amor
a Deus, quando não é sustentado pelas consolações divinas.
Em Maria, nenhuma interrupção
voluntária ou involuntária na ascensão para as alturas. Seu pensamento mantinha-se
sempre concentrado em Deus, mesmo em meio às ocupações mais absorventes. Parece
muito razoável sustentar a opinião de São Francisco de Sales e alguns outros autores,
de que o próprio sono dela era de amor, e nas horas em que seu corpo dormia, seu
coração velava. Tanto mais que, como narra Santa Tereza de Ávila no capítulo 29
de sua Vida, cerca de doze anos antes de atingir o grau supremo da união mística
a sua "oração era tão contínua, que o próprio sono não era capaz de interrompê-la".
Poderia ser diferente em Maria, que já no início da vida tinha uma união mais íntima
com Deus do que todos os grandes santos ao se encerrar a deles? A atenção natural
em Deus é psicologicamente incompatível com o sono, mas a ciência infusa prescinde
das imagens da sensibilidade e das condições fisiológicas.
Por que não poderia ela
exercer-se tanto durante o repouso dos sentidos quanto em seu período de atividade?
(O diretor espiritual de Santa Gema Galgani relata que durante um êxtase ela disse,
aludindo à oração da noite: "Vede, ó Jesus, que durante a noite eu durmo, mas
meu coração não dorme, sem cessar permanece vigilante e unido a vós" -- Cf.
Germano e Felix, pg. 243.)
A liberdade de Maria se
mantinha inteiramente sob controle, sem movimentos de concupiscência, sem pressão
de nenhum tipo que fosse capaz de impedir ou reduzir seu perfeito autodomínio. Mesmo
nas suas ações mais espontâneas, sua liberdade era mais completa que a nossa nos
nossos atos mais refletidos.
O amor de Maria era tão
intenso quanto Deus esperava dela. Ao contrário do que ocorre com o nosso amor,
o dela não precisava ser sustentado por Deus através de consolações sensíveis. Sabemos
que Deus não a poupou de provas e desolações, que sempre resultavam numa intensificação
do seu amor, ao contrário do que habitualmente acontece conosco. Qualquer que seja
o ângulo sob o qual analisemos a perfeição de Maria no cumprimento de todas as suas
ações, constatamos sempre que crescia com velocidade incessantemente acelerada,
longe de sofrer a menor redução.
Ao lado do crescimento
que a vida sobrenatural adquire por sua prática normal, pode haver outro que não
guarda proporção com essa prática. Da mesma forma que a vida física de um doente
pode adquirir vigor novo pela transfusão de sangue, numa pessoa comum um acontecimento
imprevisto pode comover suas fibras mais íntimas, fazendo-o encontrar energia renovada
para o bem e transformando-o em outro homem. Algo de análogo ocorre na vida sobrenatural.
Ela se intensifica sem proporção com o valor intrínseco do ato praticado na recepção
dos sacramentos, e isso se nota particularmente na comunhão. A graça da Eucaristia
ultrapassa imensamente o mérito dos atos de fé e caridade do comungante. É como
uma transfusão de sangue divino, que dá à alma participação nova na vida de Deus.
Entretanto, mesmo na recepção dos sacramentos as disposições do cristão influem
na abundância da graça produzida pela força do rito sagrado.
Pode acontecer que uma
comunhão fervorosa nos traga mais vida divina do que as comunhões mais ou menos
rotineiras de um mês ou ano inteiros.
Sem considerarmos a questão
de saber quais sacramentos Maria recebeu, sabemos que viveu com São João em Jerusalém,
onde os fieis perseveravam na fração do pão. Portanto, diariamente a Mãe de Jesus
participava do sacramento capaz de conferir mais graças que todos os outros sacramentos.
Como praticava com grande perfeição suas menores ações, podemos imaginar quais eram
suas disposições de alma quando se unia ao seu Filho, e também quão grande era a
abundância de graças que dele recebia.
A fidelidade aos deveres
de estado e à graça sacramental -- os dois fatores para o crescimento sobrenatural
-- estão ao alcance de todos os fieis. Em Maria houve um terceiro fator, absolutamente
próprio a Ela, que foi a vocação para sua dupla maternidade. Como expusemos acima,
quando Deus chama uma alma para uma função especial, além de conceder-lhe as graças
destinadas à sua santificação pessoal, acrescenta graças especiais, destinadas a
ajudá-la no cumprimento dessa função. Trata-se de graças orientadas primeiramente
para o bem das almas confiadas a quem foi escolhido para tal função.
De acordo com a economia
divina, o apóstolo não deve contribuir para o bem das almas como um simples instrumento
físico, e sim como um cooperador moral, isto é, alguém que faz por merecer a influência
que exerce, e toda função especial inclui também a concessão de graças especiais
de santificação. Em igualdade de condições, um religioso chamado para a função de
mestre de noviços recebe mais graças para se santificar do que outro religioso sem
esse encargo; o bispo responsável por uma
grande diocese recebe de Deus mais graças para sua santificação do que outro com
diocese de poucas almas; da mesma forma com
o Bispo dos bispos, responsável por toda a Igreja. Essas graças vão crescendo progressivamente
mais, à medida que o escolhido corresponde a elas com mais fidelidade.
Maria foi chamada para
uma função dupla, que é a de Mãe de Deus e Mãe dos homens. Já mostramos quão grande
foi a superabundância de graças que lhe valeu sua maternidade divina. Na qualidade
de Mãe dos homens, era chamada a merecer e distribuir para eles todas as graças
que receberam e ainda receberão até o fim dos tempos. Por esse mesmo motivo, terão
sido imensas as graças pessoais que recebeu. Como essas graças sempre encontraram
nela total correspondência, cada um dos seus atos de maternidade espiritual gerou
o aumento delas e a concessão de outras. Cada um dos atos de Maria após a Encarnação
produziu na sua alma acréscimos de graça que desafiam nosso entendimento.
Servindo-nos de uma comparação
material, podemos imaginar a perfeição de Maria como um imenso oceano cuja extensão
nenhum homem será capaz de alcançar. Teríamos assim alguma ideia, ainda que imperfeita,
do grau de santidade que atingiu. A partir de sua Imaculada Conceição, as graças
divinas lhe eram dadas com abundância cada vez maior, e a perfeição crescente com
que correspondia dilatava sempre mais os limites desse oceano já imenso. No fim
de sua vida terrena, terá atingido dimensão e plenitude inconcebíveis. Quando nos
maravilharmos na contemplação de Maria no seu reino celeste, ainda assim não conseguiremos
compreender toda a sua perfeição. (Alguns teólogos com formação matemática tentaram
representar em números, de acordo com a lei das progressões geométricas, o que deve
ter sido essa perfeição final de Maria.
Trata-se de um cálculo
fantasista, que deveria começar estabelecendo o que significa um estado de graça
duas vezes maior que outro, como também a quantidade numérica de esforço e tempo
necessários para multiplicar por dois esse estado de graça. Alguns lamentarão que
não exprimem a realidade esses números astronômicos referentes aos graus de graça
que imaginaram ter desvendado em Maria. Será que isso é mesmo lamentável? Qualquer
número, por maior que seja, não supera nossa inteligência, pois podemos conhecer
com exatidão os seus limites e estabelecer em relação a eles uma multidão de comparações
e avaliações. Pelo contrário, uma perfeição de vida sobrenatural como a que estamos
analisando está muito além do que nossa inteligência possa abarcar. Traz-nos muito
mais alegria confessar nossa incapacidade para conceber a imensidade das graças
da Mãe de Deus do que saber quantos quatrilhoes ou quinquilhões de vezes ela á maior
do que a nossa.)
Corolários
A contemplação dessa santidade
que desafia toda concepção nos estimula a analisar qual é o mérito dessa santidade.
As pessoas que iniciam a sua vida espiritual podem ter a impressão, devido às frequentes
tentações que os assaltam, de que todo mérito consiste na luta contra as más sugestões
e inclinações. E diante das condições únicas que a vida de Maria teve -- jamais
tentada pela concupiscência e cumulada de tantas graças -- talvez alguns se perguntem
como pode ter sido meritória a sua santidade. Evidentemente essa dúvida resulta
de um erro de avaliação, pois nesse caso a pessoa mais perfeita teria menos mérito,
considerando-se que as tentações diminuem ou desaparecem à medida que alguém se
une a Deus. Porém o mérito se adquire não apenas ao evitar o pecado, mas também
e sobretudo ao praticar atos positivos de virtude. Sem dúvida, em geral a dificuldade
vencida é um sinal de mérito, pois supõe o amor e abre espaço para mais amor.
Toda ação praticada por
amor a Deus é meritória, seja ela fácil ou difícil, mas o que faz o mérito é o amor,
e não a dificuldade.
Por outro lado, nem todas
as dificuldades consistem no combate às tentações. Geralmente não somos tentados
contra nosso obscuro dever quotidiano, por exemplo, mas isso não quer dizer que
não tenhamos mérito em cumpri-lo. Uma mãe não é tentada a abandonar seu filho doente,
mas ninguém dirá que não teve mérito em permanecer dia e noite junto ao seu leito.
Nosso Senhor não era tentado a desobedecer ao Pai celeste, mas ninguém dirá que
não teve mérito ao sofrer e morrer de acordo com a vontade do Pai.
Maria não foi tentada do
modo como somos tentados, porém praticou atos de virtude mais difíceis e mais amorosos
que os de qualquer outra criatura. Por conseguinte, seu mérito unindo-se a Deus
era maior que o das outras criaturas em lutar contra as tentações mais violentas
da concupiscência. É verdade que uma graça incomparável a sustentava, mas todos
sabemos por experiência própria que a graça não nos dispensa da necessidade de cooperar
com ela, e que os atos de virtude nos quais ela triunfa mais gloriosamente são precisamente
os que exigem de nós mais esforços.
Abstraindo da perfeição
intrínseca do amor de Maria, Ela podia merecer ainda mais do que nós devido à própria
perfeição da sua liberdade, que era sempre completa e sem entraves, ao passo que
o exercício da nossa é contrariado, ora mais ora menos, pelos nossos hábitos e tendências.
Se o mérito sobrenatural
de uma ação depende necessariamente do amor a Deus com que é praticada, a grandeza
do mérito dependerá da grandeza do amor a Deus. Mais especificamente, dependerá
do grau de caridade com que o autor da ação a praticou e das disposições especiais
dessa caridade, como pureza, constância e intensidade. Uma analogia pode ser encontrada
na nossa reação quando ganhamos um presente. Aos nossos olhos ele terá muito mais
valor se oferecido por um amigo do que por um desconhecido, ou se foi motivado por
uma segunda intenção voltada a obter uma recompensa, ou ainda se de alguma forma
se engrandecia com o seu ato. O mesmo se pode dizer do valor que Deus dá à ação
de quem lhe oferece algo. Já mencionamos que a caridade habitual de Maria foi sempre
superior à de todos os servos de Deus, e a cada momento praticava a vontade do Pai
celeste com toda a pureza e todo o amor de que era capaz.
Os méritos de cada ato
de Maria a elevavam acima dos méritos de todos os homens e de todos os anjos reunidos.
Já o seu primeiro ato voluntário, que foi sua resposta ao amor de Deus Criador e
Santificador na sua Imaculada Conceição -- na hipótese de que já nesse momento tinha
o uso da razão -- era de valor maior e dava mais glória a Deus do que a reunião
de todos os atos mais heroicos dos santos e mártires. Esse mérito crescia na proporção
da graça que a inundava e do amor que se aperfeiçoava. Qual foi o valor desse mérito
no fim da vida? Tão grande quanto a sua perfeição final.
Maria
e o triunfo da Redenção
Uma consequência dessa
santidade e mérito transcendentes é que a Virgem constitui para a Redenção um triunfo
único. Podemos imaginar, para efeito de comparação, que todos os anjos e homens
tivessem permanecido fieis a Deus; que jamais
tivesse sido cometido algum pecado, mesmo venial; que todos os seres racionais, desde o primeiro
momento em que foram chamados à existência, tivessem constantemente cantado a glória
de Deus eterno, como o fazem os espíritos bem-aventurados. Se tudo isso se tivesse
realizado desse modo perfeito, mas não tivesse havido uma Mãe de Deus com as perfeições
de Maria, todo o imenso concerto de gratidão e adoração a Deus teria originado menos
amor e beleza na criação, e teria dado menos glória a Deus do que resultou da existência
de Maria.
Assim é, mesmo considerando-se
este nosso mundo miserável. E se Deus tivesse criado todos os mundos possíveis,
habitados por seres incomparavelmente mais numerosos e mais perfeitos do que nós,
jamais esses mundos poderiam oferecer o espetáculo de tão grande amor e perfeição,
nem tantos motivos de comprazimento como existe na sua Bem-aventurada Mãe. -- Fecit
mihi magna qui potens est, -- Et sanctum nomen ejus!
Capítulo,
9º. SIGNIFICADO DA ASSUNÇÃO
É especialmente importante
compreender o significado exato da Assunção, muitas vezes apresentada juntamente
com detalhes legendários que resultam em falseá-la, abalando em alguns fieis a convicção
sobre esse privilégio de Maria.
Entre os apócrifos do Novo
Testamento encontram-se vários atribuídos a São João ou a Meliton, (um dos seus
discípulos mais próximos) escritos esses
que pretendem relatar a morte e glorificação da Mãe de Deus. De acordo com alguns
deles, quando se aproximou o momento de Maria deixar esta terra, os apóstolos voltaram
a Jerusalém, transportados sobre as nuvens, e se reencontraram ante o leito da Bem-aventurada
Virgem. Logo Nosso Senhor apareceu entre eles, acompanhado de miríades de anjos
entoando cânticos celestes, e elevou ao céu a alma de sua Mãe. Os apóstolos depositaram
os restos mortais de Maria em um túmulo no horto de Getsêmani, e lá permaneceram
rezando e chorando até o momento em que viram seu corpo sair glorioso do túmulo
e se elevar ao céu no meio dos anjos.
Segundo outra versão, São
Tomé não conseguiu comparecer a tempo de participar do sepultamento. Quando afinal
chegou, ao passar sobre o monte das Oliveiras viu Maria que se elevava no ar. Ela
deixou cair sua cinta, que Tomé recolheu e em seguida se juntou aos outros apóstolos.
Estes quiseram conduzi-lo ao túmulo da Virgem, mas o apóstolo antes incrédulo revelou
aos outros, como uma espécie de vingança, que Ela já não se encontrava no túmulo,
e como prova mostrou-lhes a cinta. Dirigiram-se em conjunto ao túmulo e o abriram,
encontrando-o vazio e exalando perfumes celestes. Louvaram a Deus e à sua Mãe, em
seguida retornaram a suas respectivas residências utilizando os mesmos meios de
locomoção aérea.
Até aqui é o que narra
a legenda, mas a doutrina da Assunção é algo muito diferente. Se bem que não tenha
ainda sido definida dogmaticamente pela Igreja,podemos ter sobre ela uma ideia exata
comparando-a com duas outras -- glorificação do corpo de Jesus e ressurreição da
carne, que são de fé, -- entre as quais a Assunção ocupa, por assim dizer, o próprio
centro. Professamos que o corpo de Jesus reuniu-se à sua alma, após permanecer três
dias no túmulo, e se encontra imortal, impassível e glorioso no céu. Professamos
também que os corpos dos justos falecidos, atualmente separados de suas almas que
foram elevadas aos céus, serão unidos a elas após o Juízo Final, de modo semelhante
ao que aconteceu com Jesus Cristo. (-- Este livro foi publicado em 1945, portanto
antes da proclamação do dogma da Assunção, feita por Pio XII em 1º de novembro de
1950. Comemora-se a festa em 15 de agosto.)
De acordo com a doutrina
da Assunção, afirmamos que a ressurreição da carne se dará somente no fim do mundo,
mas a de Maria ocorreu pouco depois de sua morte. A diferença é que Jesus subiu
ao céu por seu próprio poder, e Maria foi elevada ao céu por seu Filho. É esta a
distinção que a Igreja faz, quando usa para Jesus a palavra Ascensão, e para Maria
refere-se a Assunção. (Raros teólogos sustentaram, talvez na esperança de reforçar
ainda mais a doutrina da Assunção, que a Mãe de Deus não morreu e foi transportada
viva ao céu. Esta opinião nos parece evidentemente errônea, por ser contrária a
uma tradição praticamente unânime afirmando que Maria morreu antes de ser elevada
ao céu.)
Da mesma forma que Jesus,
Maria goza hoje no céu a recompensa que todos os justos terão futuramente. Não se
trata, portanto, de uma crença fantasista baseada em legendas, e sim de uma afirmação
muito clara para todos os católicos, que admitem a Ressurreição de Nosso Senhor
e a própria ressurreição que seus corpos terão no futuro. Não está vinculada a nenhum
fato histórico, mesmo conhecendo-se este dado de caráter negativo, que é o desconhecimento
do local onde teria sido sepultado o corpo de Maria, além de nenhuma pessoa ter
visto seu corpo em decomposição. Esta é uma informação que nunca foi contestada.
1º.
Assunção de Maria, verdade revelada
Nenhum texto da Sagrada
Escritura afirma explicitamente a Assunção de Maria. Porém podemos assinalar na
Revelação feita aos fieis dos tempos apostólicos várias indicações próprias a orientar
o pensamento no sentido da glorificação antecipada do corpo de Maria.
O relato da queda de Adão
e os ensinamentos de São Paulo nos mostram que a morte e a corrupção subsequente
não faziam parte dos desígnios iniciais de Deus, constituindo apenas um castigo
do pecado. São Paulo repete numa linguagem patética -- e não o saberíamos se ele
não o tivesse dito -- que o pecado é sobretudo obra da carne, que luta contra o
espírito e procura subjugá-lo. Sabemos ainda -- e São Paulo o reafirma sem cessar
-- que Cristo venceu o pecado e a morte, e seu corpo glorificado goza a recompensa
celeste juntamente com sua alma.
O ensinamento apostólico,
sobretudo o de São Paulo, nos anuncia que, como membros de Cristo, seremos com Ele
glorificados futuramente em nosso corpo e em nossa alma. Por outro lado, a Escritura
nos fornece a respeito da Mãe de Jesus alguns conhecimentos que, comparados com
as informações precedentes, nos orientam no sentido de um destino particular reservado
ao seu corpo virginal: Em Maria não existe carne pecaminosa, sua carne totalmente
pura serviu para se formar com ela o próprio corpo de Jesus, portanto não deveria
padecer o destino que terá a nossa carne de pecado. Mais ainda que uma carne totalmente
pura, foi ela a mesma que o Redentor sacrificou na cruz a fim de destruir a morte
e o pecado. Deveria essa carne de Maria, instrumento próximo da nossa redenção,
estar sujeita ao mesmo destino de qualquer outra? Não deveria ela receber imediatamente
a recompensa da Redenção?
Maria esteve unida a Jesus
desde a Encarnação, durante longos anos de intimidade na vida oculta até o sacrifício
supremo do Calvário. Está de acordo com a lógica vê-la unida também com Ele na sua
vitória sobre a morte, para a qual cooperou. Não seria razoável padecer juntamente
com Ele e não receber com Ele a recompensa.
Um fato na vida de Maria
relaciona-se exatamente com a integridade de seu corpo, parecendo indicar qual deva
ser a resposta para essas questões. Por um milagre sem igual, Deus preservou a carne
de Maria intacta quando concebeu seu Filho. Manteve até mesmo o selo de sua virgindade
no nascimento desse Filho, e não se poderia conceber que depois de tudo isso abandonasse
esse corpo à corrupção do túmulo.
Estamos portanto diante
de um conjunto de dados fornecidos pela Sagrada Escritura, convidando-nos a concluir
que, para a glorificação de seu corpo e de toda a sua pessoa, a situação de Maria
não deve ser procurada ao lado dos homens pecadores, e sim ao lado de seu Filho.
Na Igreja primitiva não se pensava em fazer tais aproximações a fim de justificar
essas conclusões, mas já se possuíam os elementos a serem comparados. Afirmando
mais tarde a Assunção de Maria, não se inventa nada de estranho ao que se sabia
na Igreja dos primeiros séculos, o que se faz é simplesmente examinar com mais atenção
os mesmos dados, aproximá-los e concluir a partir deles o seu alcance completo.
Alguns teólogos supõem
uma tradição local sobre a Assunção, que remontaria aos apóstolos e teria se expandido
pouco a pouco em toda a Igreja, não conseguindo esses estudiosos explicar de outro
modo a crença universal da Igreja nesta verdade. A existência de uma tradição como
essa não é impossível, embora não se encontrem traços dela nos mais antigos escritores
eclesiásticos, que não mencionam a morte e sepultamento da Virgem. Mas os derradeiros
fatos da sua vida não podem ter passado despercebidos nos locais onde transcorreram
seus últimos dias, pois o pensamento dos cristãos estava muito atento à sua ligação
íntima com o Mestre tão amado. Como se pressentia muito bem que todas as gerações
a proclamariam bem-aventurada, não se conseguiria evitar muita expectativa em torno
de sua morte, como também muito interesse pela sepultura desse corpo que gerou o
de Cristo.
Não é inverossímil que
São João e talvez alguns outros apóstolos tenham assistido à morte de Maria, recebendo
alguma revelação sobre sua glorificação corporal. É natural também que em torno
da sepultura a curiosidade fosse particularmente viva, incitando as pessoas a conferir
o que havia dentro dele, a exemplo do que narra o Evangelho sobre o túmulo do Salvador.
Há uma antiga tradição em Jerusalém que alega conhecer o túmulo de Maria, encontrado
vazio como o de Cristo. Entretanto são hipóteses, não necessárias para explicar
a convicção sobre a Assunção de Maria. As indicações convergentes, fornecidas pelo
Novo Testamento, bastam para termos a certeza de que a Assunção é uma verdade revelada.
É difícil surpreender nos
quatro primeiros séculos da era cristã o trabalho da Tradição relativo à glorificação
corporal de Maria. Nenhuma heresia, nenhum acontecimento incitou os escritores dessa
época a manifestar pontos de vista sobre essa convicção piedosa. Santo Epifânio,
Padre do século 4, alude ao assunto indagando se Maria havia passado pela morte,
o que implica saber se o corpo da Virgem sofreu a corrupção do túmulo. No século
seguinte, encontramos os apócrifos mencionados acima, que devem ter gozado de ampla
divulgação, pois no fim desse século o Papa Gelásio sentiu-se obrigado a recusar-lhes
autenticidade.
Um século mais tarde, a
festa da Assunção era celebrada em muitas igrejas do Oriente e do Ocidente com nomes
diversos -- dormitio, pausatio, transitus, translatio, assumptio -- todos mencionando
a glorificação corporal da Virgem. Isso nos coloca na situação de um explorador
que chega a um território desconhecido e encontra um rio caudaloso, porém não consegue
traçar até sua nascente o trajeto que ele percorre. Surge então a dúvida se a fonte
desse rio se encontra a poucos metros dali, ou se ele já percorreu um longo trajeto.
A veneração crescente que
Maria alcançava entre os cristãos dos primeiros séculos, sobretudo a honra excepcional
vinculada à lembrança de sua virgindade miraculosa, terá provavelmente inclinado
os fieis a fazer a aproximação dos dados indicados acima, e o senso cristão lhes
terá imposto a conclusão de que o corpo virginal da Mãe de Deus, que forneceu a
substância do corpo do Redentor, não podia ter sofrido degeneração, devendo ter
gozado desde já a glória da ressurreição.
O sentimento popular não
pode se contentar com conclusões intelectuais, precisa de provas que falem à imaginação.
A dificuldade para isso não era grande, e pode ter-se apoderado de alguma tradição
local para lhe enxertar pitorescos episódios de sua invenção. Na falta de tal tradição,
esse sentimento é bem capaz de criar peças inteiras a partir de detalhes fantasistas.
Os detalhes variam de um relato a outro, mas sente-se neles uma verdade, esta sim
invariável: a crença na ressurreição gloriosa da Mãe de Deus.
Nos séculos seguintes,
o sentimento dessa verdade conduziu os fieis a proclamar cada vez mais nítida e
universalmente a Assunção da Virgem, apesar da desaprovação com que o decreto de
São Gelásio golpeou os apócrifos. No entanto esse decreto pareceu a muitos um tipo
de condenação da piedosa crença, daí surgir em certos meios alguma hesitação sobre
a doutrina que esses livros procuravam difundir.
Uma carta atribuída a São
Jerônimo declarava não poder afirmar nada com certeza sobre a Assunção de Maria,
e aconselhava uma atitude não hostil, mas neutra. A autoridade do grande doutor
e exegeta impressionou mais de um escritor eclesiástico, mas a maior parte dos teólogos
se pronunciou francamente a favor do glorioso privilégio. Logo surgiu outro escrito,
apócrifo como o primeiro, atribuído a um doutor ainda mais reverenciado, Santo Agostinho,
que defendia abertamente a glorificação da carne de Maria devido à carne de seu
Filho -- caro Christi, caro Mariæ. A partir do século 10, a piedosa crença estava
generalizadamente aceita, restando apenas alguns eruditos que de tempos em tempos
levantam algumas objeções sobre seu caráter de verdade revelada.
2º.
A Assunção, ensinada pelo magistério da Igreja
Pode-se afirmar que a Assunção
se impõe à nossa fé como verdade absolutamente certa?
Vimos na introdução que
se utilizam três critérios de certeza para as afirmações religiosas: o julgamento
solene da Igreja, o magistério ordinário e a atitude dos fieis. A Igreja ainda não
emitiu julgamento solene sobre a Assunção corporal de Maria. O Primeiro Concílio
do Vaticano havia incluído a definição desse privilégio entre os assuntos do seu
programa. Porém, como se sabe, teve de suspender suas sessões antes de concluir
seu trabalho. (Ver acima a nota do tradutor sobre a proclamação do dogma em 1950.)
Quanto ao magistério ordinário,
lembramos que ele procede por meio dos documentos emanados da Santa Sé, pelas instruções
conjuntas dos bispos e pela liturgia. Na encíclica sobre o Corpo Místico de Cristo,
Pio XII menciona a Assunção corporal como quem menciona uma convicção admitida por
todos: "Suplicamos portanto à Santíssima Mãe de todos os membros de Cristo,
que juntamente com seu Filho brilha no céu, na glória de seu corpo e de sua alma,
que multiplique seu empenho diante dele".
Pode-se afirmar igualmente
que os bispos do mundo inteiro ensinam aos seus diocesanos a Assunção corporal de
Maria. Nos catecismos ordinários, nos catecismos de perseverança, nos cursos de
dogma ministrados nos seminários, nas pregações aos fieis, isso se faz pelo menos
com sua aprovação tácita, pois os fieis do mundo inteiro conhecem esse privilégio
da Virgem, e para que eles o conheçam é necessário que lhes tenha sido ensinado.
A liturgia é também muito
explícita. A festa da Assunção, que talvez seja a mais antiga da Virgem, lembra
claramente a todos os fieis a glorificação corporal de Maria logo após sua bem-aventurada
morte. O adágio lex orandi, lex credendi (tal oração, tal fé) aplica-se neste caso
com autoridade que não se vê em nenhum outro. Além de ser celebrada no mundo inteiro
como festa de primeira classe com oitava, a Assunção não pode ser ignorada por nenhum
fiel, por tratar-se de festa de preceito. Seria inconcebível que a Igreja nos obrigasse,
sob pena de pecado mortal, a festejar um privilégio que considerasse duvidoso.
Por último, a atitude dos
fieis não deixa também nenhuma margem a dúvida sobre sua adesão a esse privilégio.
Ela é bem mais antiga, mais explícita, mais universal ao longo dos séculos do que
havia sido, antes de 1854, o dogma da Imaculada Conceição.
Portanto, dois dos três
critérios de certeza garantem a veracidade da Assunção, e lembramos a propósito
que bastaria um dos três para chegarmos a esta conclusão. Pode-se argumentar ainda
que esses critérios provam somente a realidade da Assunção corporal de Maria, e
não seu caráter de verdade revelada, pois nem a liturgia nem o sentimento comum
dos fieis afirma explicitamente que tal crença nos vem da Revelação. Ocorre, no
entanto, que jamais a liturgia ou o sentimento comum dos fieis proclama explicitamente
a origem revelada de uma afirmação de fé, no entanto são ambos admitidos como provas
irrecusáveis da Revelação, porque implicam sempre a mesma origem. Com efeito, sabe-se
que ao ensinar uma verdade como absolutamente certa, a Igreja só o faz pelo fato
de essa verdade ser uma consequência da lei natural, da qual Deus a fez guardiã,
ou então da Revelação, cujo depósito Deus lhe confiou.
Como a Assunção de Maria
evidentemente não provém da lei natural, conclui-se que pertence à Revelação. (Pode-se
percorrer em Denzinger-Bannwart a lista das proposições claramente definidas, e
não se encontrará uma em dez, talvez uma em cinquenta, que afirme explicitamente
a origem revelada da verdade que ela ensina.
Para quem examina os critérios
da Revelação, a origem divina da crença na Assunção não pode apresentar nenhuma
dúvida, e exige assentimento incondicional. Isto não equivale a dizer que se tem
o direito de acusar de infidelidade, ainda menos de heresia, alguns teólogos que
ainda manifestam hesitações sobre o assunto. Estão habituados -- erradamente, mas
aparentemente sem culpa própria -- a encarar como impondo-se à nossa fé apenas as
verdades definidas pelo julgamento solene da Igreja; pode ser também o caso de estarem conferindo excessiva
importância a algumas vozes discordantes, como se fosse exigida a unanimidade absoluta,
ou até que a considerem possível, quando na realidade basta uma quase unanimidade.
Talvez por essas razões eles não consigam encarar que esse privilégio possui as
características evidentes de verdade revelada.
Só a cegueira voluntária
constitui pecado, ao contrário de uma simples cegueira, e talvez algum dia a lembrança
das disputas que houve sobre a Imaculada Conceição os faça compreender melhor que,
por mais que sejamos teólogos e sábios, nossos argumentos nunca prevalecem contra
o sentimento comum dos fieis. A palavra de Santo Agostinho, que conduziu Newman
à fé católica, poderá um dia conduzi-los a um entendimento mais profundo do mistério
de Maria: Secure judicat orbis terrarum.)
Conseguiremos algum dia
ver proclamada a Assunção como dogma de fé, como a Imaculada Conceição? Tal proclamação
não acrescentará nada à certeza da nossa fé, mas dará mais glória a Maria. Após
o projeto de definição depositado no Primeiro Concílio do Vaticano, chegaram de
vários países petições com assinaturas de numerosos fieis, sacerdotes, bispos, universidades,
pedindo ao Vigário de Cristo o apressamento do dia em que na terra seja glorificada
aquela que Cristo tão maravilhosamente glorificou no céu. Chegará esse dia? Somente
o Papa pode decidir.
3º.
Harmonias
As harmonias entre a Assunção
e os outros privilégios da Virgem foram esboçadas acima, e basta agora mostrarmos
como esse privilégio é complemento necessário da maternidade espiritual e do conjunto
dos outros privilégios.
A Assunção é praticamente
necessária a Maria para preencher esse papel de mãe, que tem grande importância
na nossa devoção a Ela. Se apenas sua alma estivesse no céu, faltar-lhe-ia algo
para podermos senti-la como nossa mãe, pois estaria muito longe de nós, etérea demais,
sendo que uma mãe não é só espírito, tem também um corpo. Não há dúvida de que o
amor é atributo da alma, não do corpo, mas a alma unida ao corpo é o que gera essa
delicada sensibilidade, esse matiz de ternura, esse algo inefável que distingue
o amor materno de qualquer outro amor, até mesmo do amor paterno.
A mãe manifesta seu amor
através das atitudes e gestos de seu corpo -- um olhar, um sorriso, lágrimas, o
tom de voz, o contato de sua mão, os ternos abraços. Se pudéssemos conceber a Santíssima
Virgem no céu como uma alma separada do corpo, certamente nossa piedade filial em
relação a Ela e sua ação materna conosco não seriam o que são -- não poderia compartilhar
nossos sentimentos, consolar-nos, amparar-nos nas nossas tentações como hoje. Para
confidenciarmos nossas emoções, nossa história íntima em que nosso corpo desempenha
papel tão importante, precisamos de uma mãe em carne e osso, cuja sensibilidade
infinitamente delicada consegue vibrar perfeitamente em consonância com a nossa.
Especialmente quando a
tristeza nos invade, só uma mãe plenamente mãe pode nos compreender e enxugar nossas
lágrimas. A lembrança de nossa mãe do céu é a mais adequada para nos consolar e
nos devolver a paz e a coragem; a lembrança
da mãe das dores, que sabe como ninguém o que é o sofrimento, e que nos olha com
os mesmos olhos que viram o sofrimento de seu Filho; a lembrança da mãe pura, que nos faz resistir às
tentações violentas ou atraentes; a lembrança
da mãe que nos ajuda eficazmente, pois não é só espírito, é mãe em toda a plenitude
da palavra.
Exatamente por sua presença
corporal, Maria possui esse poder tranquilizador e purificador que é só dela. Basta-nos
admirar esse olhar tão recolhido, tão sereno, tão belo, tão divinamente puro, para
que se desfaça em nós qualquer imagem impura, acalmando-nos e enchendo-nos de confiança
e força nas nossas dificuldades. Se a Mãe imaculada toma em seus braços esse pobre
filho e o estreita junto ao seu coração, como fez com seu Filho divino, como deixará
ele de voltar-se inteiramente para Jesus e Maria?
O mesmo se pode dizer sobre
as outras funções maternas de Maria. Se as desempenha tão perfeitamente, é porque
está no céu em corpo e alma. Sem a Assunção, Ela seria menos mãe, não seria mamãe.
O Filho de Deus conhecia
por experiência própria a diferença de atitude dos homens a seu respeito, comparando
a que haviam tido quando era ainda puro espírito e a que passaram a ter quando se
revestiu de carne humana. Quis fazer-nos participantes da sua piedade filial em
toda a medida do possível, e decidiu que Maria estaria de corpo e alma no céu, para
ser em corpo e alma a sua Mãe e também a nossa Mãe.
Sendo todos os homens concebidos
em pecado original, encontramos até mesmo nos santos algumas desordens, pelo menos
no início da vida, por vezes em parte considerável dela. A incoerência desaparece
à medida que se vão santificando, o equilíbrio e a paz se estabelecem inicialmente
nas suas potências superiores, descendo pouco a pouco às faculdades inferiores,
atingindo até os movimentos do seu corpo e expandindo-se a santidade na harmonia.
Desde sua Imaculada Conceição,
Maria sempre foi a criatura mais harmoniosa que se possa imaginar. Uma harmonia
inefável, sendo cada batimento do seu coração voltado para a santidade mais sublime.
Só Deus pode avaliar a harmonia perfeita de Maria no final da vida, sem qualquer
sombra de desordem. A corrupção da carne após a morte é uma manifestação de desordem,
como consequência do pecado original. Porém Maria nunca teve em si a desarmonia
do pecado original, não merecendo portanto o castigo da separação entre corpo e
alma e a consequente corrupção da carne após a morte. Era necessário que a harmonia
realizada na vida terrena se completasse com a permanência da alma unida ao corpo,
o que se concretiza no céu por meio da glorificação de sua alma e do seu corpo,
como reflexo da infinita glória de seu Filho.
Examinando em seu conjunto
as várias grandezas de Maria, concluímos que lhes faltaria algo se não tivesse havido
a Assunção em corpo e alma.
Capítulo,
10º. A BEM-AVENTURANÇA DE MARIA
A assunção foi apenas um
começo, constituindo o primeiro momento de uma bem-aventurança sem fim. Resta-nos
tratar dessa bem-aventurança. Mas como se pode analisá-la ou descrevê-la? "Os
olhos do homem nunca viram, seus ouvidos jamais ouviram, seu coração jamais compreendeu
o que Deus prepara aos que o amam". Esta palavra do Apóstolo se refere à bem-aventurança
até do último dos pecadores que, uma vez purificado, entra no gozo de sua glória.
O que dizer então da bem-aventurança daquela que, desde a sua Imaculada Conceição,
ultrapassou na sua santidade final a de todas as criaturas?
Entretanto, uma necessidade
profunda nos impele a contemplar, mesmo que seja a grande distância, alguns reflexos
da felicidade concedida a nossa Mãe do céu. Se não é possível descrevê-la, pelo
menos podemos enunciar um ou outro princípio adequado para orientar a nossa contemplação.
Lembramos inicialmente
que a nossa vida no céu é a expansão da nossa vida sobrenatural da terra. Pela graça
santificante, somos filhos de Deus, e o céu é a plenitude da vida da graça na visão
e posse de Deus nosso Pai. Na sua essência, essa vida é a mesma para todos os bem-aventurados,
diferindo entretanto em sua intensidade e quanto ao seu modo. Da mesma forma que
na terra cada pessoa ama a Deus à sua maneira, de acordo com seu caráter e suas
condições de vida, também no céu nossa bem-aventurança será diferente das outras
de acordo com nossos modos de vida na terra. "No céu, até uma estrela é diferente
de outra". Na terra, os patrões remuneram seus empregados com a mesma moeda,
quaisquer que sejam suas funções e aptidões, mas no céu Deus sabe recompensar cada
mérito particular por meio de uma recompensa particular. A Igreja o reconhece, quando
atribui glória especial aos mártires e às virgens.
De acordo com estes princípios,
podemos afirmar inicialmente que a bem-aventurança de Maria deve ultrapassar, da
mesma forma que sua santidade, a de todos os anjos e bem-aventurados reunidos. Não
basta dizer isso, pois esta já seria a situação se Ela fosse elevada ao céu depois
do seu primeiro ato de amo. Qual deve ser então sua bem-aventurança depois de ter
atingido a santidade final?
Podemos ainda examinar
todas as virtudes de Maria, tentando adivinhar a bem-aventurança especial que deve
corresponder a cada uma delas: Sua fé tornou-se visão, uma visão única correspondente
a uma fé única; visão que a faz imergir nas
profundezas dos mistérios divinos, da Santíssima Trindade, da Encarnação, da Redenção,
da predestinação dos homens em geral e da sua em particular; visão que sem dúvida não esgota esses mistérios,
mas neles penetra imensamente mais que as inteligências celestes mais sutis.
Sua esperança tornou-se
posse; uma posse plena, inquestionável, do
Deus que sempre possuiu a um título único desde a sua Imaculada Conceição, sobretudo
depois da Encarnação; uma posse que agora
é dotada de segurança e plenitude inteiramente novas.
Sobretudo o seu amor encontrou
inteira saciedade, tendo desaparecido os entraves terrestres e caído as separações;
um amor sem limites, com intensidade e pureza
incomensuráveis, doravante orientado livremente para o Amor infinito, com todo o
seu indizível ardor; sua caridade em relação
aos homens se ampliou na mesma proporção, pois trata-se de um aspecto do seu amor
a Deus. Maria ama Jesus nos seus filhos do céu e da terra, com amor indefinidamente
ampliado, tanto quanto se ampliou o seu amor a Jesus. Juntamente com a intensidade
desse amor, cresceu também sua eficácia, pois agora dispõe à vontade das infinitas
riquezas de Deus para distribuir aos seus filhos.
Da mesma forma que as virtudes
teologais, as virtudes morais da Virgem terão recebido sua expansão especial e sua
recompensa particular. Quanta adoração deve Maria oferecer à Santíssima Trindade!
Quantas ações de graças contínuas deve render pelas grandes coisas que fez por Ela
e por seus filhos! Quantas súplicas continua a dirigir a Deus em nosso favor, pedindo
perdão e socorro! Sobretudo sua piedade está maravilhosamente transformada. Sentada
junto a seu Filho, compreende plenamente o seu título único de Filha de Deus; compreende como Deus a fez entrar na Família divina,
tornando-a sua Associada, sua Mãe, sua Esposa; compreende como esse Deus de infinita bondade quis
torná-la objeto especial da nossa piedade, para que assim possamos compreender melhor
a piedade em relação a Deus.
O mesmo se pode dizer sobre
todas as outras virtudes. Assim como os mártires ocupam lugar especial junto ao
Cordeiro imolado, e como as virgens acompanham sempre o Cordeiro e cantam um cântico
que ninguém mais pode cantar, o que dizer sobre a Rainha dos mártires e Virgem das
virgens? A contemplação piedosa pode assim aplicar-se a cada uma das disposições
de Maria e pressentir o gênero especial de bem-aventurança que deve destacá-la no
céu.
Tudo indica que temos o
direito de ir mais longe, e considerar não somente as virtudes de Maria, mas também
os mistérios de sua vida. Sabemos que Jesus, tendo sido crucificado no Calvário,
permanece no céu como o Cordeiro imolado, que se oferece ao Pai para nos resgatar.
O que ocorre com este e com os outros mistérios de Cristo ocorre também com os de
Maria, nos quais se podem distinguir dois aspectos: um transitório, que se refere
aos fatos da sua vida; o outro aspecto é
permanente, e são as disposições com as quais esses fatos se deram e as relações
que deles resultaram. No céu, onde tem a sua glória, Maria permanece sempre a Virgem
da Imaculada Conceição, a Virgem da Encarnação, a Virgem da co-redenção, e também
mantém todas as disposições que a animavam no momento em que esses mistérios se
realizaram nela ou por meio dela.
Sem nenhuma dúvida, mantém
também a alegria que esses mistérios significaram para Ela naquele momento, porém
indefinidamente multiplicada.
Os pontos que indicamos
são suficientes para se entender algo da bem-aventurança de Maria, mas seus filhos
saberão encontrar neles e em muitos outros um alimento constante para suas meditações,
enquanto aguardam na terra o momento de participar da glória dela no céu.
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