terça-feira, 16 de janeiro de 2018

MÉTODO DE ASSISTIR A SANTA MISSA PELA MEDITAÇÃO DA PAIXÃO - São Pedro Julião Eymard

"Sempre que participardes dos Mistérios Sagrados, anunciareis a Morte do Senhor." (1Cor 11,26.) Para assistir devotamente à Santa Missa, meditai nos diversos passos da Paixão do Salvador, renovados ali de maneira tão admirável. Preparação: Considerai o Templo como o lugar mais santo e respeitável do mundo, como um novo Calvário. O Altar, de pedra, contém os ossos dos Mártires. Os círios, que ardem e se consomem, são o símbolo da fé, esperança e caridade. As toalhas brancas, que cobrem o Altar, lembram-nos as mortalhas em que foi envolvido o Corpo de Jesus Cristo. O Crucifixo no-lo representa morrendo por nós. No sacerdote, vede Jesus Cristo com as vestes de sua Paixão; no amito, o pedaço de fazenda com que os carrascos velaram a Face do Salvador; na alva, a túnica branca de escárnio com que o vestiu o impudico Herodes; no cordão, os laços com que os Judeus o ataram no Jardim das Oliveiras, a fim de levá-lo aos tribunais; no manipulo, as cadeias com que foi preso à coluna de flagelação; na estola, as cordas com que o puxaram pelas ruas de Jerusalém com a Cruz às costas; na casula, o manto púrpura que lhe lançaram no pretório, ou a Cruz que lhe impuseram. Numa palavra, o ministro, trazendo as vestes sacerdotais, representa-nos o próprio Jesus Cristo, caminhando para o suplício do Calvário. E, alem disso, ensina-nos quais as disposições com que nos devemos apresentar ao Santo Sacrifício. O amito, colocado primeiro na cabeça e logo depois nos ombros, é símbolo da modéstia e do recolhimento; a alva branca e o cordão, da pureza; o manipulo, da contrição; a estola, da veste de inocência; a casula, do amor da cruz e dojugo do Senhor. O sacerdote entra e se aproxima do altar levando o cálice. Vede Jesus dirigindo-se ao Jardim de Getsêmani para ali começar sua Paixão de Amor. Com os Apóstolos, acompanhai-o, mas ficai a velar e rogar com Ele. Afastai toda distração, todo pensamento alheio a tão tremendo Mistério. O sacerdote, aos pés do Altar, inciína-se, ora e humilha-se profundamente, à vista dos seus pecados. Jesus, no Jardim, prostra-se, a face contra a terra; humilha-se pelos pecadores; um suor de Sangue, fruto de sua imensa dor, corre-lhe pelo Corpo, ensangüentando-lhe as vestes, manchando a terra. É que Ele tomou a si nossos pecados, com toda a amargura inerente. A vós, então, cabe confessar com o sacerdote vossas faltas; com ele pedir humildemente perdão e receber a absolvição, para que, purificado, possais assistir ao Santo Sacrifício. Se esta só consideração vos ocupar durante todo o Sacrifício; se vos for dado participar dos sentimentos e da agonia de Jesus; se a graça vos retiver ao seu lado, está bem. De outra forma, acompanhai-o no percurso da Paixão. O sacerdote, subindo o Altar, beija-o. Judas, chegando ao Jardim das Oliveiras, dá - a Jesus um beijo pérfido. Ah! quantos não tem ele recebido dos seus filhos e ministros infiéis! Ai de mim! nunca o traí eu?... Nunca o entreguei aos seus inimigos ou às minhas paixões?... E, no entanto, Ele muito me amou! Podeis também contemplar a Jesus preso, tornando a Jerusalém, a fim de comparecer perante seus inimigos e deixando-se levar com a doçura do Cordeiro. Pedi-lhe a paciência e a mansidão nas provações por parte do próximo. O sacerdote começa o intróito e benze-se. Jesus é conduzido à presença do sumo Pontífice Caifás, onde Pedro o renega. Ah! quantas vezes não o reneguei eu, à sua verdade, à sua lei, às minhas promessas! E não foi nem o temor, nem a surpresa que me levaram a renegar meu Salvador. Ai de mim! Sou, por conseguinte, mais culpado do que Pedro, cujas lágrimas correram sem demora, uma vez cometida a culpa. E ele chorou-a toda a vida, enquanto meu coração permanece duro e insensível. O sacerdote recita o Kyrie. Jesus clama ao Pai por nós. Aceitai, com Ele, todos os sacrifícios que Deus vos pedir. O sacerdote recita as Orações - e a Epístola. Jesus, em presença de Caifás, confessa sua Divindade, ciente de que a sentença de morte lhe virá punir semelhante declaração. Meu Deus, fortificai, aumentai minha fé nessa mesma Divindade, para que, mesmo em perigo de vida, eu a adore, a ame e a confesse, feliz em poder dar meu sangue para defendê-la. O sacerdote lê o Evangelho. Jesus, em presença de Pilatos, dá testemunho de sua realeza. Sede sempre, ó Jesus, rei de meu espírito pela vossa Verdade, rei de meu coração pelo vosso Amor, rei de meu corpo pela vossa Pureza, rei de toda a minha vida pela vontade que tenho de consagrá-la à vossa maior Glória. Recitai em seguida o Credo, com fé e piedade, lembrando-vos de que o Salvador morreu em defesa da Verdade. O sacerdote oferece o pão e o vinho do sacrifício, á hóstia a Deus Pai. Pilatos apresenta Jesus ao povo exclamando: Ecce Homo! (eis o Homem!), Seu estado excita compaixão. A flagelação feriu-o até o Sangue, e a coroa de espinhos lhe ensangüentou a Face. Um manto de púrpura, já gasto, junto à vara que leva na mão, fazem dele um rei de comédia. Pilatos propõe ao povo que lhe conceda a graça, Mas este não quer e responde: Seja crucificado! Crucifigatur! E nesse momento Jesus se oferecia ao Pai pela salvação do mundo todo - e do seu povo em particular, e o Pai aceitava sua oblação. Ofereço-vos, com o sacerdote, ó Padre Santo, á Hóstia pura e imaculada de minha salvação e da salvação de todos os homens. Ofereço-vos, em união com essa oblação divina, minha alma, meu corpo e minha vida. Quero continuar a fazer reviver em mim a santidade, as virtudes e a penitência de vosso divino Filho. O Domine, regna supernos. O sacerdote lava as mãos. Pilatos também lavou as mãos para protestar a inocência de Jesus. Ah! meu Salvador, lavai-me no vosso Sangue puríssimo e purifícai-me dos muitos pecados e imperfeições que maculam minha vida, O sacerdote convida os fiéis, no Prefácio, a louvar a Deus. Jesus, Homem de Dores, há pouco aclamado por aqueles que hoje o coroam de espinhos e o atam num poste, recebe ali as homenagens derrisórias e sacrílegas de seus carrascos, que o atormentam com ultrajes indignos, lhe cospem na Face, e dele zombam. Ai de nós! Tais são as homenagens que nosso orgulho, nossa sensualidade, nosso respeito humano rendem a Jesus Cristo! No Cânon, o sacerdote inclina-se, ora e santifica as ofertas por numerosos Sinais da Cruz. Jesus curva os ombros sob o fardo da Cruz. Toma-a com amor, beija-a, leva-a com carinho, encaminhando-se para o Calvário, dobrado sob esse peso de amor. Ah! Ele carrega meus pecados a fim de expiá-los, e minhas cruzes a fím de santificá-las. Sigamos Jesus Cristo, levando a Cruz e subindo penosamente o monte Calvário. Acompanhemo-lo com Maria, as santas mulheres e Simão, o Cireneu. O sacerdote impõe as mãos sobre o cálice e a hóstia. Os carrascos, apoderando-se de Jesus Cristo, despem-no violentamente, e estendem-no sobre a Cruz, onde o crucificam, Consagração e Elevação. O sacerdote consagra o pão e vinho no Corpo, Sangue, Alma e Divindade de Nosso Senhor Jesus Cristo. Adora, de joelhos, seu Salvador e seu Deus, real e verdadeiramente presente em suas mãos. Eleva-o, em seguida, apresentando-o - à adoração dos fiéis. E Jesus erguido na Cruz, entre o céu e a terra, qual Vítima e Mediador entre Deus irritado e nós, míseros pecadores. Adorai e oferecei esta Vítima Divina em expiação, não somente pelos vossos próprios pecados, mas também pelos pecados dos homens em geral e dos vossos pais, parentes e amigos em particular. Prostrados a seus pés, seja o grito de vosso coração: Meu Senhor e meu Deus! Considerai a Jesus estendido no Altar, como outrora na Cruz, adorando ao Pai, no profundo aniquilamento de sua própria Glória, rendendo-lhe graças por todos os bens concedidos aos homens seus irmãos e irmãos redimidos mostrando-lhe as Chagas, ainda abertas, que pedem graça e misericórdia pelos pecadores; rezando por nós de tal forma, que o Pai nada lhe pode recusar, a Ele, seu Filho, e Filho que se imolou por amor à sua Glória. Prestai ao próprio Jesus o culto que Ele presta ao Pai. Adoro-vos, ó meu Salvador presente realmente sobre o Altar para renovar em meu benefício o Sacrifício do Calvário. A vós que sois o Cordeiro, ainda e diariamente imolado, bênção, glória e poder nos séculos dos séculos! Rendo-vos, agora, e por toda a eternidade vos renderei ações de graças pelo grande Amor que me manifestastes, O sacerdote invoca, profundamente inclinado, a Clemência Divina para si e para todos. E Jesus quem diz: Pai, perdoai-lhes, que não sabem o que fazem. Adorai tamanha Bondade que, desculpando sempre os criminosos, não lhes quer chamar nem inimigos, nem carrascos. Perdoai-me, ó meu Salvador, que minha culpa excede a deles, porquanto eu vos ofendi, embora soubesse que éreis o Messias, meu Salvador e meu Deus. Perdoai-me. Vossa Misericórdia será maior e, por conseguinte, mais digna ainda do vosso Coração, Se sou pródigo, sou todavia, filho. Eis-me aos vossos pés, O sacerdote ora pelos mortos. Jesus na Cruz reza pelos mortos espirituais, pelos pecadores. Sua prece converte um dos dois celerados que primeiro o haviam insultado, blasfemando contra Ele. "Lembrai-vos de mim, Senhor, quando estiverdes no vosso Reino", diz-lhe o bom ladrão. E Jesus responde-lhe: "Hoje mesmo estarás comigo no Paraíso". Ó meu Deus, pudesse eu, na hora da morte, fazer-vos o mesmo pedido e ouvir a mesma resposta! Lembrai-vos de mim nesse momento terrível, como vos lembrastes do ladrão penitente. No "Pater", o sacerdote invoca o Pai Celeste. Jesus na Cruz recomenda sua Alma ao Pai. Pedi a graça da perseverança final. No "Libera-nos o sacerdote roga para ser preservado dos males desta vida. Jesus, no grande Amor que nos tem, tem sede de novos sofrimentos e bebe, para expiar nossas gulodices, o fel misturado com vinagre. O sacerdote divide a Hóstia santa. Jesus inclina a cabeça, a fim de lançar sobre nós um último olhar todo de amor - e expira, exclamando: Tudo está consumado. É a Alma que se separa do Corpo! Adora, ó minha alma, a Jesus morrendo, e já que Ele morreu por ti, saibas tu também viver e morrer por Ele, Implorai a graça de uma morte boa e santa, nos braços de Jesus, Maria e José. O sacerdote, no "Agnus Dei", bate três vezes no peito. Enquanto Jesus expira, o sol se eclipsa de dor, a terra estremece apavorada, os túmulos se abrem. Então, carrascos e espectadores, batendo no peito, confessam publicamente seu erro, em presença de Jesus na Cruz, proclama-no Filho de Deus e afastam-se contritos e perdoados. Uni-vos à sua contrição e merecereis o mesmo perdão. O sacerdote bate no peito e comunga. Jesus é descido da Cruz, e colocado nos braços de sua Mãe dolorosa. É embalsamado, amortalhado num lençol branco e colocado num sepulcro novo. Ó Jesus, ao receber-vos no meu corpo e na minha alma, desejo que meu coração seja não um túmulo, mas sim um templo alvo e puro, ornado de belas virtudes, onde só - Vós reinareis. Ofereço-vos minha alma para morada. Vinde nela habitar, qual Senhor supremo. Não seja eu um túmulo de morte, mas um tabernáculo vivo. Ah! aproximai-vos de mim, pois longe de vós, desfaleço. Acompanhai a Alma de Jesus enquanto desce ao limbo a levar às almas dos justos a sua libertação. Uni-vos à sua alegria, ao seu reconhecimento e daivos para sempre ao vosso Salvador e vosso Deus. O sacerdote purifica o cálice e cobre-o com o véu. Jesus ergue-se do túmulo, glorioso e triunfante, encobrindo, todavia, por amor aos homens, o esplendor de sua Glória. O sacerdote, em ação de graças, recita as orações. Jesus convida aos seus a se regozijarem pela sua vitória sobre a morte e sobre o inferno. Uni-vos ao júbilo dos discípulos e das santas mulheres em presença de Jesus ressuscitado. O sacerdote abençoa o povo. Jesus abençoa seus discípulos. Inclinai-vos, confiante de receber uma Bênção que há de realizar tudo quanto promete. O sacerdote lê o último Evangelho. É quase sempre o de São João, onde está descrita a Geração Eterna, temporal e espiritual do Verbo Encarnado. Adorai a Jesus que subiu ao Céu para ali vos preparar um lugar. Contemplai-o reinando num trono de glória e enviando aos Apóstolos seu Espírito de Verdade e de Amor. Pedi que esse Espírito divino habite em vós e vos dirija em tudo o que fizerdes no correr do dia, e que este, pela graça do Santo Sacrifício, seja todo santificado e tornado fecundo em obras de graça e de salvação.

sexta-feira, 12 de janeiro de 2018

A Tibieza - Audiobook

MONS. ASCANIO BRANDAO

A Tibieza

Seus Sinais, Consequências, Remédios.



DUAS PALAVRAS

                Ao anunciar a ruína do templo e os últimos dias do mundo, Nosso Senhor predisse: E porque abundou a iniquidade se há de resfriar a caridade de muitos. (São Mateus 24,12.)

                Parecemos chegados a estes dias sombrios. Resfria-se a caridade, o fervor de tantas almas, enquanto a iniquidade cresce assustadoramente. A tibieza, é o grande flagelo. É o espinho mais doloroso do Coração de Jesus. Sobretudo a tibieza das almas consagradas a Deus, das almas outrora fiéis à graça.

                Não se presta bastante atenção à tibieza, esta mediocridade perigosa e funesta na vida espíritual. Daí tanta falsa piedade, e esta ausência do verdadeiro espírito evangélico, do sentido cristão na vida de muitos devotos e devotas. O espírito de sacrifício, o senso da responsabilidade, a seriedade, a tremenda seriedade da vida cristã de que fala Bossuet, tudo isto, anda ai tão esquecido, tão mal compreendido. Só almas fervorosas poderão salvar este mundo paganizado. Almas de elite. Almas de neve e corações de fogo no dizer do Padre Mateus. Mas elas são tão raras, tão raras, meu Deus!

                Que este livrinho seja uma centelha e provoque incêndios e ilumine algumas almas.

                Eu o consagro ao Divino Coração de Jesus, forna-lha ardentíssima de Amor.

                Coração de Jesus, todo abrasado de amor por nós, inflamai nosso coração nas chamas de vosso amor!. - Junho de 1937. - Monsenhor Ascãnio Brandão.



Capítulo I.
QUE É A TIBIEZA?

                A tibieza é uma doença espiritual e das mais graves e perigosas. É o verme roedor da piedade. Micróbio terrível! Infiltra no organismo espiritual, sem que o enfermo o perceba. Enfraquece a pobre alma. Amortece as energias da vontade. Inspira horror ao esforço. Afrouxa a vida cristã. Espécie de cansaço ou preguiça, diz Tanquerey, que não é ainda a morte, mas que a ela conduz sem se dar por isso, enfraquecendo gradualmente as nossas forças morais. Pode-se compará-la a estas doenças que definham, como a tuberculose, e consomem pouco a pouco algum dos órgãos vitais.

                É uma sonolência, um sistema de acomodações na vida espiritual.

                O tibio não quer lutar. Tem horror ao combate da vida cristã. Não compreende a palavra de Nosso Senhor no Evangelho: Eu não vim trazer a paz, mas a guerra!

                Guerra ao pecado, guerra às paixões, guerra à indiferença.

                Quem não é por mim, é contra mim!

                O tíbio não compreende este radicalismo sublime do Evangelho e da cruz. Numa palavra o define bem o Espírito Santo: é morno. Nem frio, nem quente.

                Nem o ardor da caridade, o fogo do amor, nem o gelo da descrença e da impiedade e da morte da alma.

                A tibieza é uma inércia espiritual. Um estado lamentável da alma.

                É a mediocridade que se contenta com não ofender a Deus pelo pecado mortal, mas não quer evitar o pecado leve, fugir do relaxamento na vida espiritual.

                Enfim, para defini-la com precisão e distingui-la do que a ela apenas se assemelha, como a aridez e outras provações da vida espiritual, vamos dar a sua definição.


“Definição”

                A tíbieza define-a o Santo Afonso pelo que a caracteriza: o pecado venial.

                A tibieza, diz o Santo Doutor, é o hábito do pecado venial plenamente voluntário.

                Guardemos bem esta definição.

                Para a tibieza essencial, são necessárias três condições:

1. O pecado venial plenamente voluntário;
2. O hábito do pecado venial voluntário;
3. A paz com este hábito e a ausência de esforços para se corrigir.

                Desde que falte uma destas condições, já não há tibieza propriamente dita.

                Uma alma talvez caia de vez em quando nalguma falta venial. Cai por fragilidade, por miséria. Emenda-se logo. Toma boas resoluções, corrige-se. Todavia é tão grande a fraqueza humana! Uma vez ou outra chora uma falta venial.

                Não é tibieza.

                Houve o pecado venial, mas não o hábito do pecado venial e muito menos ainda a paz com o pecado venial.

                Há esforço, generosidade, boa vontade, arrependimento sincero.

                O Padre Desurmont define a tibieza, comentando admiravelmente Santo Afonso: "A tibieza é o hábito não combatido do pecado venial, ainda que seja um só. É um hábito fundado num cálculo implícito: - Esta falta não ofenderá a Nosso Senhor gravemente, não me há de condenar. Pois vou cometê-la.

                É um ato dificílimo de se tirar completamente da alma. É um hábito muito espalhado sobretudo entre as pessoas que fazem profissão de piedade e entre as almas consagradas a Deus.


“Espécies de tibieza”

                A tibieza propriamente dita é a que definimos - o hábito do pecado venial voluntário e a paz com este hábito. Há, entretanto, outras espécies de tibieza.


1. - A tíbieza de fragilidade sem reflexão. Até os Santos experimentaram.

                Só a Virgem Imaculada não a teve. Nosso Senhor permite nos Santos algumas fragilidades e misérias, para conservar neles as virtudes fundamentais da humildade, a desconfiança de si, a compaixão para com as misérias alheias, o desapego da terra e o desejo do céu.

                Oh! os santos tiveram as suas pequenas fragilidades e misérias.

                Como se humilhavam!

                Um dia São Vicente de Paulo, num ato irrefletido de amor próprio, envergonha-se de um parente pobre!

                Como se humilhou perante seus irmãos por esta falta!

                Santa Teresinha, no leito de morte, sente-se pobrezinha e imperfeita com uma fragilidade: "Como sou feliz, diz ela, vendo-me tão imperfeita e com tanta necessidade da misericórdia do Bom Deus no momento da morte".

                Bernadette, o anjo de Lourdes, lamenta as suas imperfeições, a teimosia que a humilhava tanto.

                Santa Catarina Labouré - lamenta igual defeito.

                Guido de Fontgalland expia no leito de dores o que ele chamava as suas preguiças.

                Poderia multiplicar os exemplos.

                São as misérias inerentes a esta pobre natureza humana.

                A perfeição inteira e absoluta não se encontra neste mundo. O Concílio de Viena condenou o erro dos que afirmavam que o homem, nesta vida mesmo, pode adquirir um tal grau de perfeição, que se torna impecável e incapaz de progredir na virtude. Tal foi também o erro dos Iluminados.

                O Concílio de Trento é mais claro ainda. Condena quem disser que o homem pode, durante esta vida, evitar as mais pequeninas faltas, a não ser por um privilégio especial de Deus. E este privilégio só o teve Maria Santíssima. (Sessão 6, cânon 23.)

                A tibieza de fragilidade é inevitável. Não nos perturbemos com ela. Recorramos à oração, aos sacramentos e sobretudo à Santa Eucaristia, e nos purificaremos sempre destas fragilidades e misérias. Depois temos a Tibieza da vontade.


2. Tibieza da vontade. É, mais grave que a de fragilidade.

                É a vontade enfraquecida. Deus a permite para confusão de nosso orgulho e melhor nos convencer de nossa miséria. Um firme propósito, um gesto de arrependimento sincero, com a resolução de se vigiar com mais cuidado, e tudo está reparado.

                A tibieza de vontade é fàcilmente remediável.

                Finalmente a Tibieza do pecado venial.


3. Tibieza do pecado venial voluntário e habitual e é desta que aqui vimos tratando.


“Sinais da tibieza”

                Os sinais da tibieza em geral são os oito seguintes:


                1. Omissão fácil das práticas de piedade. A alma fervorosa tem a sua vida de piedade toda dirigida por um regulamento particular fácil de ser observado e bem criterioso.

                Não omite facilmente qualquer prática de piedade. É de uma fidelidade extrema, sobretudo à meditação. Se graves ocupações ou verdadeira necessidade a impedem, procura, logo que seja possível, suprir a falta. A alma tíbia sob qualquer pretexto omite os exercícios de piedade, passa dias sem meditação, e até mesmo sem práticas de piedade de qualquer espécie.

                Ora, isto é exatamente o contrário do fervor. "Não digo que isto prove tudo, diz o Padre Faher, mas prova muito. Seja como for, sempre que existir tibieza, existirá este sintoma".


                2. Fazer os exercícios de piedade com negligência. Na tibieza também há oração, missas, confissões, comunhões, terços, etc., mas a rotina vai inutilizando tudo. A rotina e a má vontade. Confissões e comunhões mal preparadas, orações com inúmeras distrações voluntárias. E o pior ainda a falta de generosidade e de todo esforço para se corrigir.


                3. Outro sinal de tibieza é a alma sentir-se aborrecida com o pensamento de que tudo vai mal na sua vida espiritual. Não se sente inteiramente à vontade com Deus. Não sabe exatamente onde está o mal, mas tem certeza de que tudo não está em ordem. É um mau estar, um aborrecimento interior. E, sem paz, o tíbio se agita inutilmente e vai deixando enraizar no coração o hábito do pecado venial.

                Este sinal anda sempre com os dois primeiros. Desde que faltou generosidade numa alma para ser fiel aos seus deveres de piedade, estas omissões e negligências acabam deixando-a num estado lamentável de aborrecimento das coisas santas e até de Nosso Senhor.


                4. O quarto sinal é agir sem pureza de intenção, sem ordem nem método. A pureza de intenção consiste em fazermos com um fim honesto e sobrenatural todas as ações de nossa vida: práticas de piedade, deveres de estado, trabalhos de cada dia ou qualquer coisa por mínima que seja. É aquele olhar interior sempre fixo em Deus e desviado das criaturas.

                Tudo fazer para a glória de Deus, e se submeter com espírito de fé e resignação.

                Eis a mais pura intenção que se pode imaginar, o mais elevado princípio e o mais perfeito ideal de uma alma fervorosa.

                Os santos não tinham outro motivo nem visavam outro fim na terra.

                Santa Madalena de Pazzi sentia-se arrebatada em êxtase, ouvindo esta palavra: - A vontade de Deus!

                Santo Inácio legou à Companhia de Jesus, como rica herança, o seu lema: - Tudo para a maior glória de Deus!

                A pureza de intenção é a alquimia celeste que transforma em ouro de méritos para o céu todas as nossas boas obras. Sem ela, perdemos cada dia riquezas incomensuráveis.

                A alma tíbia faz tudo por amor próprio e capricho, seguindo em tudo a natureza.

                É a leviandade, a preocupação da vontade própria, os cálculos muito humanos, a vaidade quando faz o bem, o desejo de agradar às criaturas e de aparecer.

                Anda à cata de louva minhas e aborrece o sacrifício oculto, a abnegação e outras virtudes que não brilham aos olhos das criaturas e constituem o segredo do Rei!

                E Deus recompensa as nossas ações, diz Santa Madalena de Pazzi, a peso de pureza de intenção.

                Oh! como a tibieza rouba e despoja a pobre alma, quando lhe arrebata a pureza de intenção!


                5. Contentar-se com a mediocridade e negligência em formar hábitos de virtude. Se a mediocridade já é desastrada na ciência, na literatura e na arte, o é em proporção verdadeiramente calamitosa quando se trata da prática da virtude.

                O medíocre não gosta da palavra: Santidade. Não compreende o heroísmo das almas generosas, a abnegação, o sacrifício. Para ele, a virtude heróica é o exagero!

                A santidade é um misticismo! E que entende por misticismo? Algo de loucura e de anormal.

                Contenta-se com o meio termo. E assim não se esforça por adquirir hábitos de uma virtude sólida.


                6. O desprezo das pequenas coisas. Os santos fugiam das menores imperfeições, e se purificavam cada dia das pequeninas faltas. O tíbio, não. Ri-se do que ele chama escrúpulo das almas fervorosas: - a fidelidade nas pequenas coisas.

                E não nos esqueçamos destas grandes verdades: primeira - os santos se tornaram santos pela repetição contínua duma multidão de ações insignificantes, pelo cuidado infatigável das pequeninas coisas. E segunda: - só fizeram eles grandes coisas quando chegaram à santidade.

                Os pequeninos sacrifícios ocultos, as pequeninas cruzes, as pequeninas virtudes, as pequeninas mortificações, tudo isto a cada dia, a cada minuto, aceito com generosidade, como santifica uma alma! É o caminho batido de Santa Teresinha, a pequenina via da Infância espiritual.

                Que fonte riquíssima de graças!

                A tibieza, porém, seca esta fonte, esteriliza a vida espiritual, sonha com êxtases e comete cada dia o pecado quase sem remorso. E os pecados veniais, sob o disfarce de pequeninas faltas inevitáveis à fraqueza humana, vão se multiplicando assustadoramente na alma e alimentando a tibieza até ao pecado mortal e, sabe Deus, até ao endurecimento do coração!

                É muito grave desprezar habitualmente as pequeninas coisas. São Gregório chega a dizer que se deve ter mais receio das pequenas faltas que das grandes. Porque estas provocam logo o arrependimento e causam horror; aquelas não assustam, e vão preparando surdamente a ruína espiritual. E, o que é pior, sem remorso da consciência, e até sob a capa da virtude.


                7. É pensar mais no bem já feito do que no bem que ainda resta a fazer.

                E. uma presunção que leva a descansar e afrouxar no caminho do sacrifício e da virtude, porque julga ter feito alguma coisa no passado para a salvação. Nada de esforço e generosidade. Nosso Senhor dizia no seu Evangelho que, depois de termos feito muito, deveríamos dizer: - somos servos inúteis.

                E prosseguir na luta, porque o ideal da perfeição é o Infinito: "Sede perfeitos como vosso Pai Celeste é perfeito".

                A tibieza, como já dissemos, contenta-se com a mediocridade. Julga ter feito muito a alma tibia, porque no passado foi bem fervorosa e trabalhou pela sua santificação, lutou, praticou boas obras de zelo e de caridade, sacrificou-se na luta do bem. Agora, quer repouso. Descansa, não luta mais, deixa-se ficar na indolência e faz de seu coração o campo do preguiçoso.

                São Paulo pensava justamente o contrário: "Irmãos meus, não considero que alcancei o prêmio, mas uma coisa eu faço: esquecendo o que está atrás de mim, esforçando-me por alcançar o que está na minha frente, prossigo até ao alvo, para alcançar o prêmio para o qual me chamou do Alto por Cristo Jesus. Sejamos nós, quantos queremos ser perfeitos, do mesmo espírito". (Filipenses 3,13.)

                O tíbio não se compara aos mais santos e fervorosos, mas sempre se julga melhor do que tantos outros piores do que ele.

                E é assim que adormece tranquilamente. Não quer progredir na virtude.

                São Gregório compara a vida cristã a uma barca em que se navega contra a corrente. Quem sobe, há de remar sempre, ou é arrastado pela correnteza.

                Santo Agostinho, no seu estilo incisivo e claro, assim fala: - "se dizes: basta, estás perdido!"

                Sim, no dia em que se cruzam os braços na luta pela santificação da alma, tudo está perdido! Adeus, santificação, e talvez: Adeus, salvação eterna!

                São Bernardo pergunta: - Não quereis adiantar? Dizeis: - quero ficar e viver onde cheguei? Quereis o impossível!

                O demônio, diz Santa Teresa, conserva muitas almas no pecado ou na tibieza, fazendo-as crer que é orgulho aspirar à santidade.

                Que perigosa ilusão! Lembrem-se os tíbios, sobretudo se já receberam graças de Nosso Senhor, como por exemplo sacerdotes, religiosos e almas consagradas a Deus, oh! lembrem-se de que é terrível abusar da graça e muitas almas chamadas ti santidade, diz o Padre Desurmont, baseado em Santo Afonso, ou se salvam como santos ou arriscam a sua eterna salvação.

                Escreveu o Santo Doutor: Se alguém na vida religiosa (e poderíamos acrescentar: na vida de piedade) quer se salvar. mas não como santo, corre o risco de se perder.

                Todos estes sinais de tibieza andam em geral com este último e infalfvel:

                8. Pecado venial voluntário e habitual. Os outros sinais podem ser atenuados ou alguns falham, mas este é infalível. Onde existe o hábito do pecado venial, existe a tibieza com todo o cortejo de males e desgraças que ela acarreta à vida espiritual.


“O pecado venial”

                Embora em grau inferior, o pecado venial oferece, todavia, os mesmos caracteres de malícia que o pecado mortal.

                A rainha Maria Teresa de França, esposa de Luís 14, chorava uma falta venial. A delicada consciência da Princesa a deixava inconsolável.

                - Como?! - disseram-lhe - tanta lágrima, por uma falta leve, um pecado venial?!

                - Sim, pode ser venial, mas é mortal para o meu coração! Tudo quanto ofende a Nosso Senhor nunca é leve ou coisa de somenos importância para uma alma fervorosa.

                E o pecado venial é uma ofensa a Deus. Há nele três circunstâncias agravantes:

1 - Uma injúria à Majestade Divina;
2 - Revolta contra a Autoridade de Deus;
3 - Ingratidão à Bondade Eterna.

                Deus, em cuja presença estamos, é ofendido e por uma bagatela, um ato de preguiça, uma vaidade, uma desobediência!

                Não desprezemos o que fere tanto ao Sagrado Coração de Jesus!

                O pecado venial ofende a Deus. E não basta para que o aborreçamos?

                Seja venial, embora, mas sempre é mortal para nosso coração e para a delicadeza de nossa consciência.

                É uma injúria à Majestade Divina.

                Num dos pratos da balança colocamos a vontade de Deus e a sua glória, e no outro, o nosso capricho e nosso prazer, e ousamos preferi-los a Deus!

                Que ultraje! Diz Santa Teresa: É como se se dissesse: Senhor, apesar de esta oração Vos desagradar, não deixarei de a fazer. Não ignoro que a vedes, sei perfeitamente que a não quereis; mas prefiro a minha fantasia e a minha inclinação à vossa Vontade.

                E seria coisa sem importância proceder desta forma?

                "Quanto a mim, acrescentava a Santa, por mais leve que seja a falta em si mesma; acho pelo contrário que é grave e muito grave".

                Não cometamos o pecado venial deliberado sob o pretexto de que não ofende a Deus gravemente. É pecado, e basta isto, para ser objeto de nosso ódio.

                O pecado venial é uma revolta contra a Autoridade Divina.

                É como se disséssemos a Nosso Senhor: "Quero vos obedecer, Senhor, más quando esta obediência não me aborrecer e quando me agradar e quando eu bem quiser".

                Isto é obediência?

                Não é uma injúria e um desrespeito à Autoridade Divina?

                Mas, o que é mais triste no pecado venial é a ingratidão sem nome que ele encerra. Desta ingratidão queixou-se Nosso Senhor a Santa Margarida Maria, mostrando-lhe o seu Divino Coração rasgado pela lança e cercado de uma coroa de espinhos.

                Estes espinhos eram a imagem das almas ingratas, sobretudo almas consagradas a Deus que vivem na tibieza. São as que mais ferem o Sagrado Coração do Bom Jesus.

                Uma injúria à Majestade Divina. Uma revolta contra a Autoridade Divina. Uma ingratidão à Divina Bondade! Meu Deus! Meu Deus! Isto é leve?

                Oh! combatamos o pecado venial deliberado.

                "Eu me lançaria num oceano de chamas se fosse preciso, dizia Santa Catarina de Sena, para evitar um só pecado venial, e preferiria permanecer neste fogo a dele sair por um só pecado venial".

                Exagero? Não. Os Santos sabem melhor avaliar o que é uma alma, o que é um Deus ofendido e o que é uma eternidade que se arrisca!

                Estejamos prontos, se for preciso, a padecer e morrer, mas não cometer um só pecado venial! Oh! quem nos dera tão bela disposição!


“Castigos do pecado venial”

                O pecado venial é punido severamente pela Justiça Divina e tis vezes com terríveis castigos!

                A mulher de Lot se transforma em estátua de sal por um pecado venial de curiosidade. Moisés é privado da consolação de ver a terra prometida por um pecado venial de desconfiança. Quarenta e dois meninos, porque zombaram do profeta Eliseu, são punidos e mortos pelas feras. Ananias e Safira, fulminados por um pecado venial de mentira!

                E pode-se dizer ainda que o pecado venial é de pouca importância?

                Deus o castigaria assim com tanta severidade?

                São castigos temporais.

                Mais terríveis, porém, sãos os castigos espirituais.

                O pecado venial leva ao abuso da graça. E quando se abusa da graça, a fonte das graças vai secando!

                Ai! em que abismos se precipita quem abusa da misericórdia e esbanja o tesouro da graça!

                Cuidado! Tremei! Nada tão grave e de maior responsabilidade como o emprego da multidão de graças que Nosso Senhor nos prodigaliza cada dia!

                "As contas das graças, diz Santo Afonso, são mais severas quem dos próprios pecados!"

                E o pecado venial, sobretudo o hábito do pecado venial, eis ai também o estado de contínuo abuso da graça!

                E Deus ofendido, por castigo, retira a sua graça ou vai dá-la a outros.

                Haverá mais tremendo castigo?



Capítulo II.
CONSEQUÊNCIAS E MALES DA TIBIEZA

                A tibieza tem consequências funestas na vida espiritual e acarreta para alma os males do pecado venial.


1 - Aborrece Deus Nosso Senhor e o obriga a nos abandonar.

                Que terrível sentença aquela do Apocalipse! O Bispo de Laodiceia caíra na tibieza. E São João, em nome de Deus, lhe manda dizer: Eu conheço as tuas obras: porque não és frio nem quente. (Ap 3,15.)

                Conheço as tuas obras! Havia, pois, algum trabalho, alguma virtude naquele homem. Não era de todo mau. Mas... não era frio nem quente. Era tíbio, morno, frouxo, algo indiferente na obra da sua santificação.

                Faltava-lhe o fogo da caridade.

                E como o Senhor castiga, e com ele, a toda alma no lamentável estado de tibieza?

                "Antes fosses frio ou quente!"

                Como? Deus prefere também o gelo do pecado e da morte da alma à vida enlanguescida e agonizante da alma tíbia?...

                Sim! Antes fosses frio ou quente!

                E aí vem o castigo: Mas porque não és frio nem quente, eu começo a te vomitar de minha boca.

                Que castigo tremendo! Deus rejeita a alma tíbia como nosso estômago vomita a água morna ou um alimento que provoca náuseas.

                A tibieza aborrece a Nosso Senhor e o obriga a nos abandonar à nossa própria sorte, ao nosso capricho e orgulho, à nossa grosseira sensualidade.

                Não há maior castigo. É a mais funesta das consequências da tibieza e a origem de todos os males.

                Meditar o texto de S. João no Apocalipse e trazê-lo sempre na memória e gravá-lo no coração!


2 - A tibieza enfraquece a alma.

                E a enfraquece de três maneiras. Afasta-nos a graça, fortifica os inimigos da alma e abre o coração para aquele mau uso das criaturas de que nos fala Santo Inácio nos seus Exercidos espirituais.

                Na tibieza, a pobre alma contrai uma enfermidade perigosa que a vai depauperando dia a dia, e fazendo perder as energias.

                Quando São Tomás e Santo Afonso comparam a tibieza à tuberculose, dão bem uma ideia da gravidade daquele doente espiritual.

                O tuberculoso sente-se enfraquecer dia a dia, minado por uma febrezinha impertinente que o vai consumindo. A tibieza produz a febre do orgulho e do amor próprio, febre da vaidade, febre da sensualidade e de mil pequenas faltas e infidelidades. E a pobre alma vai caminhando para o túmulo do pecado mortal e do hábito do pecado.

                A estátua de Nabucodonosor era bela e gigantesca. Cabeça de ouro, peito de prata, ventre de bronze, pernas de ferro e pés de ferro, argila e barro.

                Rola uma pedrinha da montanha, e bate violentamente nos pés de barro. Toda a mole imensa da estátua veio a baixo.

                Bela estátua é a da alma no estado de graça!

                Mais rica e preciosa que a estátua de Nabucodonosor. Entretanto, às vezes, ai! tem o pedestal de uma matéria frágil: - o barro do pecado venial, o barro da tibieza. Aí vem uma pedrinha de uma ocasião perigosa, de uma tentação grave, e... rola toda uma vida de espiritual e se destrói todo um passado de virtudes até heróicas. O inferno bateu no ponto fraco, e venceu.


3 - A tibieza é o caminho do pecado mortal.

                Diz São Gregório: Ordinariamente não nos tornamos maus de repente. Não passamos subitamente do fervor ao pecado mortal. É mister uma escada, é a tibieza; um ponto de apoio: a tibieza. Se não desceis um degrau desta escada e dela fugis, estais salvos.

                A experiência demonstra que dificilmente se ficará muito tempo no hábito do pecado venial deliberado, sem se chegar ao pecado mortal. Não quer dizer isto que uma multidão de pecados veniais faça um pecado mortal; mas, a facilidade em cometer o pecado venial prepara a alma e a dispõe a cair facilmente no pecado mortal.

                Quem despreza as pequenas coisas, cairá pouco a pouco, diz o Espírito Santo. (Eclesiaste 19,1.)

                Aplicando este texto às almas tibias, diz um intérprete que as almas perdem em primeiro lugar a devoção. Depois vão passando das faltas leves, que consideram sem importância, às faltas graves, aos pecados mortais, e do estado de graça passam ao estado de pecado.

                Quem comete facilmente o pecado venial, dificilmente escapará dos pecados mortais, afirmam experimentados mestres da vida espiritual.

                "Por um justo castigo de Deus, diz Santo Isidoro, os que fazem pouco caso dos pecados veniais, das faltas leves, vêm a cair um dia nos maiores pecados".

                Santo Agostinho tem uma frase que deve merecer de nós sérias reflexões. O pecado mortal é, segundo ele, uma montanha que esmaga, que mata, e os pecados veniais, grãos de areia. Acontece, porém, que o desprezo das faltas leves faz com que a alma venha a perecer como estes infelizes, que morrem sufocados sob um montão de areia. É verdade que só o pecado mortal dá morte à alma, e os pecados veniais, por mais numerosos que sejam, não nos podem tirar a graça santificante.

                Mas, diz São Gregório, o hábito dos pecados veniais tira aos nossos olhos a malícia do pecado grave, e em breve não receamos mais passar das faltas mais leves aos maiores pecados.

                O mal da tibieza é tirar a sensibilidade, a delicadeza de consciência. E haverá um estado mais lastimável de alma que essa cegueira de coração?

                As crônicas do Carmelo contam que a Venerável Sórar Ana da Encarnação viu um dia no inferno uma alma que na terra foi tida como pessoa de certa virtude. Ora, a infeliz, no suplício eterno, tinha o rosto coberto de insetos que representavam as inumeráveis faltas veniais de que estava culpada. E destas, umas lhe diziam: Por nós começaste! E outras enfim: por nós te perdeste!

                Não é esta, porventura, a sorte de tantas almas? Numa visão terrível foi revelado a Santa Teresa o lugar que lhe seria reservado no inferno, se, desprezando a graça, se deixasse levar por uma falta leve, que depois, multiplicada, a levaria ao abuso da graça, ao pecado e à condenação final. Oh! e diz-se que o pecado venial é de pouca ou nenhuma importância! E vive-se e dorme-se tranquilamente no estado de tibieza! Que cegueira!


4 - A tibieza leva à cegueira espiritual.

                As moléstias corporais costumam ser imagem das moléstias da pobre alma.

                Se procurarmos uma imagem feliz da tibieza, encontrá-la-emos na cegueira. A tibieza é uma cegueira, escreve o piedoso oratoriano Padre Faber, cegueira que não conhece a si mesma, não suspeita o seu estado, nem admite que outros tenham melhor vista. É uma cegueira judicial, porque um dia houve em que viu melhor e agora não se lembra mais do que viu nem mesmo que tinha olhos.

                Esta cegueira vem de três causas: os pecados veniais frequentes, a dissipação do espírito e a paixão dominante. Sobretudo a paixão dominante. Esta é uma violência externa, que nos leva a fechar os olhos e conservá-los assim para nos lançar no abismo. E a consciência neste estado de cegueira se falsifica, não tem mais equilíbrio, não tem firmeza. Daí as trevas e que trevas espessas!

                E nesta escuridão, os maus instintos do espírito humano, diz ainda o Padre Faber, como corujas noturnas, se tornam mais animados e ativos. É um despertar de maus pensamentos, de paixões que já se julgavam mortas. Já não há mais aquele horror ao pecado. A moleza dos costumes, o comodismo, a vida sensual, leviandades repetidas, certa amargura secreta do próximo, faltas de caridade, mentiras, maledicências, enfim o orgulho e a sensualidade, aves noturnas agourentas, anunciam a morte próxima da infeliz alma tíbia.

                Finalmente, vejamos o pior dos males, a mais tremenda consequência da tibieza.


5 - A tibieza prepara a impenitência final.

                Será possível? dirá alguém.

                Sim, a experiência o tem provado mil vezes. Tibieza é o abuso da graça, e o abuso da graça teve quase sempre, como consequência última, a impenitência final.

                Com Deus não se brinca!

                Conheceis a palavra de São Paulo?

                A terra que bebe muitas vezes as águas da chuva e que só produz cardos e espinhos, está reprovada e próxima da maldição. Será entregue ao fogo e reduzida a cinzas. (Hb 6,7.) Deus nos chama, bate, bate mil vezes à porta do coração. É desprezado.

                Ai! um dia o candelabro da graça com todas as suas luzes será transportado para outro lugar: Eu mudarei teu candelabro. (Ap 2,5.) E ai! meu Deus! Pobre alma! O abismo da impenitência final a espera. E ela sorri presunçosa, dorme tranquila na inconsciência, na cegueira do seu lamentável estado!

                Conheceis a história dolorosa de Tertuliano? Um apologista famoso, um batalhador pela causa da Igreja! Uma obstinação, uma falta de docilidade à Igreja, e ei-lo na heresia e na heresia morre... Lamennais fulgurava com todo o seu talento na Igreja de França. Em torno deste homem, a flor do pensamento católico se congrega para ouvi-lo como a um oráculo. Que gênio! Diretor de almas como raramente se viu outro! Entretanto, um orgulho secreto de sábio o vai minando. A vaidade talvez de se sentir grande, admirado, um oráculo da Igreja de França.

                Havia nele uma tristeza que impressionava o Padre Lacordaire, seu amigo. Veio a provação, a hora da luta, a prova de fogo. Ei-lo revoltado, inimigo da Igreja, blasfemador, herege e apóstata.

                Até à hora da morte renega tudo quanto amou e pregou e defendeu com ardor. A sobrinha, toda aflita, lhe pergunta quase à hora da morte: - Meu tio, meu tio, queres um padre, não é? Um padre, meu tio... Lamennais, obstinado, responde com aspereza: - Não.

                Insiste a sobrinha.

                Não! não e não! deixem-me em paz! No dia seguinte, 27 de Fevereiro de 1854, às 9 horas da manhã, expirou o desgraçado na impenitência final.

                O que preparou tamanha ruína?

                Oh! sem dúvida a tibieza. Uma alma fervorosa não tocaria jamais assim o fundo do abismo.

                A história de muitas apostasias e escândalos que amarguram a Igreja, não teve muita vez a sua origem na tibieza! Ninguém cai de repente. Ninguém chega à impenitência final sem uma vida tíbia no começo.

                Eis as lamentáveis e muitas vezes irremediáveis consequências da tibieza.

                Despertemo-nos por amor de Deus, por amor da nossa pobre alma, despertemo-nos deste sono perigoso!

                Desanimar? Seria pior. Confiança! A confiança faz milagres. A enfermidade é gravíssima e parece mesmo incurável.

                Entretanto, um bom regime, um bom médico, um bom clima, a podem curar. O bom médico: um confessor zeloso e experimentado, bem santo e bem enérgico. O bom clima: um meio fervoroso, a companhia de almas piedosas e santas, uma atmosfera onde se respire o sobrenatural.

                E um bom regime: a volta decidida, enérgica, constante, às práticas de piedade. Custe o que custar. E a mortificação. Sobretudo o regime eficaz da oração. A oração mental. Principalmente a oração mental. E esta parece mesmo o remédio específico.


Capítulo III.
REM DIOS DA TIBIEZA

                A tibieza parece um mal incurável e o é realmente, não porque haja na vida espiritual doenças incuráveis, mas porque afeta a vontade, tornando-a fraca e rebelde, surda à voz da graça. E, geralmente, o tíbio não se considera como tal. Ignora o mal que o vai perdendo. E esta ignorância, esta obstinação, esta cegueira que acompanham a tibieza, a fazem um mal incurável. Entretanto a graça tudo pode.

                A cura da tibieza é um milagre, mas no mundo espiritual a graça opera milagres cotidianos. Alguns remédios apontam os autores para a salvação de uma alma tíbia.


1. O remédio: Descobrir a tibieza.

                Esta descoberta se faz pela meditação e o exame de consciência. Descobrir que somos tíbios é uma graça e das maiores e o presságio de uma cura miraculosa. Estaremos, porém, perdidos se não agirmos logo com vigor, com prontidão e energia ao fazermos esta assustadora descoberta. Ao perceber este estado de alma, logo sem demora recorrer à oração e mãos à obra.


2. O Remédio: Fazer o que foi omitido e fazê-lo bem.

                A omissão das práticas de piedade foi a causa da tibieza. Pois bem. É preciso fazer sem demora, com energia, tudo o que se omitiu, custe o que custar.

                É difícil! Sim, mas não é impossível. Experimentar pelo menos um dia, de fidelidade absoluta e intransigente a todas as práticas piedosas abandonadas. Há de se ver a dificuldade diminuir. Depois, entrar na luta contra a preguiça, a rotina, o mau hábito. Não obstante as muitas omissões, não desanimar. Nada tão dificil como voltar à prática dos exercícios da vida espiritual, sobretudo se de há muito vêm sendo omitidos. A custa de esforço, de luta e de oração se consegue alguma coisa. Oh! que ao menos não falte a boa vontade. Já é alguma coisa. Faça-se um pouco hoje, depois mais um pouco...

                Quem sabe? Coragem! Confiança!


3. O Remédio: Fazer tudo com método e com pureza de intenção.

                Para o método, nada melhor que um bom e criterioso regulamento particular, e neste marcar a hora da meditação e fazê-la custe o que custar. Com isto, é certo, se há de salvar o tibio. Tibieza e meditação não podem anda; juntas. Uma ou outra há de perecer. Diz o profeta David. Na meditação se abrasa o fogo da caridade, que é o fervor. Da pureza de intenção já falámos. Resta praticá-la, a Meditação cotidiana.


4. Remédio: Meditação cotidiana.

                Todos os outros exercícios de piedade, que o tíbio recomeça quando se esforça por sair do seu lastimoso estado, têm a sua eficácia. Nenhum, porém, como a meditação. Meia hora de meditação cotidiana, bem preparada, e bem feita, eis o remédio soberano e específico da tibieza. A meditação é o alimento substancial• do regime a que se deve submeter a alma enfraquecida pela tibieza. Disse, meditação bem feita. Sim, porque a tibieza é companheira inseparável da meditação sem preparação alguma, feita às pressas, sem método, com preguiça, sonolência e má vontade.

                O remédio há de ser bem preparado, bem dosado e bem tomado, para que seja eficaz. Se a receita não foi observada, o remédio poderá curar?

                Insisto: Meditação bem feita!

                Seja por que método: Sulpiciano, Inaciano ou Afonsiano, mas... torno a repetir: - Meditação bem feita!


5. O Remédio: Uma penitência depois de cada falta.

                Examinar qual o pecado venial que me retém escravo da tibieza e castigá-lo toda vez depois de cometido.

                Uma penitência para cada pecado. Não perdoá-lo. A natureza é um cão.

                Ladra, ameaça quando corremos medrosos. Um gesto de energia, um grito, uma bordoada, e ei-lo abatido, humilhado, a correr de nós. Sem penitência não se sai da tibieza. A mortificação e a meditação andam juntas e constituem aquele espírito de oração e de penitência de que nos fala o profeta.


6. O Remédio: A mortificação.

                Custa muito, é verdade. A tibieza caracteriza-se também pelo horror ao espírito de mortificação.

                Mortificai vossos membros, diz o Apóstolo São Paulo, trazei a mortificação de Jesus Cristo em nosso corpo. (Colossense 3,5.)

                A mortificação é a vida do Evangelho em ação e a imitação da vida de Jesus Cristo. Querer sacrificar-se sem mortificação é querer o impossível. "Se alguém desaprova a penitência, diz São João da Cruz, não lhe deis crédito, ainda que faça milagres".

                As pequenas mortificações cotidianas são remédio também para as pequenas faltas cotidianas. Contraria, contrarieis. Espírito de sacrifício no cumprimento do dever. Custa a meditação? Fazei-a por mortificação. Custa a oração um dever penoso? custa deixar alguma sensualidade? Mortificai-vos um pouco. E vereis a transformação que em breve se fará em vossa alma. A mortificação com a oração, eis o remédio soberano da tibieza.


7. O Remédio: Confissões e Comunhões bem preparadas.

                Rigoroso exame de consciência antes da confissão. A confissão do tíbio é rotineira e mal feita. Procura sempre um confessor muito brando e suave. Não gosta de uma palavra enérgica e severa no tribunal da penitência. Disfarça os seus pecados. Não procura uma sólida direção espiritual. Não costuma ter um confessor fixo. Confessar-se não é para o tíbio uma mudança de vida, um firme propósito de não mais pecar: é arranjar uma absolvição para poder comungar.

                Daí almas que no mundo e na vida religiosa se confessam durante anos e anos, quase toda semana, e vivem, entretanto, no mais lamentável estado de tibieza. Ai! O Sangue de Jesus Cristo no Tribunal sagrado não é aproveitado!

                Depois, as Comunhões sem devida preparação, sem fé, sem amor. Comunhões por rotina. Ações de graças lidas às carreiras em manuais de devoção. Nem sequer um pensamento sério, bem meditado. da Presença real de Nosso Senhor na hóstia consagrada! Pobre Jesus! Que sepulcros gelados não acha Ele todo dia no coração de tantas almas tíbias!

                Para sair da tibieza, a Santa Comunhão, que, no dizer do Concílio de Trento, é o antídoto da faltas cotidianas, é um remédio eficaz. Mas há de ser bem preparada. A leitura espiritual, as jaculatórias, um pensamento eucarístico à noite, ao deitar, e sobretudo uma vida isenta de pecado e em luta contra o pecado, eis aí uma excelente preparação para as nossas Comunhões. Tirar da rotina a confissão e a Comunhão é um passo decisivo para sair da tibieza.


8. O Remédio: A devoção ao Sagrado Coração de Jesus.

                "As almas tíbias tornar-se-ão fervorosas", prometeu Nosso Senhor a Santa Margarida. É o grande milagre, o perene milagre desta devoção. O Sagrado Coração é uma fornalha de amor, é fogo, e fogo puro da Divina Caridade. Jaculatórias ao Divino Coração. A sua imagem diante de nós, conosco em toda parte. Falar desta devoção, propagâ-la, estudâ-la. Oh! não encontro meio tão eficaz e poderoso para arrancar uma alma da tibieza. Leituras sobre o Coração de Jesus, o Exercício da Hora-Santa, a entronização. Oh! como tudo isto abrasa o coração ainda mais gelado e faz milagres de conversões.

                Tomar a peito fazer uma novena ao Sagrado Coração de Jesus, para sair da tibieza. Fazê-la custe o que custar com uma leitura apropriada, por exemplo: a história das Aparições a Santa Margarida Maria ou a vida desta discípula predileta do Coração de Jesus. Ler este livro de fogo do Padre Mateu Crawley que eu desejava ver em muitas mãos: "Jesus, Rei de Amor".

                E sobretudo, mais do que tudo, ler e reler o Evangelho, as cenas tocantes do Evangelho, onde aparece, onde brilha a misericórdia do Coração de Jesus. Oh! o nosso coração é matéria inflamável. Não resistirâ muito tempo às chamas do Amor sem nelas se abrasar. E o Coração de Jesus nos põe junto ao braseiro da • caridade. Quando os judeus foram levados ao cativeiro de Babilônia, os sacerdotes esconderam o fogo sagrado num poço. De volta, Neemias só encontrou lama. Com esta, regou a lenha e as vítimas do sacrifício; e as expôs ao sol.

                E o sol as acendeu e queimou. Estava aceso de novo o fogo sagrado. A nossa vida espiritual talvez era o fogo sagrado do amor no templo vivo do Divino Espírito Santo, que somos todos nós, os cristãos batizados. Lançamos este fogo no poço da tibieza e ele se fez lama.

                E agora? O remédio? Vamos ao sacerdote, o Neemias da Lei do Amor. Uma boa e sincera confissão. Depois, expor a lama de nossa pobre vida aos raios do sol do Coração de Jesus e pedir, rogar, bradar que ele consuma tudo e acenda de novo o fogo da caridade, o fogo sagrado sem o qual não pode viver nossa alma, templo do Espírito Santo. O sol do Coração de Jesus fará este milagre.


9. O Remédio: O Rosário de Nossa Senhora.

               Pois já não falamos das práticas de piedade como remédio da tibieza? Porventura o rosário não é uma delas? Sim, mas é uma especialissima devoção e vejo nela um remédio à parte, além dos mais.

                Ao Bem-aventurado Alano da Rocha, como antes a São Domingos, prometeu a Virgem Santíssima muitas graças a quem rezasse o seu saltério. Entre as quinze promessas tão conhecidas para os devotos do Rosário, estão estas: "O Rosário, disse Nossa Senhora, fará reflorescer as virtudes, fará conseguir misericórdia para as almas. Atrairá os corações dos homens para o céu e os levará do amor do mundo ao amor de Deus e os elevará aos desejos das coisas eternas".

                Não é fervor o que nestas palavras Nossa Senhora promete aos devotos do Rosário?

                Recitai bem o terço, e, se possível, o Rosário todos os dias. Recitai-o como for possível, pedindo o fervor. Nossa Senhora vos concederá esta graça.

                E a devoção ao Rosário é um grande sinal de predestinação, diz Nossa Senhora, na última promessa feita ao Beato Alano da Rocha. A verdadeira devoção do Rosário, tal como ela deve ser praticada, isto é, com a meditação dos mistérios, é um remédio eficacíssimo na cura da tibieza. E o é justamente porque tem um duplo caráter de oração mental e vocal. O Rosário salva os pecadores e faz o milagre de converter os tíbios.

                Rezai-o bem, com atenção e perseverança. Vereis que maravilhas ele realizará em vossas almas, piedosos leitores. Eis aí a terapêutica espiritual a ser empregada na gravíssima enfermidade da tibieza. Coragem, vamos aos remédios.

                A enfermidade é grave, e quase incurável, sim; mas a Divina Misericórdia pôs em nossas mãos recursos para tratá-la. Diz-se que é incurável a tibieza. E é verdade, mas só quando não se empregam energicamente os meios de combatê-la.


segunda-feira, 8 de janeiro de 2018

ENTRE FÁTIMA E O ABISMO

A. DANIELE
ENTRE FÁTIMA E O ABISMO


CONSIDERAÇÕES E FATOS SOBRE O SEGREDO QUE DESAFIA O PONTIFICADO E ASSOMBRA A CRISTANDADE - AUDIOBOOK


 
Capa: reprodução de “A parábola dos cegos” (Bruegel), retratando um mundo em que os cegos são guiados por outros cegos


Edições

EXCELSIOR

São Paulo
© A. Daniele
ISBN 85-85005-71-1

EDIÇÕES EXCELSIOR

Divisão da
T.A. QUEIROZ, EDITOR, LTDA.
Rua Joaquim Floriano, 733 – 9º
04534 São Paulo, SP
1988
Impresso no Brasil

“Isto não diz respeito ao meu tempo.” (João XXIII, ao arquivar o segredo em 1959).
“A Igreja se sente interpelada por essa mensagem.” (João Paulo II, na homilia de 13 de maio de 1982)
“Fátima é o grito lancinante de uma Mãe que vê seus
filhos à beira de um abismo insondável.”
(Cardeal Cerejeira, no Congresso Mariano de Madri,

em maio de 1948)
E o quinto anjo tocou a trombeta;
E vi uma estrela cair do céu sobre a Terra.
E foi-lhe dada a chave do poço do abismo.
E abriu o poço do abismo...
(Apocalipse 9,1)

“... nada há oculto que não se venha a descobrir,
nem segredo que não se venha a saber.”
(Nosso Senhor, em Mt., 10, 26; Mc, 4,22; Lc, 12,2)

“Removidos os limites que contêm no caminho da verdade os homens, que pela sua natureza propensa ao mal já estão atraídos ao precipício, podemos dizer que em verdade foi aberto o poço do abismo, do qual São João viu sair um tal fumo que obscureceu o sol, saindo dele incontáveis gafanhotos para devastar a terra.”
Da encíclica Mirari Vos do papa Gregório XVI, contra: “O delírio do indiferentismo religioso ... pelo qual em qualquer profissão de fé pode a alma conseguir a salvação eterna, conformando-se ao que é justo e honesto”; “O erro venenosíssimo de que se deva admitir e garantir a cada um a liberdade de opinar, a liberdade de consciência, diante da religião...” Trata-se do conceito moderno de liberdade religiosa e direitos humanos, sancionado pelo Concílio Vaticano II e apregoado na Igreja desde então.
Agradecimentos póstumos a

Dom Francesco Putti, Pe. Alessio U. Floridi S.J., Hamish Fraser.
Aos preclaros amigos, pela preciosa colaboração:
Prof. José Benedito Pacheco Salles,
Prof. Hélio Drago Romano,
Prof. Daniel Brilhante de Brito,
Editor José G.M. Orsini.


edições EXCELSIOR


Outro livro para lembrar o extraordinário evento de Fátima?
Isto já seria bastante oportuno neste 71.º aniversário da aparição cuja mensagem de 1917 profetizou a revolução russa e as guerras, perseguições e males que se sucederiam neste século. Mas o alcance dessa mensagem confiada à Igreja e declarada por João Paulo II “sempre mais atual e urgente”, justamente no que tange aos perigos crescentes e aos males extremos da hora presente, continua ignorado e secreto.
O livro focaliza essa oposição velada à mensagem de Fátima que, embora reconhecida pela Igreja como sinal divino e confirmada em suas profecias históricas, é marginalizada. Isto marca uma transformação eclesial sem precedentes.
Que novo espírito pastoral pode opor-se à doutrina católica que sempre ensinou que na origem de toda discórdia, revolução e guerra estão os pecados dos homens e sua volúpia de poder, de posse e de prazer? Que religiosidade autêntica nega que o antídoto dessas insanas e destruidoras seduções é o espírito de modéstia, renúncia e sacrifício, temperados pela devoção e amor a Deus e ao próximo? Este é o cerne da mensagem de Fátima, que para a salvação e a paz pede orações e penitências, identificando-se com a mensagem evangélica. Opor-se a uma é opor-se a outra. Por isso Fátima é agora sinal de contradição, pedra de tropeço no interior da própria Igreja e, assim, espelho de ocultas mutações religiosas. O autor demonstra que planos velados de aggiornamenti e aberturas para o mundo transparecem do ocultamento da mensagem que deveria deixar de ser secreta para tornar-se pública já em 1960.
Um mundo cada vez mais irreligioso e imerso em ideologias materialistas rejeita profecias. Se eclesiásticos também as rejeitam é porque eles estão imersos nesses mesmos erros.
As análises, críticas, denúncias e relatos abalizados contidos nesta obra demonstram cabalmente essa poluição doutrinal: a decadência moral e devastação litúrgica da Igreja conciliar que parece indiferente à geral apostasia e degeneração dos povos.
Essa débâcle religiosa que atinge o próprio âmago da Igreja imobiliza sua ação salvadora e tudo parece comprometer. A mensagem de Fátima é a profecia destes tempos tenebrosos. Mesmo escondida deixa um lume de esperança. Esperança no triunfo do bem, da verdade e do amor, triunfo do materno e imaculado Coração de Maria que, acolhido pelas almas, afugentará as trevas de morte e desespero estabelecendo por fim a paz.
Fecho histórico impossível para o espírito moderno?
A continuidade, dimensão e alcance histórico da infidelidade terrestre e da misericórdia celeste aqui relatados, são convite bastante para aprofundar a leitura da profecia de Fátima, chave do maior evento espiritual desde os tempos apostólicos.


Uma palavra sobre o AUTOR
A singularidade do autor deste trabalho está no fato de não ser, A. Daniele, nem estudioso diplomado nem escritor tarimbado, mas comandante de aviação.
Nascido em São Paulo em 13 de maio de 1934, ao meio-dia de um domingo de sol, como quando se deu a aparição de Fátima, estudou no tradicional Colégio São Luís dos Jesuítas. Entre os estudos de física e a aviação civil acabou optando, por motivos contingentes, por esta carreira que o conduziu desde muito jovem pelos céus do Brasil e do mundo. Mas o piloto, absorvido pelo progresso tecnológico que sua profissão exigia e os contactos mundanos que o vagar pelo mundo propicia, foi-se distanciando das questões espirituais de sempre.
No embate com a dura realidade da vida e da morte, já pai de família, sentiu-se chamado de volta à Igreja da sua juventude. Nela, porém, encontrou um porto assolado, como a vinha devastada de que falam os profetas. Diante das dificuldades de uma aproximação segura, vislumbrou, apesar das nuvens escuras dos enganos e dos impetuosos ventos contrários, o luminoso espaço de Fátima.
Eis a rota que vem percorrendo desde então, perscrutando e divulgando o conhecimento dessa inestimável mensagem de paz e salvação que tem sido misteriosamente ocultada. Isto ele tem feito multiplicando escritos e palestras, nova missão de seus vôos pelo mundo.



SUMÁRIO

Apresentação (dom Antônio de Castro Mayer)................................................ XI

Introdução: a profecia de Maria nos últimos tempos; a profecia
para o nosso século........................................................................................... XIII
índice cronológico essencial dos eventos de Fátima........................................ XXXVII
PARTE I

O SINAL DE CONTRADIÇÃO DO SÉCULO XX (1917-1958)
Quando o papa pediu, Nossa Senhora atendeu.............. 3
Os avisos e as promessas da mensagem de Fátima.......... 5
Bento XV e a resposta de Fátima......................... 8
O aggiornamento de Bento XV............................ 12
Os pedidos da mensagem de Fátima....................... 18
Cristo Rei no reinado de Pio XI........................ 21
A luta de Pio XI contra os erros da Rússia............. 25
“O papa fará a consagração, mas será tarde”............ 29
A devoção católica na França antiga.................... 32
Luis XIV perante a história e um pedido................ 33
“Homem de pouca fé, por que duvidaste?”................ 34
Papas e reis diante de sinais celestes................. 36
Pio XII, chamado o papa de Fátima...................... 40
A Áustria católica recorre a Fátima.................... 43
O discurso cristão sobre a história, de Bossuet........ 45
Projeto para um mundo melhor.......................... 47
“Um acordo entre Montini e Stalin”.................... 51
A tristeza de Nossa Senhora........................... 56


PARTE II

O ESPÍRITO DA IGREJA CONCILIAR (1958-1978)
As duas cidades: de Deus e dos homens (Santo Agostinho). 64
João XXIII e o segredo de Fátima........................ 64
Censura a um segredo apocalíptico?...................... 68
Segredo do papa ou mistério do pontificado?............. 70
A inspiração de João XXIII.............................. 73
O concílio inspirado ao papa João....................... 75
O modernismo antimariano do concílio.................... 78
O esquema especial de Maria Santíssima reprovado........ 80
O ato de consagração eludido............................ 82
O inferno esquecido pela pastoral conciliar............. 83
O espírito conciliar estende a mão ao comunismo......... 84
Paulo VI proclama na ONU sua liberdade religiosa........ 87
Cardeais denunciam a nova missa......................... 89
Queixa ao santo padre de 1972........................... 91
Fátima profanada........................................ 93
Carta de d. Antônio de Castro Mayer a Paulo VI (jan. 74) 98
Três estudos — Três previsões verificadas............... 102
Declaração de Monsenhor Marcel Lefebvre (nov .74)....... 106
A continuidade na autodemolição da Igreja............... 107
A morte de Paulo VI..................................... 109
O sucessor dos papas João e Paulo....................... 110
Foi João Paulo I envenenado?............................ 111

PARTE III

CUIDAI QUE NINGUÉM VOS SEDUZA (O tempo está próximo)
Carta ao papa João Paulo II (nov. 78)................... 120
Fátima, 62 anos depois: carta a Sua Santidade (maio 79). 122
O resumo apócrifo do “terceiro segredo”................. 123
Segredo de La Salette ou de Fátima?..................... 125
Fatos acerca do segredo de La Salette................... 127
Carta a Sua Santidade (nov. 80)......................... 131
João Paulo II diante do aborto.......................... 134
A resistência católica ao aborto legalizado............. 135
Treze de maio - 1917 e 1981............................. 138
João Paulo II fala do terceiro segredo.................. 140
João Paulo II responde sobre Fátima..................... 143
A visão conciliar de João Paulo II...................... 145
Foi o pedido de consagração satisfeito?................. 147
O papa tem deveres para com Fátima?..................... 151
Conversão ou reconciliação entre homens?................ 154
O sínodo conciliar de 1983.............................. 158
É possível reparar um erro sem denunciá-lo?............. 160
Novos cristãos e novas doutrinas........................ 163
Carta aberta ao papa — Manifesto episcopal (nov. 83).... 165
A consagração do dia 25 de março de 1984................ 168
Quanta vergonha! ....................................... 171
Nova etapa ecumênica irreversível....................... 174
As perseguições à Igreja e ao santo padre............... 176
Conservar sempre o “dogma da fé”........................ 178
A infalibilidade na fé lembrada por Gustavo Corção...... 182
O cardeal Ratzinger fala sobre o terceiro segredo....... 185
Não há segredo que não seja descoberto.................. 188
O impasse de tempos finais.............................. 191
O sínodo de 1985 recicla o concílio..................... 194
Carta dos dois bispos ao papa para o sínodo............. 198
A ruptura abissal de Assis.............................. 201
“Por fim, o Meu Imaculado Coração triunfará”............ 201


Obras citadas........................................... 213


APRESENTAÇÃO
Pio XII foi chamado papa de Fátima porque foi sagrado bispo precisamente no dia 13 de maio de 1917, data em que a Virgem Santíssima visitou seus filhos da Terra, aparecendo a três pastorzinhos em Fátima, Portugal, e consignando-lhes salutar mensagem de paz.
O título atribuído a Pio XII está a indicar que Fátima e sua mensagem não são um fato particular, que visaria apenas os três videntes da Cova da Iria. Fátima alcança todos os homens. Pertence à história da Igreja. É elemento que interessa à salvação de todos os homens.
Não é uma revelação pública. A revelação pública, com efeito, impõe o ato de fé, sob pena de pecado grave; e terminou com a morte do último apóstolo.
No entanto, com o encerramento da revelação pública, não ficaram os fiéis privados da graça de revelações que os auxiliassem a viver sempre mais fielmente como cristãos e a melhor cuidarem de sua salvação eterna. Tais revelações são ditas privadas, embora sujeitas ao controle da Santa Igreja.
Entre elas há muitas que interessam, de modo geral, a toda a Igreja, a todos os fiéis. Exemplo palpitante são as revelações de Jesus Cristo a Santa Margarida Maria Alacoque, às quais está vinculada a difusão, altamente santificante, da devoção ao Sagrado Coração de Jesus.
Revelações como esta a Santa Margarida Maria não são públicas no sentido clássico. Mas também não podem ser chamadas meramente privadas, como se colimassem o bem tão-só da pessoa, ou das pessoas que a receberam. Elas têm caráter universal, como atesta o exemplo citado das revelações a Santa Margaria Maria.
Entre estas estão, sem dúvida, as aparições e mensagem de Fátima. Poderíamos, mesmo, dizer que a mensagem de Fátima é a revelação ou profecia universal da nossa época, para indicar a amplitude de seu alcance. Marginalizando Fátima, afasta-se o fator da paz legado aos filhos pela Medianeira de todas as graças.
Eis que, sobre ela, há toda uma literatura e não poucos documentos papais. Não é só. Pois, à medida que correm os anos e se agravam no mundo as desordens de toda espécie, o silêncio, que acoberta a revelação do Terceiro Segredo confiado aos três videntes de Fátima, e que, de si, já deveria ter sido rompido, sublinha sempre mais o alcance e valor inestimável dessa graça que, com as aparições e mensagem de Fátima, a misericórdia de Deus concedeu à Igreja e aos homens.
Com o fim de auxiliar a apreciação dos eventos de Fátima, o sr. Daniele, apreciado colaborador de revistas altamente qualificadas, torna públicos os seus estudos sobre as vicissitudes que vêm acompanhando 1 a revelação e o significado do último segredo de Fátima. Trabalho sério, altamente recomendável por si mesmo e mais ainda pelo assunto que versa.
+ ANTÔNIO DE CASTRO MAYER BISPO


INTRODUÇÃO
A PROFECIA DE MARIA NOS ÚLTIMOS TEMPOS

Em todas as épocas e lugares os homens receberam sinais sobrenaturais para serem guiados pelos labirintos da vida. A Sagrada Escritura é a história destes sinais que foram dados a todos, aos judeus como aos ninivitas, aos reis como aos escravos, numa seqüência secular que, de monte em monte e de profeta em profeta, conduziu até o sinal supremo: o Verbo Encarnado.
O sinal de Belém foi visto pelos sábios reis de países remotos como pelos pastores simplórios das cercanias. Os sinais do Céu são dados para serem entendidos e guiar todo homem de boa vontade. Se antes do Advento serviram para anunciar o Salvador, depois continuaram para confirmá-Lo nos séculos como o Senhor da História. Para este testemunho perene Jesus Cristo instituiu Sua Igreja, a fim que os falsos sinais e profetas do mundo não prevalecessem.
Deter-se, pois, a perscrutar os sinais dos tempos em que vivemos não é passatempo ocioso nem curiosidade gratuita, mas cuidado inalienável para a vida espiritural e social de cada um. É vigilância sobre o que pode ameaçar nosso tempo terreno, momento em que fica decidido nosso destino eterno. “Sabeis distinguir o aspecto do céu e não reconheceis os sinais dos tempos?” (Mt. 16,4)
Devemos, pois, perscrutar esses sinais, mas como reconhecê-los?
Antes de tudo porque vêm na linguagem do Evangelho, não do mundo. Depois, porque são um claro reforço para a nossa débil fé, esperança e caridade, não para nossas ilusões e emoções mundanas. Mas sobretudo porque são dirigidos à Igreja que os reconhece, justamente pela oposição às tramóias terrenas e, portanto, pelo reflexo dos desígnios divinos para extirpar estas.
São sinais de contradição que antepõem o sobrenatural ao naturalismo mundano, a palavra divina aos projetos humanos, a intervenção da Providência às táticas e compromissos dos potentes. Aqui veremos como tudo isto resplende no grande sinal de Fátima.
Um católico não pode ter outra referência para entender um sinal sobrenatural senão a Igreja e o papa. Deus, que dá os sinais, antes deu Sua Palavra e instituiu Sua Igreja. Tudo foi dado para a fé. Esta é a referência de tudo que vem de Deus, e para a qual existem também a Igreja e o papa.
Um sinal extraordinário de fé justifica-se para confirmá-la nos fiéis, ou reforçá-la nos tíbios, solicitá-la nos incrédulos, ou, então, interpelar sobre a fé os seus guardiães negligentes. Assim como é certo que um sinal autêntico do Céu é submetido à Igreja e ao seu chefe terreno, também é certo que um sinal de fé tem por objetivo amparar a fé dos homens e também do papa.
Essa graça a Igreja conheceu no extraordinário evento de Fátima. Nas aparições de Nossa Senhora a três pastorzinhos em 1917, Deus deu aos homens e às sociedades um claro e eficaz sinal da Sua Vontade e desígnios de graça e misericórdia para o nosso século convulso. Também os fatos transcorridos desde então e profetizados na mensagem registrada pela pastora Lúcia, confirmam a origem deste evento portentoso e as razões por que foi necessário: a crise da Fé na Igreja.
A Sabedoria dá sinais proporcionais à gravidade do perigo.
Para aprofundar estas razões seguirei neste trabalho as seguintes considerações lógicas inerentes ao próprio evento e relativa mensagem, que se confirmam e completam como um sinal único:
— O evento apresentou-se, desde o início, como um grande aviso cujos termos da mensagem dada aos pastorzinhos eram válidos desde 1917, salvo a parte reservada para ser conhecida em 1960. Os fatos históricos confirmaram isto, no que tange aos “erros espalhados pela Rússia” e suas implicações fora e dentro da Igreja.
— Pela natureza mesma da intervenção sobrenatural e pelas palavras da mensagem, fica claro que atender o pedido-ajuda de Nossa Senhora de Fátima não só é necessário como consiste na única saída para os problemas de nossa época: “Se atenderem a Meus pedidos a Rússia se converterá e terão paz; se não espalhará seus erros pelo mundo, promovendo guerras e perseguições à Igreja...” Não há alternativa.
— Palavras tão graves demandavam para a fé tremulante dos homens atuais um aval proporcional à entidade dos perigos profetizados. Este sinal no sinal foi previamente anunciado desde a terceira aparição e seguidamente até o majestoso, mas também terrificante, Milagre do Sol, de 13 de outubro de 1917, “para que todos pudessem acreditar”.
Em síntese: em 1917 a Igreja militante recebeu um sinal visível de dimensões incomparáveis e únicas na História, para ser avisada do grande perigo que pendia sobre os povos da Terra e dispor dos meios eficazes para enfrentá-lo com a força da fé. Não há dificuldade em identificar o perigo objetivo na revolução bolchevique russa, pela data, 1917, em que se impôs esse programa de ateísmo militante. Para enfrentar esse mal, convertendo a Rússia e salvando muitas almas, não eram propostos meios impossíveis ou insuportáveis, mas devoções normais para a Igreja. Todavia, o evento de Fátima foi hostilizado e sua mensagem censurada, desprezada e reduzida, até hoje. Por quê? Esse fato não pode revelar uma situação de declínio da fé na Igreja? Não pode ser um aviso implícito no aviso explícito? Não ensinou Jesus que sem Ele nada podemos? E que quem não recolhe com Ele, dispersa? A Igreja reconheceu a autenticidade do sinal que representa claramente os desígnios de Deus em favor dos homens. Por que não foram atendidos?
Às considerações lógicas inerentes ao evento de Fátima, acima expostas, será preciso acrescentar o fato implícito das graves e crescentes dificuldades na fé da Igreja, a espantosa crise da Igreja no século XX.
Neste trabalho isto será visto cronologicamente conforme as datas que, representando a Vontade divina, não podem ser casuais. Deve-se, pois, começar pela causa próxima das aparições de 1917, o pedido de intercessão feito universalmente pelo papa Bento XV à Rainha da Paz, cuja resposta não foi reconhecida na época e permanece esquecida.
Segue a desconfiança misturada à indiferença em procurar reconhecer um sinal de autenticidade previsto para 13 de outubro de 1917, já desde a terceira aparição, de 13 de julho: “farei um milagre que todos hão de ver para acreditar”. Os fiéis e especialmente os padres podem não aceitar sinais sobrenaturais não comprovados, mas recusar as provas do que possa vir de Deus é mau indício.
O interesse pelo conteúdo da mensagem contida nas aparições que culminaram com o “milagre do sol” é mais que natural para quem tem fé. A prudência na aceitação desta pela Igreja é certamente necessária, mas ordenada ao reconhecimento da verdade, não ao seu ocultamente
O aval histórico ao conteúdo da mensagem foi dado nestes quase 70 anos de guerras, revoluções, fornes e perseguições à Igreja e ao santo padre, conseqüências de erros espalhados pela Rússia, como já dizia a mensagem em 1917. O aval implícito do declínio e desvio da fé dentro da Igreja é o que acho urgente considerar.
Na verdade, o fato de que desde 1917 na Igreja militante se tenha evitado reconhecer e atender devidamente um sinal da divina Vontade é, mais que um indício da moderna crise de fé, uma razão fundamental para explicar por que o sinal foi dado e por que não foi bem aceito. Mais: para explicar que passou a predominar na Igreja uma vontade diversa representada pelo “espírito do Concílio”, que não pode tolerar que se anunciem crises quando se proclamam novos Pentecostes.
Hoje, pretende-se negar na Igreja que o segredo fale da sua crise. Essa negação de uma evidência já é uma assustadora confirmação da crise, senão pela incapacidade de reconhecer a realidade atual da Igreja, pelo descaso em defendê-la, ou pior, pela intenção de mudá-la. Nisto o evento de Fátima coloca-se como uma “pedra de tropeço”.
Para considerar essa crise de maneira sintética, aqui dirigiremos a atenção para quem ocupa a cátedra de São Pedro. Veremos as atitudes, as palavras e as ações do papa, de 1917 até hoje, em relação a Fátima, que é um sinal de referência oferecido pelo Céu para iluminar os homens, como foi reconhecido pelos próprios papas.
Vivemos hoje impregnados de naturalismo e por isto, juntamente com a visão da fé, perde-se o senso cristão da História e os católicos chegam a esquecer que sua religião é a história mesma da intervenção de Deus no mundo pela encarnação do Seu Verbo. Esquecer este fato central da História pode afetar também a vida pessoal e social, que se esvazia de sentido. E isto especialmente na vida da Igreja.
Se for obliterada na Igreja a prioridade do reino de Deus e sua justiça e abalada a idéia de Cristo, Rei da História, que detém todo o poder no Céu e na Terra (Mt. 28,18), tudo na Igreja perde sentido a começar da suprema reverência ao papa, Seu vigário, e aos bispos, Seus apóstolos. A majestade que reveste a cátedra papal não representa decerto um primado fraternal, uma cidadania honorária, mas a realeza de Cristo, Senhor da História.
O evento de Fátima veio iluminar o sentido cristão da História. Como explica dom Guéranger: “O destino humano é sobrenatural; disto se deduz que uma história que não se inspira nas fontes sobrenaturais não é história verídica, por mais cristãs que possam ser as convicções de quem a escreve.”
Pela mensagem de Fátima fomos lembrados de que as múltiplas guerras do mundo são conseqüência de uma causa essencial: a rebelião e as ofensas à lei de Deus. Eis que a única verdadeira guerra é feita pelos homens e pelos povos contra Cristo e Sua Igreja. Sendo Ele a via, a verdade e a vida, e Sua Igreja a vitória sobre o mundo, também a única verdadeira derrota dos homens e povos consiste em perdê-Lo. Que desgraça, se os próprios cristãos se esquecerem disto!
Infelizmente, estas verdades tornaram-se hoje incompreensíveis porque foram obscurecidas na própria Igreja. O comportamento de seus chefes diante do sinal de Fátima está a demonstrá-lo. Este, lembrando o ensinamento de sempre, os interpela tacitamente. O reino de Cristo não é imposto, mas deve ser invocado antes de todos pelo papa. Nele todas as vitórias são possíveis. Sem ele, domina o que se lhe opõe, porque visto que as idéias regem a vida social, o recuo da idéia cristã permite o avanço de todos os erros.
Vejamos então as contraposições de nossa época, para localizarmos melhor a de nossos dias. Ao sobrenatural opôs-se o naturalismo do mundo com os seus racionalismos, materialismos e, dentro da Igreja, modernismos e progressismos. Estes levam às indiferenças e compromissos que se opõem à Providência, privilegiando projetos humanos em detrimento dos sinais da Vontade divina de que é intérprete a Igreja,
Disto deduzimos que a contraposição mais insidiosa e nefasta estaria dentro da própria Igreja, quando um modernismo ativo imporia um projeto de aspecto eclesial aberto a todas as indiferenças religiosas, ecumenismos doutrinais e compromissos libertários. Isto aconteceu no Concílio Vaticano II que, como veremos, opõe-se — não, certamente, de modo frontal, mas entranhadamente — a Fátima. Isto eu irei mostrar.
O cardeal patriarca de Lisboa, Antônio Ribeiro, na Assembléia do Episcopado português realizado em Fátima, em maio de 1972, disse: “Pelos silêncios, negações, pelas hostilidades levadas a cabo contra Fátima, a nossa peregrinação de hoje deseja ser também um ato de desagravo.” Nessa mesma homília para apontar a razão do “furor anti-mariano” que seguiu o Concílio Vaticano II, é citada a frase de K. Rahner: “As ideologias não precisam de mãe”.
Ora, como toda verdade cristã é sinal de contradição com o mundo, diante da hostilidade à mensagem de Fátima e dos aplausos festivos ao Vaticano II por parte dos inimigos declarados da Igreja, podemos aquilatar o alcance dessa contraposição. Assim foi com Jesus. Poderia ser Nossa Senhora melhor recebida, hoje, pelos grandes da Terra do que o foi seu Filho na Judéia pelos sumos sacerdotes?
A chave de leitura do evento de Fátima está sempre na Igreja, mas como depois de tanto tempo ainda não foi revelada toda a sua mensagem nem atendidos seus pedidos, para o bem das almas e da Igreja, é necessário ver a razão disto, que não é devida à oposição externa. Diante disto não é possível continuar mencionando vagamente Fátima sem enfrentar as conclusões a que inevitavelmente leva.
Afinal, por que foi necessário um sinal extraordinário para lembrar o que deveria ser ensinamento ordinário da Igreja sobre a paz? Estava este esquecido ou em vias de ser alterado pelos pastores? É claro que assim sendo a hostilidade a Fátima é a mesma que existe de modo velado contra a própria Doutrina. Esta é bastante clara para sustentar-se por si mesma na mente de qualquer fiel. Igualmente, a mensagem de Fátima, enquanto a repete. Eis, então, que a oposição a esta vai refletir o lastimável estado de fé de muitos pastores.
Por exemplo: contestar a mensagem dada depois da visão do inferno pelos pastorzinhos. Como o castigo eterno é uma verdade doutrinal, o problema do contestador é antes descrer no Inferno do que em Fátima.
Para aduzir outro exemplo: a mensagem de 1917, vésperas da revolução soviética, fala dos erros que a Rússia espalhará pelo mundo, isto é, o comunismo e o ateísmo militantes. Este enorme perigo já fora advertido pela Igreja antes de 17. Portanto, quando emergiram, virulentos, os hierarcas da Igreja poderiam ignorar a mensagem de Fátima, mas não o imenso perigo. Sobre este deveriam pronunciar-se de modo veemente mas ordinário, como em Fátima aconteceu de modo extraordinário para lembrá-los. O sinal era uma ajuda para que operassem na defesa dos valores do cristianismo, como era dever de seus cargos.
A vigilância dos eclesiásticos sobre os perigos do mundo e em defesa de verdades doutrinais estava abalada nos contestadores de Fátima. Não lhes valeu nem mesmo uma mensagem celeste, da qual se julgaram mais juizes que beneficiários. A situação da Igreja dirigida por essa mentalidade só podia degenerar, permanecendo a mensagem como testemunho de uma atitude de abdicação, senão apostasia.
A Igreja sempre ensinou que é o espiritual que determina o material, e pôs isto em prática na oração impetrante das rogações públicas, das peregrinações, dos rosários e principalmente das santas missas. Mas, seria temerário dizer que hoje bem poucos crêem na eficácia desses atos de fé? E em 1917? Quantos prelados e sacerdotes acreditavam ao pé da letra que Maria Santíssima poderia interceder diretamente pela paz do mundo? Que as aparições de Fátima pudessem ser uma resposta ao apelo de Bento XV?
Parece lógico que se não acreditavam nessa possibilidade também não acreditariam nas promessas da mensagem, isto é, que se a Igreja adotasse a devoção pedida ao Imaculado Coração de Maria e a Rússia lhe fosse consagrada pelo papa junto a todos os bispos, esta seria convertida e o mundo teria paz. Menos ainda poderiam acreditar, então, que se isto não fosse feito adviriam guerras, fornes, perseguições.
Todavia, diante da magnitude do benefício prometido pelo atendimento desse pedido, diante das promessas de paz neste mundo e salvação de muitas almas pelo cumprimento de algo que não comportava riscos ou sacrifícios de cruzadas militares ou flagelações sangrentas, diante da disparidade enorme entre o dar e o haver, por que não fazê-lo? Bastaria um pouco de fé no poder de intervenção do Onipotente neste mundo para, no mínimo, tentar obter esses benefícios, senão a glória de Deus, como um ato politicamente pacífico e conforme as devoções e consagrações que a Igreja sempre promoveu.
Consideremos agora as ações dos papas desde 1917 a esse respeito. Bento XV pediu a intervenção de Maria Santíssima pela paz universal. Não cogitou, porém, que em Fátima veio a resposta; Pio XI, citado na mensagem, apoiou o culto de Fátima e instituiu a festa de Cristo Rei, mas não fez a consagração pedida; Pio XII, chamado o papa de Fátima, atendeu pessoalmente à solicitação, mas sem ordená-la aos bispos. Cabe concluir que a esperança posta no cumprimento da promessa de intervenção do Céu era insuficiente. Como seria em seguida?
João XXIII mandou arquivar a parte ainda secreta da mensagem e Paulo VI, embora indo a Fátima em 1967, evitou mencioná-la. Na véspera da viagem leu a exortação apostólica Signum Magnum, com a qual reconhecia em Nossa Senhora a mulher vestida de sol do Apocalipse, mas deu seu pedido por atendido. Não escondeu que punha sua última esperança de paz na ONU. Foi o papa que adaptou a Santa Missa aos protestantes, transferiu a liberdade da Igreja aos cidadãos e a tiara, símbolo da soberania de Cristo Rei, aos pobres. Seus sucessores houveram por bem continuá-lo e ao seu Concílio.
Ficava assim instaurada uma Igreja Conciliar onde o projeto de paz passou a depender de iniciativas humanas sem vínculos espirituais. Além do quê, seria a liberdade de consciência e de religião a constituir o fundamento da dignidade dos homens, e como desta destoa prostrar-se contrito diante de Deus para elevar-lhe súplicas de misericórdia, a oração transformou-se em simples e vulgar diálogo. Aos homens livres competiria mais julgar que acatar mistérios.
Essa liberdade de “julgar” o que deve ser verdade é a premissa da grande apostasia, desde o início insuflada pelo iníquo sedutor: “Sereis como deuses, conhecendo o bem e o mal” (Gn. 3,5). São Paulo (Ts.II, 2) fala desse mistério de iniqüidade presente também na Igreja desde o início, mas retido até que alguém com o poder das chaves lhe franqueasse a saída do abismo de onde se erguerá para impor na Igreja o culto e o domínio do homem.
Podemos ainda considerar essa liberdade quanto à verdade uma insídia remota e hermética nos nossos dias? É claro que pôr em dúvida a verdade única e os sinais da vontade de Deus é manifestação de apostasia e adesão a poder que, “com sinais e prodígios enganosos, com todas as seduções da iniqüidade para aqueles que se perdem porque não abraçaram o amor da verdade para serem salvos. Por isso Deus lhes enviará o artifício do erro de tal modo que creiam na mentira” (Ts. II, 9-10). Qual artifício do erro maior que o culto do homem, o homem que se faz deus na Igreja de Deus que se fez Homem?
Jesus deu-nos o sinal do momento culminante dessa iniqüidade: “Quando pois virdes a abominação da desolação, que foi predita pelo profeta Daniel, posta no lugar santo...” (Mt. 24,15). Daniel fala do Templo onde cessou o sacrifício e a oferta (9,27), do santuário da fortaleza onde cessou o sacrifício perpétuo (11,31).
É sempre à Igreja do Sacrifício que somos chamados a dirigir os olhos. Esta é a Nova Jerusalém, o lugar santo, o templo e o santuário, a fortaleza da fé. Dela vêm os chamados à vigilância e à oração, mas nela veremos o assédio, a invasão, a abominação da desolação no altar, o iníquo que “se sentará no Templo de Deus, apresentando-se como se fosse Deus” (Ts. II 2,4).
Naturalmente, quando o engano atingir tal ponto tudo será possível e os católicos seduzidos defenderão e respeitarão tal invasor. A quem apelar, então?
Certamente Deus não abandonará Sua Igreja nesse momento de paixão e apostasia. O mesmo profeta Daniel fala da “pedrinha que se desprende dum monte sem intervenção humana”, que derrubará o colosso. Para o nosso tempo temos também a profecia de São Luís Maria Grignion de Montfort, que mostraremos em seguida, para melhor entendermos qual intervenção sobrenatural devemos esperar.
Estamos diante de fatos abissais. Mas animados pela fé com que pastorzinhos derrubaram gigantes, guiaram reis e advertiram papas, devemos perscrutar desassombradamente os sinais de nossos tempos: presenciamos a tentativa de transformação religiosa pela abertura da Igreja às liberdades do mundo, que constituem repúdio à verdade divina. Procura-se adaptar as escrituras, os catecismos e a liturgia, além do mesmo magistério eclesiástico, para uso de uma revolução conciliar dessacralizante e inimiga da tradição. Quanto ao sacrifício perpétuo, se não é certo dizer que cessou em muitas missas, certamente foi reduzido e alterado para agradar aos protestantes e ao mundo.
Eis o colosso revolucionário que ocupou a Igreja de Deus e pontifica o erro por toda a Terra, seduzindo com uma união religiosa pela felicidade e pela paz que é ofensiva à religião única revelada por Deus e lembrada pelo portento sobrenatural de Fátima. Este colocou a pedrinha que destruirá o leviatã infernal para glória de Deus e triunfo de Maria, Mãe da Misericórdia que não deixaria de avisar seus filhos na abertura do abismo de perdição.
Aqui serão colocados os fatos relativos ao evento de Fátima em ordem cronológica e entremeados por textos clássicos que lembram a visão cristã da História e a transcendental oposição entre a Cidade dos Homens e a Cidade de Deus, entre os projetos humanos e os desígnios divinos. Se soubéssemos ler o apocalipse imbuídos de seu espírito, ali encontraríamos tudo o que deve acontecer, à luz dos fatos já acontecidos. Mas precisamos de ajuda para fazê-lo.
Para melhor reconhecer então a Profecia para o nosso tempo vamos recorrer a São Luís Maria Grignion de Montfort, que viveu entre os séculos XVII e XVIII e escreveu obras proféticas como o Tratado da verdadeira devoção à Maria e Carta aos amigos da Cruz. Com estas, e sua pregação e exemplo, preparou os católicos franceses para enfrentarem a onda de libertações mundanas que culminariam com a Revolução Francesa, antepondo-lhe justamente a escravidão de amor mariano e a submissão à Cruz, única libertação na vontade de Deus.
Essa visão profética, porém, era sinal de escândalo e contradição na França do Rei Sol, que mandou demolir em 1710 o grande Calvário que o Santo havia construído com os camponeses em Pontchâteau. Do mesmo modo suas obras escritas e seus discípulos foram durante o século XVIII alvo dos ataques jansenistas. O precioso manuscrito do Tratado, escondido para escapar à Revolução, só foi encontrado em 1832 num caixote de livros velhos. Mas nessa ocasião o autógrafo mandado a Roma a fim de ser examinado no processo de canonização, foi declarado isento de erros (Decreto de 12 de maio de 1853).
Realizara-se assim uma predição escrita em sua mesma obra: “Vejo no futuro feras frementes precipitarem-se furiosas para dilacerar com seus dentes diabólicos este pequeno manuscrito e aquele de quem o Espírito Santo se serviu para escrevê-lo, ou ao menos para que fique envolto nas trevas e no silêncio de uma arca a fim de desaparecer. Atacarão e perseguirão até aqueles e aquelas que o lerem e o puserem em prática. Mas não importa! Tanto melhor! Esta visão me encoraja e me dá a esperança de um grande sucesso, isto é, um esquadrão de bravos e destemidos soldados de Jesus e de Maria, de ambos os sexos, para combater o mundo, o demônio e a natureza corrompida nos tempos perigosos que virão e como ainda não houve igual. “Quipotest capere, capiat” (Mt. 24,15 e 19,12).
O famoso teólogo ascético inglês, padre Faber, apresentando essa obra na metade do século passado, diz que poucos homens no século XVIII traziam tão fortemente gravados em si os sinais de homem da Providência, como esse novo Elias, missionário do Espírito Santo e de Maria Santíssima, novo São Simão Salus, São Filipe Neri, São Vicente Ferrer, precursores do juízo final e portadores de uma mensagem divina que pede maior conhecimento, honra e amor ardente à Virgem Maria, intimamente ligada ao segundo Advento de Seu divino Filho.
São Luís Maria foi de fato um profeta de Maria Precursora e Mãe. Somente mais de um século depois de sua morte (em 1716) começaram as grandes aparições de Nossa Senhora, que se multiplicaram como luminosos sinais dos tempos para convocar os homens à oração e à penitência preparando-os para enfrentar os anos da grande apostasia que precederá o dia do Senhor. Nos livros do Santo já se falava dessa ação poderosa da Mãe SANTÍSSIMA para converter os filhos e fortificar os fiéis, diante das insídias e seduções dos tempos finais. Vejamos o Tratado:
— Foi por intermédio da Santíssima Virgem Maria que Jesus Cristo veio ao mundo, e é também por meio dela que Ele reinará no mundo.
— Se Moisés pela força de sua oração conseguiu sustar a cólera de Deus contra os israelitas, e de tal modo que o Altíssimo e infinitamente misericordioso Senhor, não podendo resistir-lhe, lhe disse que o deixasse encolerizar-se e punir aquele povo rebelde, que deveremos pensar e com muito mais razão da prece da humilde Maria, a digna Mãe de Deus que tem mais poder junto da Majestade divina que as preces e intercessões de todos os anjos e santos do Céu e da Terra? (Santo Agostinho, serm. 208 in Assumpt. n. 12).
— O sinal mais infalível e indubitável para distinguir um herege, um cismático, um réprobo, de um predestinado, é que o herege e o réprobo ostentam o desprezo e indiferença pela Santíssima Virgem e buscam, por suas palavras e exemplos, abertamente ou às escondidas, às vezes sob belos pretextos, diminuir e amesquinhar o culto e o amor a Maria. Ah! Não foi nestes réprobos que Deus Pai disse a Maria que fizesse Sua Morada, pois são filhos de Esaú.
— A Maria somente Deus confiou as chaves dos celeiros do divino amor, e o poder de entrar nas vias mais sublimes e mais secretas da perfeição para nestes caminhos fazer entrar os outros.
— “Ser vosso devoto, ó Virgem Santíssima, é uma arma de salvação que Deus dá àqueles que quer salvar.” (São João Damasceno)
— Por meio de Maria começou a salvação do mundo e é por Maria que deve ser consumada. Na primeira vinda de Jesus Cristo, Maria quase não apareceu, para que os homens, ainda insuficientemente instruídos e esclarecidos sobre a pessoa de Seu Filho, não se lhe apegassem demais e grosseiramente, afastando-se assim da verdade. E isto teria acontecido devido aos encantos admiráveis com que o próprio Deus lhe havia ornado a aparência exterior. São Dionísio o Areopagita o confirma numa página que nos deixou e em que diz que, quando a viu, a teria tomado por uma divindade, tal o encanto que emanava da beleza incomparável de sua pessoa, se a fé em que estava bem confirmado não lhe ensinasse o contrário. Mas, na segunda vinda de Jesus Cristo, Maria deverá ser conhecida e revelada pelo Espírito Santo, a fim de que por Ela seja Jesus Cristo conhecido, amado e servido, pois já não subsistem razões que levaram o Espírito Santo a ocultar sua esposa durante a vida e a revelá-la só depois da pregação do Evangelho.
— Deus quer, portanto, nestes últimos tempos, revelar-nos e manifestar Maria, a obra-prima de suas mãos, entre outras razões porque, visto ser ela a aurora que precede e anuncia o sol da justiça, Jesus Cristo, deve ser conhecida e notada para que Jesus Cristo o seja.
— Maria gerou com o Espírito Santo a maior maravilha que existiu e existirá — o Homem-Deus, e ela realizará, por conseguinte, as coisas mais admiráveis que hão de existir nos últimos tempos. A formação e educação dos grandes santos que aparecerão no fim do mundo lhe está reservada, pois só esta Virgem singular e milagrosa pode produzir, em união com o Espírito Santo, as obras singulares e extraordinárias.
Maria deve ser, enfim, terrível para o Demônio e seus sequazes como um exército em linha de batalha, principalmente nesses últimos tempos, pois o Demônio, bem sabendo que lhe resta pouco tempo para perder as almas, redobra cada dia seus esforços e ataques. Suscitará em breve perseguições cruéis e terríveis emboscadas aos servidores fiéis e aos verdadeiros filhos de Maria, que mais trabalho lhe dão para vencer.
— É principalmente a estas últimas e cruéis perseguições do Demônio, que se multiplicarão todos os dias até ao reino do anticristo, que se refere aquela primeira e célebre predição e maldição que Deus lançou contra a serpente no Paraíso terrestre. Vem a propósito explicá-la aqui, para glória da Santíssima Virgem, salvação de seus filhos e confusão do Demônio.
— Mas o poder de Maria sobre todos os demônios há de patentear-se com mais intensidade nos últimos tempos, quando Satanás começar a armar insídias ao Seu calcanhar, isto é, aos Seus humildes servos, aos Seus pobres filhos que ela suscitará para combater o príncipe das trevas. Eles serão pequenos e pobres aos olhos do mundo e rebaixados diante de todos como o calcanhar, calcados e perseguidos como o calcanhar em comparação com outras partes do corpo. Mas em troca eles serão ricos em graças de Deus, graças que Maria lhes distribuirá abundantemente. Serão grandes e notáveis em santidade diante de Deus, superiores a toda criatura, por seu zelo ativo, e tão fortemente amparados pelo poder divino que, com a humildade de seu calcanhar e em união com Maria, esmagarão a cabeça do Demônio e promoverão o triunfo de Jesus Cristo. — Serão os apóstolos dos últimos tempos.
— Quando meu amável Jesus vier em Sua glória uma segunda vez à terra (como é certo), o caminho que escolherá será Maria Santíssima, o mesmo pelo qual Ele veio com segurança e perfeitamente na primeira vez. A diferença entre a primeira e segunda vinda é que a primeira foi secreta e oculta, e a segunda será gloriosa e retumbante.
— Maria sozinha esmagou e exterminou as heresias como diz a Igreja com o Espírito Santo que a conduz.
Guiados por São Luis Maria Grignion de Montfort vemos que a força da Igreja está em glorificar a Deus conforme Sua divina vontade, e esta passa pelo louvor, honra e amor a Maria Santíssima De Maria nunquam satis, já era dito antes de suas extraordinárias aparições. Como deve ser então depois que a Medianeira de todas as graças visitou seus pobres filhos na Terra?


A profecia para o nosso século


A história humana é a história de uma rebelião que cresceu e multiplicou-se. Este constante conflito, entre a volúvel concupiscência dos homens e a imutável lei de Deus que trazemos em nosso íntimo, aumentou no decorrer da história com o poder humano. As rebeliões somaram-se, fortificaram-se e aliaram-se, gerando guerras e revoluções até formar o leviatã moderno: a revolução por excelência. Ela está para a humanidade assim como a rebelião está para cada homem.
Há, portanto, uma revolução original que condiciona toda a história e cujas dimensões devemos sempre medir para conhecermos a situação do mundo em que vivemos. Sabemos que seu produto final será o devastador anticristo, o mais poderoso inimigo da Igreja de Deus e de Seus filhos.
Para reconhecer esse mal crescente, em todas as épocas e lugares, os homens receberam sinais sobrenaturais a fim de serem guiados nos labirintos da vida e da história. O Sinal supremo veio pelo Verbo Encarnado que nos legou para sempre a Revelação salvadora e instituiu a Igreja para ensiná-la e preservá-la, ministrando os sacramentos; sinais sensíveis e eficientes da graça.
Se antes do Advento os sinais sobrenaturais de que a Sagrada Escritura relata a história, anunciam o Salvador, depois, continuam para confirmá-lo nos séculos como o Senhor da história.
Os sinais divinos são dados de modo extraordinário, através de santos, de milagres, de mensagens ou de aparições, reconhecidos pela Igreja porque vêm na linguagem do Evangelho, não do mundo, para reforçar a fé, a esperança e a caridade católicas, não as ilusões e emoções humanas. Por estes sinais poderemos conhecer o estado atual da rebelião humana, a fim de que os falsos sinais e profetas do mundo não prevaleçam.
“Sabeis distinguir o aspecto do céu e não reconheceis os sinais dos tempos?” (Mt. 16,4) Devemos, pois, perscrutar com atenção os sinais dos tempos em que vivemos. Isto não é passatempo ocioso nem curiosidade gratuita, mas cuidado inalienável para a vida espiritual e social de cada um. É vigilância sobre o que pode ameaçar o nosso tempo terreno, momento em que fica decidido nosso destino eterno.
Atenção, porém: os sinais divinos são sinais de contradição para o homem rebelde, antepõem o sobrenatural ao naturalismo mundano, a palavra divina aos projetos humanos, a intervenção da Providência às táticas e compromissos dos potentes. Aqui veremos como tudo isto resplende no grande sinal de Fátima, que foi por essa razão hostilizado como Jesus pelos fariseus.
Um sinal extraordinário de fé justifica-se para confirmá-la nos fiéis, ou reforçá-la nos tíbios, solicitá-la nos incrédulos, ou então interpelar sobre a fé seus guardiães negligentes. Assim como é certo que um católico não pode ter outra referência para entender um sinal autêntico do Céu senão a Igreja e o papa, também é certo que um sinal de fé tem por objetivo amparar a fé de todos, sem exclusão do papa. Deus, que dá os sinais, antes deu Sua palavra e instituiu Sua Igreja para a fé. Esta é a referência de tudo que vem de Deus: a fé íntegra e pura, para a qual existem a Igreja e o papa.
Consideremos então o grande sinal de Fátima, que trouxe a profecia para o nosso tempo com o selo sem precedentes em grandiosidade da vontade de Deus que foi o milagre do sol do dia 13 de outubro de 1917, ponderando que a sabedoria divina dá sinais proporcionais à gravidade do perigo sobre o qual quer avisar os homens. É o convite a receber este aviso, que pela sua importância indica um momento crucial da história, reconhecendo a natureza e entidade dos males que convergem desastrosamente neste século. E este reconhecimento não depende, por sua vez, de um senso cristão da história, e da fé católica que é justamente o alvo da revolução?
Eis porque nestas considerações sobre o evento de Fátima começamos por falar neste processo de rebelião social contra Deus: porque o momento culminante da revolução mundial será o da maior cegueira espiritual dos homens, vítimas de uma espantosa crise de fé, mas imersos na indiferença e na apostasia geral que impede reconhecê-la.


A história da revolução
Para compreender a história humana e a mensagem de Fátima que profetizou a história deste século, devemos começar, portanto, recapitulando a natureza e a evolução do processo revolucionário em perene conflito com a religião revelada.
Logo no início do primeiro livro das Sagradas Escrituras, o Gênesis (3,15), temos o episódio do pecado original, suas conseqüências e seu desenlace pela indicação de quem vencerá a insídia satânica: “Porei inimizades entre ti e a mulher e entre a tua posteridade e a posteridade dela. Ela te pisará a cabeça, e tu armarás traições ao seu calcanhar.” Quem, senão Maria Virgem e sua posteridade? E quem o primeiro inimigo e primeiro revolucionário senão Satanás? Desde os albores da história o homem separado do Criador viveu em conflito entre as próprias preferências e os ditames profundos da lei divina gravada na sua consciência. Assim, a história do homem decadente foi logo marcada pela idolatria e pelo paganismo.
Mas os sinais divinos nunca faltaram. Eram dirigidos então ao povo eleito que recebeu a Revelação divina para crer. A fé no Deus verdadeiro foi, porém, inúmeras vezes infeccionada pelas palavras de falsos profetas e pela tentação de falsos cultos. E foi assim que na vinda do Messias anunciado, este mesmo povo eleito e sua classe sacerdotal preparada para reconhecê-Lo, negou-O e O crucificou.
Transformava-se deste modo a Sinagoga em centro da revolução talmúdica e judaizante, poder anticristo que iria inspirar as perseguições iniciais ao cristianismo, que continuariam depois indiretamente inspirando outras formas revolucionárias. Entre estas está, de certo modo, também a revolução islâmica, feita essencialmente contra a fé na Trindade de Deus.
A Revelação completada por Jesus havia sido negada pelos judeus e entregue aos gentios, iniciando assim o tempo das nações. Não cessavam por isso as perseguições e insídias que as revoluções anticristãs tramavam contra a Igreja e a Fé. Mas, passado o tempo da prova e da semeadura veio o da colheita.
Um grande sinal apareceu então ao imperador Constantino antes do combate decisivo que devia travar em Roma: “In hoc signo vinces”. Depois da sua vitória (312 a.D.) o maior império da Terra tornava-se cristão. Durante mil anos, entre altos e baixos, floresceu e frutificou a civilização cristã sem par entre as outras deste mundo, apesar de muitos erros e divisões dos homens.
Aconteceu então o grande cisma do oriente (1054 a.D.), divisão revolucionária do mundo antigo justamente pela rebelião ao princípio da unidade e da autoridade católica: o papa. Foi uma enorme perda para a Igreja, mas não suficiente para o espírito revolucionário que voltou a soprar sobre o fausto da renascença européia, que no fundo era pagã e produziria por reação a grande revolução protestante de Lutero.


A revolução protestante
Este processo revolucionário contra a autoridade, a doutrina e a liturgia da Igreja, manifestou-se em 1517 sob a forma de um retorno à verdade e de uma libertação do presente. Mas essa “verdade” pretendia justificar na fé a decadência humana pela negação do livre arbítrio e contraditoriamente arvorar a consciência humana em árbitro da interpretação bíblica.
Sua conseqüência foi terrível para a Igreja, seja do ponto de vista da poluição religiosa e filosófica do mundo ou da divisão política da Europa e interna das nações. Ouçamos o papa Leão XIII na sua Encíclica Diuturnum de 29 de junho de 1881: “Foi da Reforma que nasceram, no século passado, a falsa filosofia e aquilo a que se chama o direito moderno, assim como a soberania do povo e essa licenciosidade desenfreada, sem a qual muitos já não sabem ver a verdadeira liberdade.”
Doutrinariamente, portanto, a reforma protestante contribuiu para o processo revolucionário, completando sua obra com uma colaboração política de seus chefes, razão pela qual a revolução (francesa) não foi mais que uma vingança da Reforma, conforme escreveu o cônego Roul, citado por Jean Ousset, que continua: “Os Reformados contribuíram indiretamente para isso por intermédio dos filósofos e das sociedades de pensadores que tinham previamente pervertido e que, por sua vez, se encarregaram de espalhar por toda parte a confusão. Que se pense apenas em Rousseau e na influência que exerceu sobre a revolução e os revolucionários. Ora, em todos os sentidos da expressão, ‘Rousseau vinha de Genebra’ (protestante).”
Quanto ao processo político, deu-se pelo democratismo, elevado por muitos protestantes a instituição religiosa. “Os iniciadores da democracia no século XVII, na Inglaterra, foram os anabatistas, os independentes e, finalmente, os quakers. E isto não só em função do fato de se terem apegado mais literalmente e concedido mais importância à doutrina do sacerdócio de todos os crentes, mas também por terem insistido no princípio de que as suas congregações deveriam autogovernar-se.” (A. D. Lindsay, The Churches and Democracy)
Completemos este quadro com uma frase de Lutero: “Empregai o vosso poder para sustentar e fazer triunfar a minha revolta contra a Igreja e entregar-vos-ei a autoridade religiosa.” O mesmo que representou para o catolicismo a subida ao poder de Constantino seria realizado pela reforma protestante em benefício da insubmissão... E houve príncipes e reis que não deixaram de ouvir este apelo de Lutero contra o papa.
Depois do que foi dito, não deve mais surpreender esta aparente contradição: a revolução, que é anti-religiosa em países católicos, costuma não sê-lo em países protestantes. Antimonárquica onde há reis católicos, costuma deixar reinar em paz os monarcas protestantes ou até católicos de nome que hostilizarem a Igreja e o papa. Enfim, a revolução se alimenta de heresia, de cismas e de tudo que é contra a Igreja.
Vimos, assim, que a revolução protestante de 1517 gerou ou promoveu, por sua vez, direta ou indiretamente, outros processos revolucionários acalentados pela revolução talmúdica, ou seja, a maçonaria e o enciclopedismo, e todos unidos fariam a revolução total.


O triunfo do enciclopedismo maçônico
Com a ameaça de tantos e graves perigos para a Igreja no século XVII, não teria Deus mandado algum sinal sobrenatural para ajudá-la? Veremos aqui que estes não faltaram e foram dados no momento ideal para evitá-los, porque Luís XIV, o mais poderoso dos reis da família Bourbon, reinaria na França com poderes absolutos. Recebeu uma mensagem do Sagrado Coração que, acolhida, teria evitado a revolução francesa cem anos após. Mas a cegueira espiritual infelizmente prevaleceu. Isto nos convida a uma comparação com o que sucede nos nossos dias no âmbito da Igreja beneficiada pela mensagem de Fátima. Isto será considerado adiante. Aqui nos interessa saber o processo revolucionário que precedeu a eclosão da revolução de 1789 em França, que, no campo civil como no religioso, ainda condiciona depois de duzentos anos nossa época.
Nos fins do reinado de Luís XIV, entre 1680 e 1715, o escritor Paul Hazard situou o fluxo sintomático de mais ou menos todas as atitudes mentais cujo conjunto conduziria à revolução... “a crise da consciência européia”.
Depois da morte do rei, o movimento subversivo desenvolveu-se com grande virulência e não há historiador objetivo que negue a ação das sociedades secretas, que então surgiram por toda parte, no assalto contra a ordem cristã. A conivência entre os huguenotes, os jansenistas e os filósofos refugiados na Holanda dava seus frutos. O galicanismo, por seu turno, não tardou a reforçar a conjura e a desempenhar um papel tanto mais decisivo quanto se baseava no mais odioso dos equívocos.
Em poucos anos, as seitas e sociedades anticristãs iriam se difundir e tudo invadir. Introduzida na França de forma quase oficial desde 1721, com a instituição em Dunquerque, em 13 de outubro, da loja “Amizade e Fraternidade”, a franco-maçonaria se desenvolveria com grande força.
Voltaire foi recebido na franco-maçonaria quando da sua primeira viagem à Inglaterra (1725-1728) e, de regresso a Paris, não fez mistério do seu projeto de aniquilar o cristianismo. A publicação da Enciclopédia foi o primeiro meio para atingir este fim. Os conjurados fizeram dela um depósito de todos os erros, sofismas e calúnias inventados contra a religião. Mas estava convencionado que ela ministraria o veneno de maneira insensível. A Enciclopédia era uma obra internacional.
Bertin, encarregado da administração real, compreendeu o perigo dessa propaganda que chegava até as classes mais humildes da sociedade. Interrogando os vendedores dos livros, soube que estes não custavam nada e eram entregues em pacotes de procedência ignorada para serem vendidos em barracas a preços módicos.
Voltaire encarregou-se dos ministros, príncipes e reis. Quando não podia aproximar-se destes, trabalhava-os indiretamente. Por exemplo, colocou junto de Luís XV um médico, Quesnay, por cuja direção ideológica o rei o chamava de seu pensador.


A revolta contra Deus
Joseph de Maistre diria: “Embora sempre tenham existido ímpios, nunca se verificou antes do século XVIII e no seio do cristianismo uma insurreição contra Deus, sobretudo nunca se tinha visto uma conjura sacrílega de todos os talentos contra o seu autor; ora, foi a isto que então assistimos.”
Contudo, já em 1738, a Igreja, pela boca do soberano pontífice, tinha avisado sobre o perigo e desmascarado a conspiração! Em 28 de abril, Clemente XII condenou pela primeira vez a franco-maçonaria. Em 1751, confirmou esta condenação Bento XIV, e assim por diante.
Mas, se o papado soube ver o perigo e condená-lo, os príncipes preferiam deixar correr e mesmo auxiliá-lo.
Que terrível ironia se desprende de documentos como esta carta de Maria Antonieta para sua irmã, rainha Maria Cristina (26-2-1781); “Julgo que vos preocupais demasiado com a maçonaria. Aqui toda gente o é ... Recentemente, a princesa de Lamballe foi nomeada grão-mestre duma Loja e contou-me todas as belas coisas que lhe foram ditas.” De fato, a começar pelo primo do rei, o futuro regicida Filipe “Égalité”, que seria por sua vez guilhotinado; esse mesmo aplicava-se a “maçonizar” o exército e sobretudo as “guardas francesas”. Ora, sabe-se que a revolução só foi possível graças à súbita dissolução do exército real...
O que acontecia na França se repetia em toda a Europa. Influentes em Versalhes e em Paris, os jansenistas e enciclopedistas uniam-se e exerciam influência também em Viena. O exemplo de José II, imperador da Áustria, era contagioso. A revolução que os sofistas arrastavam foi acelerada tanto pelos reis como pelos seus ministros. Existiam marqueses de Pombal em todas as cortes.
Em 1789, mais da metade dos deputados franceses eram franco-maçons. Eis porque o padre Baruel escreveu: “Na revolução francesa, tudo, incluindo os crimes mais espantosos, tudo foi previsto, meditado, combinado, resolvido, estabelecido. Luís XVI, no seu regresso de Varennes, confessaria: 'Por que não acreditei há onze anos? Tudo quanto atualmente vejo tinha-me sido anunciado'.” E sobreviria a morte desde rei que fora, sem dúvida, decidida pela seita ainda muito antes da revolução.
O papa Bento XV escreveu: “Desde os três primeiros séculos, durante os quais a terra ficou empapada com o sangue dos cristãos, pode-se dizer que nunca a Igreja atravessou uma crise tão grave como aquela em que entrou no fim do século XVIII.” E também: “É sob os efeitos da louca filosofia resultante da heresia dos Inovadores e da sua traição que os espíritos saíram em massa dos caminhos da razão e que explodiu a Revolução, cuja extensão foi tal que abalou as bases cristãs da sociedade, não só em França, mas paulatinamente em todas as nações.” (A.A.S. 7/3/1917)
De fato, só a revolução, que estava para realizar-se no pontificado, ultrapassaria tudo isto.

O império revolucionário de Napoleão
O imperador Napoleão I repetiria à saciedade que tinha sido o defensor das idéias de 1789. Autoproclamava-se o “Messias” da revolução: “Consagrei a Revolução, insuflei-a nas leis.” Vejamos então qual o legado desta num escrito do bispo de Angers (monsenhor Freppel):
“Lede a Declaração dos Direitos do Homem, quer a de 1789, quer a de 1793, vede qual a idéia que então se formou dos poderes públicos, da família, do casamento, do ensino, da justiça e das leis: lendo-se todos esses documentos, vendo-se todas essas instituições novas, dir-se-ia que, para essa nação cristã desde há quatorze séculos, o cristianismo nunca existira e que não havia lugar para ser tido em conta... Era o reinado social de Jesus Cristo que se tratava de destruir e de apagar até o menor vestígio. A revolução é a sociedade descristianizada; é Cristo repelido para o fundo da consciência individual, banido de tudo quanto seja público, de tudo quanto seja social; banido do Estado, que já não procura na Sua autoridade a consagração da sua própria; banido das leis, das quais a Sua lei não é soberana; banido da família, constituída fora da Sua bênção; banido da escola, onde o Seu ensino já não é a alma da educação; banido da ciência, onde não obtém melhor homenagem do que uma espécie de neutralidade não menos injuriosa do que a negação; banido de toda parte, a não ser talvez de um recôndito da alma, onde consentem deixar-lhe um resto de domicílio.”
Esta era a intenção real. Mas, perguntar-se-á, por que razão teria Napoleão restabelecido o culto católico na França? Por que fez uma concordata com o papa Pio VII? Por que convidou este para a sua coroação? Algo se esclarece a esse respeito no seu Memorial de Santa Helena: “Quando restabelecer os altares, quando proteger os ministros da religião, como eles merecem ser tratados em todo o país, o papa fará o que lhe pedir: acalmará os espíritos, reuni-los-á na sua mão e colocá-los-á na minha... Além disso, o catolicismo conservar-me-á o papa, e, com sua influência e as minhas forças na Itália, não desistirei de, cedo ou tarde, por um meio ou por outro, acabar por ter nas minhas mãos a direção desse papa, e, desde logo, dominar essa influência e essa alavanca de opinião sobre o mundo...” Para quê?
“De fato”, escreveu monsenhor Delassus, “onde quer que Napoleão levou seus exércitos, fazia o que tinha sido feito em França, estabelecendo a igualdade entre os cultos, expulsando os religiosos, impondo a partilha forçada, vendendo os bens eclesiásticos, abolindo as corporações, destruindo as liberdades locais, derrubando as dinastias nacionais, aniquilando, numa palavra, a antiga ordem das coisas e esforçando-se para substituir a civilização cristã por uma civilização cujo princípio e fundamento seriam constituídos pelos dogmas revolucionários.”


A restauração aparente
Depois da queda de Napoleão os revolucionários não conseguiram impedir a volta de um rei católico na pessoa de Luís XVIII, da família Bourbon. Mas conseguiram colocar junto ao soberano um certo número de homens que pouco tinham de promotores da restauração da ordem cristã. Tratava-se de uma equipe de prelados e padres que haviam abandonado o seu ministério sob a revolução: Talleyrand, de Pradt, Louis, de Montesquieu. Foi a esses quatro eclesiásticos que Luís XVIII confiou o governo da primeira restauração. No da segunda havia o regicida Fouché. Com a polícia dominada por ele a maçonaria pôde reorganizar-se livremente. E assim a restauração favoreceu o catolicismo, mas também os maçons e o parlamentarismo, de modo que “a constituição de 1814 saiu das próprias entranhas da revolução”, como diria Thieres em 1873. O papa Pio VII manifestava ao rei, através do bispo de Tours, sua dor e os perigos dessa constituição revolucionária. Em 1818 o cardeal Consalvi escreveria ao príncipe de Metternich-Winneburg, da Áustria: “Julgo que a revolução mudou de marcha e de tática. Já não ataca a mão armada tronos e altares: limita-se a miná-los...” Mas os avisos de Roma de nada serviriam aos monarcas de então.
Luís XVIII estava longe de ser um católico de tempera. Havia recusado à contra-revolução da Vandéia de tomar o poder para vencer a subversão revolucionária e o terror dos anos que se seguiram a 1793. Seu irmão e sucessor Carlos X, embora bastante devoto, não tinha uma formação católica sólida para enfrentar tantas insídias e acabou sucumbindo. Pelo golpe de estado de 30 de julho de 1830 foi levado ao poder Luís Filipe Égalité, filho do regicida Orléans.
Era o retorno da revolução com todas as suas insídias, mas com a salvaguarda de estar sob a continuidade e respeitabilidade monárquica. Rodeado desde o início pelos pontífices da maçonaria — Decazes, La Fayette, Talleyrand, Teste, etc. — começou por colocar o judaísmo no mesmo nível das confissões cristãs, reforçando o interconfessionalismo e o clima de indiferença e liberalismo religioso. Assim, reconciliada na França a revolução com o trono, em toda a Europa os revolucionários ficaram livres para difundir e intensificar a guerra contra a Igreja, como se verá na Espanha e em Portugal, mas especialmente em Roma, onde o papa foi praticamente forçado a aceitar um projeto de anistia permanente para os revolucionários dos estados pontifícios. Em 1832 a França orleanista chegou a apoderar-se ameaçadoramente da cidade de Ancona, mas sem abalar a firme prudência de Gregório XVI.


As aparições de Nossa Senhora
Poderíamos perguntar se diante de tantos perigos e ameaças, Deus não havia dado algum sinal e ajuda à Sua Igreja. Esta é a questão que, embora seja extremamente importante, está incrivelmente esquecida.
Na noite entre 18 e 19 de julho de 1830, onze dias antes do golpe de estado, Nossa Senhora apareceu em Paris, na capela da “rue du Bac” das Filhas da Caridade, à jovem religiosa Catarina Labouré. A humilde noviça, que depois se tornou santa, ouviu a Virgem Maria, que com os olhos cheios de lágrimas, profetizava as grandes desgraças que estavam para abater-se sobre a humanidade. Em 27 de novembro, a Virgem Imaculada confiou a Catarina a missão de propagar a “Medalha Milagrosa” para sustentar os fiéis e a Igreja com a invocação: — Oh Maria concebida sem pecado rogai por nós que recorremos a Vós.
Eis, portanto, a resposta a esta questão capital que nos deve orientar sobre a luminosa seqüência de aparições marianas que vieram prevenir sobre os grandes perigos revolucionários modernos, que de 1830 até hoje se sucedem numa escalada vertiginosa.
A consideração fundamental é esta: a intervenção sobrenatural precede uma ameaça política à vida religiosa, mas a verdadeira ameaça, invisível, está no interior da Igreja, é relativa à defesa da fé, da doutrina, do culto, do clero, da hierarquia e do pontificado. Nossa Senhora veio à “rue du Bac”, como a La Salette e Fátima, avisar sobre erros políticos, mas para a defesa da Roma católica. A mensagem de ajuda é antes de tudo para que o pontífice romano tenha um novo apoio inestimável para preservar a fé íntegra e pura. Bastaria lembrar estas aparições de Maria Imaculada que em Lourdes, em 1858, diz “Eu sou a Imaculada Conceição”, confirmando assim a plena oportunidade do dogma proclamado pelo papa Pio IX em 1854.


A revolução liberal dentro da Igreja
Com esta luz podemos entender que o verdadeiro perigo de 1830 não era tanto a revolução coroada que iria impor o erro no mundo pelas armas, mas uma infiltração liberal que iria enfraquecer as defesas doutrinais da Igreja pelo liberalismo. Este termo tem-se prestado a muitas confusões, razão pela qual se impõe uma melhor elucidação deste mal, denunciado pelo papa.
Liberalismo é, essencialmente, atribuir à liberdade humana prioridade sobre a verdade revelada por Deus. Esta rebeldia à verdade começou a apoderar-se dos governos e das leis com a revolução francesa, mas era condenada e mantida fora da Igreja até que eclesiásticos, como o padre Lamennais, ocuparam-se de acolhê-la e “cristianizá-la”. Desde o século XIX o liberalismo religioso fez três grandes tentativas de dominar a Igreja. A primeira, de Lamennais, consistia em considerar o direito à liberdade um fato universal no qual se inseria o da liberdade da Igreja, como uma espécie diante do gênero. Esta posição quanto à liberdade religiosa tinha por conseqüência lógica a separação total da Igreja e do Estado, da lei de Deus e da lei dos homens. Depois da revolução de 1830, esta posição revolucionária agravou-se, por ser defendida também por “católicos” da corrente liberal do padre Lamennais, que se apresentaram à opinião pública como os verdadeiros defensores da liberdade da Igreja. Podia haver ilusão nisto?
Essa primeira tentativa com seus embustes e ilusões foi firme e prontamente repelida em 1832 pelo papa Gregório XVI com a encíclica Mirari vos, que reconhecendo a entidade do perigo usou palavras da profecia apocalíptica que estão no início deste livro.
A segunda tentativa de criar um “liberalismo católico” foi no sentido de aliar a Igreja à democracia, repelida porém com grande força e precisão doutrinal pelo papa Pio IX com a encíclica Syllabus e o Concílio Vaticano I: não há maioria democrática que possa prevalecer sobre a infalibilidade da Igreja e do papa, vigário de Cristo.
A terceira tentativa obteve no início um sucesso prático sob Leão XIII que, embora firme na doutrina, concedeu pelo “ralliement” uma aliança dos católicos franceses com o governo que operava com princípios liberais condenados pela Igreja. Mas com o novo papa, São Pio X, essa concessão cessou. As conseqüências foram dramáticas pela reação do governo, que despojou a Igreja na França de tudo quanto possuía. O mesmo aconteceria anos depois em Portugal, mas os princípios imutáveis da prioridade da lei de Deus sobre os votos democráticos e as preferências dos homens, afirmou-se pela ação de São Pio X de tudo instaurar em Cristo. Seriam desacreditadas pela encíclica Notre charge apostolique também as tentativas da “democracia cristã” do Sillon de Marc Sagnier, que aceitava uma vontade soberana do povo até de rezar ou ofender a Deus (como acontece com a lei do aborto). Ficavam claras as palavras de Leão XIII, de que o Estado que se rege pelos princípios do liberalismo é na prática um Estado ateu. “Este — ateísmo social — baseado numa liberdade depravada não é menos contrário ao direito natural e cristão que o ateísmo individual.” (Enc. Libertas, de 1888)


O liberalismo infecta o clero e os povos
Pela mensagem de Nossa Senhora de La Salette de 1846 veremos que o liberalismo religioso tranformaria muitos padres em “cloacas de impurezas” e preparava o caminho para uma infecção mortal: o ateísmo militante do estado socialista. Era a hora de Marx, da Internacional preparada pelos erros liberais de um imperador carbonário: Napoleão III.
Mas o verdadeiro perigo não estava tanto no reforçamento do poder temporal inimigo da Igreja, que manobrou o assalto contra a Roma católica durante o I Concílio do Vaticano. O papa Pio IX sentiu-se prisioneiro no seu palácio, mas sua preocupação estava sempre na defesa da fé contra os assaltos internos. E estes vinham também da parte do clero e até de bispos. Aqui é importante considerar, seguindo as preocupações dos papas e os avisos sobrenaturais, qual era o perigo apocalíptico com que se deparava a Igreja depois das palavras evocadas na Mirari vos pelo papa Gregório XVI.
De fato, se o grande mal consiste na abertura do poço do abismo que infectará toda a Terra, e a chave doutrinal tem por nome “liberdade religiosa”, a grande questão é interpretar qual é a estrela caída que a usará.
Ora, as estrelas do firmamento da Igreja são os bispos. Estas são as luzes que guiam e iluminam no alto com a luz de Deus. Que seria então a estrela que recebeu a chave? O bispo com a chave, senão o bispo de Roma?
Em La Salette, Nossa Senhora disse: “Roma perderá a fé e se tornará sede do anticristo.” Eis então o perigo supremo que, como mostraremos adiante, não deixou de ser previsto pelos grandes papas do século XIX e sobre o qual São Pio X, apenas elevado ao trono de São Pedro, disse ser lícito pensar, diante do desastroso estado do mundo, que o anticristo já estava entre nós.
Não se pode, porém, pensar que este iníquo seja elevado a tanto poder sem o concurso de muitas forças unidas: políticas, culturais, sociais, maçônicas, eclesiais, e tudo reforçado pela impiedade dos povos e a perversão do clero. E foi justamente para avisar disto que a Igreja recebeu as mensagens marianas e pedidos sobrenaturais. Que fizeram os católicos desses pedidos e dessas ajudas?
Nesta introdução à mensagem de Fátima devemos ver mais especificamente o que fizeram as grandes nações católicas européias Áustria, França e também Portugal, para que o mundo fosse levado à grande guerra e ao crucial encontro histórico de 1917.


A revolução que contaminou Portugal
Portugal foi preservado dos efeitos da revolução protestante pela sua devota unidade católica regida pelas ordenações tradicionais do Reino que classificavam de crime a heresia, a blasfêmia, a apostasia e o sacrilégio. A ruptura dessa fidelidade é obra do marques de Pombal. Chamado ao governo pelo rei d. José, foi o cavalo de Tróia das idéias revolucionárias maçônicas que havia absorvido com o josefismo na corte de Viena. Transferiu essas idéias ao rei, insuflando seu absolutismo prepotente, a fim de que rompesse com a Santa Sé, submetesse as bulas papais a censura e liqüidasse com os jesuítas. Com isto pôde promover no país a maçonaria com o seu filosofismo, que vegetava inerme, a idéia de igreja nacional e o protestantismo, que fundava em Lisboa (1761) sua primeira igreja. Se manteve contactos com Roma foi só porque participou da conjura internacional para extinguir a Companhia de Jesus. Infelizmente, nisto o papa Clemente XIV cedeu para poder evitar o cisma na França e reatar relações diplomáticas com Portugal.
Depois deste governo infausto o país estava contaminado pelo racionalismo maçônico, mas o efetivo domínio destas idéias veio pelas tropas invasoras de Napoleão I. Foi assim que o governo que sucedeu à invasão perseguiu a Igreja, chegando a expulsar o seu cardeal patriarca e pressionar o rei d. João VI, no exílio, a fim de que aprovasse uma nova carta constitucional, inspirada na francesa de 1791, derrogando as velhas ordenações. Como o rei parecia ceder a isto, um ministro do governo declarou: “Completou-se a grande obra! O supremo Árbitro do Universo coroou os nossos trabalhos! Sua Majestade acaba de aceder à nossa causa!”
Quando d. João VI voltou do Brasil, viu-se que não era assim, mas morto o rei criou-se uma questão sucessória. D. Pedro I, tendo renunciado a ser o imperador do Brasil, voltava à Europa e apoiado pelos ingleses e a maçonaria, na qual fora iniciado no Rio de Janeiro, pretendia o trono do seu irmão, o católico d. Miguel. Depois de uma difícil guerra civil, em que foi apoiado estranhamente pela Inglaterra de Palmerston, juntamente com a França de Luís Filipe e a Espanha de Maria Cristina, os aliados da nova “carta” venceram e d. Maria II, filha de Pedro I, quarto de Portugal, tornava-se rainha.
Os governos de 1832 a 1910 tiveram praticamente só primeiros ministros maçons, razão por que Pio IX, dirigindo-se em 1877 a peregrinos portugueses, denunciou: “Tendes um terrível e poderoso inimigo — é a impetuosa maçonaria que quer destruir em vós todos os vestígios do catolicismo.”
No começo deste século este domínio maçônico tornou-se abertamente republicano e anticlerical, suscitando uma tal subversão que o rei d. Carlos e o príncipe foram abatidos a bala em plena Lisboa, depois do que se multiplicaram profanações, saques e incêndios de igrejas e edifícios religiosos, além da caça a padres e freiras, acossados como feras.
O governo instituía então a lei de separação da Igreja e do Estado, o divórcio, banindo o ensino religioso. Na “festa da árvore” de 1911, em Lisboa, cândidos escolares levavam o dístico: “Sem Deus nem religião”!
São Pio X publicou nessa ocasião a encíclica Iamdudum in Lusitânia, para prevenir os fiéis contra os perigos que corriam devido ao erro que constituía a iníqua lei de separação.
Quatro anos depois da proclamação da República, em 1915, o delírio jacobino e anticatólico na capital era extremo. Só o norte do país não acompanhava a onda de violência que fez com que a direita republicana desse poderes ditatoriais ao general Pimenta de Castro para que restabelecesse a ordem. Mas também este governo especial terminou depois de cinco meses num banho de sangue e num caos tão grave que cruzadores ingleses e espanhóis aproximaram-se de Lisboa, prontos a intervir.
Foi então que os católicos portugueses voltaram às preces públicas e às procissões que imploravam à Virgem Maria que salvasse Portugal. Organizou-se em 1916 em todo o país a cruzada do Rosário com a adesão de milhares de famílias nas cidades e nas aldeias.
Além de provocar uma assombrosa crise interna, a revolução portuguesa, por cumplicidade com as outras, levou o país à grande guerra. Eis qual era a situação às vésperas da aparição de Fátima.


Razões ocultas da primeira guerra mundial
E nem se diga que não houve um aviso celeste aos governantes católicos para prevenir a hecatombe mundial que vinha completar por meio militar a obra de demolição revolucionária da civilização cristã.
Dom Bosco, em 1875, escreveu ao imperador Francisco José a seguinte carta, remetida ao soberano por intermédio do papa Pio IX:
“Assim fala o Senhor ao imperador da Áustria: Retoma coragem — Prepara-te e aos meus fiéis servidores. Minha cólera está a ponto de explodir sobre todas as nações da Terra porque se quer desprezar a Minha lei e, fazendo triunfar os que a profanam e oprimindo os que a observam. Queres tornar-te instrumento do Meu poder? Queres cumprir as Minhas vontades mais secretas e tornar-te o benfeitor da humanidade? Apoia-te sobre as nações do norte, mas não sobre a Prússia. Aproxima-te da Rússia, mas sem concluir alianças com ela. Alia-te à França católica. Depois da França virá a Espanha. Sejais um só e mesmo braço, guiado por um só e mesmo espírito.” O imperador, porém, confiante numa política centralizadora de poder não ouviu tal lição e arruinou-se com o seu império.
O ano de 1875 foi de fato favorável seja para a Áustria, seja para a França, cujo presidente, o marechal MacMahon, conseguiu aprovar uma nova constituição apesar da aberta hostilidade dos maçons e liberais de toda ordem.
Foi provavelmente a última ocasião para evitar a enxurrada de males que estavam iminentes. O poder maçônico tinha desígnios precisos. Gambetta dizia em 1877: “Nós aparentemente combatemos pela forma de governo e pela integridade da constituição. Mas a luta é mais profunda: a luta trava-se contra tudo que resta do velho mundo, entre os agentes da teocracia romana e os filhos de 1789.” “Queremos organizar uma humanidade sem Deus”, diria Jules Ferry. E Clemenceau: “A revolução é um bloco de onde nada se pode tirar...”
Muitas foram as tramas que levaram à grande guerra, mas o certo é que seu estopim, o atentado assassino de Sarajevo contra o príncipe herdeiro da Áustria, arquiduque Francisco Fernando e sua esposa, no dia 28 de junho de 1914, foi urdido na loja da sociedade secreta de Belgrado “Narodna Obradna” e não sem a conivência de elementos oficiais. Por incrível coincidência, dia 17 de julho, toda a Armada da Inglaterra mobilizada, o presidente francês Poincaré partiu para Petersburgo, na Rússia, com quem a França se aliaria.


1917 — encontro de muitas revoluções
1917 foi o ano mais crucial da grande guerra que fez milhões de vítimas na Europa, demolindo os últimos bastiões da civilização cristã.
De modo especial, nesse ano foi “injetado o vírus tifóide” (comparação de Churchill) da revolução comunista na Rússia, nas pessoas dos revolucionários Lênin e Trotski. Essa maquinação servia a curto prazo ao governo alemão para minar a Rússia inimiga, mas a longo prazo servia à revolução mundial, razão pela qual foi financiada por forças maçônicas. Lênin partiu da Suíça num vagão blindado com armas e ingentes recursos financeiros. Entrou na Rússia, porém, pela Suécia, porque o imperador católico Carlos I da Áustria, aliada dos alemães, discordou da manobra. Trotski reuniu-se a Lênin partindo dos Estados Unidos no navio “Cristianiafyord” com dinheiro, armas e homens treinados. Foram presos no porto canadense de Halifax, e o armamento apreendido, mas logo depois a prisão e a apreensão foram relaxadas por ordens superiores.
Mas se a guerra e a revolução bolchevique constituíam os fatos salientes de 1917, convém assinalar outros fatos menos destacados mas de grande importância para o avanço da revolução. A maçonaria atingia tal poder que, comemorando os 200 anos de sua fundação e no aniversário de Giordano Bruno, desafiou a Igreja e o papa na própria praça de São Pedro, desfilando com cartazes sacrílegos em que São Miguel Arcanjo era pisado por Lúcifer que devia reinar em Roma e ter o papa por escravo. Também o sionismo obtinha uma importante vitória para a formação do Estado de Israel com o aval recebido pela declaração do ministro inglês Balfour. A volta do domínio judeu em Jerusalém, que aconteceria 50 anos após com a guerra dos seis dias de 1967, evocava a profecia evangélica do fim do tempo das nações (LC, 21,24). Diante de todos estes eventos políticos decisivos para a vida do mundo — e hoje sabemos quanto continuam a pesar — os católicos não podem deixar de perguntar-se se a eles não correspondiam tantos outros, invisíveis e silenciosos, na vida da Igreja e do pontificado romano.
Aqui veremos que a resposta indireta mas clara a esta preocupação começou e continua a ser dada pela atitude eclesiástica diante do evento extraordinário de Fátima e sua mensagem que profetizou os fatos humanamente desconhecidos ou imprevisíveis naquela época: “os erros espalhados pela Rússia”. Mas, como é que os avisos da Igreja celeste à Igreja militante sobre os perigos que a ameaçavam e logo se desencadearam, não foram ouvidos? Por que a ajuda oferecida não foi devidamente reconhecida?
Fátima foi e continua sendo o espelho que reflete uma oculta transformação eclesial diante dos inimigos da Igreja. De fato, as dificuldades ou a recusa de acolher uma ajuda sobrenatural dessa ordem são emblemáticas e indicam que os múltiplos tentáculos da revolução, cujo avanço descrevemos, vão envolvendo e penetrando no seu objetivo final: a Igreja. Sabemos, porém, que nada escapa aos desígnios de Deus, que do maior mal tirará um bem inestimável, quando finalmente o Imaculado Coração de Maria triunfar.

A. Daniele
Via Campomarino, 31
00050 Fregene Roma



ÍNDICE CRONOLÓGICO ESSENCIAL DOS EVENTOS DE FÁTIMA
1916 — Aparições do anjo. Na primavera, no verão e no outono o anjo apareceu aos pastorzinhos para prepará-los ao grande evento.

1917 — Momento crucial da grande guerra de 1914-1918, o papa Bento XV faz um pedido de intervenção de Maria Santíssima pela paz.
13 de maio — 1.a aparição de Nossa Senhora na Cova da Iria, seguida de outras cinco, nos dias 13 dos meses seguintes, à mesma hora (exc. Agt.)
13 de julho — A visão do Inferno, seguida pela Grande Mensagem, onde havia o aviso sobre os erros espalhados pela Rússia, fato humanamente imprevisível, e onde estava o Terceiro Segredo para ser revelado só depois de 1960.
13 de outubro — O grande milagre do Sol, para que todos possam crer, noticiado pela imprensa portuguesa e assistido por 70 mil pessoas.


1919 — 4 de abril — Morre como um santo o pastorzinho Francisco.

1920 — 20 de fevereiro — Morre como uma santa a pastorzinha Jacinta.
Agosto — Posse de dom José Alves Corrêa da Silva, nomeado, pelo papa, bispo da restabelecida Diocese de Leiria (Fátima).


1922 — A capelinha de Fátima é dinamitada, num atentado sacrílego. O bispo de Leiria abre o processo canônico sobre as aparições.

1925 — A pastorzinha Lúcia entra para o convento das Dorotéias de Tuy.
10 de dezembro — Nossa Senhora aparece à irmã Lúcia em Pontevedra (Espanha), com o pedido da devoção dos cinco primeiros sábados.


1929 — 13 de junho — Nossa Senhora aparece à irmã Lúcia, que tem a visão da Teofania Trinitária na capela do convento de Tuy. Recebe o pedido da consagração da Rússia ao Imaculado Coração.

1930 — O bispo de Leiria publica a Carta Pastoral que aprova o culto de Nossa Senhora de Fátima e reconhece as suas aparições.

1931 — 13 de maio — Grande peregrinação da Igreja de Portugal a Fátima, cujos bispos consagram o país ao Imaculado Coração de Maria.

1938 — 25 de janeiro — A imprensa dá notícia de uma noite iluminada por uma luz desconhecida. Era o aviso da segunda grande guerra, ainda pior que a primeira, conforme profetizado na Mensagem. No entanto, poucos então o entendem.

1942 — 31 de outubro — No auge da guerra, Pio XII comemora os 25 anos de Fátima e consagra o mundo ao Coração Imaculado de Maria.

1950 — O papa proclama o Dogma da Assunção e tem nos jardins vaticanos a visão do Milagre do Sol, de 13 de outubro de 1917, em Fátima.

1952 — Pio XII consagra sozinho os povos da Rússia ao Imaculado Coração de Maria. As devoções de Fátima ainda não são oficiais.

1958 — Morte de Pio XII (o papa de Fátima). É publicada a entrevista de Irmã Lúcia com o padre Fuentes. O novo papa é inspirado a convocar um concílio. Começa a grande ofensiva à mensagem.

1960 — Fontes vaticanas informam que o terceiro segredo de Fátima, que está com o papa João XXIII, não será revelado como previsto.

1962 — João XXIII inaugura o Concílio Vaticano II, tomando distância dos “profetas da desventura” e abrindo a Igreja para o mundo.

1965 — O papa Paulo VI encerra o Concílio que proclamou Maria Mãe da Igreja, mas recusou atenção aos pedidos e avisos de Fátima.

1967 — Paulo VI vai a Fátima na comemoração do cinqüentenário das aparições. Ainda não são atendidos os pedidos de Nossa Senhora.

1969 — As transformações conciliares atingem o rito da missa e a tradicional pastoral católica. O papa fala em autodemolição.

1978 — Morte de Paulo VI, que viu a fumaça de Satanás na Igreja. Morte de João Paulo I, 33 dias após suceder Paulo VI. Eleito Karol Wojtyla, cardeal da Polônia comunista.

1981 — 13 de maio — Atentado ao papa na praça de São Pedro, em Roma. O pontífice reconhecerá um aviso relativo a Fátima.

1982 — João Paulo II vai Fátima, onde faz uma consagração do Mundo incompleta, segundo o Pedido. Encontra e fala com irmã Lúcia.

1983 — João Paulo II repete a consagração do Mundo a Maria Santíssima no Sínodo dos Bispos reunidos em Roma.

1984 — João Paulo II repete pela terceira vez a consagração do Mundo a Maria Santíssima, sem conseguir pronunciar o nome da Rússia.

1985 — No Sínodo Extraordinário de nov./dez. de 1985, a lembrança dos pedidos e da mensagem de Fátima são totalmente omitidos. É feita a exaltação do Concílio, “nova Pentecostes”. As atenções se voltam para as aparições carismáticas de Medjugorge (Iugoslávia).

1986 — 27 de outubro — Reunião das “grandes religiões” do mundo em Assis, convocadas por João Paulo II para orarem pela paz segundo os princípios da ONU. Uma imagem de Nossa Senhora trazida por devotos não foi recebida.


1987 — 70 anos das aparições. As palavras da mensagem de Fátima caíram no esquecimento. A vinha do Senhor está devastada. Mons. Lefebvre vai, peregrino, a Fátima e diz que Roma perdeu a fé e persegue os que querem conservá-la.

1988 — Roma excomunga mons. Lefebvre e os bispos por ele consagrados em 30 de junho, em Écone. De Roma partem instruções dirigidas à irmã Lúcia e padres do Apostolado de Fátima, declarando que a consagração da Rússia já fora efetuada, não se devendo mais falar nisso. Alega-se que a conversão da Rússia já estaria iniciada com a “perestroika”.



1ª PARTE - O SINAL DE CONTRADIÇÃO DO SÉCULO XX  - 1917-1958 - QUANDO O PAPA PEDIU, NOSSA SENHORA ATENDEU

Quem se dispõe a perscrutar os eventos de Fátima, deve ter presente que um sinal sobrenatural só pode vir expresso na linguagem das Escrituras e da Tradição, pela qual é o desígnio divino a dirigir os eventos do mundo como a órbita do universo. Nesta linguagem está a chave da autenticidade e da compreensão de todo sinal celeste.
Apuremos então a mente na linguagem cristã em que estão cifrados tanto os eventos portentosos como os mais singelos. Nada é fortuito na História e nada escapa à solicitude divina na vida de Sua Igreja. Reconheçamos o motivo próximo das aparições de Fátima para não perder uma manifestação do amor divino, chave de todo saber.
Quando em 1917 os horrores da l.a Grande Guerra provocavam rios de sangue e de lágrimas sem que se pudesse prever o seu fim, o papa Bento XV invocou com toda a Igreja a intercessão de Maria Santíssima pela paz. Eis os termos da carta ao secretário de Estado, cardeal Gasparri, com as disposições para que toda a Igreja invocasse a Rainha da paz nas suas orações mais freqüentes:
“Rainha da Paz... Para tal fim, se eleve a Jesus mais freqüente, humilde e confiante, especialmente no mês dedicado a Seu Santíssimo Coração, a oração da miserável família humana para suplicar-Lhe o fim deste terrível flagelo. Purifique-se cada um com maior freqüência no lavabo da confissão sacramental, e ao amantíssimo Coração de Jesus ofereça com afetuosa insistência as suas súplicas. E uma vez que todas as graças que o Autor de todo o bem se digna conceder aos pobres descendentes de Adão provêm, por amoroso conselho de Sua Divina Providência, pelas mãos da Virgem Santíssima, nós queremos que seja dirigido à Grande Mãe de Deus nessa hora horrível, mais que nunca o vivo e confiante pedido de seus filhos muito aflitos. Encarregamos portanto a Vós, Senhor Cardeal, de fazer conhecer a todos os bispos do mundo o nosso ardente desejo que se recorra ao Coração de Jesus, Trono de graças, por meio de Maria. Com esse propósito ordenamos que, desde o dia primeiro do próximo mês de junho, fique inserida na Ladainha de Loreto a invocação Regina pacis, ora pro nobis.
“Eleve-se portanto a Maria, que é Mãe de misericórdia e onipotente pela graça, de cada canto da terra, dos templos majestosos como das pequenas capelas, dos palácios e ricas mansões dos grandes como dos mais pobres casebres onde se aloja uma alma fiel dos campos e mares ensangüentados, a piedosa e devota invocação e leve a Ela o angustioso grito das mães e esposas, o gemido dos meninos inocentes, o suspiro de todos os nobres corações: possa mover a Sua amável e muito benigna solicitude a obter para o mundo desvairado a aspirada paz, e possa lembrar depois aos séculos futuros a eficácia de Sua intercessão e a grandeza do benefício por Ela obtido a Seus filhos.”
A carta é de 5 de maio de 1917. Oito dias depois, 13 de maio, na Cova da Iria em Fátima, Maria Santíssima aparecia, qual arco-íris da paz e da graça, para mostrar aos homens o caminho da verdadeira paz neste mundo e da salvação eterna no outro. Seria reconhecida?
De início este evento extraordinário ficou circunscrito à região, mas com o passar dos dias começou “uma concorrência assombrosa de peregrinos incomparavelmente superior a Lourdes na época das aparições e apesar da dificuldade de acesso” (NDOC. p. 95).
A testemunhar e registrar os eventos foi o cônego dr. Manuel Nunes Formigão, laureado em Teologia e Direito Canônico pela Universidade Gregoriana. Pelos seus apontamentos, dia 13 de julho estiveram na Cova da Iria de 4 a 5 mil pessoas, em agosto de 15 a 18 mil, em setembro de 25 a 30 mil (NDOC. p. 362, 366, 374).
É importante notar que já das primeiras aparições sabia-se terem os pastorzinhos recebido um segredo. Isto despertou grande interesse até no prefeito maçom de Vila Nova de Ourém, que no dia 13 de agosto foi a Fátima e levou a menina Lúcia ao pároco P. Ferreira a fim de que lhe revelasse a mensagem celeste. Eis a resposta: “Sim (recebi um segredo), mas não posso dizê-lo. Se V. Rvcia. quiser conhecê-lo, perguntarei à Senhora e se ela autorizar, então eu o contarei a vós (TSF. p. 113) Diante desta resistência o prefeito, enganando-as, levou as três crianças a Ourém onde, ameaçando-as de morte, tentou ainda obter sem êxito a confissão do segredo recebido de Nossa Senhora.
Como se vê, já no início, interessaram-se mais pela mensagem de Fátima autoridades anticlericais do que as eclesiásticas. Estas chegaram a ver nesses eventos mais motivo de embaraço do que uma ajuda providencial para a Igreja.
No dia 13 de outubro de 1917, para o qual Nossa Senhora anunciara um grande milagre afim de que todos pudessem crer, havia cerca de 70 mil pessoas a testemunhar o evento. Este era esperado até na França, segundo carta publicada (NDOC. p. 23, 24). Dele escreveria o padre José Ferreira de Lacerda: “Raro tem sido o jornal português, quer diário, quer semanário, quer católico quer independente ou livre pensador, que não tenha referido aos acontecimentos da Fátima e muito principalmente ao fenômeno solar.” (NDOC. p. 65)
Estas notícias dão idéia da dimensão e universalidade do evento apesar dos obstáculos criados pela autoridade civil e do silêncio da autoridade eclesiástica. É muito importante examinar isto.
Aqui vamos fazê-lo considerando as seguintes questões: 1) se para a fé católica é possível e plausível que um papa seja atendido diretamente por uma intervenção sobrenatural; 2) se, neste caso, o evento de Fátima se conforma ao pedido feito por Bento XV; 3) se a mensagem de Fátima está na linguagem de sempre da Igreja; 4) se seus avisos e pedidos são atinentes ao momento histórico em que foram dados; 5) se, satisfeitos os pontos acima, que razões podem subsistir na Igreja para que ignore tal resposta.
Em primeiro lugar é preciso dizer que a Igreja ensina como verdade de fé que a revelação concluiu-se com a morte do último apóstolo. Portanto, nenhuma mensagem sobrenatural vem acrescentar algo à revelação. Todavia, pela mesma revelação sabemos que houve a maior intervenção de Deus na ordem natural pela encarnação da Segunda Pessoa da Santíssima Trindade. Esta foi o apogeu de uma longa série de intervenções sobrenaturais em favor da preparação desse supremo evento. Depois de Sua Vida, Paixão e Morte, o Verbo de Deus encarnado deixou no mundo a Sua Igreja, sinal visível do Seu poder de Senhor da História. A Ela e à sua hierarquia e pastor foram dados poderes de ligar e desligar, além da promessa dada a todos os fiéis de que se pedissem ao Pai em nome de Jesus seriam atendidos. A fé, a esperança e a caridade na Igreja exprimem-se na oração e no Santo Sacrifício, que são pedidos de intervenção divina. É claro que a resposta sobrenatural segue os desígnios de Deus que dirige os eventos e envia os Seus profetas quando estes se tornam necessários, acima de qualquer entendimento humano. A razão por que foram enviados serão os próprios fatos que nos revelarão cedo ou tarde. Por exemplo, hoje sabemos que São Pio X foi o profeta que avisou sobre o flagelo modernista, hoje chamado progressismo.
A linguagem sobrenatural, velada para a visão espiritual imperfeita do homem, torna-se indecifrável para a mentalidade racionalista que pretende explicá-la na ordem natural. Negando-se a causa divina, presume-se que fatos e fenômenos possam ter por causa um zombeteiro ou cruel, mas sempre cego, acaso. Como, porém, sinais, milagres e profecias não têm o menor sentido para o acaso, como de resto a própria Igreja que confirmou o evento de Fátima e ensina ser instituída e guiada pela Divina Providência, a visão naturalista não podendo negar o fato objetivo mostra toda a sua cegueira.
Mas, atenção: se essa cegueira é lamentável ao pretender explicar os eventos do mundo, quando se manifesta dentro da Igreja e para explicar fatos espirituais, toma a forma de uma letal apostasia. Pondo em dúvida o senso cristão da História, contesta a própria Fé.
A Divina Providência tendo instituído a Igreja com o papa por chefe, para guiá-la, guiará a este a quem deu poderes especiais. Este é um fato verificado na História. Dependerá, porém, do uso que a pessoa que ocupa a suprema sede fará de seus poderes, quer para pedir a ajuda divina, quer para reconhecê-la.


OS AVISOS E AS PROMESSAS DA MENSAGEM DE FÁTIMA
O núcleo da mensagem de Fátima está nas palavras ditas no dia 13 de julho de 1917 e registradas nas memórias da irmã Lúcia, a pastora de 10 anos que, acompanhada pelos priminhos Francisco e Jacinta, de 9 e 7 anos, viu e falou com Nossa Senhora na Cova da Iria, em Fátima. Era a terceira aparição, e Maria Santíssima fez ver aos meninos o inferno. Assustados e como que a pedir socorro estes levantaram a vista para Nossa Senhora, que disse com bondade e tristeza:
“Vistes o inferno, para onde vão as almas dos pobres pecadores. Para as salvar, Deus quer estabelecer no mundo a devoção ao meu Imaculado Coração. Se fizerem o que Eu vos disser, salvar-se-ão muitas almas e terão paz. A guerra vai acabar, mas se não deixarem de ofender a Deus, no reinado de Pio XI começará outra pior. Quando virdes uma noite alumiada por uma luz desconhecida, sabei que é o grande sinal que Deus vos dá de que vai punir o mundo de seus crimes, por meio da guerra, da fome e de perseguições à Igreja e ao Santo Padre. Para a impedir, virei pedir a consagração da Rússia ao meu Imaculado Coração e a comunhão reparadora nos primeiros sábados. Se atenderem a meus pedidos, a Rússia se converterá e terão paz; se não, espalhará seus erros pelo mundo, promovendo guerras e perseguições à Igreja; os bons serão martirizados, o Santo Padre terá muito que sofrer, várias nações serão aniquiladas; por fim, o meu Imaculado Coração triunfará. O Santo Padre consagrar-me-á a Rússia, que se converterá, e será concedido ao mundo algum tempo de paz. Em Portugal se conservará sempre o dogma da fé. etc... isto não o digais a ninguém. Ao Francisco, sim, podeis dizê-lo.
“Quando rezardes o Terço, dizei, depois de cada mistério: — Ó meu Jesus! Perdoai-nos, livrai-nos do fogo do inferno, levai as almas todas para o Céu, principalmente aquelas que mais precisarem.”
Como se vê, é uma mensagem completa para indicar como conseguir a paz do nosso tempo. É lembrada que a causa das guerras, fomes e revoluções é a ofensa a Deus. É revelado o perigo iminente: os erros que a Rússia espalhará pelo mundo. É preanunciada uma guerra pior que a vivida em 1917 (e o seu sinal premonitório) como castigo pelos crimes do mundo. São preanunciadas perseguições à Igreja e ao Santo Padre. E é indicado o caminho único e necessário para evitar todo esse mal. Mas, deixando entrever que esse não será seguido, ainda assim confirma a esperança na promessa final: Por fim, meu amor triunfará; as portas do inferno não prevalecerão.
Na mensagem que começou mostrando o maior perigo para os homens que é a perdição eterna, o inferno, Maria Santíssima convoca maternalmente os pastores, dizendo: “Se fizerem o que Eu vos disser, salvar-se-ão muitas almas e terão paz.” Se esse apelo é geral, havia ainda um reservado à hierarquia e ao papa. A que mais poderia aspirar o Santo Padre?
Os termos da mensagem mostram conformidade ao pedido de Bento XV também na explicação implícita do desígnio divino que determinou a grandiosa resposta que constituiu a aparição de Fátima. De fato, a carta do papa fazia a invocação ao Santíssimo Coração, ao amor de Jesus, pela Medianeira de todas as graças, a Mãe de Deus, depois que cada um se purifique para poder pedir e reparar e que a Igreja com todos os seus bispos recorram à Rainha da Paz usando a invocação ordenada pelo pontífice a fim de que pelos séculos se preste glória ao poder de intercessão e triunfo de Maria Santíssima.
Anos mais tarde a vidente Lúcia confirmará esse desígnio com a explicação dada por Nosso Senhor sobre a razão pela qual não operaria a conversão da Rússia sem que o papa fizesse a consagração pedida: “Porque quero que toda a Minha Igreja reconheça essa consagração como um triunfo do Coração Imaculado de Maria, para depois estender o Seu culto e pôr, ao lado da devoção do Meu Divino Coração, a devoção deste Coração Imaculado.” (DOC. p. 415)
Tudo isto está não só em conformidade com o modo em que foi feito o pedido de Bento XV mas também com a linguagem de sempre da Igreja. Há uma continuidade devocional com mensagens dadas a santos de épocas precedentes. Há uma estreita ligação entre os pedidos do Sagrado Coração de Jesus e do Imaculado Coração de Maria. E ambos seguem de perto o curso dos eventos históricos. Sobre isto será surpreendente o que veremos mais adiante, referente ao rei da França. Assim como é extraordinário o elo entre Fátima e o Apocalipse, fato prenunciado também por santos anteriores às majestosas aparições de Maria Santíssima, como é o caso de São Luís Maria Grignion de Montfort.
Quanto à atinência da mensagem de Fátima ao momento histórico, no mundo e na Igreja, é a razão mesma deste livro e será vista praticamente em todas as suas páginas. Aqui seria apenas necessário acentuar que desde o início foi de conhecimento público que a mensagem secreta referia-se à guerra mundial e, portanto, a eventos históricos de dolorosa atualidade. Além disso, seria possível às autoridades eclesiásticas conhecer o segredo se o quisessem. Estas, porém, não reconheceram a “benigna solicitude de uma grandiosa intercessão”, como havia escrito Bento XV. Por qual obscura razão?
Certamente, em 1917 havia dificuldades que tornavam o evento de Fátima embaraçante para as autoridades religiosas portuguesas e isto podia ter criado resistências também no Vaticano. Admitir a hipótese, porém, de que a notícia não chegou aos vértices da Igreja, senão ainda em 1917, quando devido à guerra as fronteiras de Portugal estiveram fechadas, no ano seguinte, seria devanear. As notícias concernentes à perseguição religiosa das autoridades da república então voavam.
Há dois indícios consistentes de que Bento XV conhecia o evento de Fátima desde o começo: O restabelecimento da velha Diocese de Leiria, que compreende Fátima, incorporada a Lisboa desde 1881, com o breve papal Quo vehementius de 17 de janeiro de 1918; na carta de 29 de abril de 1918 ao episcopado português, há referência a “um auxílio extraordinário da parte da Mãe de Deus” (Sebastião Martins dos Reis, Síntese crítica de Fátima, p. 281).
O processo canônico para autenticar as aparições de Fátima com um bispo local seria facilitado. Mas infelizmente a nomeação demorou e o titular de então, o cardeal Patriarca de Lisboa, Mendes Belo, voltando em 1919 de Roma, onde fora exilado pelo governo da república, ameaçava de excomunhão qualquer padre que propagasse a devoção de Fátima. Procurava-se um termo de compromisso político-religioso, e a aparição mariana, mesmo sem sua mensagem, parecia um obstáculo.
Em 1920 Bento XV designava para a Diocese de Leiria dom José Alves Correia da Silva, que foi consagrado bispo em julho e tomou posse em agosto daquele ano, mas que, confessando-se alheio aos eventos de Fátima, só abriu o processo para certificá-los em 1922, ordenando o primeiro interrogatório oficial da vidente Lúcia em 1924. Eram assim passados sete anos antes que a Igreja começasse a tomar o devido conhecimento da mensagem, o dobro do tempo necessário para reconhecer oficialmente as aparições de Lourdes, apesar da oposição das autoridades civis e desconfiança das religiosas, também lá.
Esse atraso não pode ser justificado pela prudência; ao contrário, evidencia que no pontificado de Bento XV, morto em 1922 sem se pronunciar publicamente sobre Fátima, transcorria considerável distância entre fazer um apelo a Maria Santíssima pela paz na Terra e crer que a resposta pudesse ser dada por uma aparição do Céu.
E, todavia, pode-se negar que Maria Santíssima atendeu o apelo do Papa? É mais fácil supor que a fé que iluminara Bento XV a convocar os bispos, o clero e os fiéis a pedirem pela paz, não foi suficiente para guiar a esperança em uma resposta que transcendesse as trevas e as ameaças deste mundo. Afinal, que solicitude mais benigna e qual intercessão mais eficaz pela paz podia vir da Mãe Celeste?
Que admiráveis benefícios se o papa a reconhecesse!


BENTO XV E A RESPOSTA DE FÁTIMA
Os dois acontecimentos principais, que continuam condicionando ainda hoje o século XX, ocorreram durante o pontificado do papa Bento XV, que por isto deve merecer uma especial atenção.
Pelas extraordinárias aparições em Fátima, foi dada por meio de três pastorzinhos uma mensagem de paz para o mundo e de salvação para as almas, diante da sanguinária revolução comunista russa que trouxe terror e fome para os povos e ateísmo para as almas. As aparições sucederam-se até dias antes que ocorresse a revolução que era prenunciada como um grande castigo, fato este sempre mais visível para crentes e descrentes, de 1917 até nossos dias. Surpreende, pois, que não conste nos documentos escritos por Bento XV alguma menção explícita sobre estes dois eventos, e isto é ainda mais paradoxal se meditarmos sobre o que foi visto antes, isto é, que as aparições da Cova da Iria foram pela época, forma e conteúdo uma clara resposta ao apelo feito pelo próprio Bento XV pela paz no mundo.
Este sinal sensível, representando diretamente a vontade de Deus para os homens, tem um valor tão inestimável que a busca da Igreja para certificar sua autenticidade já seria uma graça. Ao contrário, porém, uma vaga incredulidade, ou pior, indiferença até mesmo para iniciar essa busca, já mostrava um declínio da fé na Igreja.
Podem filhos fiéis ficar desatentos aos sinais da vontade do Pai? Podem julgá-los impossíveis ou vagos se crêem no amor do Pai que enviou Seu Filho unigênito ao mundo para salvar os homens? Não nos foram sempre dados sinais proféticos? Ora, o duvidar do Signum Magnum de Fátima confirma-o como um novo sinal de contradição no qual ficariam refletidos desde o início os fatos claros e escuros do mundo e da Igreja neste nosso século. É sintomático, portanto, que Bento XV, desconhecendo-o, deixou de ver também a dimensão do flagelo que a revolução de 1917 na Rússia seria para o mundo e para a Igreja. E, todavia, a feroz intransigência do bolchevismo ateu de Lênin era conhecida em toda a Europa.
A responsabilidade de vigilância papal é de tal ordem que é preciso recorrer à doutrina católica da Comunhão dos Santos para conceber como as forças e fraquezas de um só homem podem influenciar a vida moral e espiritual de multidões: a abundância ou escassez das orações da Igreja inteira é que a farão merecer um chefe forte ou vacilante. A ação do papa seria quase o resultado da fé da Igreja militante, como se os católicos em cada época tivessem o papa que a sua fé merece.
Longe de fazer dessas comparações um indevido sistema de medidas, parece claro que o modo mais direto com que Deus pode responder à oração de Sua Igreja é através do amparo dado à ação de Seu Vigário. Isto não justificará as pessoas, mas ajudará a explicar como as altíssimas responsabilidades são de certo modo compartilhadas, tanto com a carga dos pecados como com o amparo das orações.
Se o julgamento de intenções é em geral impertinente, de modo especial o é para com um pontífice. A ele se devem dedicar orações e reverência, não insinuações e críticas.
Agora, tudo isto não impede que os católicos sejam também vigilantes no avaliar, perante o próprio ensinamento da Igreja, o que pode representar um mal para a fé. Só assim fazendo poderão reforçar de maneira direta ou pela oração e sacrifício a correção de erros.
Na defesa da fé o papa deve ser o primeiro a interpelar os que a agridem. Vemos, porém, que esse supremo dever foi afrouxando nos nossos dias, do mesmo modo que a idéia que alguém possa interpelar, sobre isto e sobre a fé, as autoridades da Igreja e sobretudo o papa.
E todavia nunca esse dever foi tão urgente, pela avalancha de ataques de todos os lados contra a fé. O afrouxamento geral da sua defesa, mais que a virulência do ataque que sempre existiu, mostra ser o perigo culminante do qual os fiéis devem tomar consciência: a falsificação religiosa que leva à desordem e à perdição.
Este livro quer mostrar como em Fátima os desígnios divinos colocaram, para despertar os cristãos, uma “pedra de tropeço”, um “sinal de contradição” que, tácita mas objetivamente, interpela as autoridades responsáveis e os fiéis, convocando todos à defesa da fé, cujo vilipendio pela perseguição à Igreja e ao santo padre seria o maior castigo para o mundo. Vejamos os termos desse aviso.
Pela mensagem de 13 de julho de 1917 fomos lembrados de que Deus castiga o mundo pelos seus crimes por meio da guerra, da fome e de perseguições à Igreja e ao santo padre. Isto poderia ser evitado e a paz obtida para o mundo se, através da consagração pedida, a Rússia fosse convertida de seus erros; se não, a punição virá pela difusão destes erros no mundo. Estes serão o flagelo permitido por Deus.
Note-se que as perseguições à Igreja e ao santo padre são meios para punir o mundo de seus crimes e isto é dito em especial aos filhos da Igreja que vivem no mundo e têm parte na ofensa a Deus, que é a causa de todos esses males. Mas deste modo haveria três classes de punições: uma para o mundo com a guerra, outra dobrada para os católicos, com a guerra e a perseguição da Igreja, e outra ainda para o santo padre, com a guerra, a perseguição e o sofrimento pessoal. Na verdade, este castigo é um só pela perseguição à fé.
Se Deus permitir que a fé perseguida decline na Igreja e o papa tenha muito que sofrer na sua fé, isto será para o mundo um castigo pior que as guerras, fomes e revoluções juntas, será o avanço do ódio sobre o amor e a verdade. É o que o mundo está vivendo.
Consideremos a veracidade dos avisos da mensagem. Pois bem, depois da última aparição — de 13 de outubro de 1917 — foi questão de dias a Rússia cair sob o poder da revolução bolchevista que trouxe como uma avalancha a morte e o ódio das perseguições que culminam na guerra a Deus e à Igreja, erros espantosos dos quais a Rússia tornava-se ao mesmo tempo vítima e instrumento mundial, como dizia a mensagem.
Quanto à grande guerra, que desde 1914 ensangüentava a Europa e que parecia dever durar ainda muito, terminou um ano depois da aparição, deixando porém instalado o flagelo soviético. E como o mundo continuou a ofender a Deus, e a mensagem ficou desatendida, no fim do pontificado de Pio XI uma outra guerra ainda pior estava armada!
Foi então que na noite de 25 para 26 de janeiro de 1938 uma aurora boreal de dimensão quase inverossímil inflamou os céus da Europa e mesmo da África do Norte, em cujas latitudes esse fenômeno é extremamente raro. Os jornais registraram a notícia, mas com a mensagem menosprezada, quantos poderiam reconhecer nessa luz desconhecida o aviso premonitório da segunda grande guerra que devastou a Europa de 1939 a 1945?
Seguiu-se uma ilusória paz em que o mundo, dividido pelos falsos acordos de Yalta, polarizou-se em dois grandes blocos, ocidental e soviético (OTAN e Pacto de Varsóvia), entre os quais a guerra fria passou a ser uma realidade no campo político, diplomático e estratégico, enquanto a guerra cruenta ficava localizada em zonas convenientes ao expansionismo soviético da Rússia, reforçada para impor seus erros com a criação de nações satélites que multiplicariam revoluções e perseguições. Os bons seriam martirizados e a escalada de terror atingiu o ápice com o atentado ao papa na praça de São Pedro, em Roma. O santo padre teve muito que sofrer, como preanunciara a mensagem. Era dia 13 de maio de 1981, aniversário da primeira aparição em Fátima, e o pontífice sentiu-se salvo por milagre e chamado por esse misterioso encontro de datas (v.pág.138).
A mensagem anunciou ainda o aniquilamento de várias nações, mas sem especificar o modo ou valores demolidos; logo adiante, porém, é dito: “Em Portugal se conservará sempre o dogma da Fé...” e segue a parte ainda secreta, chamada o “terceiro segredo” da mensagem, que permanece escondida no Vaticano, embora devesse ser publicamente conhecida em 1960, como veremos. É lícito, pois, pensar que se trate principalmente de gravíssimas questões concernentes à fé e à Igreja. Não só, mas a frase — “por fim, o meu Imaculado Coração triunfará. O santo padre consagrar-Me-á a Rússia, que se converterá, e será concedido ao mundo algum tempo de paz” — preanuncia uma vitória no fim de um período em que essa deva parecer impossível, bem como a consagração feita pelo papa para a conversão da Rússia. Ora, as dificuldades em atender à mensagem existem desde o começo e continuam crescendo misteriosamente, a ponto de o papa atual, sentindo-se chamado pela urgência dessa consagração, tentar fazê-la junto aos bispos do mundo, mas sem conseguir mencionar a Rússia. Tudo isso será relatado mais adiante. Aqui, interessa lembrar que até essas tergiversações e dificuldades em atender ao pedido, que não deixa de ser reconhecido como celeste, estão previstas nas palavras ouvidas pelos pastorzinhos na aparição de Fátima, cuja história continua a registrar uma série de previsões verificadas, mas também de pedidos eludidos e contornados.
Toda verdadeira profecia é voz de Deus que vem lembrar o que está sendo esquecido, chamar à conversão, indicar o caminho perdido. Mas acaso não compete aos chefes e guias religiosos ensinar e operar por vias regulares o que a profecia vem lembrar por vias extraordinárias? A finalidade de chamar à conversão para a salvação pessoal e o bem da Igreja, não é para os homens da Igreja a mesma que a da profecia? Onde, então, a discordância?
Pois bem, se as razões desta não estão no conteúdo, nem na oportunidade da mensagem profética, estão necessariamente na carência de fé dos guias humanos ou especialmente nos seus desvios. As profecias são, mesmo quando dirigidas a todos, concernentes de modo particular aos responsáveis pela vida dos povos. Assim foi no passado e o mesmo se dá no presente. E a razão é ser ela uma ajuda para vencer dificuldades humanamente insuperáveis ou invisíveis. É a misericórdia divina que socorre os homens em suas desventuras e perigos. E qual maior perigo que a cegueira espiritual dos guias? Seriam os cegos que guiam os cegos e caem todos no abismo (cf. Lc. 6, 39). Não são estes duplamente cegos, porque continuam a guiar com suas próprias idéias e recursos, sem ver que são cegos?
Vimos assim que a Igreja, passados treze anos, reconheceu a integridade católica, a fidelidade doutrinal e a utilidade para a fé da mensagem de Fátima. Depois disso, a dificuldade em aceitá-la ou, pior ainda, a crítica para tentar demoli-la levantam suspeitas.
Também os doutores da lei e os fariseus negavam Jesus em nome de Abraão. Nosso Senhor mostra, porém, que já não fazem as obras de Abraão (cf. Jo., 8, 39). Ao contrário, como seus pais, perseguem, com o intuito de eliminar, os profetas. (Mt., 23, 29)
Seria assim também nos nossos tempos? Há razões para isso?
Ora, a História mostra que foi assim em todos os tempos. Há um contínuo combate contra a verdade da parte de um mundo que aderiu ao erro e dos muitos que aderiram a esse mundo e o servem. Mudaram as formas, as técnicas e a dialética. A profecia é agredida pelo ridículo, sufocada pelo silêncio, arquivada pelo seu “alarmismo”. Mas quem ainda tem olhos para ver, saberá que isto confirma uma profecia autêntica. Pode significar até mesmo a razão por que foi dada: testemunhar a infidelidade e impiedade de quem falhou.
Nossa Senhora atendeu ao apelo do papa e da Igreja pela paz. “O enviado não é maior que aquele que o enviou.” (cf. Jo., 13, 16) Poderia ser melhor recebida pelos grandes da Terra do que o foi Jesus pelos sumos sacerdotes? O desprezo pela mensagem deixa claro que não.


O “AGGIORNAMENTO” DE BENTO XV


Ora, além dos fatos explícitos que a mensagem de Fátima prenunciou em 1917 e já aconteceram, ou continuam acontecendo, quem almeja entender melhor o evento de Fátima deve aprofundar o significado implícito do sinal sobrenatural ter sido dado em 1917, assim como do fato de ter ficado reservada uma parte secreta da mensagem para ser conhecida somente em 1960.
Um sinal dessa ordem, mesmo sem considerar o conteúdo dos avisos que trouxe, já indica a necessidade de testemunhar, para o bem dos homens, acontecimentos espirituais imperceptíveis, mas que pela sua natureza vão determinar os demais, visíveis. Dada a sua origem, nada pode ser casual ou irrelevante em Fátima. Ou é recebida pelo que quer indicar, ou permanecerá como um marco de recusa, senão à sua mensagem, que não é imposta nem obrigatória, a Quem a enviou para ajudar os homens envoltos em trevas. Se foi dada naquelas circunstâncias é porque era necessária e deveria indicar algo que os homens com os meios normais não viam. Era já então o marco de uma renovação ou de uma decadência, segundo fosse aceita e atendida ou recusada e contornada. Não há meio termo.
De fato, hoje sabemos que 1917 encerrou uma encruzilhada para o mundo e para a Igreja. Em junho de 1917 reuniu-se um congresso maçom das nações aliadas e neutras com o fim de constituir a Sociedade das Nações, precursora da ONU. Os mesmos maçons fizeram uma manifestação contra o papa na praça de São Pedro exaltando Lúcifer, como lembra São Maximiliano Maria Kolbe, que fundou a Milícia da Imaculada, então, para convertê-los. Em 1917 houve também a declaração do ministro inglês Balfour, que deu o primeiro impulso para a formação do novo Estado de Israel. Em novembro, a revolução bolchevista, tomando o poder na Rússia, constituía a primeira potência da história governada por uma ideologia intrinsecamente contrária a Deus. Era o fato culminante de um processo político que a Igreja sempre condenou. Já em 1846 Pio IX na Encíclica Qui plurimus acusava: “a nefasta doutrina do assim chamado comunismo, contrária em modo extremo ao próprio direito natural, a qual, uma vez admitida, levaria à radical subversão do direito, da propriedade de todos e da própria sociedade humana.”
Quando em 1917 o comunismo subjugou a Rússia e passou a ser o gigantesco flagelo da ordem social cristã e perseguidora não só da Igreja mas dos próprios princípios da fé, não veio de Roma o necessário e proporcional grito de alarme. Que vírus entorpecera a cristandade?
Era sinal de que também na Igreja algo estava mudando?
É sempre muito difícil verificar uma mudança dessa ordem na política vaticana, cujos documentos e decisões são amortecidos, na aparência, por palavras estudadas, por medidas prudentes e por atitudes piedosas. Note-se, porém, que mesmo nos movimentos lentos e contínuos a verdadeira mudança não está na velocidade, mas na direção, e esta era diversa do pontificado anterior de São Pio X. A distinção fundamental estava no espírito de compromisso.
Intransigente sobre tudo que dizia respeito aos direitos divinos e, portanto, da Igreja, foi o papa Sarto; tolerante e diplomático foi seu sucessor, papa Della Chiesa, Bento XV. A questão está, portanto, em estabelecer os contornos desse espírito novo.
A tolerância e a diplomacia não são certamente males; muito ao contrário, podem proporcionar compromissos úteis e benéficos para muitos. Para compor questões e disputas, quase sempre as partes devem conceder vantagens e admitir erros ou incompreensões. Trata-se de ceder sobre o que é próprio, discutível e contingente. Seria absurdo, porém, fazê-lo sobre o que é valor universal, indubitável e permanente, questões relativas ao bem e à verdade e que transcendem o terreno e o temporal; em suma, sobre o que é de Deus e foi confiado à Igreja. Lembrá-lo, oportuna e inoportunamente, é função dos pastores e especialmente do papa. Essa santa intransigência com o erro é inerente à Santa Sede, que por isto deve merecer todo respeito e atenção.
O que é o Reino de Cristo senão a pregação do império do bem e da verdade? E como poderia vencer o mal e o erro no silêncio e no compromisso? Por evitá-los sempre, São Pio X viu o seu “integrismo” para “instaurar tudo em Cristo”, minado dentro da própria Igreja, dor que, ajuntando-se à da luta fratricida na Europa, abreviaram-lhe a vida. Como os cristãos de sempre, teria preferido o martírio a um compromisso com a glória devida a Deus. Qual espírito impediu a Bento XV ver que esta era o alvo visado pela revolução atéia na Rússia?
A mensagem de Fátima veio lembrar o ensinamento católico de que os erros crescentes do mundo, aumentando a ofensa a Deus, tornam-se causa de guerras, revoluções e sofrimentos da Igreja. Tomando o pontificado de São Pio X como referência do apelo diuturno a essa vigilância que deve crescer com a virulência do erro, pode-se dizer que sob Bento XV aparentemente pouco mudou em termos teóricos, mas a aceitação de uma equívoca noção de tolerância e unidade eclesial levou ao abrandamento das defesas erguidas por São Pio X. E isto, diante do modernismo que o papa Sarto mostrara ser a síntese das heresias na Igreja e, portanto, laboratório dos erros do mundo, foi uma abertura a funestos compromissos. Esse mal continuava à espreita na Igreja, embora transformado ou camuflado, e desaparecendo a santa intransigência papal que o retinha, voltou a avançar livremente.
Bento XV renovara a exigência do juramento antimodernista para os sacerdotes, mas desejando um apaziguamento dentro da Igreja, chegou a reprovar com a encíclica Ad beatissimi que alguns católicos se proclamassem integrais para distinguir-se dos liberais. Agiu como se o mal adviesse da oposição e não do erro liberal já condenado por todos os papas precedentes. Quando em 1921 uma intriga internacional abateu-se contra o Sodalitium Pianum, verdadeiro quartel-general antimodernista formado sob São Pio X, para evitar o embaraço de uma defesa difícil Bento XV pediu ao responsável por essa organização também conhecida por La Sapinière, monsenhor Benigni, que a dissolvesse. Tinha com que substituí-la? De modo algum, pois já no começo de seu pontificado havia feito uma temerária abertura ao trust de jornais católicos de tendências modernistas. Estes haviam sido reprovados explicitamente por São Pio X em comunicação publicada pela Acta Apostolicae Sedis de 1/12/1912. Em outubro de 1914 Bento XV fez saber através do secretário de Estado, cardeal Gasparri, que essa advertência não tivera caráter de proibição (Enc. Cat. VI, p. 462). Tanto bastou para que o jornalismo que auspiciava o aggiornamento da Igreja aos tempos modernos voltasse com vigor às idéias reprovadas por Pio X. Seria o laicismo, o naturalismo, o interconfessionalismo, o democratismo, etc, propostos entre os próprios católicos. Bento XV havia condenado o modernismo inovador mas, propenso às soluções diplomáticas, evitou as questões que pudessem acentuar a “marca de intransigência e reação” que o mundo dava à Igreja para isolá-la.
Em 1917 fez um apelo às nações beligerantes pela paz. Não foi ouvido senão para ser criticado, e terminada a guerra a Conferência da Paz o ignorou até mesmo sobre a questão da Palestina. No que concerne a Portugal, São Pio X havia anos antes rejeitado as imposições contra a Igreja do governo republicano, assim como fizera com o governo francês em 1905. Com a encíclica Jamdudum in Lusitania, de 24/5/1911, acusou as forças anticlericais da república e condenou como absurda e monstruosa a lei de separação entre a Igreja e a república portuguesa. Essa recusa de procurar compromissos resultou no exílio de bispos e na prisão de sacerdotes, mas também na consolidação de uma resistência católica que demonstrará a sua força anti-revolucionária por ocasião das aparições de Fátima.
Com Bento XV a atitude da Igreja mudou. Terminada a guerra, as relações diplomáticas entre Lisboa e a Santa Sé foram restabelecidas. “Em dezembro de 1919, Bento XV dirigiu um apelo aos católicos portugueses incitando-os a se submeterem à autoridade da república como legalmente constituída e a aceitar mesmo os cargos públicos que lhes fossem oferecidos. A beatificação de Nuno Alvarez, o herói de Aljubarrota, contribuiu muito também para o incremento dos sentimentos de cordialidade. Não obstante, o governo continuava a perseguir a Igreja de diversas maneiras. Empregava todos os meios ao seu alcance para impedir o surto de devoção de Fátima. Talvez tenha sido por esta razão que o cardeal Mendes Belo, Patriarca de Lisboa (de volta do exílio), tenha ameaçado de excomunhão qualquer padre que propagasse a devoção e falasse sobre as aparições... Parecia-lhe inoportuna a eclosão de uma nova devoção nesse momento em que estavam melhorando tanto (?) as relações entre a Igreja e o Estado.” (NSF, p. 155)
Neste mesmo livro fala-se de chacotas feitas sobre Fátima, às quais esse prelado à escuta aderiu rindo. Mas tudo isso a pouco serviu. “Em 13 de maio de 1920, o governo mandou dois regimentos do exército à Cova da Iria para impedir a devoção de Fátima. A multidão pôs-se a rezar o terço e a cantar e até guardas acabaram aderindo e o cerco rompeu-se.” (NSF, p. 168)
Nesse mesmo ano a Rússia, sob o governo comunista, foi flagelada por uma das maiores fomes de que se tem notícia, fazendo muitos milhões de mortos. Os governos ocidentais estavam incertos sobre como poderiam ajudar sabendo que socorrer essa população faminta significaria também reforçar o governo que era causa da tragédia.
Foi Bento XV quem simplificou essa grave questão moral proclamando em 1921, diante das nações indecisas, “ser dever de cada homen acorrer onde outro homem morre”. Tratava-se de uma caridade toda humana que iria socorrer populações desesperadas, desconhecendo se a ajuda chegaria ao destino, mas sabendo que iria reforçar a causa dessa e de outras desgraças funestas, que era o comunismo. Além disso, as necessárias tratativas para fazê-lo davam inevitavelmente ao regime revolucionário de Lênin, declarado destruidor da ordem civil anterior e perseguidor da religião e da liberdade, o reconhecimento de sua legitimidade. Em o Erro do Ocidente o escritor russo Soljenitsin dirá: “As forças ocidentais ocuparam-se em reforçar o regime soviético com ajuda econômica e apoio diplomático, sem o que esse não teria sobrevivido. Enquanto seis milhões de pessoas morriam de fome na Ucrânia e na região do Kuban, a Europa dançava.” Tal acomodamento político, que ajudou a consolidação do ateísmo militante que iria expandir-se a ferro e fogo pelo mundo, foi iniciado com o beneplácito papal de Bento XV. Certamente o comunismo e também o modernismo não deixaram de ser condenados no seu pontificado, mas em que termos e com quais ações? Não admira que quando da sua morte até comunistas e anarquistas sentissem o luto (Enc. Cat. II, p. 1294). O mesmo se daria com Paulo VI.
A aparição de Fátima, antes mesmo que sua mensagem fosse conhecida, vinha reavivar a fé para prevenir da sua perseguição. A suavidade com que o fez demonstra o cuidado divino em não ferir a livre vontade humana. “Porque Deus amou de tal modo o mundo que lhe deu Seu Filho Unigênito para que todo que Nele crer não pereça, mas tenha a vida eterna.” (Jo, 3,16)
A fé no Redentor salva os homens e pode consertar também este mundo que Deus amou. Eis a resposta de fé que deu a aparição de Maria Santíssima em Fátima. O primeiro passo para beneficiar-se dela, porém, era reconhecê-la para depois acolhê-la.
Hoje sabemos a importância desse evento em 1917, vésperas da revolução comunista e atéia que tomou o poder na Rússia, e — devemos acrescentar — antevésperas das cogitações vaticanas de entabular compromissos com um governo iníquo e inimigo declarado de Deus. A mensagem lembrava que a única saída estava na conversão da Rússia, que com seus erros agredia esta mesma fé à qual seria por fim convertida. Os pastores, porém, iniciaram seus diálogos e compromissos com o erro.
Quanto a Bento XV, muitas razões podem ser alegadas para explicar por que não reconheceu em Fátima a resposta a seu apelo de paz, mas isto é de importância relativa. O fato extraordinário é que em 1917 Deus deu um sinal sensível de Sua Vontade aos homens. O reconhecimento do papa seria um tributo a esta verdade, mas não condiciona o evento em si. Este, mesmo antes que a mensagem fosse conhecida, o que seria possível já então no dizer de Lúcia, indicava o único caminho para a verdadeira paz no mundo e salvação das almas. Para isto são dadas as profecias religiosas. Destas o papa é o supremo juiz quanto à autenticidade, enquanto é também o máximo vigilante sobre os enganos e ilusões contrários à fé. E por isto nada deve impedir que seja o mais informado e atento observador de sinais e luzes divinas para melhor guiar a Igreja. Quantos males evitaria ouvindo antes os avisos de Fátima que as lucubrações de certos doutores!
Ainda sobre a relação entre o apelo de Bento XV e a resposta de Fátima, podemos dizer que esta dá um claro testemunho do poder de invocação do papa quando move toda a Igreja a pedir pela glória de Deus e salvação das almas. O poder está na fé que pode remover montanhas se por ela reconhecermos e almejarmos fazer a vontade de Deus. Não faltarão os Seus sinais. Disto também dá testemunho a mensagem de Fátima que, sendo de origem sobrenatural e representando uma síntese da fé, esperança e caridade católicas, foi dada como solução para a paz do mundo.
Mas o mundo, culpado de crimes e revoluções, teve que expiar com a guerra e a fome os flagelos de avidez e domínio que engendrou. A mensagem de Fátima que veio prevenir sobre estes castigos não sendo ouvida, ao contrário, aumentando vertiginosamente a ofensa a Deus, o mundo continua engendrando sem ver um flagelo monstruoso. Mas o pior é que a prevaricação humana coíbe toda solução e saída, prevalecendo também na Igreja, se forem ignorados avisos e desprezadas ajudas. Eis o testemunho silencioso e triste de Fátima.
A civilização de Cristo Rei, implantada pelos mártires, difundida por toda a Terra pelos santos e confirmada em todos os tempos pelos papas, está sendo desertada e apostatada? Na Igreja, a preocupação com os perigos terrenos passou a ser maior que com a perdição eterna?
Será chegado o tempo em que um delírio de liberdade provocará obscurecimentos da fé, seguido de vertigens, cegueiras e pavores?
...”Haverá sinais no sol, na lua e nas estrelas e, na Terra, consternação dos povos pela confusão do bramido do mar e das ondas, estremecendo os homens de susto na expectação do que virá sobre o mundo, porque as virtudes dos Céus serão abaladas.” (Lc. 21,25)


OS PEDIDOS DA MENSAGEM DE FÁTIMA
Foi em 1925 e em 1929, durante o pontificado de Pio XI, que Nossa Senhora voltou a aparecer a Lúcia para trazer, confirmando nisso também o que havia dito em 1917, o pedido da consagração da Rússia a Seu Imaculado Coração, e a comunhão reparadora dos primeiros sábados.
No dia 10/12/1925, em Pontevedra, na Espanha, a Santíssima Virgem apareceu tendo ao lado o Menino. Mostrava um coração cercado de espinhos e disse: “Olha, minha filha, o meu coração cercado de espinhos que os homens ingratos a todos os momentos me cravam, com blasfêmias e ingratidões. Tu, ao menos, empenha-te em me consolar e diz que todos aqueles que durante cinco meses no primeiro sábado se confessarem, recebendo a sagrada comunhão, rezarem um terço e me fizerem quinze minutos de companhia, meditando sobre os quinze mistérios do rosário, com o fim de me desagravar, Eu prometo assisti-los na hora da morte, com todas as graças necessárias para a salvação dessas almas”. (DOC, p. 401)
Três anos e meio após, no dia 13/6/1929, na capela do convento de Tuy, na Espanha, irmã Lúcia teve a grandiosa visão do Mistério da Santíssima Trindade.
Esses eventos extraordinários, ligados à mensagem dada pela Mãe de Deus em Fátima, evidenciam como o Padre Eterno chama os homens à compreensão da indispensável mediação de Maria Santíssima. É como se revelasse: — Eis aquela na qual repousa toda a esperança de salvação para a humanidade. No santo rosário está a válida defesa do papado, da Igreja, da pátria e da paz.
Nossa Senhora de Fátima, que trazia em sua mão esquerda o Imaculado Coração com uma coroa de espinhos e em chamas, disse à vidente: “É chegado o momento em que Deus pede para o santo padre fazer, em união com todos os bispos do mundo, a consagração da Rússia ao meu imaculado coração, prometendo salvá-la por esse meio. São tantas as almas que a justiça de Deus condena por pecados, contra mim cometidos, que venho pedir reparação: sacrifica-te por essa intenção e ora.” (DOC, p. 463/465)
Lúcia deu logo conta do que viu e ouviu a seu confessor, que a mandou escrever tudo. Mais tarde, em carta ao padre Gonçalves (29/05/1930), disse que Deus parecia instar do fundo de seu coração para que pedisse ao santo padre a aprovação da devoção reparadora, e ainda: “Se me não engano, o bom Deus promete terminar a perseguição na Rússia, se o santo padre se dignar fazer, e mandar que o façam igualmente os bispos do mundo católico, um solene e público ato de reparação e consagração da Rússia aos Santíssimos Corações de Jesus e Maria, prometendo, Sua Santidade, mediante o fim dessa perseguição, aprovar e recomendar a prática da já indicada devoção reparadora.” (op. cit., p. 405)
Poderia alguém estranhar que comunicações celestes, portanto de inestimável importância e valor, sejam precedidas pela expressão “se me não engano”, que admite a possibilidade de erro e, portanto, de contestação de toda a mensagem. Para resolver essa dúvida, deve-se verificar se o que foi transmitido por Lúcia é correto do ponto de vista moral e doutrinal e se era religiosamente oportuno e, portanto, edificante para os fiéis. Além disso, é preciso aquilatar o grau de credibilidade que merece a mesma vidente Lúcia. Certamente ela não foi a única testemunha das aparições, cujos sinais muitos viram e a Igreja reconheceu, mas é a única mensageira sobre a qual se apóia toda a mensagem.
Começando, pois, por esta, sabemos que as autoridades da Igreja verificaram que nada contém de contrário à fé ou aos costumes. De resto, ao papa competindo confirmar os irmãos na fé, é assim de conveniência que seja o santo padre a usar de seus poderes para ordenar aos bispos e aos fiéis, como pede a mensagem, o que deve ser feito quando o interesse da fé e, portanto, da salvação está em jogo. Para isto foi pedida a prática de uma devoção e um ato de consagração que se harmonizam com o que a Igreja sempre ensinou e promoveu. Há, por conseguinte, fidelidade católica na forma.
Quanto à oportunidade dos pedidos, ela pode ser vista também no simples campo histórico: quanto horror, sofrimento e conflitos teriam sido evitados neste mundo se a Rússia tornasse ao Cristianismo repudiando a ideologia perversa da qual se tornou promotora?
Ora, também o modo pelo qual esse pedido é feito segue rigorosamente a teologia sempre ensinada e repetida, por exemplo, por Pio XII na ocasião em que agradecia a intervenção da Virgem na preservação da Cidade Eterna e de seus habitantes, durante a 2.a Grande Guerra contra qualquer previsão humana:
“Quem quisesse implorar à Virgem a cessação dos flagelos, sem um sério propósito de reforma da vida privada e pública, estaria pedindo simplesmente a impunidade da culpa, o direito de regular a própria conduta não com a Lei de Deus, mas com as paixões desenfreadas. Tal súplica seria a negação e o contrário da súplica cristã, seria uma injúria a Deus, uma provocação à Sua justa cólera, um obstinar-se no pecado, que é o único e verdadeiro mal do mundo.” (Homilia de 13/6/1944, na Igreja de Santo Inácio)
O pedido de Fátima funda-se na reparação pelas ofensas e blasfêmias, mas também ingratidões contra Deus e os santíssimos corações, sinais de Seu infinito amor, que a tudo atende e perdoa aos que o invocam, mas não pode permitir que prevaleçam impunemente o erro e o pecado. Também o reconhecimento da onipotência divina sobre os eventos terrestres e o poder de mediação da Virgem Santíssima sobre eles estão iluminados na mensagem, integralmente fiel e a serviço da fé.
Quanto à fidelidade de Lúcia: são uma constante no testemunho da irmã o cuidado extremo e os escrúpulos com que transmite as mensagens. Mas o receio concerne somente à própria fraqueza e imperfeição, não aos termos das revelações, sobre as quais jamais vacilou ou se contradisse, embora submetida desde pequena a numerosíssimos e estudados interrogatórios por parte de autoridades sagazes, mas também maliciosas. Assim sendo, a integridade das palavras celestes está também garantida pelo pudor, simplicidade, desinteresse, mas grande firmeza dessa alma cândida, eleita para repetir as palavras da Mãe celeste. Ora, se isto se estende a Francisco e Jacinta, os dois primos pastorzinhos, que em modo mais limitado testemunharam a aparição e de quem está em curso a causa de beatificação, que dizer de Lúcia, escolhida para ser a testemunha plena da aparição e também da mensagem de Fátima! Poderia o Céu enganar-se, escolhendo uma mentirosa ou iludida?
A objeção de que não seria acreditada foi feita por Lúcia, que pediu um milagre de Nossa Senhora para que todos cressem. Este foi anunciado por Maria Santíssima em julho, agosto e setembro, realizando-se diante grande multidão em outubro. (DOC. 339, 343, 345, 349)
Foi o chamado “milagre do sol”, que no dia 13 de outubro de 1917 teve por testemunhas mais de 70 mil pessoas, entre as quais também jornalistas agnósticos e descrentes. Assim, se o fato “incrível”' se tornou patente para tantos que o viram, por que a mensagem dessa mesma aparição, reconhecida pela Igreja como autêntica, e tão incrível que quase tudo que anunciou já faz parte da história contemporânea, deveria ser suspeitada? Se os pastorzinhos não sonharam a aparição extraordinária, por que deveriam ter inventado, ou mesmo distorcido, a sua mensagem perfeitamente lógica também no plano natural?
Ora, tudo isto foi dito com a intenção de pôr em evidência a lição evangélica de que a conversão é necessária a todos e sempre, não só para quem vive longe da religião ou apartado da Igreja. Antes, pelas razões vistas, ninguém mais que os pontífices e guias religiosos precisam preocupar-se com a própria conversão. A responsabilidade, a par das dificuldades, o impõe. Basta pensar que as autoridades não só não são guiadas como os subalternos, mas freqüentemente são desviadas, pela adulação ou reverência destes, a considerar que tudo o que julgam ou decidem é sábio, senão inspirado. Não poucos são os chefes que, do alto da própria posição, esquecem a finalidade desta e o dever da perene vigilância.
A Pedro disse Jesus: “Simão, Simão, eis que Satanás vos reclamou com instância para vos joeirar como trigo; mas Eu roguei por ti, para que a tua fé não falte; e tu, uma vez convertido, confirma os teus irmãos.” (Lc, 22, 31-32) É o grande amor e temor de ofender a Deus que mantêm os chefes à testa, na senda da verdade. Assim, deveriam acolher com reverência e gratidão um aviso celeste que vem ajudá-los com a promessa: “Se fizerem o que Eu vos disser, salvar-se-ão muitas almas e terão paz”; “Se atenderem aos Meus pedidos, a Rússia se converterá e terão paz; se não... espalhará seus erros pelo mundo...” E isto acontece desde então; o ateísmo espalhado pelo mundo e até dentro da Igreja. Não é preciso acreditar na mensagem de Fátima para verificar essa terrível realidade. Mas ignorar sua ajuda significaria ignorar o grave dever de vigiar sobre o enorme perigo e enfrentá-lo em tempo na defesa da fé.


CRISTO REI NO REINADO DE PIO XI
Na aparição de 13 de julho a pastora Lúcia soube de Nossa Senhora que se não a atendessem, deixando de ofender a Deus, começaria outra guerra, ainda pior, no reinado de Pio XI. Esse nome era inexistente em 1917 e Lúcia explicará ao padre Jongen não ter idéia se ele seria de um papa ou de um rei. Isto consta do interrogatório feito pelo Monfortiano holandês em 1946, publicado pelo padre João Marchi.
O pontificado de Pio XI é assim o único mencionado diretamente na profecia de Fátima e nele ficaram claramente definidos os dois eventos principais que, de modo oposto, continuam a condicionar o século XX: a revolução comunista russa que dominou o império czarista e passou a ameaçar o mundo; as aparições de Nossa Senhora em que esse perigo foi anunciado, com sua causa e seus remédios. Para isto prometera voltar com os pedidos de consagração da Rússia e comunhão reparadora dos primeiros sábados, o que fez em 1925 e 1929.
Ora, em maio de 1918 o futuro Pio XI, monsenhor Achille Ratti, era bibliotecário vaticano e o papa Bento XV, interrompendo seus estudos histórico-literários, enviou-o como visitador apostólico à Polônia, Lituânia e Rússia, cuja tragédia passou a conhecer muito bem, embora não lhe tivesse sido possível visitá-la.
Estes fatos e os que se seguiram mostram que os desígnios da providência faziam com que o futuro papa fosse posto em contato direto com os grandes problemas mundiais e os métodos diplomáticos ensaiados para enfrentá-los. Uma nova era de política concordatária fora aberta por Bento XV (cf. Enc. Cat. v. IV, p. 193). A ela se aplicaria o espírito aberto às democracias emergentes do futuro Pio XI.
Tratava-se de concordar sobre os dissídios em potencial da Igreja, a fim de que ela pudesse exercer uma nova função de medianeira no concerto democrático das nações. Em Fátima, porém, na mesma época havia sido lembrado que não pode haver neutralismo católico diante do erro. Este nunca leva à paz e é injurioso a Deus, como ensinou São Pio X.
Em 1919 monsenhor Ratti foi nomeado núncio em Varsóvia, sendo consagrado arcebispo, com o título de Lepanto, diante do presidente Paderewsky, do marechal Pilsudski e seu governo. Dessa posição desenvolveu grande atividade também em relação à Finlância, Letônia, Lituânia e Geórgia, iniciando alguns acordos que iria concluir como papa.
Seria interessante meditar sobre um acontecimento na vida de Pio XI, quando ainda era núncio em Varsóvia. Foi no verão de 1920.
“A Ucrânia, saída das ruínas da revolução russa e da antiga Áustria-Hungria, restava ameaçada a leste: Kiev desde 1919 fora retomada pelos bolchevistas. A Polônia foi então em socorro da Ucrânia, e o marechal Pilsudski desbaratou o exército vermelho. Mas seus chefes juraram desforra e contra-atacaram furiosamente, reocupando Kiev e dispersando o exército polonês, que foi perseguido até as portas de Varsóvia. Na manhã de 10 de agosto a situação era trágica: os bolchevistas haviam atravessado o Vístula. Houve uma evacuação rápida para Poznan. Os embaixadores deixaram Varsóvia. Permaneceu somente o núncio apostólico, decidido a ficar até o fim, mesmo se a capital caísse nas mãos dos soviéticos. A França enviou às pressas um de seus melhores chefes militares para organizar a resistência. Foi o general Weygand, a testemunhar que monsenhor Ratti foi nesses dias mais intrépido que os poloneses. Sua presença inspirava confiança e dava coragem. Foi em Varsóvia o irmão em armas do cardeal Mercier em Malines. Encarnou a fé polonesa. (...) Uma noite o general lhe disse: — 'Tudo está pronto, nada nos resta senão solicitar a ajuda de vossas preces...' O dia seguinte, 15 de agosto (Assunção), a Virgem estendeu sua proteção sobre a Polônia católica; uma contra-ofensiva atacou pela retaguarda o grosso das tropas bolchevistas reunidas diante de Varsóvia e, dias após, o exército vermelho ficou definitivamente vencido. Assim a Polônia, libertando seu território, preservara a Europa do perigo iminente dos soviéticos. Monsenhor Ratti havia sido ali a figura do 'Defensor Civitatis'.” (Pie XI, Mons. Fontenelle, Ed. Spes, Paris, 1938).
Reconheceria o futuro Pio XI em suas preces a causa próxima dessa vitória? De todo modo, a causa final só poderia ser a glória de Deus, cuja participação humana está em proclamá-la para o bem da Igreja inteira. O mesmo seria para com os pedidos de Fátima. Mas, infelizmente, estes sabemos que o papa Pio XI não soube acolher.
Em fevereiro de 1922 morre Bento XV e poucos dias após o cardeal Achille Ratti é eleito seu sucessor. Embora se propusesse continuar, em suas grandes linhas, a política de conciliação internacional seguida por Bento XV, preferiu tomar o nome de Pio. Concluiria 18 concordatas, além de vários acordos e modus vivendi, alguns dos quais havia preparado pessoalmente. Era o resultado da reaproximação à Santa Sé de países que sentiram depois da guerra de 14-18 os inconvenientes da separação forçada entre Igreja e Estado, mas também a necessidade de estabelecer novas relações pelo desmembramento do Império Austro-Húngaro. É, pois, evidente a importância da nova política.
Ora, sobre questões de concordatas, que tocam de perto a doutrina da realeza de Cristo, supremo legislador da sociedade humana, os papas sempre se pronunciaram com documentos muito fortes, São Pio IX, com a encíclica Quanta Cura e o Syllabus (8/12/1864), condena a separação e a dependência que o Estado quer impor à Igreja, como se esta não fosse uma sociedade livre com direitos próprios e permanentes conferidos pelo seu Divino Fundador. Não temeu ver Roma invadida pelas tropas italianas para reafirmar essa verdade. Preferiu, a ceder quanto ao princípio acima, considerar-se prisioneiro. Do mesmo modo São Pio X, diante da ruptura da concordata napoleônica na França, em 1905, pronunciou-se com a encíclica Vehementer, sem permitir que a força dobrasse os direitos e princípios da Igreja. E apesar das perdas materiais e das humilhações físicas, a vida espiritual na França beneficiou-se muito dessa firmeza. Com Pio XI, de certo modo esses problemas voltavam na Itália, na França, em Portugal, no México e em países do leste europeu.
Em dezembro de 1922, no início de seu pontificado, Pio XI pronunciou no consistório secreto o discurso Vehementer gratum est, em que, fazendo o elogio de Bento XV, fala do primado da caridade e dos esforços de paz em continuar o envio de ajuda à Rússia. Anuncia também a encíclica Ubi arcano Dei sobre os males presentes e suas causas e remédios é “a Paz de Cristo no Reino de Cristo”, que será o lema do seu pontificado. Nela dirá que uma Sociedade das Nações sem Cristo é utopia! Mas confirmando a política de assistência à Rússia comunista, vítima da perseguição e da fome, nutriu a ostpolitik em embrião, cujos resultados falimentares conhecerá bem cedo. Ali a Paz de Cristo seria impossível porque era combatida Sua idéia e Sua Igreja. Em qual base, então, seria negociável uma eventual concordata?
Em dezembro de 1925 é publicada a encíclica Quas primas, sobre o Reino de Cristo que vai sendo esquecido pelos homens. É instituída a festa de Cristo Rei para lembrá-lo aos cristãos. Mas quem o lembrará ao mundo? Uma política concordatária justa poderia fazê-lo, mesmo encontrando resistências e perseguições, como ocorre com todo testemunho. E este consistia essencialmente em defender o princípio da soberania social de Cristo em toda a Terra e sobre qualquer conveniência.
Em 1926, com a carta Paterna sane sollicitudo Pio XI denunciou o governo revolucionário do México que persegue uma maioria de 95 % de católicos, chegando a sustentar para isso uma seita que tem o nome de Igreja Nacional. Esse estado de coisas vem da constituição de 1917 e da qual derivou em 1926 a iníqua lei Cultos-Calles, cuja atitude contra a Igreja católica provocou a reação armada dos cristeros. No início o papa animou-os na sua defesa dos valores cristãos até o martírio.
Em 1929, porém, deixou-se aconselhar pelo delegado apostólico Ruiz e Flores e pelo arcebispo Diaz Ibarreto do México, que propunham um modus vivendi com o governo revolucionário (minoritário). Por ouvir a nova orientação do papa e da hierarquia, os defensores da Igreja de Cristo Rei cederam as armas e foram traiçoeiramente dizimados. Foi um modus moriendi, como diria o bispo Lara y Torres.
Apesar disso, anos depois Pio XI condenou os cristeros que não haviam acolhido — mas desobedecido — suas indicações de apaziguamento.
Também em 1926, na França, o papa condenou a Action Française, liderada pelo monarquista Charles Maurras que, embora acatólico, liderava a luta contra o laicismo e pelo monarca que fosse o lugar-tenente de Cristo Rei. Pio XI sempre favoreceu e preferiu a Ação Católica mas esta não tinha condições de substituir os primeiros no campo político, o que levou a uma débacle dos valores católicos na França.
Quanto à Itália, em 1929 foram firmados os pactos de Latrão, que davam um reconhecimento de fachada à religião católica, mas na verdade eram uma conciliação com o estado moderno fascista ou liberal (cf. Chiesa Viva, n.º 148). Dois anos depois Mussolini atacava a Ação Católica e Pio XI condenava o ato com a encíclica Non abbiamo bisogno.
Em modo mais rápido e drástico foi a assinatura e a violação da concordata com o Reich de Hitler em julho de 1933. Já em março de 1934 começava uma aberta perseguição da Igreja na Alemanha. Pio XI condenava o nazismo com a encíclica Mit brennender sorge, em 1937, nos mesmos dias em que condenava o comunismo com a encíclica Divino Redemptoris. Como se vê, Pio XI esteve pronto tanto para tratar com regimes fortes de doutrinas distorcidas como para condenar estas e os regimes respectivos.
A Pio XI não faltou energia para acusar os erros, suas encíclicas doutrinais o demonstram. Depois de citar as principais veremos como as usou no campo das concordatas que tanto o ocupou.
Em janeiro de 1928, com a encíclica Mortalium animos condenou os erros do pan-cristianismo, germe do ecumenismo pós-conciliar hodierno. De fato, há nessa mistura de fé uma verdadeira ofensiva à idéia de Cristo Rei e Sua doutrina, que seria igual a tantas outras, como se caridade e união fossem possíveis sem a única fé.
A Quadragesimo anno é de 15 de maio de 1931 e lembra a doutrina social da Rerum novarum de Leão XIII, baseada no Decálogo e na Lei natural, contra o que se abatem as forças desordenadas do mundo e a rebelião a Cristo do homem moderno.
O caráter forte e autoritário do papa Ratti não aceitava intimidações no campo prático nem ameaças à doutrina no campo religioso sem dar uma corajosa resposta ou advertência. Tudo indica, porém, que muitas vezes esteve propenso a tentar soluções pessoais e a tratar com adversários da Igreja, procurando ignorar a malícia anticristã destes. Assim, muitos acordos parecem apoiar-se mais nos recursos humanos que no princípio imutável dos direitos divinos, fazendo com que o reinado de Cristo ficasse no âmbito eclesial. No âmbito civil confiou em que a Ação Católica pudesse promovê-lo, mas essas organizações já haviam mostrado seus limites e inconvenientes sob São Pio X. Eram os princípios sobrenaturais na sociedade humana que entravam em crise, o erro organizativo era conseqüente.
É preciso relevar que, das concordatas feitas no pontificado de Pio XI, as que melhor resistiram ao tempo e às forças inimigas da Igreja foram as de Portugal (1928) e da Itália (1929). A primeira, conseqüência da restauração católica que seguiu os eventos de Fátima, e que se apoiou na fé dos portugueses, povo e governo. Mesmo quando veio a “revolução dos cravos”, que trouxe o socialismo a Portugal e ameaçou bombardear Fátima, o espírito católico português resistiu e a concordata não foi anulada. A proteção do Imaculado Coração de Maria que se manifestou desde 1917 e especialmente nas décadas de 30 e 40, repetiu-se em 1975. O povo, guiado pelos prelados devotos, recorreu em massa a essa intervenção. Eis a fé que sustenta as leis cristãs e as concordatas eclesiais.
Quanto à concordata da Itália com a Santa Sé, resistiu precariamente até vinte anos depois do Concílio Vaticano II, mas no seu espírito foi modificada, como o havia sido a concordata com a Espanha sob Paulo VI. Depois do espírito concordatário soprou o espírito conciliar e depois deste até a idéia de Cristo Rei esvaiu.


A LUTA DE PIO XI CONTRA OS ERROS DA RÚSSIA


Foi durante esse pontificado, que durou de 1922 a 1939, que o poder soviético consolidou-se na Rússia, impondo sua ideologia e ateísmo, apesar das carestias e massacres sem precedentes históricos que isso causou. Trata-se de milhões de mortos. Ora, Pio XI conhecia bem essa tragédia e, convocando os católicos à oração, já em 1922 concedia trezentos dias de indulgência para a jaculatória: “Salvador do mundo, salvai a Rússia.” Mas as iniciativas para lembrar aos fiéis a gravidade do problema não impediram que fosse continuada a política de assistência, que no fundo implicava aproximações e compromissos, já iniciados por Bento XV. É justamente chamada de ostpolitik, primórdio da aberta política conciliar atual, e descrita em seus pormenores no livro de frei Michel de la Sainte Trinité, Toute la verité sur Fatima (vol. II, p. 351 e segs.). Ora, nessa mesma obra relata-se como Pio XI em 1929 fizera organizar em vários pontos da Europa conferências para que os cristãos tomassem conhecimento da perseguição comunista que o papa assim descrevia: “A reparação mais universal e solene é necessária pela recrudescência da propaganda oficial feita de tantas blasfêmias e impiedades” (...) Não somente foram fechadas centenas de igrejas, queimados inúmeros ícones, obrigados ao trabalho todos os trabalhadores e alunos das escolas, cancelando-se os domingos e feriados, mas chegou-se a obrigar os operários das fábricas, homens e mulheres, a assinar declarações de apostasia formal e de ódio a Deus sob pena de serem privados de tudo (...) “organizaram-se também infames espetáculos de carnaval durante os últimos natais... escarnecendo e cuspindo sobre a Cruz.” (op. cit., p. 341)
Em vista disso tudo, Pio XI queria que “todos os seus irmãos do episcopado católico e todos os cristãos do mundo” se unissem em uma súplica solene. Para tanto foi organizada em Roma, no ano de 1930, apesar da hostilidade de governos pró-soviéticos, uma solene cerimônia de reparação pela perseguição na pobre Rússia.
Veremos que há razões suficientes para pensar que este ato solene convocado pelo papa poderia levar ao indicado pelo Céu para o cumprimento da consagração da Rússia ao Imaculado Coração.
- Antes de tudo, porque o pedido foi feito em 1929 (p. 21) e transmitido pela vidente Lúcia em seguida, como consta de sua carta ao papa Pio XII de dezembro de 1940: “Dei conta ao confessor do pedido de Nossa Senhora. Sua Revcia. empregou alguns meios para que ele se realizasse, fazendo-o chegar ao conhecimento de Sua Santidade, Pio XI. (DOC, p.437)
Naquele ano o bispo de Leiria deve ter estado em estreito contacto com o Vaticano para o reconhecimento oficial pela Igreja do evento de Fátima, que se deu em 13 de outubro de 1930, treze anos depois do grande milagre do sol. Sabe-se que Pio XI, tomando conhecimento dos detalhes do processo, havia estimulado dom José a reconhecer as aparições (TVF, II, p. 243). Já em 13 de maio de 1928 havia o papa autorizado que o Osservatore Romano (n.º 28) publicasse um relato elogioso do que se conhecia de Fátima, tendo no ano seguinte distribuído pessoalmente aos alunos do seminário português de Roma imagens da aparição com a inscrição: “Nossa Senhora do Rosário de Fátima, rogai por nós”. Isto foi presenciado por monsenhor Domingos Frutuoso, bispo de Portalegre, que se havia oposto ao culto de Fátima. Expondo seus escrúpulos a Pio XI este perguntou: — Quantos seminaristas tínheis em 1917? “Dezoito, Santo Padre.” — E agora? “120”.
Que esperais, então, para agradecer a Nossa Senhora de Fátima?. (MF, p. 27)
Esta resposta do papa ao bispo sem dúvida dá bem idéia de como estava informado e convencido das origens do grande evento. Devia conhecer também o pedido de 1929. Lúcia responde a William Thomas Walsh:
“Em 1929 escrevi os desejos e pedidos de Nosso Senhor e Nossa Senhora, que são os mesmos, e entreguei-os ao meu confessor, que nesse tempo era o reverendo padre Bernardo Gonçalves S.J., agora Superior da Missão de Zambésia Leifidizi. Sua Reverendíssima transmitiu minha carta a Sua Excia. o senhor bispo de Leiria e, logo depois, chegava às mãos de Sua Santidade Pio XI. Não sei a data exata em que Sua Santidade a recebeu, nem o nome da pessoa que a levou. Mas lembro-me muito bem de que meu confessor disse-me que o Santo Padre ouvira bondosamente a mensagem e prometeu tomá-la em consideração” (NSF, 198)
Aqui, é importante notar que já em 17 de dezembro de 1927 Lúcia foi autorizada pelo Céu a revelar as duas primeiras partes da mensagem, como disse sempre ao padre Jongen, em 1946. Estas estavam, portanto, ao alcance das autoridades da Igreja e só não foram melhor conhecidas porque ninguém perguntou sobre elas à irmã Lúcia.
Em 1929 havia, portanto, todos os elementos para que os homens da Igreja cumprissem o pedido de Fátima: “É chegado o momento em que Deus pede para o Santo Padre fazer...” (p. 21). No ano seguinte houve em Roma a grande cerimônia de reparação pela Rússia e em outubro o reconhecimento oficial da autenticidade das aparições. A consagração seria uma verdadeira graça celeste, porque vinha dar a forma sobrenatural a um ato reparador para a conversão da Rússia.
Era também o momento político mais propício, porque enquanto a repressão e o terror da revolução soviética eram fatos mundialmente conhecidos, ainda não havia assumido uma perigosa dimensão o novo fenômeno político que causaria a II Grande Guerra: o nazismo nacional-socialismo alemão cujos erros vistosos e agressividade fariam esquecer durante um período o comunismo soviético.
Em 1930 as atenções ainda estavam voltadas para essa ameaça universal e o papa Pio XI, depois da grande cerimônia de 19 de março, continuava a lembrar a perseguição religiosa na Rússia, decidindo em 30-6-1930 que as orações depois da Missa (os exorcismos de Leão XIII) seriam ditas nessa intenção. Foram muitas as iniciativas nesse sentido, mas por alguma razão misteriosa evitou-se utilizar a indicação dada em Fátima. A esta ajuda, cuja origem sobrenatural a Igreja tinha reconhecido, não recorreu o papa para salvar o mundo e a Rússia do seu maior inimigo. Mas assim se deixava passar também a ocasião de uma excepcional homenagem a Nossa Senhora. Frei Michel de la Sainte Trinité (TVF, II, p. 336-343) mostra como esta havia estado nos planos de São Pio X, que aguardara somente um sinal propício da Providência para convocá-la. É interessante saber, porém, que já autorizara uma festa em honra de Nossa Senhora dos Santíssimos Sacramentos no dia 13 de maio (FGS., p. 31) e concedera em 13/6/1912 a indulgência plenária para quem nos primeiros sábados do mês fizesse atos de reparação pelas ofensas ao nome e prerrogativas de Maria Santíssima Mãe de Deus. (cf. Mf. p. 120)
Como se vê, tudo em Fátima é dado segundo a Igreja e o papa. O pedido de consagração da Rússia e a devoção reparadora dos primeiros sábados calhavam tão bem para o que Pio XI então quisera fazer que parecia resposta a uma pedido deste papa, antes que de Bento XV.
E todavia os termos humanos prevaleceram sobre os de Fátima.
E aquela ocasião propícia passou. Nem a milagrosa aparição na Cova da Iria, nem a surpreendente restauração social e religiosa de Portugal, que foram reconhecidas por Pio XI, convenceram-no da necessidade de atender os pedidos de Fátima para salvar a Rússia e tantas almas. Em 1933, na Alemanha, o nazismo de Hitler que chegou ao poder com uma rapidez surpreendente já em 14 de julho concluiu uma concordata com o Vaticano. Pio XI, que “para salvar almas disse que trataria até com o diabo” (PXI, p. 412), tratou com os nazistas e continuava tentando tratar com os soviéticos que o queriam condenado à morte desde 1923 (cf. Pravda, ref. Enc. Cat. IX, p. 1535). Depois de 15 anos de uma política humilhante e de péssimos resultados, Pio XI, com a encíclica Divini Redemptoris, de 1937, condena o comunismo “intrinsecamente perverso, com o qual nenhuma colaboração é possível”. Nela é lembrado São Mateus (17, 20): “Males dessa ordem que hoje atormentam a humanidade só podem ser vencidos por uma cruzada de oração e penitência... pela potente intervenção da Virgem Imaculada” (§ 59). Pio XI, porém, não havia utilizado as armas de fé que lhe tinham sido oferecidas, acompanhadas de sinais extraordinários. Preferira negociar, e o momento passou.


“O PAPA FARÁ A CONSAGRAÇÃO, MAS SERÁ TARDE”
O padre Joaquim Maria Alonso OFM, estudioso de Fátima, cita em seu livro Fátima Ante la Esfinge a carta de irmã Lúcia a seu bispo, de 29 de agosto de 1931, em que comunica as seguintes palavras de Nosso Senhor: “Faça saber a Meus ministros que, como eles seguem o exemplo do rei da França ao retardar a execução de Meu pedido, eles o seguirão na desgraça. Nunca será tarde demais para recorrer a Jesus e a Maria.”
Essa terrível comunicação do Senhor a Seus ministros, pelas suas omissões em seguir o pedido de Fátima, consta também em outros documentos. Assim em uma comunicação íntima que irmã Lúcia teve:
“Não quiseram atender ao Meu pedido! [de consagração]... Como o rei da França, arrepender-se-ão e fá-lo-ão, mas será tarde”.
A Rússia terá já espalhado os seus erros pelo mundo, provocando guerras e perseguições à Igreja. O Santo Padre terá muito que sofrer. (DOC, p. 465)
Eis um termo de comparação proposto pelo próprio Senhor, entre passados reis cristãos da França e papas de nossos tempos. Ambos deveriam ser essencialmente executores dos desígnios de Cristo Rei e estes haviam sido expressos em forma de pedidos tanto singelos e discretos como extraordinários e necessários. Dependia da fé desses chefes reconhecê-los e cumpri-los para salvar seus reinos.
Vejamos o caso do rei da França. Trata-se de Luís XIV, da família Bourbon, que em 1689, quando estava com 50 anos e em pleno poder, recebeu2, provavelmente através de seu confessor Père La Chaise, o pedido de consagrar seu reino ao Sagrado Coração, pedido este transmitido a Sta. Margarida Maria Alacoque, que teve uma visão no mosteiro de Paray-le-Monial em 17 de junho daquele ano. Eis os termos: “Faz saber ao filho primogênito de Meu Sagrado Coração que, assim como o seu nascimento temporal foi obtido pela devoção aos méritos de Minha santa Infância, do mesmo modo ele obterá seu nascimento na graça e na glória eterna pela consagração que fará de si mesmo ao Meu adorável Coração que quer triunfar sobre o seu, e pelo seu intermédio, sobre os dos grandes da terra. Ele quer reinar no seu palácio, ser pintado nos seus estandartes e impresso em suas armas, para fazê-las vitoriosas sobre os seus inimigos, dobrando a seus pés as cabeças orgulhosas e soberbas, para fazê-lo triunfar sobre todos os inimigos da Santa Igreja. (FPM, p. 202-206)
Note-se, porém, que embora fazendo tal pedido, Nosso Senhor logo após revela à mesma vidente: “Não serão as potências humanas que farão progredir a devoção ao Sagrado Coração, mas estas e o Reino do Sagrado Coração serão estabelecidos por meio de pessoas pobres e desprezadas e no meio de contradições, de tal modo que não se possa atribuir nenhum mérito ao poder humano” (op. cit., p. 219).
E, de fato, Luís XIV, embora herdeiro de uma tradicional devoção católica multicentenária, como mostraremos em seguida, não considerou o pedido, evitando mesmo revelar que o recebera. Para o rei da França, tal pedido não poderia parecer estranho como o é para a mentalidade moderna, mas, ou porque mal aconselhado, ou porque era vítima naquele momento de uma crise de grandeur, deixou de lado a devoção ao Sagrado Coração, cuja consagração era na verdade uma oferta preciosa e talvez extrema.
Exatamente cem anos depois, no dia 17 de junho de 1789, festa do Sagrado Coração, o Terceiro Estado despojava a monarquia dos Bourbon de seus poderes. O rei Luís XVI, descendente direto de Luís XIV e, por isto, conhecedor do pedido, já prisioneiro tentou cumpri-lo com uma solene promessa, mas era tarde demais. Na prisão do Templo foram encontradas imagens do Sagrado Coração com a consagração da França assinada por Maria Antonieta e Mme. Elisabeth, irmã de Luís XVI, que compôs então um belo ato de resignação cristã.
Em 1793 o rei da França foi guilhotinado e igual destino coube a quase toda a família real e a grande parte de sua corte. Era a revolução desencadeada contra a civilização cristã e seus reis, da qual Nosso Senhor queria preservar a França católica. Mas a suprema misericórdia não foi ouvida. Talvez considerada inverossímil.
Voltando atrás no tempo, consta que também a Père La Chaise, jesuíta confessor de Luís XIV, foram prometidas bênçãos à sua Companhia de Jesus caso ele levasse o pedido ao rei, empenhado-se para que o cumprisse. Isto não se deu. Desde então os jesuítas sofreram diversos reveses e perseguições no século XVIII, sendo expulsos da França, Portugal, Espanha e Reino de Nápoles e sua ordem suprimida pelo papa Clemente XIV em 1773. Seria porém o jesuíta beato Claude La Colombière, confessor de Santa Margarida Maria, e continuadores, como o jesuíta Jean Croiset, lutando contra as contradições do tempo, que iriam difundir a devoção ao Sagrado Coração.
É interessante notar como o culto ao Coração de Jesus, nobilíssima parte de Seu divino corpo e símbolo de Seu amor infinito, era dado justamente para enfrentar a revolução racionalista. E curiosamente esse mal, entre todas as ordens religiosas, afetou de modo relevante justamente os jesuítas. Basta citar Teilhard de Chardin, de Lubac, e no recente concílio, cardeal Bea, Karl Rahner, Eduardo Dhanis.
Para que se tenha uma idéia do que representava para a França o culto ao Sagrado Coração, será útil lembrar ainda alguns fatos. O pedido de consagração da augusta pessoa do rei e do seu exército foi lembrado também a Luís XV, em 1744, pela superiora do mosteiro de Paray-le-Monial (FPM., p. 223). Não foi dado só a Luís XIV.
Durante e após a revolução de 1789, grande número de suas vítimas e dos contra-revolucionários que a ela se opuseram, especialmente na Vandéia católica, usava a imagem do Sagrado Coração.
Em 1899, o papa Leão XIII com a encíclica Annum Sacrum ordenou a consagração do gênero humano ao Sagrado Coração de Jesus.
Nessa ocasião escrevia aos bispos para incitá-los a desenvolverem essa devoção com a prática da comunhão das primeiras sextas-feiras e a consagração do mês de junho ao Sagrado Coração. Ao bispo de Marselha escrevia em 6 de julho de 1899: “Pode-se dizer, sem medo de errar, que estava nos desígnios da divina Providência unir a França ao Sagrado Coração com laços privilegiados de afeto”.
Por tudo isto, o pedido de consagração da França e de seus exércitos (pedido da mística Claire Ferchaud), e mesmo a idéia de que a imagem do Sagrado Coração com a Cruz fosse pintada na bandeira nacional, estavam ainda vivos nos anos 1917-18, durante a presidência de Poincaré, que havia feito um apelo à union sacrée dos franceses durante a guerra. Consta, porém, que o papa Bento XV, consultado a esse propósito, teria considerado a idéia inoportuna e mesmo comprometedora. Disto fez-se porta-voz o prestigioso cardeal Billot, jesuíta, que se manifestou publicamente contra essa “absurda contradição”, “este clericalismo aplicado à bandeira, que é um sonho impossível, mesmo porque, esta, é levada também em guerra, e todos os povos têm iguais direitos de honrar o Sagrado Coração de Jesus.” (!). (FPM, p. 231)


A DEVOÇÃO CATÓLICA NA FRANÇA ANTIGA
A devoção católica, real e popular, na França antiga, era geral. Começara com o primeiro rei católico, Clóvis. Seguiram-se os príncipes merovíngios da primeira dinastia francesa, tendo a segunda dinastia feito notáveis progressos. Rei Pepino viajava pelos seus territórios seguindo o itinerário de capelas, que se enriqueciam à passagem do rei.
Seu filho Carlos Magno foi pródigo em fazer erigir igrejas e abadias, obra continuada por seus filhos. Vieram depois os Capetíngios, que proclamaram Maria “Estrela do Reino”, erigindo as grandes catedrais de Paris, Chartres, Amiens, Reims, Estrasburgo, Rouen, etc, que são maravilhas da humanidade. De São Luís, rei de França, nem é preciso mencionar a devoção e zelo fervoroso pelas coisas de Deus. É mais o caso de lembrar de como Deus premiou os franceses, dando-lhes como rei um santo. Mas depois dele houve um retorno ao mundano. Mesmo assim, Filipe o Belo e Filipe de Valois estabeleceram o costume de oferecer as armas e cavalos com que venciam suas batalhas a Nossa Senhora. E as suas rainhas e princesas não foram menos reverentes para com a Rainha do Céu. O rei João de Valois instituiu a ordem mariana dos Cavaleiros da Estrela, que jejuavam todos os sábados em honra a Maria Santíssima. Luís XI de Valois durante as audiências solenes trazia como único ornamento uma imagem de chumbo da Virgem Soberana de quem foi sempre especialmente devoto. Luís XII da Casa de Valois-Orleans, em não poucas ocasiões, deu testemunho público de seu reconhecimento a Deus e à Santa Virgem. Também Francisco I soube fazer um ato de reparação exemplar por uma estátua mariana da qual havia sido abatida a cabeça numa praça de Paris: precedeu sua corte, indo à frente da peregrinação descalço e com a cabeça descoberta em reparação pública do gesto sacrílego de um desconhecido. Diante dessa devoção católica e mariana, não admira que protestantes e jansenistas encontrassem tantas dificuldades para obter algum resultado na França. Mas chegamos assim a Luís XIII de Bourbon, filho de Maria de Medicis e Henrique IV, convertido ao catolicismo. De seu casamento com Ana de Áustria nasceu, depois de 25 anos de matrimônio, o menino que seria Luís XIV. O rei reconhecia nesse nascimento a intervenção de Maria Santíssima e por isso lhe consagrava solenemente a França, ordenando ao seu exército a recitação do santo rosário para a conversão dos protestantes. No decreto de consagração do rei e de seu reino à Virgem protetora ressoavam palavras ardentes e severas disposições para que a posteridade não deixasse de observá-la.


LUÍS XIV PERANTE A HISTÓRIA E UM PEDIDO
O rei Luís XIV foi o instaurador da monarquia absoluta que levava às últimas conseqüências a idéia do poder divino dos reis.
Mas a serviço de que pôs tanto poder? Ora, sua política européia alternou pragmaticamente os desígnios de seus predecessores, sempre em busca da supremacia francesa. Como rei católico, sua política foi, assim, bastante contraditória. Revogou o Edito de Nantes, que preservava os direitos dos protestantes, e ordenou duras perseguições aos jansenistas de Port-Royal, mas evitou a política de Francisco I de unir as nações cristãs contra os turcos invasores. Nisto contrariou até as lições de Nazzarino, que, embora descrito por muitos como homem sem escrúpulos, não hesitou em mandar tropas a Creta para ajudar em 1660 os venezianos contra os turcos. E, mais: em seu testamento recomendara ao rei que “defendesse sempre a Igreja como se fosse seu filho maior”.
Acontece que o devoto filho de Ana d'Áustria instituiu uma vida de corte cujo mundanismo e luxo não tinha precedentes, aproximando-a de um novo Olimpo pela suntuosidade e motivos mitológicos de suas festas. Foi assim que o Rei Sol passou a ignorar toda piedade, rir-se do pudor e desprezar as conveniências das leis da Igreja. Tornou-se quase um libertino, relata Lavisse.
Mas o caráter forte de Luís XIV fazia-o voltar à vida espartana de soldado se estivessem em jogo os interesses da França ou a dignidade do rei. Por isso seu reinado cresceu continuamente em poderio e em 1689 dispunha de 300 mil homens em armas, chegando ainda a disputar com a Inglaterra a supremacia naval. “Nenhum príncipe cristão havia reunido tais forças. Só os reis da Pérsia o fizeram. Tudo é novo, tudo é maravilhoso”, escrevia então Mme. Sevigné. Diante de tal exército Louvois dizia ao rei: “Sire, se alguma vez houve uma divisa adequada, foi esta, feita para Vossa Majestade: — Só contra todos.”
Ora, a História registra grandes vitórias mas também fragorosas derrotas dessas forças. Mas em ambas os historiadores notam algo que as tornavam inúteis e inconclusas.
Nessa abreviada descrição histórica deve-se ressaltar um acontecimento de 1683 em que as tropas francesas não tomaram parte, embora envolvesse a Europa. Trata-se da investida do Islã contra o ocidente cristão feita pelo exército de 200 mil homens do grão-vizir turco Kara-Mustafá, que avançou sobre Viena.
Nessa ocasião o imperador apostólico Leopoldo apelou aos estados europeus. Estes foram especialmente solicitados pelos núncios enviados pelo Bem-aventurado Inocêncio XI através do continente para se mobilizarem. Entre os chefes que acolheram, solícitos, o apelo do papa estão Carlos de Lorena e o rei da Polônia, João Sübieski. Luís XIV, porém, cego pela política hegemônica faz um cínico entendimento com o governo do sultão, esperando que Viena caísse como lhe convinha.
A vitória coube, porém, aos que confiaram na força da fé. Sobieski, grato, envia ao papa a mensagem: Venimus, vidimus, Deus vicit.
Era a paráfrase cristã do vencedor Júlio César. Para Luís XIV aquele foi, ao contrário, um ano de tristezas e reveses. Morre a rainha Maria Teresa em plena juventude. Perde também seu fiel ministro Colbert e a sua posição de predominância na Europa.
Mas o momento especial desse rei da França ainda não passara, e 1689 poderia ser o ano a reconhecê-lo e consagrá-lo, com o seu reino, para a glória de Deus. Poderia, assim, ter tido início uma fase de verdadeiro progresso no enriquecimento moral e espiritual. Isso já havia acontecido no passado e determinara a insuperável civilização ocidental cristã. Provavelmente com Luís XIV e seu século de ouro repetia-se a ocasião. Politicamente, esse rei de índole decidida recebeu poder suficiente para mudar os destinos da Europa e do mundo de então. Teria bastado que seguisse os princípios da sua religião, reprimindo os ímpetos de sua ambição. Foi monarca absoluto de uma nação rica de homens e de solo e as circunstâncias históricas o tornaram árbitro de conflitos alheios. Em Roma reinava um papa, Bem-aventurado Inocêncio XI, cuja sabedoria e santidade foi sem igual no século depois de São Pio V, nem se repetiria até São Pio X. Mas, além disso tudo, Luís XIV recebeu o dom de um pedido do Sagrado Coração de Jesus.


“HOMEM DE POUCA FÉ, POR QUE DUVIDASTE?”
No cap. XIV de São Mateus, depois da multiplicação dos pães, lemos sobre Jesus que caminha sobre as águas e sobre Pedro que, desejando ir ter com Ele, duvida por um instante e se afogaria não fosse a mão divina a sustentá-lo, depois que pediu socorro. Ora, nos tempos tumultuosos de Luís XIV, assim como nos tempos tenebrosos de nosso século, os grandes da terra parecem duvidar poder vencer a intempérie, recorrendo à divina mão capaz de sustentá-los. Eis que a Misericórdia adianta-se ainda, como se o pedido viesse do Alto e aos grandes coubesse decidir quanto a atendê-lo ou ignorá-lo. Mas, não é possível salvar ou salvar-se sem a fé, assim como é impossível pensar que um pedido divino seja menos que uma ajuda extrema. Pedindo ao rei ou aos papas a consagração aos Sacratíssimos Corações para vencer os problemas da terra, na verdade é oferecida uma ajuda para que não soçobrem com seus povos na fé. É como se Jesus dissesse a Pedro: Pede socorro! Já ao pedir darás sinal da fé que te pode salvar. Peço que Me peças. Nisso reconhecerás o Salvador. Limitando-nos aqui ao rei da França, sabemos que ele não pediu, consagrando-se e a seu reino ao Sagrado Coração, como solicitado.
O momento passou e faltou-lhe a fé para essa consagração.
Desvaneceram-se, assim, também as altas finalidades de seu poder, dado para pacificar os povos e não para perseguir dissidentes; para converter extraviados, não para dizimá-los; para unir nações, não para submetê-las ou traí-las. Desde então teve vitórias sem nexo que aumentaram a miséria do povo. Teve gestos de poder que deixaram somente ressentimentos profundos. Enfim, nos últimos anos de seu reinado, a França foi assolada pelo calamitoso inverno dos anos 1708-1709 que trouxe mais fome e morte que as suas guerras. Tanta carestia, gelo e novas invasões pareceram a todos castigos celestes. E para o povo sofredor a causa procedia do rei, figura marmórea e distante, cujo fausto permanecia como um acinte à miséria geral. Não parecia Luís XIV monarca cristão, mas o faraó de Versailles, como o denominara Jean Héritier. Sua prepotência levava a exasperações políticas de problemas religiosos, favorecendo a formação de um caldo de cultura para a futura revolução.
Naquela época Fénelon escrevia ao duque de Chevreuse uma carta destinada ao rei: — Vós me direis que Deus sustentará a França, mas eu vos pergunto até onde vai a promessa? Mereceis vós milagres enquanto a vossa próxima e total ruína ainda não consegue corrigir-vos, a vós que continuais duro, soberbo, faustoso, isolado, insensível e sempre pronto a vos glorificar? Poderia Deus aplacar-se vendo-vos humilhado mas sem humildade, confuso pelos vossos erros inconfessados e pronto a recomeçar?
No fim da vida Luís XIV viu-se também distanciado de seus sucessores. Em 1711 morre o “grand Dauphin”. Em 1712 morrem, a poucos dias de intervalo, a duquesa e o duque de Borgonha. Depois de poucas semanas, morre também o duque de Bretanha, irmão maior do futuro Luís XV. Uma geração intermediária ia desaparecendo, levando Mme. de Maintenon, com quem o rei se casara secretamente, a escrever: “Aqui tudo está morto. Falta vida”. Os remanescentes foliões da corte faraônica fugiam à procura de divertimentos para uma Paris que já dava mostras de uma babilônia viciada e decadente.
Pressentindo a morte, o rei manda chamar o menino que seria Luís XV e lhe diz: — Meu filho, tua fortuna dependerá da tua submissão a Deus. Peço-te não imitar-me no amor pela guerra, mas ajudar o quanto possível teu povo, fazendo o que eu não pude fazer...
No dia 1.º de setembro de 1715 extinguia-se Luis XIV, o Rei Sol, decepção de um século que poderia ter sido “tão fecundo e tão favorável a ele em todos os campos, a ponto de poder ser comparado ao século de Augusto”. Assim escrevia Saint-Simon. Algo, porém, falhara fazendo predominar a aridez e germinar o ódio. Assim foi que o féretro do rei atravessou uma multidão que o insultava, vociferante e embriagada como jamais se havia visto.
A glória do mundo passara, fugaz e inútil, porque não servira devidamente à glória daquele que ensinara “quem não recolhe Comigo, dispersa”. Não soubera ouvir o pedido daquele que dissera “Meu jugo é suave, o Meu peso é leve” (Mt. 11, 30). Ao contrário, fora tirano de jugo cruel e até seus prêmios se tornavam lágrimas. Tivesse ouvido um dia o pedido que lhe fora apenas sussurrado...
Já naquele 1715 outro pacto de poder ia surgindo. Um jovem de 20 anos presenciava o declínio de um reinado sobre cujos erros iria delinear-se a nova forma de domínio que se nutre não mais de direito divino, mas de rebelião revolucionária. Naquele mesmo século, das idéias de Voltaire surgiria o poderoso, utópico, implacável reinado do terror.
A França e o mundo não haviam merecido que o rei católico efetuasse um ato de consagração que, fazendo triunfar a idéia do Reino de Cristo, teria afastado a sedição revolucionária. Esta foi vista em germe no édito real de 1682 (Mons. Delassus, La Conjuration antichrétienne, Cap. LXX) e também na vontade centralizadora dos Bourbon, segundo o historiador Alexis de Toqueville.
Aqui interessa, porém, a comparação. Depois de 1914, o mundo que não havia ouvido São Pio X não mereceu que Bento XV e Pio XI reconhecessem a aparição de Fátima, pela qual poderia ter sido obtida a paz e a salvação de muitas almas. Preferiu-se o recurso humano ao sinal divino.


PAPAS E REIS DIANTE DE SINAIS CELESTES


Aos católicos de hoje, familiarizados com as aparições marianas reconhecidas pela Igreja no último século e meio, pode parecer mais adequado a um evento religioso que Nossa Senhora se dirija ou refira nas suas mensagens, a papas e não a chefes civis. E, todavia, em 1689 o Sagrado Coração de Jesus, por meio de Santa Margarida Maria Alacoque, não enviava um pedido ao Seu vigário na Terra, o Bem-aventurado Inocêncio XI, mas ao rei da França Luís XIV, que nada tinha de bem-aventurado.
Este fato já deve levar à reflexão os homens modernos porque deixa claro que os eventos religiosos não dizem respeito só a fiéis, eclesiásticos e papas, mas a todos os homens. Ainda mais, para o Céu o monarca, absoluto ou não, é o pai e responsável que recebeu o poder para guiar sua nação. E como os desígnios de Deus não mudam, não subsiste indício algum de que os conceitos modernos de democracia e separação completa dos poderes da Igreja e do Estado possam seguir alguma indicação divinamente inspirada. Ao contrário, a instituição do papado pode demonstrar a preferência divina por um monarca que siga os sinais da fé e responda às suas demandas.
As democracias modernas são, portanto, simples preferências humanas.
O fato principal, porém, relacionado com a presente questão é que aquilo que a bondade divina chama de pedido é na verdade uma ajuda indispensável, talvez extrema, razão pela qual quem recebe esse sinal, se íntegro na sua fé, não deveria considerar-se árbitro quanto a segui-lo ou não, mas, reconhecido autêntico, acolhê-lo grato.
Foi por amor à nação francesa, filha primogênita da Igreja, que Luís XIV, seu pai e responsável temporal, recebeu um pedido-ajuda. Para ser amparado na função real que corria perigo devido às crises e desvios morais ligados à pessoa do rei. Porque os problemas do povo não independem dos problemas do governante, assim como os problemas dos fiéis não estão separados dos de seu pontífice.
O que ainda é importante ponderar é a posição de um papa perante um pedido-ajuda sobrenatural. Note-se que o papa Bem-aventurado Inocêncio XI, único pontífice beatificado em mais de três séculos que decorreram entre São Pio V e São Pio X, e teve diversos casos com Luís XIV, que chegou a ameaçar um cisma, ficou porém excluído do pedido do Sagrado Coração, que foi dirigido só ao rei. Ao papa que cumpria zelosamente seu dever em Roma, restabelecendo as virtudes religiosas e morais, a instrução catequética, a assistência espiritual aos doentes e sobretudo o culto eucarístico, nada era pedido e nada ele teria negado. Ao contrário, ao monarca vicioso e prepotente que ameaçava também o Santo Padre era dirigido pelo Sagrado Coração de Jesus o pedido-ajuda de consagração, mostrando claramente que a ordem não é estabelecida segundo os homens, mas segundo a misericórdia de Deus que quer salvar rei e súditos.
Para salientar ainda como não é aos reinantes fiéis que são encaminhados os pedidos celestes, pensemos no pontificado de São Pio X, vazio de aparições ou mensagens. De fato, não havia nada que estivesse ao seu alcance para dar glória a Deus e salvar as almas que não realizasse. O que poderia pedir o Senhor ao doce Jesus na Terra, como dizia Santa Catarina de Sena, que ele não procurasse fazer? Ele era a graça, o homem da Providência dado à Igreja, exemplo para os fiéis, para os bispos, para os papas. E, no entanto, também São Pio X não foi seguido e ouvido, acrescentando esta culpa a essa geração esquecida de suas bênçãos e de seus profetas.
Quando em 1914 veio a guerra e o coração do Santo Padre parou, era o castigo de ofensas a Deus que São Pio X não esmoreceu em denunciar. Foi depois de sua morte que começaram os eventos de Fátima.
Antes, com a aparição do anjo e em 1917 com Nossa Mãe celeste, que instrumento da misericórdia de Deus vinha suprir novamente a cegueira dos homens dentro e fora da Igreja.
Resumindo então as considerações feitas sobre a comparação entre o rei da França e seus ministros, proposta por Nosso Senhor: o contraste entre o santo papa Inocêncio XI e o vicioso Luís XIV, que recebeu o pedido de consagração, mostra que o pedido celeste é uma solicitação, não aos virtuosos que cumprem seu dever, mas aos que estão vacilantes, à beira de decisões ou políticas nocivas aos seus governados.
Na nossa época isto é confirmado pelo fato de o pedido mariano de Fátima não ser feito ao “papa do século XX, santo que a Providência deu à nossa era”, como dizia Pio XII por ocasião da beatificação e canonização de São Pio X (3/6/51 e 29/5/54). Foi feito depois de sua morte, à geração que se mostrou surda a esse profeta, como seria cega às aparições que seguiram. Eis uma culpa que se segue a um benefício desprezado.
O que se continua a chamar de pedido celeste é na verdade um pedido de ajuda, um socorro providencial contra um mal imenso já iniciado no silêncio, mas que o orgulho ou vício dos homens não deixa ver. Era o racionalismo que traria à luz a revolução francesa no século XVIII, para o rei da França; é o modernismo e o comunismo russo, que por dentro e por fora da Igreja darão vida à anti-Igreja.
Disso tudo pode-se deduzir que a tergiversação, diante do pedido-ajuda que se reconheceu de origem celeste, indica uma crise de percepção espiritual da vontade daquele que representam, daquele que, detendo todo o poder no Céu e na Terra, concedeu-lhes a coroa ou as chave. Pior ainda, uma crise de fé nos recursos sobrenaturais dados aos homens, para com a oração e penitência obter uma intervenção divina na História. Seria duvidar que Cristo é o Senhor da História.
“Não quiseram atender ao Meu pedido! (de consagração)... Como o rei da França, arrepender-se-ão e a farão, mas será tarde. A Rússia já terá espalhado os seus erros pelo mundo, provocando guerras, e perseguições à Igreja. O Santo Padre terá muito que sofrer”. (DOC, p. 465)
Observa-se que, assim como Pio XI não acolheu a ajuda sobrenatural de Fátima, também não aplicou com eficácia a idéia fundamental do Reino de Cristo no mundo, que é impossível sem um poder temporal católico que opera num campo distinto da hierarquia eclesiástica.
A política de concordatas a todo transe, a falta de apoio aos cristeros e a interferência na política francesa pela condenação da “Action Française”, demonstram uma ação natural pela diplomacia, com o que a Santa Sé relegou a segundo plano a prioritária e intransigente defesa de princípios sobrenaturais, missão e razão própria a quem detém a suprema cátedra. À política nacional e internacional muitos se sentem chamados. Quem pode e deve assegurar a defesa incondicional da fé? Só a Igreja.
Não é difícil entender, neste mundo moderno, a importância de uma voz com autoridade máxima no campo religioso e moral, que se pronuncia sem entraves ou compromissos quando os direitos de Deus são atingidos. Isto não é dado a nenhuma autoridade civil, mas o é à Santa Sé, que está acima das partes, queiram ou não seus inimigos. Eis seu dever precípuo e supremo, que não pode estar subordinado à diplomacia ou a conveniências de poder. Se depois houver circunstâncias nas quais, para evitar um mal maior ou obter algum bem será conveniente evitar pronunciamentos drásticos, isso é compreensível. Muito menos, porém, que impeça os civis de agirem no sentido católico em política.
A difusão dos “erros da Rússia”, do comunismo lembrado em Fátima, pelo mundo, da Ásia à América, do México à Espanha, deve ter tirado de Pio XI toda possível ilusão de “diálogo democrático” com os inimigos da Igreja. Muita documentação sobre essas ilusões, especialmente no drama dos cristeros, parece ter sido deliberadamente suprimida também no Vaticano. Sabemos, porém, que em 1937 Pio XI foi explícito quanto ao comunismo, escrevendo também à hierarquia mexicana (28-3-37): “Quando o poder se levanta contra a justiça e a verdade a ponto de destruir os fundamentos de toda autoridade, não se vê como seria possível condenar os cidadãos que se unissem para defender a nação e a si mesmos com meios legítimos e eficazes contra quem programa sua desgraça (...) A utilização desses meios, o exercício dos direitos políticos e civis em toda a sua extensão, que incluem problemas de ordem puramente material e técnica ou de defesa pelas armas, não estão de modo algum sob a competência do clero nem da Ação Católica.”
Isto era dito quando o problema reaparecia em toda a sua atroz dimensão na Espanha republicana que perseguia a religião. De resto, parece que estamos simplesmente ouvindo o que é óbvio. Nenhum pai de família precisa ouvir o pároco ou o papa para saber que deve defender sua pátria e sua casa. E, todavia, nesse mesmo pontificado e subseqüentes, prelados e sacerdotes imiscuíram-se a tal ponto nos problemas civis que muitos deles chegaram a propor revoluções e reformas. Os princípios? Foram tortuosamente postos a serviço das novas ideologias enquanto os católicos eram confundidos não só em política mas também em religião por uma nova classe de eclesiásticos empenhados no social. Eis a gênese sinistra de tantas “teologias” de revolução e libertação. Eis os lobos vestidos de pastores de que falou Nosso Senhor.
E não admira que estes lobos rapaces sejam mais ferozes contra as palavras de Fátima, que ilumina falsidades e traições que provêm de dentro da própria Igreja, do que contra as tentativas vaticanas de atacar a revolução com meios naturais. Essa ilusão perigosa, esse naturalismo de ação, essa falta de confiança nos meios sobrenaturais com que Deus arma Sua Igreja, já são crise e derrota do catolicismo que sem a fé sobrenatural é vazio e inútil.
Eis de novo a importância e atualidade única de Fátima. A verdadeira defesa do cristianismo e, portanto, da ordem e da paz não está no poder material da tecnologia, mas na força da fé. Só esta pode ocupar os espaços mentais de convicções e certezas capazes de sustentar o espírito de sacrifício e o senso do dever que resistem e enfrentam as seduções e perfídias ideológicas. Só a fé salva, também na sociedade, foi o que o Sagrado Coração procurou lembrar ao rei da França no passado e Nossa Senhora de Fátima aos pontífices atuais.


PIO XII, CHAMADO O PAPA DE FÁTIMA
O sucessor de Pio XI foi seu secretário de Estado, cardeal Eugênio Pacelli, que tomou o nome de Pio XII. Além de grande devoto mariano, Pio XII, por ter sido consagrado bispo no dia 13 de maio de 1917, quando Nossa Senhora aparecia pela primeira vez na Cova da Iria, foi chamado “Papa de Fátima” título que aceitou3.
Como núncio papal na Alemanha e depois secretário de Estado por nove anos, o sucessor de Pio XI sempre demonstrou ter uma visão clara e uma posição firme diante do perigo comunista. Mas, como o seu pontificado se iniciava sob a pressão dessa colossal hecatombe que foi a segunda guerra mundial, encontrou-se sobrecarregado de dificuldades para denunciar o grande mal que naqueles dias podia parecer, de modo geral, secundário face ao temível nazismo em expansão. Ora, na polarização dos blocos a URSS ficaria do lado dos aliados democráticos, contra o eixo nazi-fascista. Daí a enorme dificuldade, em plena guerra, de um ato partindo do papa mencionar um dos contendores sem incorrer em parcialidade.
Apesar destas razões, em 1942 Pio XII quis atender parcialmente ao pedido de consagração do mundo do Imaculado Coração de Maria, com especial menção à Rússia. Assim havia sido pedido por irmã Lúcia, em carta de dezembro de 1940: “... Povos separados pelo erro e pela discórdia, e especialmente aqueles que professam por Vós uma singular devoção e em cujas casas não faltava o vosso venerável ícone para honrar-Vos, provavelmente hoje escondido à espera de melhores dias. Dai-lhes a paz e reconduzi-os ao único rebanho de Cristo, sob o único e verdadeiro pastor!”
Era a alusão, indireta mas inequívoca, à Grande Rússia, que se separou de Roma e proclamou-se ortodoxa e ora estava submetida ao comunismo ateu. Faltou, porém, a essa consagração a participação dos bispos, como fora pedido, e isto fazia com que ela fosse incompleta. Apesar disso, pode-se verificar que naqueles dias alterava-se o curso da guerra, e um dos livros que dá testemunho disso, Fátima, The Great Sign, de Francis Johnston, cita como referência a obra The Second World War, vol. 4,33, do insuspeito Winston Churchill, que para aqueles dias usava a expressão: the turning of the hinge of fate, sem certamente referir-se, não sendo católico, à consagração feita dia 31 de outubro de 1942, tão radical foi a mudança do curso da guerra. Johnston cita a frase de irmã Lúcia no mês seguinte: “Deus já demonstrou a Sua satisfação por esse ato. Mas, como ele foi incompleto, fica a conversão da Rússia para mais adiante.”
Pio XII não cessava, no entanto, de denunciar o mal que estrangulava a Rússia e ameaçava o mundo. Em rádio-mensagem natalina do mesmo ano, renova a condenação do comunismo: “Movida sempre por motivos religiosos, a Igreja condenou os vários sistemas do socialismo marxista e os condena também hoje, pois é seu dever e direito permanente preservar os homens de correntes e influxos que põem a sua salvação em perigo.” Pio XII não hesitaria lembrar, também, “da exclusão dos Sacramentos dos que aderem conscientemente aos partidos comunistas nos quais militam e da excomunhão dos que se tornam propagadores e defensores dessa doutrina atéia e materialista” (cf. decreto em vigor desde 1/7/1949).
O papa Pio XII trocou também correspondência com o presidente norte-americano Franklin Roosevelt, cuja atitude estranhamente otimista, simplória e entreguista faria dele no melhor dos casos um dos maiores “inocentes úteis” da história quando, firmando os tratados de Yalta com Stalin, efetivou uma divisão prática do mundo em favor dos soviéticos que levou ao repatriamento forçado de milhões de fugitivos do comunismo, dos quais grande número foi trucidado. Talvez isto poderia ter sido evitado se houvesse ouvido com mais atenção ao papa de então, evitando enormes sofrimentos e riscos ao mundo livre.
Mas aqui será preciso aprofundar melhor a questão, como mostraremos em seguida, porque hoje é sabido que já em 1942 havia quem, dentro da Igreja, usando da confiança de Pio XII, e dizendo mesmo representá-lo, contrariava, quando não traía, as instruções papais na política frente aos governos comunistas. Trata-se de monsenhor Montini, futuro Paulo VI, de estranha personalidade, como veremos.
Mas, voltando ao papa Pacelli: conhecendo depois de sua morte o poder que haviam atingido dentro do Vaticano os seus adversários, há sempre que admirar sua determinação e a proteção que recebeu para levar a cabo empresas religiosas que hoje parecem simplesmente impossíveis: a canonização de São Pio X, que combatera os perigosos modernistas, inimigos da fé que estão infiltrados na Igreja a ponto de ocupá-la e pretender transformá-la; a proclamação do dogma da Assunção de Nossa Senhora, apesar da incompreensão e resistência encontradas dentro da própria Igreja. No ato de fé na praça de São Pedro, porém, a 1.º de novembro do ano jubilar de 1950, 600 bispos e um verdadeiro mar de fiéis seguiram Pio XII.
Para que se saiba como os dogmas católicos e as aparições de Fátima estão estreitamente ligados, através do vigário de Nosso Senhor, temos um relato feito pelo cardeal Tedeschini diante da multidão reunida no Santuário de Fátima para as cerimônias de encerramento do Ano Santo: o cardeal fora autorizado a revelar que o papa havia visto a repetição do milagre do sol de 13 de outubro de 1917, nos jardins vaticanos, tanto na véspera como na oitava da promulgação do dogma da Assunção de Maria, por quatro vezes4.
Já em 1950 Pio XII, ao receber Pe. Suarez, geral dos dominicanos, teria afirmado: “Diga aos seus religiosos que o pensamento do papa está contido na mensagem de Fátima. Diga a eles que continuem a trabalhar com grande entusiasmo na propagação do culto de Nossa Senhora de Fátima.” (LVF, p. 184)
Ora, justamente pela atenção e confiança sempre demonstradas por Pio XII, para com o grande sinal dado por Maria Santíssima em Fátima, não se compreende como em 7 de julho de 1952, quando consagrava os povos da Rússia ao Imaculado coração de Maria (Carta Apost. Sacro vergente anno), ainda faltasse a participação colegial dos bispos do mundo. Esta condição era parte essencial do pensamento expresso na mensagem de Fátima, já então ao alcance de todos, pelo empenho do mesmo papa Pacelli, através do arcebispo de Milão e seu grande amigo, cardeal Schuster (hoje em processo de beatificação).
Diga-se também que não poucas vezes Pio XII lembrou as lágrimas de Nossa Senhora. Referia-se, por exemplo, à aparição de La Salette dizendo: “... memória perene da misericordiosa aparição de Maria de 19 de setembro de 1846, quando Nossa Senhora, em lágrimas, como se narra, vinha exortar seus filhos a voltarem prontamente ao caminho da conversão ao seu divino filho e da reparação”. (I. P., Vol. 7, p. 452, 481)
Em 11 de outubro de 1954, na encíclica Ad Caeli Reginam Pio XII diz que “com a nossa autoridade apostólica decretamos e instituímos a festa de Maria Rainha, a celebrar-se todos os anos em todo o mundo no dia 31 de maio. Ordenamos também que nesse dia seja renovada a consagração do gênero humano ao Coração Imaculado da beata Virgem Santíssima.” Nesse ato é posta, de fato, grande esperança de que possa surgir uma nova era, abençoada pela paz cristã e pelo triunfo da religião.
Se essa lembrança que o papa ordenou com toda a sua autoridade tivesse sido respeitada, teríamos tido uma consciência atenta dos povos para o Signum Magnum de Fátima, além das graças sobrenaturais que certamente disso adviriam. Mas assim não foi, infelizmente.


A ÁUSTRIA CATÓLICA RECORRE A FÁTIMA
No que diz respeito aos eventos de Fátima, durante o pontificado de Pio XII, é importante lembrar um fato político acontecido com uma grande nação católica. Trata-se da ocupação soviética da Áustria e do recurso que os católicos desse país dirigiram a Nossa Senhora de Fátima, à semelhança do que então fazia o papa.
Seria justo recordar, antes, a importância que teve o império austríaco na defesa do catolicismo na Europa e, portanto, no mundo. Bastaria dizer que no começo deste século XX o soberano da Áustria ainda tinha o título de imperador apostólico e o poder de veto num conclave para eleição do papa. E a providência fez com que, por esse direito em si irregular, fosse vetada a eleição do esperado sucessor de Leão XIII, seu secretário de Estado cardeal Rampolla, provavelmente ligado à maçonaria, como muitos sustentam, e fosse eleito o humilde, simples, mas santo patriarca de Veneza. Certamente não será simples aquilatar todas as razões políticas que fizeram com que o imperador Francisco José, através do arcebispo da Cracóvia, cardeal Puzyna, aplicasse seu veto no conclave de agosto de 1903, mas esse fato, apesar da reação dos outros cardeais, não deixou de influir para que o voto fosse para o cardeal Sarto.
Apenas iniciou seu glorioso pontificado, o papa Sarto, isto é, São Pio X, cancelou esse privilégio de outra época. De fato, era passado o tempo em que o Sacro Império havia sido o grande defensor da Igreja. Aqui não iremos recordar esses fatos históricos, nem que a ambição das grandes dinastias católicas sempre impediu a aliança entre a Áustria e a França, que teria assegurado a paz na Europa. Mas é interessante lembrar os méritos e a devoção da grande nação que foi o baluarte da cristandade contra o avanço otomano, para, neste século, depois de inúmeros erros políticos, encontrar-se ocupada e reduzida à humilhação.
Os governantes austríacos, não menos que os franceses, deram testemunho público de sua fé católica e devoção mariana. O resultado pode ser constatado no quanto a Áustria ficou preservada do protestantismo. Em 18 de maio de 1647 o imperador Ferdinando III consagrava o país à Virgem Imaculada, e para recordar o evento fazia erigir em Viena uma grandiosa coluna com a estátua de Maria Santíssima.
Essa grande devoção mariana e católica resistiu às guerras, ao anti-clericalismo do imperador José II e também ao nazismo. Depois da segunda grande guerra ainda eram multidões de muitos milhares de austríacos a peregrinar ao santuário nacional de Mariazell, para implorar graças ou agradecer a Gnadenmutter.
Falaremos de fatos que parecem confirmar essa maternal ajuda, apesar dos enormes reveses por que passou esse povo. De fato, depois da primeira grande guerra o Império Austro-húngaro foi desmembrado e a Áustria ficou reduzida a um pequeno país. Em 1932 seu chanceler era o católico Dollfuss, partidário de um estado austríaco corporativo de matriz cristã e com estreitos vínculos com a Santa Sé. Nesse sentido esse governo assinou então uma concordata considerada uma das mais completas para um país católico.
Havia, porém, em 1933 uma grande pressão política e uma considerável tentação popular, alimentada pela Alemanha nazista, a fim de que a Áustria se tornasse parte do grande Reich idealizado por Hitler.
Assim, já em 1933, Dollfuss, contrário a isto, sofreu o primeiro atentado. Não sobreviveu, porém, muito tempo porque em julho de 1934 um grupo de nazistas uniformizados como tropa austríaca invadiu a chancelaria, assassinando o estadista que opunha tenaz resistência à idéia de incorporação da Áustria ao Reich, o Anschluss.
Abriam-se assim os caminhos para essa operação, que aconteceu depois da sua aprovação por um referendo popular em 1938. Isso foi considerado por Pio XI o verdadeiro início de uma guerra que começaria no ano seguinte, já no pontificado de Pio XII. Aqui é interessante lembrar que a mensagem de Fátima dá razão a Pio XI.
Para os austríacos começavam as ilusões pangermanistas que seriam brutalmente interrompidas cinco anos após. No dia 13 de abril de 1945 as tropas soviéticas capturavam Viena que, como Berlim, seria dividida em quatro zonas de ocupação. Igual destino tocou ao país, do qual grande parte ficava sob o regime soviético. Ora, este, diversamente dos outros ocupantes — americanos, ingleses e franceses — não mostrava intenções de querer pôr fim àquela divisão forçada e provisória do pós-guerra nem de liberar a Áustria das despesas dessa ocupação, que escravizava sua economia (os americanos o fizeram em 1947, os soviéticos só em 1953).
Em 1954 era discutido na Conferência de Berlim o futuro político da Alemanha e da Áustria, sobre as quais a URSS não fazia segredo de querer manter uma nítida sujeição estratégica. Em vão o governo austríaco renegava sua posição durante a guerra e declarava sua neutralidade. Os aliados o aceitaram, mas os soviéticos não cediam.
Foi nessa época que se formou na Áustria uma Cruzada do Rosário promovida pelo padre Pedro Pavliceck, que abriu listas de adesão através das quais os fiéis se comprometiam a cumprir as devoções de Fátima e rezar diariamente o Terço. As listas recolheram mais de um milhão de adesões, cerca de dez por cento de toda a população.
Nessa mesma época, por razões desconhecidas e para surpresa geral, dada a falta de precedentes, os soviéticos abruptamente recuavam de sua intransigência e decidiam a retirada das tropas depois de impor ainda uma vultosa indenização de guerra que, segundo eles, dez anos de ocupação não haviam pago. O tratado de paz foi assinado em 15 de maio de 1955, semana em que se comemorava Nossa Senhora de Fátima. Esta primeira evacuação pacífica dos soviéticos fazia um ministro do Gabinete dizer: “Nossa libertação é inexplicável, salvo pela intercessão direta da Virgem de Fátima” (Chanceler Raab).


O DISCURSO CRISTÃO SOBRE A HISTÓRIA, DE BOSSUET
O bispo Bossuet, nomeado por Luís XIV preceptor do delfim de França, o monsenhor de seus discursos, prestou a esse rei o juramento de educar o real menino no amor e temor de Deus. Com este espírito, pois, lhe ensinará a história universal, através desses discursos, que constituem uma referência clássica para o entendimento do sentido cristão da História. Aqui faremos um resumo da conclusão desse trabalho, contida no último capítulo.
“Lembre-se, porém, monsenhor, que este longo encadeamento de causas particulares, que fazem e desfazem os impérios, depende das ordens secretas da divina Providência. Deus detém, desde o mais alto dos Céus, as rédeas de todos os reinos; tem todos os corações em Sua mão. Por vezes retém as paixões, a outras abranda o freio, e desse modo move o gênero humano. Se quer fazer conquistadores, faz com que o temor saia da frente destes, inspirando-lhes, e a seus soldados, uma coragem invencível. Se quer fazer legisladores, envia-lhes Seu espírito de sabedoria e de previsão; faz com que previnam os males que ameaçam os Estados, e estabeleçam os fundamentos da tranqüilidade pública.
“Ele conhece a sabedoria humana, sempre escassa em algum aspecto; esclarece-a, estende-lhe a visão e depois a abandona às suas ignorâncias: Ele a cega e a precipita; a confunde por si só, então ela se enreda, confunde-se em suas próprias sutilezas e as suas precauções ser-lhe-ão uma cilada. Deus exerce deste modo Seus temíveis julgamentos, segundo as leis de sua justiça, sempre infalíveis.
“É Ele que prepara os efeitos nas causas mais remotas e desfere os grandes golpes, cujos contragolpes têm grande alcance. Quando quer assinalar o fim e derrubar os impérios, tudo será precário e irregular nas resoluções. O Egito, tão sábio no passado, marcha embriagado, atordoado e cambaleando porque o Senhor derramou o espírito de vertigem em seus projetos, ele não sabe mais o que faz, está perdido.
“Que os homens não se enganem, porém; Deus endireita quando quer o sentido perdido e quem insultava os outros pela sua cegueira, cai por sua vez nas trevas mais espessas, sem que seja preciso mais, para perturbar-lhe a mente, que sua longa prosperidade.
“É assim que Deus reina sobre todos os povos. Não falemos mais de acaso ou de sorte, ou falemos disso só para usar um nome com que encobrir nossa ignorância. O que é 'acaso', em relação a nossos pareceres incertos, é um desígnio preparado por um parecer superior, isto é, o desígnio eterno que encerra todas as causas e todos os efeitos em uma mesma ordem. Desse modo tudo concorre para o mesmo fim, e é pela incapacidade de entender o todo que nós encontramos, o acaso e a falta de regularidade nas particulares ocorrências.
“Daí verifica-se o que diz o Apóstolo (I Tm., VI, 15), que Deus é bem-aventurado e o único poderoso, o Rei dos reis e o Senhor dos senhores. Bem-aventurado, cujo repouso é inalterável, que vê mudar tudo, sem mudar, e que opera todas essas mudanças com o pensamento imutável; que dá e que tira o poder; que o transfere de um homem a outro, de uma casa a outra, de um povo a outro, para demonstrar que ninguém o detém senão por empréstimo e que Ele é o único em Quem esse poder reside naturalmente.
“Eis porque todos os que governam sentem-se sujeitos a uma força superior. Eles fazem mais ou menos o que pensam e seus pareceres não deixaram nunca de ter efeitos imprevistos. Nem eles são senhores de disposições que os séculos passados puseram nas questões, nem eles podem prever o curso que tomará o futuro, por mais que o queiram forçar. Somente Ele tem tudo em Sua mão, e sabe o nome do que é e do que não é ainda, e preside a todos os tempos e prevê todos os pensamentos.
“Alexandre não pensava que trabalhava para os seus capitães, nem que arruinaria sua casa pelas suas conquistas. Quando Brutus inspirou ao povo romano um imenso amor à liberdade, não imaginava estar lançando nos espíritos o princípio dessa licenciosidade sem freios pela qual a tirania que pretendia destruir seria restabelecida mais dura ainda que sob os Tarquínios. Quando os Césares elogiavam os soldados, não tinham a intenção de dar patrões a seus sucessores e ao império. Em uma palavra, não há poder humano que não sirva, a despeito dele mesmo, a outros desígnios que não são os seus. Somente Deus sabe submeter tudo à Sua vontade. Eis porque tudo é surpreendente, quando não se vêem senão as causas particulares, e todavia, tudo avança em uma seqüência ordenada. Estes 'Discursos' o fizeram entender. E, para não falar mais de outros impérios, considere-se por quantos pensamentos imprevistos, mas mesmo assim seguidos por eles mesmos, a sorte de Roma foi conduzida desde Rômulo até Carlos Magno.
“Talvez vos parecerá, monsenhor, que teria sido preciso falar algo mais de vossos franceses e de Carlos Magno que fundou o novo império. Mas, além de sua história fazer parte daquela da França escrita por vós mesmo e que vós já adiantastes bastante, reservo-me para fazer-vos um segundo Discurso, quando terei uma razão necessária de falar-vos da França e deste grande conquistador, que sendo igual em valor aos mais renomados da antigüidade, superou-os em piedade, em sabedoria e em justiça. (...) Enquanto vereis os impérios caírem quase todos por si, vereis a religião sustentar-se pela própria força, e então conhecereis facilmente qual é a consistente grandeur, onde um homem sensato põe sua esperança.”


PROJETO PARA UM MUNDO MELHOR
Pela carta apostólica sacro vergente anno, de 7 de julho de 1952, Pio XII faz saber: “como anos atrás consagramos todo o mundo ao Imaculado Coração de Maria Mãe de Deus, assim agora, de modo especialíssimo, consagramos todos os povos da Rússia ao mesmo Coração Imaculado... para com o Seu patrocínio obter a paz e que a verdade cristã, dignidade e suporte da convivência humana, cresça e se fortaleça entre os povos da Rússia. Que todos os enganos dos inimigos da religião, todos os seus erros e tramas falazes, sejam repelidos para longe de vós.” (MM, p. 472)
Neste ato, havia claramente a intenção de completar a consagração feita em 1942, atendendo ao pedido de Fátima que pedia a menção explícita à Rússia. Mas, como se pode verificar (p. 18,19), nessa consagração faltava ainda a participação colegial de todos os bispos do mundo (carta a Pio XII, DOC 437). Por isto continuava a ser incompleta. Poderia o papa ignorá-lo?
Não nos é dado saber a razão que havia impedido Pio XII, chamado o papa de Fátima, de atender inteiramente ao pedido. Pode-se supor que teria sido informado por seus auxiliares imediatos de que encontraria uma resistência por parte de alguns bispos, ainda maior do que na ocasião em que promulgou o dogma da Assunção de Nossa Senhora.
Embora sejam questões diferentes, ninguém melhor que Pio XII, beneficiado, como disse, pelas visões do “milagre do sol”, ocorrido em 13 de outubro de 1917 em Fátima, mas visto por ele nos jardins vaticanos nos dias em que promulgava o grande dogma mariano, podia ver como eram intimamente correlatos o dogma e a consagração que dão glória à Mãe de Deus. Todavia, não consta que Pio XII tenha pedido, e menos ainda convocado, os bispos do mundo para participar na consagração que fez da Rússia ao Imaculado Coração, não atendendo, assim, plenamente ao pedido transmitido por irmã Lúcia, que encerrava a promessa de paz e salvação de muitas almas, pela conversão da Rússia por intervenção de Nossa Senhora.
Ora, naquele mesmo período havia um projeto acalentado pelos homens da Igreja, que tinha alguma conexão com Fátima. Chamou-se  “Movimento para um Mundo Melhor”. Foi fundado pelo conhecido jesuíta padre Ricardo Lombardi e teve entusiástico apoio de Pio XII. Para descrevê-lo faremos um breve apanhado do livro Pio XII per un mondo migliore, de autoria do padre Lombardi, publicado em 1954 por La Civiltà Cattolica, dos jesuítas, em Roma (abr. MM).
Saberemos que a idéia veio de uma exortação papal onde eram usadas as palavras “para um mundo melhor” no dia 10 de fevereiro de 1952, sendo o livro e o movimento baseados numa série de discursos desse papa que seguem a linha do título.
Logo na primeira página há uma carta da Secretaria de Estado de Sua Santidade, de 18 de maio de 1953, pela qual é dado o apoio e é expresso o reconhecimento do papa pelo trabalho e ampliação desse movimento pelo mundo melhor. A carta é assinada G. B. Montini, isto é, Giovanni Battista Montini, que será o futuro papa Paulo VI.
Seguem descrição e diretrizes do movimento, baseados numa nova ordem cristã para um mundo presente que caminha para a ruína e necessita de um vigoroso despertar para renovar-se desde sua base. Mas ali é dito que o papa havia assumido essa tarefa diante do futuro como seu primeiro construtor (op cit., p. 25). Eis porque tudo é planejado com certeza do êxito para “a grande hora que virá”.
Nessa perspectiva, a alocução iniciadora do dia 10 de fevereiro — e a resposta obtida dos católicos — teria caráter histórico.
Fala-se de uma nova contra-reforma católica, de uma contra-ofensiva de Deus diante da apostasia moderna, a que se segue o dever de renovação da Igreja pela Ação Católica etc. Para isto é feito um apelo a todas as dioceses do mundo católico.
Por ocasião de uma importante palestra radiofônica de Pio XII, dia 13 de outubro de 1952, em que é lembrado que o verdadeiro inimigo é o espírito de rebelião contra Deus e contra Jesus, que seria a revolução de sempre, padre Lombardi associa o apelo ao mundo melhor a Fátima e lembra a consagração da Rússia ao Imaculado Coração feito em julho. Não faz nenhuma menção, porém, ao fato de que esse ato ficou incompleto pela falta de participação dos bispos do mundo católico. Ora, para o seu movimento fez-se o apelo a todas as dioceses, não, porém, para o pedido-oferta de Nossa Senhora de Fátima, privilegiando assim o projeto humano sobre a indicação divina.
Nisto se nota uma falta de sintonia do movimento com os eventos de Fátima, o que é também confirmado pelas idéias ventiladas. Por exemplo, lê-se na página 66: “A assombrosa civilização moderna, dona de forças gigantescas, está contudo agonizante porque privada de alma. Que receba o espírito do Evangelho e domine os séculos com uma nova e admirável harmonia: Terra e céu, cantem então pelos milênios a glória de Jesus.” Há nisto um otimismo com relação ao progresso tecnológico que não sobreviveu nem vinte anos. A mensagem mariana, ao contrário, faz previsões sombrias até a conversão russa.
No fim é dito somente: “será concedido ao mundo algum tempo de paz.” (p. 14)
O “Movimento pelo Mundo Melhor” parece antecipar o Concílio Vaticano II dizendo que seus cursos em algumas dioceses italianas pareciam um novo Pentecostes. É citado, então, um telegrama encorajador da parte do papa em 8 de agosto de 1953: “Sua Santidade vivamente comprazido fraterno convênio sacerdotal de Fognano promovido para estudos urgente atuação Mundo Melhor, invoca abundante efusão e lumes divinos de ajuda e conforto enquanto envia de coração aos numerosos participantes implorada benção. (Assinado) Montini.” (p. 84)
É curioso o contraste que transparece continuamente no “Movimento” entre um otimismo organizador que prepara “para a grande hora” e as palavras que repete de Pio XII descrevendo o mundo à beira do abismo. É como se fosse guiado por dois espíritos: o papa e sua visão do mundo em perigo, de um lado, o padre Lombardi e uma euforia conciliar, montiniana, pelos progressos do mundo, de outro. Isto ficará mais patente num programa de 140 pontos escolhidos como sendo a “Doutrina Pontifícia para um Mundo Melhor” (p. 101-105).
Fala-se nele de uma nova ordem nacional e internacional cujos princípios estão na liberdade e segurança, no respeito pelas minorias, na repartição das matérias-primas, na redução dos armamentos e acordos internacionais, na liberdade de ação da Igreja e na dignidade e direitos da pessoa humana. Muitas idéias louváveis, outras utópicas, cujo âmbito não é propriamente religioso, mas teriam grande impulso, depois de Pio XII, num Concílio da Igreja. Aqui já aparecem, porém, como parte de uma cruzada do papa, junto com a reorganização do mundo por uma sã democracia em que a Igreja seria tutora da liberdade e dignidade humanas no plano nacional, cabendo a um órgão comum a tutela da paz internacional.
No programa de 140 pontos, termina-se por reivindicar o universo para todos os homens, depois de dizer: “A Igreja crê na paz e não se cansará de promovê-la. Considera, porém, que há potências ocultas que sempre agiram na História e portanto desconfia de propaganda pacifista.” Mais adiante, o Capítulo XI é intitulado “O que a Igreja pode fazer para a restauração do mundo”. Naturalmente, as palavras de Pio XII são de jaez diverso do desse programa. É assim que o Capítulo XII tem por título “Necessidade de almas orantes para a esperada renovação” e, o Capítulo XIV, “Penitência do pecado, primeiro passo para um Mundo renovado”. Nele Pio XII havia falado do “miserável espetáculo de um mundo em demolição pela ruína operada nas fundamentais estruturas da vida moral”, atribuindo a culpa ao falso humanismo e repetindo que o primeiro passo é a penitência (p. 210). Nas palavras papais ainda ecoava o alerta de Fátima.
Pio XII advertia: “devem ser chamados a um mais reto sentimento quantos presumam poder salvar o mundo com o que foi justamente definida 'a heresia de ação', da ação que não se apóia na ajuda da graça e não se serve constantemente dos meios necessários para obter a santidade, dados por Jesus Cristo. Do mesmo modo, consideramos oportuno estimular as obras do Ministério sagrado, os que alheios demais à atividade exterior e quase descrendo na eficácia da ajuda divina, não se dedicaram bastante, segundo suas possibilidades, a fazer penetrar a força do espírito cristão na vida diária, com todas as formas de atividade pedidas pelos nossos tempos.” (Alocução de 12 de setembro de 1947, p. 267, op. cit.)
Mas, qual seria então o ponto de equilíbrio na ação cristã?
Pio XII em 14 de setembro de 1952 dava ao Katholikentag austríaco a seguinte mensagem: “Se os sinais dos tempos não enganam, a segunda etapa das lutas sociais, na qual, pode-se pensar, já entramos, colocam agora outras questões e outras tarefas como supremas (...) A defesa do indivíduo e da família, a fim de impedir que se deixem arrastar para o abismo que procura engoli-los pela socialização universal: uma socialização ao cabo da qual se tornaria horrível realidade a espantosa imagem do Leviatã. A Igreja combaterá esta batalha com grande energia, porque estão em jogo os valores supremos da dignidade do homem e da salvação de sua alma.”
Posteriormente, a 8 de dezembro de 1953, em rádio-mensagem dirigida à Ação Católica italiana o papa diz: “Mas os perigos que pesam sobre o gênero humano são tais que Nós não devemos cessar nunca de lançar nosso grito de alerta. O inimigo está às portas da Igreja e ameaça as almas. E eis outro aspecto atualíssimo de Maria Santíssima, a Sua força nesse combate.” (I.P., v. 7, p. 403)
Estas palavras de Pio XII, que aliás se repetiam em muitos outros discursos, ensinavam a evitar a “heresia de ação”, que não se apóia na ajuda da graça, mas confiar na eficácia desta para enfrentar o Leviatã revolucionário presente, luta esta para a qual há que recorrer à força de Maria Santíssima. Ora, não foi justamente isto o indicado e oferecido em Fátima para enfrentar os “erros espalhados pela Rússia?”
E, no entanto, não se confiou plenamente na força dessa graça trazida por Nossa Senhora para a Igreja. Aqui foi visto como eram acalentadas soluções humanas que propunham uma evolução religiosa programada para um mundo melhor. Para estas, apelavam-se a todas as dioceses do mundo católico. Para a consagração pedida por Maria Santíssima, não. A Fátima recorreu-se por outro motivos. De fato, padre Lombardi, depois de muito insistir, conseguiu falar com irmã Lúcia no Convento de Coimbra em 7 de fevereiro de 1954. Perguntava então à irmã Lúcia, que estava doente e febril: — Diga-me se o Movimento para um Mundo Melhor [que ela conhecia], é a resposta da Igreja às palavras que Nossa Senhora lhe dirigiu.
— Padre — respondeu —, há certamente necessidade de uma renovação grande. Sem ela, e considerando o presente estado da humanidade, somente uma limitada parte do gênero humano se salvará.
— Crê realmente que muitos vão para o inferno? Eu, pessoalmente, espero que Deus salvará grande número de almas e escrevi a propósito o livro A salvação dos que não têm fé.
— Não Padre, muitos se perderão.
— É certo que o mundo é um abismo de vícios... E no entanto há sempre esperança de salvação.
— Não Padre, muitos, muitos se perderão. (S. F. Alonso, p. 106) Também a pequena Jacinta, que havia visto o inferno, falara em continuação dos muitos que se perdem, de quantos as guerras levam ao inferno. Dizia sempre que era preciso rezar muito para salvar almas. Ora, se essas visões pertencem ao Terceiro Segredo não se sabe, mas padre Lombardi voltou a Roma tão consternado que muitos ficaram alarmados, pensando que conhecera os castigos que nele foram preanunciados. Nem por isto, porém, considerou-se que a resposta da Igreja às palavras de Nossa Senhora de Fátima consistia em atender o pedido feito para o bem dos homens. Nele havia todo um programa de restauração católica, ditado pela graça, que justificaria qualquer movimento mundial ou concílio ecumênico. Qual melhor ajuda?


“UM ACORDO ENTRE MONTINI E STALIN”
Com o título acima o quinzenário romano Si si no no, n.º 11, ano X, de 15/9/1984 levanta novamente essa tenebrosa questão. Isso aconteceu porque monsenhor Roche, autor do livro Pie XII devant l’histoire e íntimo colaborador do importante cardeal Tisserant, vendo que este é atacado pela importante parte que teve no Acordo Roma-Moscou, que será descrito quando se falar do Concílio Vaticano II, manda uma carta ao diretor da revista francesa Itineraires para, mais que desculpar, confirmar um acordo e lembrar outro pior. Eis a parte da carta que interessa ao assunto tratado:
“... Comentando, não sem razão, o acordo (Roma-Moscou) que data, na vossa opinião, de 1962, demonstrais ignorar um acordo precedente que se situa durante a última guerra mundial, em 1942 para ser exato, e do qual foram protagonistas monsenhor Montini (futuro papa Paulo VI) e o próprio Stalin. Este acordo de 1942 parece-me de considerável importância. (Quem fala conhece bem o assunto.)
“Quero, porém, no momento seguir-vos somente no comentário feito ao acordo de 1962. Todos sabem (?) que esse acordo foi negociado entre o Kremlin e o Vaticano no mais alto nível. Monsenhor Nikodim e o cardeal Tisserant não foram mais que porta-vozes, um do chefe do Kremlin e o outro do Sumo Pontífice, então gloriosamente reinante. (...) Eu posso assegurar-vos, sr. diretor, que a decisão de enviar observadores russos ortodoxos ao Concílio Vaticano II foi tomada pessoalmente por S.S. João XXIII, com o aberto encorajamento do cardeal Montini, que foi o conselheiro do patriarca de Veneza (posição anterior do Papa Roncalli), no tempo em que era arcebispo de Milão. Não só, mas era o cardeal Montini que dirigia secretamente a política da Secretaria de Estado durante a 1.ª Sessão do Concílio, instalado no lugar clandestino que o papa lhe reservara na famosa Torre de São João na mesma muralha da Cidade do Vaticano.
“Quanto ao cardeal Tisserant, ele recebeu ordens formais tanto para negociar o acordo como para vigiar sua exata execução durante o Concílio. Portanto, toda vez que um bispo queria enfrentar a questão do comunismo o cardeal da sua mesa no conselho de presidência intervinha para lembrar (ou melhor, impor) o compromisso de silêncio desejado pelo papa (ou pela eminência parda que era Montini). (...) O cardeal Tisserant recebeu instruções firmes e irrevogáveis do próprio papa e, sendo homem de fé, acreditava e obedecia à autoridade, mesmo se estava convencido de erro político.”
A revista segue comentando que não só monsenhor Roche; mas outros bons conhecedores da “ação de monsenhor Montini como substituto na Secretaria de Estado de Pio XII, sabem ter ele manobrado à esquerda, de acordo com as simpatias que alimentou desde a juventude (cf. Fappani-Molinari, Montini Giovane, ed. Marietti), mas no desconhecimento e em nítido contraste com o pensamento e instruções de Pio XII, o papa que deveria ter representado mas que, evidentemente, julgava desprovido de sua iluminada visão da política e da História. Nesse sentido Montini estabeleceu às escondidas de Pio XII contactos com os soviéticos durante a última guerra, como lembrou monsenhor Roche; desses o papa foi informado pelo arcebispo protestante de Upsala, o qual, tendo posição oficial na Suécia, dispunha de provas diretas do serviço secreto sueco, sem dúvida um dos melhores informados das manobras dos países do leste europeu (cf. Courrier de Rome, junho/75, n.º 145). Além disso, em outubro de 1954 Pio XII teve conhecimento de um documento secreto do arcebispo de Riga, prisioneiro dos soviéticos, que dizia terem sido feitos em nome do papa contactos com os perseguidores, da parte de uma alta autoridade da Secretaria de Estado. Quem, senão Montini? “Por essa traição”, escreverá monsenhor Roche, “a amargura de Pio XII foi tão grande que sua saúde baqueou e ele resignou-se a dirigir sozinho o andamento dos negócios exteriores do Vaticano.” (monsenhor Roche, op. cit.) Mas havia coisas piores.
A publicação francesa La Contre-réforme Catholique, n.º 97,15, relata a seguinte informação: “A investigação revelou que no grupo de monsenhor Montini havia um traidor. Era o jesuíta Tondi, que durante uma dramática acareação com o cardeal N., reconheceu ter dado aos soviéticos os nomes dos sacerdotes enviados clandestinamente à Rússia e que em seguida foram todos presos e eliminados. É sabido que Tondi, casado (no civil e, depois, por insistência superior, também no religioso), com uma ativista comunista, depois de várias aventuras e a morte da mulher, voltou à Roma em 1965, encontrando 'trabalho' graças aos favores de quem era então papa Paulo VI. Mas daquela atividade passada de Montini, Pio XII teve conhecimento de que este seu substituto lhe havia escondido todas as mensagens relativas ao cisma dos bispos chineses.” Eis o curriculum de um futuro pontífice que, embora claramente desobediente e infiel ao papa que nele confiara, iria, como veremos, impor rigorosa obediência às transformações e aggiornamenti pelos quais decidira fazer passar a Santa Igreja. Aqui não trataremos da reforma litúrgica com a qual Paulo VI foi bem além do que os padres votaram no Concílio, mas da relação que esse Concílio teve com a mensagem de Fátima, o que é de extrema importância. Há ainda um segredo escondido sobre essa relação.
Do segredo trataremos adiante. Aqui é importante registrar que “os erros esparsos pela Rússia”, que a mensagem indicou e Pio XII tentou combater, infiltravam-se na própria Igreja.
No ano de 1942, em 31 de outubro, o papa, com a intenção de cumprir o pedido da mensagem de Fátima, consagrava o mundo ao Coração Imaculado de Maria com a rádio-mensagem “Benedicte Deum coeli”: “Rainha da Paz, reza por nós e daí ao mundo em guerra a paz a que os povos aspiram” A PAZ NA VERDADE, NA JUSTIÇA E NA CARIDADE DE CRISTO. Daí a paz das almas e a paz das armas, a fim de que na tranqüilidade da ordem se expanda o Reino de Deus.”
No mesmo ano 1942, porém, em lugar e data ainda desconhecidos, uma iniciativa de monsenhor Montini, futuro Paulo VI, junto ao sanguinário ateu Stalin, delineava o início de relações ocultas entre personagens da hierarquia eclesiástica e chefes do aparato comunista soviético, declarados inimigos da verdade, da justiça e da caridade de Cristo. Era concebida, assim, veladamente dentro da Igreja a fé no diálogo político com os senhores do mundo que ameaçam com revoluções e terrores que declaravam irreversíveis. Era o perigo do gulag comunista, que incutia mais temor que o inferno.
Mas essas relações veladas com o regime que a Igreja declara “intrinsecamente perverso” implicava compromissos inconfessáveis para autoridades dessa mesma Igreja. Para conviver com o mal, deveriam evitar condená-lo, deveriam reprimir quem quisesse condená-lo, e deveriam encontrar uma doutrina para justificar tudo isso. É claro que a mensagem de Fátima, que falava em erros e conversão da Rússia, deveria ser redimensionada, senão banida. Mas, dada a dificuldade de fazê-lo totalmente, já bastaria censurar as palavras “comunismo” e “Rússia”. E a tanto se chegou, como veremos.
O papa Pio XII demonstrou-se sempre contrário a compromissos com governos comunistas e sabe-se que reprovou até o limitado modus vivendi iniciado pelo arcebispo Wyszynski na Polônia. De fato, de que outro poder dispõe um prelado católico senão o da representação de princípios e verdades imutáveis? São estes tratáveis? Pio XII, na mesma linha de São Pio X, conhecia a caridade da intransigência nas coisas de Deus, temperada pela esperança na Providência. Por isto consagrou o mundo e a Rússia ao Imaculado Coração e com alegria aceitou ser chamado o papa de Fátima
O pontificado do papa Pacelli salientou-se pela voz de um grande doutor da Igreja, trabalhador incansável que não descuidou de nenhum assunto debatido pelos homens nesses anos conturbados. Mas um doutor ensina, e é tudo. O papa é também chefe, e quem comanda tem o dever de fazer-se obedecer. Essa missão é por vezes dura, desagradável, mas necessária na Igreja e na sociedade para o bem das almas. Também nisto o pedido celeste de Fátima para abreviar os males do mundo era categórico: “Se Vossa Santidade se dignar fazer [a consagraçãol (...) e ordenar que em união com Vossa Santidade e ao mesmo tempo a faça também todos os bispos do mundo, abreviar (...)” (Carta em DOC. p. 437).
À imagem deste comando que faltou, muitas insídias puderam ser armadas na Igreja. Entre estas, a controvérsia doutrinal ligada à salvação e, portanto, ao dogma da fé lembrado na mensagem de Fátima. Trata-se do “caso” do brilhante jesuíta americano Leornard Feeney, que, pregando a absoluta necessidade do batismo da Igreja, fora da qual não há salvação, converteu grande número de universitários de Cambridge e redondezas, mas suscitou a reprovação do arcebispo de Boston, movido pelas objeções da maçonaria local. O sacerdote apelou a Roma, que respondeu com uma carta, ao arcebispo Cushing em agosto de 1949, na qual confirmava o dogma que fora da Igreja não há salvação, relativizando-o, porém, pelos conceitos de batismo de desejo e fé implícita e condenando o padre Feeney. Ora, esse documento vaticano, que não foi oficialmente promulgado entre os atos da Sé apostólica (A.A.S.), passou a favorecer uma nova tendência pastoral que, diante da possibilidade de “conversões implícitas”, atenuou o esforço missionário. A insondável e extrema clemência salvadora de Deus passaria a justificar o recuo do proselitismo católico enleado mais em interpretações que em conversões.
As forças contrárias à Igreja são grandes e os problemas doutrinais complexos, mas simples era o pedido da Mãe de Deus ao papa: a consagração colegial da Rússia que também o papa de Fátima não soube cumprir. Temia talvez a oposição de alguns bispos modernistas ou a desaprovação de carreiristas que o circundavam? O resultado foi que, já antes de sua morte, em outubro de 1958, a Igreja estava aberta aos inimigos da verdade, da ortodoxia católica que doutamente ensinara e de Fátima, cuja mensagem salvadora não soubera devidamente acolher.
Ora, essas confabulações e tratativas humanas eram as primícias dos compromissos contrários à Providência, que desprezavam a fé na mediação de Maria junto ao único Senhor do Céu e da Terra. E isso, vinte anos após, teria levado ao advento de um concílio ecumênico que silenciaria sobre a terrível ameaça comunista e sobre a esperança de Fátima, extenuando parte do magistério e do testemunho que a Igreja edificou em vinte séculos contra as forças das trevas.
Nestes anos, homens da hierarquia sentiam-se capazes de dialogar com estas, para estabelecer uma convivência pacífica de que os “retrógrados” antepassados não haviam sido capazes. A Igreja devia desculpar-se (!). É a “humildade na soberba dos novos prelados!”
Passaram então a comandar na Igreja homens que tanto estavam próximos à Cátedra papal quanto distantes do pensamento de Pio XII. Entre eles: seu confessor, cardeal Bea, jesuíta alemão e renomado biblicista, que foi o grande líder progressista do Vaticano II; o arcebispo de Milão, Montini, que pelos seus abusos e traições na Secretaria de Estado fora “removido” para aquela posição, mesmo sem ser feito cardeal; o cardeal Roncalli, patriarca de Veneza, futuro papa João XXIII, cujo primeiro ato foi fazer Montini cardeal e supremo consultor de um concílio que inaugurariam divergindo dos profetas da desdita e abrindo a Igreja a um decantado mundo moderno.
Havia nesse novo curso um afastamento da visão do mundo de Pio XII, dos temores que acometeram padre Lombardi e seu mundo melhor, e da própria mensagem de Fátima que advertiu sobre os perigos deste mundo e do inferno. Pelos novos programas ficou acertado serem os novos chefes contrários à profecia de Fátima. Concebiam perigos e soluções diversas.
Pio XII, em agosto de 1958, e eram seus últimos dias, perguntava a um grupo de peregrinos americanos conduzidos pelo padre Leo Goode: “Acreditais em Fátima?” À resposta positiva dos fiéis o papa continuou: “Se quisermos paz, devemos todos obedecer aos pedidos feitos em Fátima. O tempo de duvidar de Fátima já passou. Agora é o tempo de agir.” (FGS, p. 73) Mas a ocasião propícia passara e ele se esquecera de que o timão da barca de São Pedro estava em suas mãos e competia-lhe comandar. Se suas palavras foram firmes e seus documentos quase sempre luminosos, seus atos foram por vezes tíbios. Temendo punir e remover, como compete a um verdadeiro chefe da Igreja de Deus, promoveu e transferiu diplomaticamente homens que seriam os bispos, cardeais e papas da autodemolição da Igreja. Seriam os fatos a fazer esse julgamento neste mundo, que apesar dos “projetos” só piorou.
Na Arquidiocese de Milão, de onde o santo cardeal Schuster, de acordo com Pio XII, já em 1941 fazia divulgar a devoção de Fátima, ficava o arcebispo João Batista Montini, que usaria essa devoção e tudo mais na Igreja para mandar avante seu grande projeto de fraternização e paz, pelo culto do homem.


A TRISTEZA DE NOSSA SENHORA
No dia 19 de setembro de 1846, na montanha de La Salette, França, dois pastorzinhos, Melania e Maximino, viram uma linda senhora sentada sobre a pedra onde haviam construído um pequeno “paraíso” de flores. Chorava com a testa entre as mãos. Foi então que chamou os meninos para transmitir-lhes uma grande mensagem. Podia esta não ser muito triste se fazia a Mãe chorar pelos filhos?
Esta infinita tristeza de Maria Santíssima será vista e suas lágrimas recolhidas em tantos diversos lugares do mundo, nesta nossa época. Já não é esta uma mensagem, um aviso de valor inestimável? A mensagem que segue esses milagres pode deixar de ser igualmente triste?
Ora, isto é dito aqui porque há dois tipos de considerações feitas sobre as aparições que só podem confundir as idéias dos católicos. A primeira, ao dizer que nelas tudo é vago e, portanto, interpretável. A segunda, a de que só a autoridade da Igreja pode entendê-las. No primeiro caso confunde-se vago com velado. Também as Escrituras são veladas, mas nada têm de vago. Cada palavra, vinda de Deus, tem valor inestimável e um sentido único, embora imenso. No segundo caso, confunde-se o que só a autoridade pode esclarecer e confirmar, com o que dispensa explicações humanas.
A tristeza de Nossa Senhora é uma mensagem que dispensa palavras. Indica que muitos de seus filhos estão na via da perdição. As palavras podem servir para ajudá-los e guiá-los, mas se não forem ouvidas, se ninguém souber ou quiser chamá-los de volta, se na Igreja prevalecer o silêncio e a omissão sobre os perigos iminentes para tantos, a tristeza da Santa Mãe deveria bastar para adverti-lo.
Essa tristeza e esse menosprezo têm sido a constante de nosso tempo e para demonstrá-lo será relatado aqui o caso do padre mexicano Agostinho Fuentes, escolhido como vice-postulante da causa de beatificação dos pastorzinhos Francisco e Jacinta e que para isto interrogou irmã Lúcia no Convento de clausura em Coimbra, onde vive desde que se tornou carmelita descalça.
O encontro foi em 16 de dezembro de 1957. Voltando ao México, fez uma conferência em 22 de maio de 1958, onde relatou a entrevista com a vidente de Fátima que foi publicada.
O sacerdote relata que irmã Lúcia recebeu-o cheia de tristeza, magra e muito aflita, comunicando-lhe suas meditadas preocupações:
“Padre, a Senhora está muito triste porque não se deu atenção à sua mensagem de 1917. Nem os bons nem os ruins tomaram conhecimento. Os bons seguem o seu caminho sem preocupar-se com atender às indicações celestes; os ruins, marcham na estrada larga da perdição sem tomar nenhum conhecimento das ameaças de castigo. Creia, padre, o Senhor Deus muito em breve castigará o mundo. O castigo será material e o padre pode imaginar quantas almas cairão no inferno se não se rezar e fizer penitência. Esta é a causa da tristeza de Nossa Senhora.
“Padre, diga a todos o que a Senhora tantas vezes me disse: 'Muitas nações desaparecerão da face da Terra. Nações sem Deus serão o flagelo escolhido por Deus para castigar a humanidade se vós, por meio da oração e dos santos Sacramentos, não obtiverdes a graça da conversão dessas nações.'
“Diga, padre, que o demônio está travando a batalha decisiva contra a Senhora, e o que aflige o Coração Imaculado de Maria e de Jesus é a queda das almas religiosas e sacerdotais. O demônio sabe que religiosas e sacerdotes, descuidando de sua excelsa vocação, arrastam muitas almas para o inferno. Estamos ainda em tempo de evitar o castigo do Céu. Temos à nossa disposição meios muito eficazes: a oração e o sacrifício. Mas o demônio faz de tudo para distrair-nos e tirar-nos o gosto pela oração. Ou nos salvaremos ou então nos danaremos juntos.
“Porém, padre, é preciso dizer às pessoas que não devem permanecer à espera de uma convocação à oração e penitência, nem de parte do papa, nem dos bispos, nem dos párocos, nem dos superiores gerais. Chegou o tempo de cada um, por sua própria iniciativa, realizar santas obras e reformar a sua vida segundo a convocação de Nossa Santíssima Mãe. O demônio quer se apossar das almas consagradas, trabalha para corrompê-las, para instigar muitos à impenitência final; serve-se de todas as astúcias, sugerindo até mesmo o aggiornamento da vida religiosa. Resulta disso a esterilização da vida interior, o esfriamento nos leigos do espírito de renúncia aos prazeres e a total imolação a Deus.
“Lembre-se, padre, de que foram dois fatos que concorreram para santificar Jacinta e Francisco: a grande tristeza da Senhora, e a visão do inferno. A Senhora encontra-se como que entre duas espadas: de um lado vê a humanidade obstinada e indiferente às ameaças de castigos; de outro, vê a profanação dos santos Sacramentos e o desprezo dos avisos de castigo que se aproximam, permanecendo incrédulos, sensuais, materialistas.
“A Senhora não disse claramente que nos aproximamos dos últimos dias. Mas me deu a entender, repetindo isso três vezes: na primeira, que o demônio está para iniciar a luta decisiva, isto é, final, da qual sairemos vitoriosos ou vencidos, ou estamos com Deus ou estamos com o demônio. Na segunda vez me repetiu que os últimos remédios dados ao mundo são o Santo Rosário e a devoção ao Imaculado Coração de Maria. E últimos significa que não haverá outros.
“Na terceira vez, disse-me que esgotados os outros recursos desprezados pelos homens, oferece-nos com temor a última âncora de salvação: a Santíssima Virgem em pessoa, com suas numerosas aparições, suas lágrimas, as mensagens dos videntes espalhadas por toda parte do mundo. E a Senhora disse ainda que se não a ouvirmos e continuarmos na ofensa, não seremos mais perdoados, será como recusar aberta e conscientemente a salvação que nos é oferecida, e isto no Evangelho é chamado o pecado contra o Espírito Santo. Padre, é urgente que tomemos consciência da terrível realidade. Não se quer encher as almas de medo, mas é uma convocação urgente à realidade, porque desde que a Virgem Santíssima deu grande eficácia ao Santo Rosário, não há problema material ou espiritual, nacional ou internacional, que não possa ser resolvido por ele e pelos nossos sacrifícios. Recitá-lo com amor e devoção, consolando Maria, enxugará tantas lágrimas de Maria Santíssima, de seu Imaculado Coração, nos salvaremos e obteremos a salvação de muitas almas.
“Na devoção ao Imaculado Coração de Maria, aproximaremos o trono da clemência, da serenidade e do perdão e encontraremos nele o seguro caminho para o Céu.”
Essa mensagem foi publicada e difundida pelo mundo em versões inglesa e espanhola, com todas as garantias de autenticidade e com a aprovação do bispo de Leiria. Em seguida, porém, parece que foi distorcida em tom sensacionalista criando alarmes sobre acontecimentos que teriam lugar em 1960.
Nesse ponto o bispado de Coimbra interveio com uma comunicação oficial que condenava a “campanha de profecias que chegam a provocar uma tempestade de ridículo”, acrescentando uma declaração de irmã Lúcia que declarava ignorar castigos falsamente atribuídos a ela. Referia-se à entrevista de padre Fuentes, mas, como muito bem nota o padre Alonso, que é o maior relator dos fatos de Fátima (obra em vários volumes, em vias de edição póstuma), no seu livro Segredo de Fátima, fatos e lenda: “o que padre Fuentes diz no texto original de sua conferência no México corresponde, sem dúvida, à essência do que ele ouviu durante suas visitas à irmã Lúcia, pois embora no relatório os trechos estejam misturados com adornos oratórios e outros recursos literários, eles não dizem nada que a vidente já não tenha dito em seus numerosos escritos publicados. Talvez o defeito foi ter classificado de mensagem ao mundo o que ouviu.”
Devemos acrescentar ser verdade que há distorções e abusos sobre muitas mensagens proféticas, isso ocorre até mesmo com a Bíblia, mas não justifica que seja preterida a distinção entre o falso e o genuíno, condenando tudo como fez o bispado de Coimbra. O que nos refere padre Fuentes é sem dúvida valioso e fiel. Além disso, como se viu, não há fantasias sobre as formas de castigos e cataclismas, como devem ter descrito à irmã Lúcia, que quase certamente não leu o texto e é muito reservada quando fala da mensagem, obedecendo sempre às ordens superiores.
É preciso lembrar, ainda, que há um segundo relatório em que o padre mexicano fala dos sofrimentos pessoais de Pio XII, que nos últimos meses de sua vida via uma situação preocupante no mundo e na Igreja. Teria tido irmã Lúcia uma visão do que aconteceria sob os novos pontificados?
De fato, o quadro religioso descrito nesse relato de 1957 em pouco tempo demonstrou ser apenas um esboço. Os católicos que testemunharam as transformações da Igreja depois de Pio XII viram a vida eclesial degenerar rápida e sinistramente. Abandonou-se a oração e a penitência como desprezou-se a doutrina e a virtude, e, embora os perigos do mundo aumentassem em turbilhão e invadissem até o recinto sagrado, ninguém mais convocava à defesa da fé. Se antes não se ouvira Fátima, depois tentou-se deturpá-la e ocultá-la. A tristeza de Maria Santíssima ficou esquecida.
E aconteceu que, enquanto crescia a indiferença para com os sinais do Céu, aumentava a invocação de obediência e respeito para com os projetos e transformações efetuados na Terra. Também dentro da Igreja, nunca se convocou tanto à caridade e compreensão para com os erros de toda ordem. Só a fé deixava de ser lembrada.
Dirão: quem na Igreja pode saber melhor que o papa e os bispos como operar para a defesa da fé e a salvação das almas! Na verdade essa missão cabe especialmente à hierarquia, mas é responsabilidade, não privilégio humano, e é paga com espinhos, não com aplausos. “Ai de vós quando os homens vos louvarem!” (Lc. 6,26)
A história da Igreja registra exemplos admiráveis de jovens que aconselharam papas e donzelas que guiaram reis. Eram ajudas dirigidas à hierarquia instituída dentro da ordem natural divina. E a grandeza desses chefes foi reconhecê-la e acolhê-la, confiantes. Santa Catarina de Sena, Santa Brígida e Santa Joana d'Arc foram mensageiras ardorosas e até severas, mas submissas à ordem da caridade.
Quantas vezes reis e papas precisaram de ajuda celeste para superar suas crises de fé e cumprir o próprio dever! Mas os males eram superáveis na mesma medida em que crescem, acolhendo a ajuda enviada, que como autoridades não falhariam em reconhecer.
Certamente nos últimos 300 anos de História não faltaram as ajudas divinas; faltou, sim, a fé para acolhê-las. O rei da França não acolheu o pedido do Sagrado Coração e a revolução cresceu na França até varrer sua dinastia e infestar o mundo. No século passado não se deu atenção a Nossa Senhora, que apareceu chorando na montanha de La Salette, e a maçonaria com o liberalismo solaparam as defesas da Igreja e da sociedade cristã. Em nosso século é o pontificado que antepõe soluções humanas ao caminho indicado em Fátima e o mundo jaz degradado pelos erros religiosos, pelas ofensas morais e pelo terror comunista.


2ª PARTE - O ESPÍRITO DA IGREJA CONCILIAR (1958-1978


Na segunda metade do século XX passou a soprar um novo espírito.
Mais e mais os pastores da Igreja assumiam compromissos com homens e governos que eram os portadores dos “erros que a Rússia espalharia pelo mundo”, como foi advertido na mensagem de Fátima. Não se tratava mais de um assistencialismo de emergência que acabava por favorecer os algozes do governo soviético, como aconteceu sob os pontificados de Bento XV e Pio XI. Naquela ocasião os princípios não eram envolvidos pela Ostpolitik vaticana, mas, ao contrário, o comunismo era duramente condenado como doutrina. Um acordo Montini-Stalin, que já pelo fato de ser possível, implicava reconhecimento da legitimidade de um governo ateu, antinatural, perseguidor da civilização cristã, devia ficar escondido. Representava a primícia de uma estrutura de compromissos emaranhados, politicamente obscuros e falsos, e religiosamente contrários à Providência, que ninguém ousaria propor a Pio XII. Deles só poderiam advir iniciativas espúrias e perigosas que contaminariam também os frutos do apostolado católico e, todavia, era almejado por muitos pastores. Foi assim que vinte anos depois desse sinistro acordo se inaugurou um Concílio Ecumênico que se iniciava já condicionado pelo comunismo, o que logicamente levava a contornar Fátima e tudo que sua mensagem lembrava. Isto é o que passaremos a relatar, começando por reconhecer que as palavras ditas a padre Fuentes, que muito sofreu por tê-las divulgado, demonstraram-se verazes e proféticas. De fato, nos anos que seguiram cada vez menos se haveria de esperar convocações à oração e penitência por parte das autoridades da Igreja. João XXIII sucedeu em 1958 ao papa Pacelli e em pouco tempo iniciou o aggiornamento, também das condenações aos erros e conseqüente admoestação dos errados. E isto foi estendido com otimismo às ideologias atéias e aos inimigos de Deus e da Igreja, que, ao invés de serem convertidos, passaram a seduzir multidões de fiéis e mesmo de consagrados, subvertendo a paz que é “tranqüilidade da ordem”. (Santo Agostinho, A cidade de Deus, Cap. XIX)


AS DUAS CIDADES: DE DEUS E DOS HOMENS

Segundo Santo Agostinho
“Dois amores fundaram, portanto, duas cidades: o amor de si mesmo, levado até o desprezo de Deus, formou a cidade terrena; o amor a Deus, levado até o desprezo de si mesmo, gerou a cidade celeste. A primeira glorifica a si mesmo, a segunda a Deus. Porque uma procura a glória dos homens, a outra considera sua máxima glória Deus, testemunha da consciência. Uma ergue a cabeça no orgulho. A outra diz a seu Deus: Sois a minha glória, elevais a minha cabeça (Sal. 3,4). Numa, os príncipes e nações que submete são subjugadas pela paixão do domínio. Na outra, apresentam-se unidos reciprocamente na caridade, os chefes ao comandar e os súditos ao obedecer. Uma ama a própria força em seus poderosos. A outra diz a seu Deus: eu te amo, ó Senhor, minha fortaleza (Sal. 17,2).
“Assim, na cidade terrestre, os sábios, vivendo segundo o homem, procuraram somente os bens do corpo, ou aqueles do espírito ou ambos. E mesmo os que puderam conhecer a Deus, não o glorificaram como Deus, nem Lhe renderam graças, mas perderam-se em seus vãos pensamentos e suas mentes insensatas ficaram ofuscadas. Declarando-se sábios (isto é, deixando-se dominar pela soberba e elevando-se em sua sabedoria) tornaram-se estultos e substituíram a glória do incorruptível Deus por imagens representando homens corruptíveis, aves, quadrúpedes e serpentes (arrastaram ou seguiram os povos aos altares da idolatria) e serviram a criatura antes que ao Criador que é bendito nos séculos (Rom. I, 21-25).
“Na cidade de Deus, ao contrário, não há sabedoria humana, mas piedade que presta ao verdadeiro Deus o culto que Lhe é devido, e que espera como recompensa na sociedade dos santos, sejam estes homens, ou sejam anjos, que Deus seja tudo em todos.” (I Cor. 15,28)
Eis a Cidade esquecida... que por fim triunfará!


JOÃO XXIII E O SEGREDO DE FÁTIMA
Parece não haver dúvida de que o pontificado em que iniciaram as visíveis transformações da Igreja foi de João XXIII, alcunhado, por quem auspiciava aberturas, de o “papa bom”. Aqui seguiremos o que foi reservado para a mensagem de Fátima, prevenindo desde logo que em tais questões, ligadas estreitamente à tradicional devoção católica popular, não há que supor mudanças claras e radicais. Seria por demais insensato e auto-acusatório para homens da Igreja alijar o espontâneo fervor que as aparições despertam nas multidões fiéis.
Note-se que o mesmo em La Salette, cuja mensagem foi hostilizada e cujos videntes sofreram humilhações e o exílio, construiu-se logo um grande santuário e incentivaram-se as peregrinações. O mesmo prelado de Grenoble, que mandara Melania para um convento de clausura na Inglaterra, que encomendara uma imagem de Maria Virgem a seu gosto, não como fora descrita; ou seu sucessor, que instituíra uma regra de saletianos segundo seu critério, não como fora pedido, acalentaram a popularidade e renome dessa aparição. Mas, bem entendido, depois de terem devidamente censurado a mensagem que lhes era intolerável e a regra religiosa que lhes parecia incompreensível, embora ambas tivessem sido ditadas por Nossa Senhora.
Quanto à mensagem de Fátima, sua parte conhecida repetia o ensinamento católico de sempre, que a guerra era o resultado das ofensas a Deus, dos crimes do mundo, dos quais os erros que a Rússia estava para espalhar, o comunismo e o ateísmo, são os termos culminantes. Eram avisos sobre males sociais, políticos e religiosos que o magistério da Igreja sempre denunciara e combatera.
Veremos, porém, que o espírito que guiou João XXIII queria que as acusações e condenações passadas fossem aggiornate e mesmo execradas. Isto deu ensejo a que os progressistas e esquerdistas alcunhassem Fátima de “aparição política”, a fim de neutralizar a sua mensagem.
Não se pode afirmar que tudo o que sugeria esse novo espírito passasse pela boca de João XXIII, mas certamente o novo tom empregado nos discursos papais, bonachões e otimistas, aludindo à lua e a lembranças infantis, coadunava-se mais com um ameno entretenimento popular do que com uma chamada evocando os graves males presentes e os perigos futuros, como faz a mensagem de Fátima.
O novo pontífice eleito em 1958, centenário das aparições de Lourdes, demonstrou preferência por esse evento mariano, que não havia deixado, que se saiba, pendente nenhum grave segredo ou indeclinável pedido, como era o caso de Fátima. Para esta última pareceu-lhe bastante instituir a festa de Nossa Senhora do Rosário de Fátima, que descreveu como “centro das esperanças cristãs”. No que respeita, porém, ao pedido da mensagem e ao seu segredo, deixou cair o silêncio sobre o primeiro e fez arquivar o segundo. E essas ações implicaram, mais tarde, também o arquivamento de qualquer propósito de conversão da Rússia. Aliás, a Santa Sé achou por bem estabelecer com o governo soviético um diálogo e iniciar uma política de compromissos, como sugerido pelo novo cardeal Montini.
Neste ponto é preciso ver em que consiste o segredo da mensagem, também chamado o “Terceiro Segredo”, e qual a sua história. Pois bem: como se viu antes, a mensagem de 13 de julho (p. 6) interrompia-se depois da frase “Em Portugal se conservará sempre o dogma da Fé,” etc. Quantas palavras e linhas se seguem a essa frase e qual o seu conteúdo não foi jamais revelado. A razão desse sigilo antes de 1960 está em uma clara instrução contida na própria mensagem: “Isto não o digais a ninguém.” Assim é que o segredo ficou selado no coração de Lúcia até os anos quarenta, assim como estava soterrado com os pastorzinhos Francisco e sua irmã Jacinta, mortos muito jovens. Em 1943, o bispo de Leiria (Fátima), desejando que tudo o que se referisse à mensagem ficasse registrado, mandou que a vidente escrevesse tudo o que havia ouvido. Lúcia titubeou, mas sabendo que a obediência nesse caso poderia significar a vontade de Deus, acabou por fazê-lo, apesar das grandes dúvidas e dificuldades morais e espirituais por que passou. Corria o ano de 1944 e dom José Correia da Silva, de posse do escrito secreto, sem o ler, colocou-o num envelope selado que guardou no seu cofre com instrução para que à sua morte fosse entregue ao cardeal patriarca de Lisboa, provavelmente para que fosse encaminhado a Roma. Ora, aconteceu que essa notícia, aparentemente singela e limitada, correu mundo e tornou-se fato tão clamoroso e sensacional que se considerou prudente enviar o escrito secreto o quanto antes à Santa Sé.
Segundo o grande conhecedor dos fatos de Fátima, padre Alonso, no seu livro La Verdad Sobre el Secreto de Fátima, “o documento chegou ao Vaticano pelas mãos do núncio apostólico em Lisboa, monsenhor Cento, em 16 de abril de 1957. Não consta que o papa Pio XII o teria lido, mas somente seu sucessor, João XXIII, que recebendo o envelope levado à residência de Castel Gandolfo em 17 de agosto de 1959, preferira esperar a presença de seu confessor para abri-lo, o que aconteceu depois dessa data considerada de mau augúrio na Itália. Antes de prosseguir na descrição dos fatos, é bom ver de onde vem a confirmação de que 1960 era o ano indicado à irmã Lúcia para tornar conhecido o Terceiro Segredo. Pois bem, ela vem principalmente do que apuraram os entendidos da questão, cônegos Galambra e Barthas. Mas além deles, vem também nada menos que do cardeal Cerejeira, patriarca de Lisboa, e de outros bispos ligados ao fato, como dom João Pereira Venâncio, sucessor de dom José na Diocese de Leiria, que chegou a propor a todos os bispos do mundo um dia de oração e penitência na data de 13 de outubro de 1960. Como se verá, também no Vaticano esta data era muito bem conhecida.
“Em 1967, 50.º aniversário das aparições de Fátima e ainda no clima de desilusão pelo silêncio que se fez sobre o segredo dado pela Mãe do Céu à pastorzinha Lúcia, segredo esse que não foi de nenhum modo esquecido apesar do vento de mudanças e novidades soprado pelo espírito do concílio, o prefeito da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, cardeal Alfredo Ottaviani, forneceu em uma conferência (11-2-67) algumas notícias com intenções tranqüilizadoras.
“O segredo não devia ser aberto antes de 1960. No mês de maio de 1955 perguntei a Lúcia a razão dessa data e ela me respondeu: porque então será mais claro. Isto me fez pensar que aquela mensagem era de tom profético, visto que é próprio das profecias, como se lê nas Sagradas Escrituras, que haja um véu de mistério. Quanto ao envelope contendo o 'Segredo de Fátima', foi recebido fechado pelo bispo de Leiria e embora Lúcia lhe tenha dito que poderia lê-lo, não quis fazê-lo. Quis respeitar o segredo também por deferência para com o santo padre. Mandou-o ao núncio apostólico, então monsenhor Cento, agora cardeal e aqui presente, que o enviou fielmente à Congregação para a Doutrina da Fé que lho havia requisitado para evitar que questão tão delicada, não destinada a ser dada ao apetite do público, caísse por qualquer razão fortuita em mãos estranhas. Assim chegou o segredo. Foi trazido à Congregação e, fechado como estava, foi levado a João XXIII. O papa abriu-o. Abriu o envelope e leu. Embora em português, disse-me depois que havia entendido tudo. Ele mesmo em seguida colocou o segredo num outro envelope, selou-o e encaminhou-o a um daqueles arquivos que são como um poço no qual os papéis afundam profundamente no escuro, escuro onde ninguém vê mais nada. Eis porque presentemente é difícil dizer onde esteja o “Segredo de Fátima´!” Mais adiante, acrescenta: “Eu, que tive a graça e o dom de ler o que consta do texto do segredo, ao qual portanto estou vinculado, posso dizer que tudo o que há em circulação a respeito dele é fantasia.”
A este depoimento muito importante podem-se acrescentar outras precisões que dá padre Alonso em seu livro sobre o segredo: “... o conteúdo do documento foi dado ao conhecimento de alguns membros da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, da Secretaria de Estado e de outros poucos. É certo que o Santo Padre falou dele com os seus mais íntimos colaboradores. Não fez, porém, qualquer declaração pública. Disse simplesmente: 'Isto não diz respeito ao meu tempo', deixando qualquer decisão aos seus sucessores.” (Pe. Alonso, op. cit.p. 51).
Depois de ter lido o texto, o papa João escreveu uma nota que foi transcrita pelo seu secretário pessoal, monsenhor Capovilla, colocando-a no envelope que continha o segredo. Este ficou guardado nos arquivos dos apartamentos pontifícios até sua morte, em 3 de junho de 1963.
Como se vê, a existência desse segredo não é fantasia, como não é possível negar que suas palavras passaram apesar sobre quem as mantém escondidas, de João XXIII em diante.


CENSURA A UM SEGREDO APOCALÍPTICO?
Nos anos anteriores a 1960, quando se esperava que o Terceiro Segredo seria dado ao conhecimento do mundo, houve um natural “crescendo” de interesse e excitação da opinião pública diante das revelações de Fátima. Afinal, tratava-se de anúncios sobre o destino da humanidade dados pela Mãe Celeste. Ora, o que concerne à salvação das almas sempre foi central na predicação e ensino católicos, e o interesse universal por um segredo que vinha completar uma luminosa mensagem já em grande parte conhecida teria sido, se bem utilizado, um precioso auxílio para convocar as multidões à oração e preparar os homens à penitência que salva.
Mas assim não foi. Deveras estranhamente, os hierarcas e o clero católico, que nunca temeram nem evitaram a predição sobrenatural, desta vez pareciam muito mais preocupados em desviar a atenção dos fiéis de revelações e segredos do que utilizá-los para um bom fim. Havia mais fé no povo que se interessava pela mensagem do que nos religiosos e sacerdotes que dela desviavam, como se Fátima fosse sinal de ilusão e superstição em grande escala. Mas, não seria difícil ver que se essa atitude foi geral entre os homens da Igreja, era porque o exemplo vinha de cima.
E o resultado inevitável quando há um vazio mental, ou quando se i propicia um vazio de fé, é que esses sejam preenchidos pelo que de vulgar e de mau está sempre à espreita para infiltrar-se. Foi assim que as piores tendências e interesses que permeiam os meios de comunicação social puderam conduzir o assunto, fazendo fermentar uma atmosfera de sensacionalismo que alimentou uma mórbida curiosidade pelo mistério e pavores de catástrofes materiais, num sentido pouco católico e, portanto, alheio à mensagem.
O modo como foi acolhida a publicação da entrevista de padre Fuentes com a vidente Lúcia é exemplo disto, e a reação do aparato eclesiástico que achou por bem condenar a reação do público às palavras que advertiam o mundo, deixa à mostra o grau de aversão de muitos homens da Igreja a tudo que tenha caráter sobrenatural e, portanto, envolva suas responsabilidades religiosas. Ora, as mensagens marianas e também os milagres, que são graças para os homens, deste modo acabam por ser verdadeiros desafios para eclesiásticos esquecidos dos seus deveres.
O livro citado de padre Alonso sobre o segredo de Fátima, apesar das muitas informações objetivas e comentários ponderados, não deixa de conter um conformismo exagerado tendente a justificar, a todo transe, a decisão papal de arquivar no silêncio o Terceiro Segredo. Considera o autor, por exemplo, que a atmosfera de curiosidade e espera ansiosa, criada em torno dessa parte desconhecida da mensagem, seria razão suficiente para não torná-la pública, evitando assim que fosse exposta a manipulações sensacionalistas, bem como a deformações de seu conteúdo. Na verdade, as deformações ocorrem em conseqüência da pouca ou má luz, não da clareza. Além disso, não faltam à Santa Sé recursos e meios para explicar o que possa considerar necessário, também sobre a própria parte em relação a uma mensagem que não foi até agora considerada mais que uma revelação privada, apesar de a aparição que a trouxe ser reconhecida autêntica pela Igreja. Se deve haver cuidado e prudência, isto é devido mais ao valor que à forma das palavras, e se tudo o mais da mensagem é inatacável, e nem por isso tem o aval oficial da Igreja, por que isso seria problema para a parte menor? Não se explica.
Há em toda essa questão uma espécie de inversão lógica, pois uma mensagem, assim como uma notícia, é dada em função do que deve comunicar. Não pode uma comunicação objetiva, nem deve deixar de existir, ou ser manipulada, em função de supostas reações subjetivas a evitar. Esses métodos podem ser comuns, hoje, nas mãos de manipuladores da opinião ou profissionais da propaganda, mas são indignos se aplicados pelos vigilantes eclesiásticos da verdade. É a pior censura, que cedo ou tarde vai desmascarar seus autores: não mais a proibição do que é objetivamente mau e nocivo à moral dos povos e à edificação das almas, mas supressão de uma notícia essencial e necessária, de origem celeste, com a hipócrita desculpa de proteger as gentes de uma turbação espiritual e de avisos que, sacudindo as consciências, são a razão mesma da mensagem. É como censurar o aviso de desgraças porque perturbador, a visão do inferno porque horrenda, o alerta contra falsos profetas porque subversivo, o mistério da iniqüidade porque iminente e espantoso.
Seria oportuno considerar, a propósito, o mau uso feito da palavra “apocalipse”, que depois de tantas más leituras, distorções e abusos, deu lugar a uma literatura fantástica e quase sempre falsificada com esse nome. Dela muitos se apartarão, desconfiados. Seria insano, porém, por causa disso, censurar ou arquivar o próprio; Apocalipse, livro sagrado porque inspirado por Deus e que contém ensinamentos preciosos reservados também para o nosso tempo.
Se o mundo, à imagem e semelhança desse livro profético, acumulou escórias religiosas e falsas profecias, o mesmo fez com os Evangelhos, dados para quem tem ouvidos para ouvir. Mas a falsificação não altera os originais, ao contrário, os confirma quando estes advertem contra os erros e seduções dos falsos profetas que pensam e falam como o mundo.
E tudo isto se aplica igualmente à mensagem de Fátima e ao seu Terceiro Segredo, dados para o bem dos homens desta nossa época aflita por uma espantosa crise de fé. Considerou-se, porém, necessário ocultar essa mensagem preciosa. Ficaremos sabendo, seguindo os comentários de padre Alonso, que para a nova mentalidade dos últimos pontificados esse segredo não deverá ser nunca publicado e portanto continuar como um peso nos arquivos vaticanos. Parcial confirmação disso teve-se com a entrevista de agosto de 84, dada pelo atual prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, cardeal Joseph Ratzinger, como veremos mais adiante.



SEGREDO DO PAPA OU MISTÉRIO DO PONTIFICADO?
Façamos algumas considerações à luz do bom senso. Antes de tudo, é incontestável que só o papa pode decidir sobre um segredo que lhe foi confiado, assim como sobre a consagração pedida. Isto não impede, porém, que qualquer decisão sua a propósito seja indicativa de uma atitude. Ocultar mensagem celeste é indício revelador.
Como João XXIII não se manifestou sobre a mensagem de Fátima será preciso recorrer a indícios indiretos para conhecer sua atitude diante dos problemas que ela levanta. A pessoa que pode ajudar nisto é seu secretário particular, monsenhor Lóris Capovilla, que também leu o segredo, redigindo uma nota de João XXIII sobre ele e, depois da morte deste, levando o documento ao papa Paulo VI, que o pedira.
Em seu livro Papa Giovanni XXIII, gran sacerdote, como lo ricordo (Ed. Storia e Letteratura, Roma 1977), monsenhor Capovilla relata (p. 39-40) a confidencia do papa que, no fim da vida, ofereceu esta como sacrifício para a conversão da Rússia. Além disso, tendo recebido de Krushev congratulações pelo seu octogésimo aniversário, havia dito: “Poderá ser uma ilusão, mas também um fio que a Providência me põe nas mãos e eu não tenho o direito de cortá-lo!” Razão pela qual recebeu em Roma a filha do estadista e seu genro, Aléxis Adjubei, que fumou um charuto em sua presença no dia 7 de março de 63. Ora, o papa Roncalli, que já havia manifestado seu interesse ecumênico quando núncio na Bulgária, com o Concílio mostrou confiar na fórmula neo-ecumênica para a conversão também da Rússia ortodoxa. Quanto à conversão da Rússia soviética, confiava nestas aproximações diplomáticas, além de um diálogo aberto com o comunismo italiano que, como conseqüência nas primeiras eleições de seu pontificado ganhou um milhão e 200 mil votos.
Monsenhor Capovilla faz a pergunta: “Era João XXIII um profeta inspirado ou um guia inexperiente? “Responde com a primeira hipótese e lembra o realismo desse papa que sabia enfrentar um trabalho diplomático longo, cujo resultado esta geração ainda não veria. Pois bem, tudo isto mostra, à parte as palavras, que o “papa bom” conhecia a gravidade do problema lembrado em Fátima, mas tinha uma solução: deixou cair sobre a mensagem de Nossa Senhora o silêncio e mandou arquivar seu Terceiro Segredo. Estes são fatos aos quais se seguiram um tácito arquivamento da missão de converter a Rússia.
A política da Santa Sé concentrou-se num projeto de sobrevivência que implicava os compromissos sugeridos pelo novo cardeal Montini.
Ora, o fato de uma mensagem ser dirigida ao chefe da Igreja para o bem comum, não implica direitos, mas deveres: o juízo de oportunidade, necessidade e excepcionalidade de um aviso celeste já foi manifestado por Quem o deu. Nisto cai por terra também a desculpa de que só pode julgar quem conhece o texto. Mesmo porque justamente para ser conhecido ele foi dado, assim como para que houvesse uma consagração esta foi pedida. Julgar que a palavra final compete ao papa porque só ele conhece a mensagem e a situação presente, e vive com os pés no chão, é tão ridiculamente ilógico que só pode ser respondido com outra pergunta: e por que, então, pareceu aos Céus necessário mandar-lhe uma mensagem, ele temeu revelá-la e, agora, encontra-se com esse segredo nas mãos sem saber explicá-lo? Se sabe não dever publicá-lo, não sabe então por que este lhe foi dado. A própria existência do segredo é sinal de contradição, mas jamais algum fiel poderia ver contradição no que é proveniente do Céu. Isto espelha, portanto, uma contradição humana. Esconde-se aquilo que não se quer fazer saber. Ora, se o segredo foi dado com relação a algo que os homens devem ver, compreender, evitar e corrigir nesta nossa época, e a razão da data — 1960 em diante — era “porque então será mais claro”, como disse Lúcia ao cardeal Ottaviani, que sentido lógico pode haver em dizer o contrário, isto é, que os homens não precisam ver, compreender, evitar e corrigir? Alguém fará isso por todos? Mas, e se esse “algo” concerne justamente ao governo da Igreja, razão pela qual foi dado para aquele período? Afinal, se foram tomadas todas as medidas para prevenir perigos e erros ali assinalados, por que tudo isto não pode vir à luz?
Pelo que consta, João XXIII leu o segredo e, inteirado dele, julgou que eram questões de outro tempo, não do seu. Ora, isto implica alguns juízos impossíveis, além da irreverência para com a mensagem. De fato, quem conhece o que sucederá no próprio tempo? Estaria esse papa profetizando? E se o fez, por que o fez em sentido contrário ao da profecia que teve em mãos? Em todo caso, se o tempo estava errado, o que já é impróprio pensar, não deveria por isso mesmo servir para avisar quanto ao futuro?
Enfim, essa negativa papal conduz a um labirinto de absurdos, para não dizer impiedades, e à objeção de atribuir-se a João XXIII o que não há certeza de ele ter dito, a resposta é elementar: negando-se a tornar conhecido o segredo, e evitando até mesmo aludir a ele diante dos fiéis, com essa atitude extrema englobou tudo o mais que pode supor de errado. Não há nenhuma prudência em omitir um alarme de perigo para não perturbar quem será vítima. Nem há nisto bondade, mas, ao contrário, exercício de uma tutela abusiva e alienante.
Na religião católica ninguém será isentado de responsabilidade em virtude do silêncio de seus maiores, mesmo papas. E sendo os avisos proféticos dados tanto aos povos como a cada um, os fiéis podem ser, diante deles, esclarecidos, não substituídos em acolhê-los.
De fato, Nosso Senhor disse: “O que recebe um profeta na qualidade de profeta, receberá a recompensa de profeta.” (Mt. 10,41)
O ensinamento da Igreja tem sempre por critério a verdade. A ela tudo e todos estão sujeitos, e o papa não menos. Por isto lhe foi confiado um segredo, dito celeste. Para atestar se era veraz segundo está escrito: “Não extingais o Espírito, não desprezeis as profecias. Examinai tudo: abraçai o que for bom. Guardai-vos de toda aparência do mal.” (I Ts. 5,19) Se a mensagem era falsa, deveria ter sido necessariamente alijada para o bem dos fiéis. Mas se assim não era, é dom celeste de inestimável valor, e não respeitá-la pelo que é, conclamando as gentes às suas palavras e à gratidão, já seria sinal de pouca fé. Se é veraz, as condições de oportunidade, de necessidade e de prudência são inerentes a ela. Não poderia ser dada por Maria, Virgo prudentissima, e ser inoportuna, extemporânea, inútil ou imprudente. Ao papa compete dizer se é autêntica, tudo o mais vem de per si, para benefício do próprio pontífice e da vigilância da Igreja e de seus filhos. Do papa devemos saber se é mensagem autêntica e fiel e não constitui novidade diante do Depositum Fidei. Diante deste, qualquer mensagem pode ser julgada, mas não menos o papa. E nisto pode ter vindo para suprir as falhas hodiernas, essa mensagem que muitos teólogos obstinam-se em classificar como simples revelação privada. Também nisto poderíamos saber do papa se palavras celestes que vêm lembrar, chamar, pedir a consagração de nações e da Igreja, dirigindo-se a uma geração inteira e revelando-se indispensável e única via, podem não ser, como diz, uma profecia universal. Como se vê, muito poderia ter João XXIII esclarecido sobre a mensagem de Fátima, e conhecendo o seu segredo, deveria fazê-lo. Afinal, era um dom celeste ou uma falsificação sem sentido? Eram palavras fiéis e edificantes ou ardilosas e desviantes? Era uma revelação casual e privada ou uma profecia universal e por isso indispensável? (p. I) O poder pontifical é obrigado ao esclarecimento do que diz respeito à fé, a fim de preservá-la íntegra e pura, confirmando todos, pastores e fiéis nessa fé revelada por Deus. Se o pontífice omite-se perante ela, à vigilância fiel interessa saber por que o faz, especialmente se então surgem novidades.
Pois bem, como poderia saber João XXIII que o segredo não era para o seu tempo se este apenas começava em 1959 e já havia sido inspirada a idéia de um concílio ecumênico ao papa? Tinha ele a visão de um futuro radioso e sem riscos para a Igreja? Ora, também nesta ocasião, colocando a data de 1960 para que o segredo fosse relevado ou escondido, ficou evidenciada a clarividência de Quem o dera. Nessa ocasião começavam os preparativos para um estranho concílio que viria transformar não só o tempo desse papa, mas o dos papas conciliares que o sucederam e continuaram.



A INSPIRAÇÃO DE JOÃO XXIII


Depois de ter visto que o terceiro segredo de Fátima não mereceu de João XXIII mais que alguns comentários e por ser julgado impublicável foi arquivado, voltemos um pouco atrás para, seguindo a descrição do mesmo papa, saber o que o havia inspirado, não deixando portanto espaço para atender a projetos diversos.
João XXIII conta que numa conversa que teve com o cardeal secretário de Estado Tardini, em fins de 1958, perguntava-se o que poderia ser feito para dar ao mundo exemplo de paz e concórdia entre os homens e uma ocasião de esperança, quando subitamente brotou-lhe nos lábios a resposta: um concílio! Eis como ficou explicado esse “impulso da Divina Providência”, esse “clarão de suprema luz”, expressões que o papa usaria para anunciá-lo, tanto aos cardeais como ao mundo no discurso de inauguração em 1962.
Não compete a nenhum homem julgar a inspiração que levou João XXIII à decisão soberana de convocar o Concílio Vaticano II, mas isto não exclui a legítima e natural reação dos cardeais que, ouvindo esse anúncio da boca do papa, durante as festividades na basílica romana de São Paulo fora dos muros, em 25 de janeiro de 1959, receberam-no com um frio estupor que surpreendeu o pontífice, que se ia habituando a sorrisos e anuências a tudo que dizia. Como poderiam, porém, os velhos cardeais esquecer todos os riscos e contra-indicações pelas quais a idéia de continuar o Concílio do Vaticano I vinha sendo descartada pelos precedentes pontificados! Como poderiam fingir ignorar que a frenética imprudência dos meios de comunicação do mundo chegou a invadir, com cumplicidades internas do Vaticano, até o quarto onde Pio XII morria, para fazer um furo de reportagem, sobre sua agonia e morte! Será que uma pessoa viajada e conhecedora do mundo como João XXIII ignorava esses perigos de manipulações e pressões exercidas contra a Igreja pelas forças de um mundo cada vez mais contaminado pelo materialismo e ateísmo? Poderia desconhecer que havia projetos maçons, protestantes e comunistas para transformar a Igreja por dentro e que esses sistemas chegavam a coalizar-se para melhor infiltrar-se dentro da cidadela católica?
Na verdade, a Igreja — e isto não é segredo para ninguém, disposto a ver — já estava nessa época em grande parte invadida por uma nova e velha leva de modernistas, cujos erros e heresias só haviam ficado congelados pelas medidas decididas e eficazes de São Pio X, até os anos 1914-1917. Mas nesse ponto o seu sucessor, Bento XV, permitiu que o processo de defesa fosse gradualmente atenuado.
É evidente que bastaria uma abertura, mesmo pequena, para unir os adversários externos da doutrina católica aos seus inovadores internos, e um concílio nessa época teria proporcionado naturalmente isso. Se alguém objetar que uma assembléia eclesial a esse nível sempre teve por razão principal a defesa da fé atacada por novos e perigosos erros e heresias, saiba que o papa, ao convocar o Concílio Vaticano II, não escondia seu otimismo, desejo de paz, de unidade, de reconciliação, nem tampouco sua aversão a condenar os erros contra a fé e os seus autores. Tudo isto está claramente dito no discurso inaugural de 11 de outubro de 1962 na Basílica de São Pedro. O que é muito menos claro são os entendimentos preliminares estabelecidos com conhecidos inimigos da Igreja católica.
Ouçamos a propósito o testemunho do monsenhor Marcel Lefebvre, que teve parte importante na preparação do concílio:
“Não se deve esquecer que houve três contactos. Três acordos que foram concluídos antes do concílio pela Secretária para a Unidade dos Cristãos, um com a maçonaria, com a loja judaica B'Nai Brith que tem sede em Nova York, outro com os protestantes do Conselho Mundial das Igrejas e outro com os enviados de Moscou. (...) Nesses contactos dizia-se: Não será condenado o comunismo, mudar-se-ão todos os bispos contrários a ele, substituindo-se por bispos colaboracionistas. Com relação à loja maçônica e ao Conselho Mundial das Igrejas foi dito: aceitar-se-á a liberdade religiosa como direito fundamental do homem, reconhecendo assim pelo concílio a Declaração dos Direitos Humanos. Inaudito, tremendo, uma mudança radical da orientação da Igreja! E foi aceita!”
No livro Atanásio e a Igreja do nosso tempo o bispo alemão de Ratisbona, Rudolf Graber, mostra com horror que nos documentos das sociedades secretas do século passado “já aparecem as idéias que estão submetendo à prova de sua capacidade de resistência a Igreja do período pós-conciliar”. Mas o objetivo não é mais simplesmente o publicado no cap. XVI da Alta Venda da Loja dos Carbonários italianos, que diz: “O nosso objetivo final é o de Voltaire e da Revolução Francesa: a destruição para sempre do catolicismo e também da idéia cristã, a qual, se restasse em pé sobre as ruínas de Roma, significaria a ressurreição do cristianismo logo depois.” Esse documento, intitulado “Instruções Permanentes da Alta Venda” foi revelado em Dublin, em 1885, pelo monsenhor George F. Dillon, atendendo à exortação de Leão XIII para que “se arrancasse a máscara à maçonaria”. O novo objetivo é o de servir-se da Igreja, depois de tê-la infiltrado tanto na doutrina como na liturgia de idéias revolucionárias, tendo em vista o sincretismo universal cuja sinarquia final constituiria a anti-Igreja. Para tanto o objetivo principal é conseguir “um papa de acordo com nossos desejos”. Vale a pena reproduzir o texto original: “A tarefa que empreendemos não é obra de um dia, nem de um mês, nem de um ano. Pode durar talvez um século (...) a hora da Alta Venda virá quando seus agentes tiverem invadido todas as funções. Governarão, administrarão e julgarão. Formarão o conselho do Soberano. Serão convocados para eleger o pontífice e este, como a maioria de seus contemporâneos, estará necessariamente imbuído pelos princípios italianos humanitários que estamos para pôr em circulação (...) deixai que marche atrás de vossas bandeiras o clero, convencido de que segue a bandeira das Chaves Apostólicas (...) estendei as vossas redes no fundo das sacristias, dos seminários, dos conventos (...) e os reunireis depois como amigos em torno da Cátedra Apostólica. Tereis pescado uma revolução com tiara e manto pluvial, que marchará com a cruz e a bandeira, uma revolução que precisa apenas de um pequeno estímulo para incendiar os quatro cantos do mundo.”
Haveria muito mais a transcrever e a verificar nesse documento, cuja importância foi considerada tão grande pelo papa Leão XIII que mandou publicá-lo na Itália, custeando-o pessoalmente. Mas aqui devemos nos limitar a João XXIII, que convoca o Concílio Vaticano II; e portanto, acrescentemos logo, que outra enorme aspiração da maçonaria era dispor de um concílio católico.
Tal possibilidade era remota no século passado. Pode-se recordar este fato histórico muito indicativo: no dia 8 de dezembro de 1869, quando se abria em Roma o Concílio Vaticano I, convocado por Pio IX para condenar os erros do racionalismo e do materialismo e definir as prerrogativas do magistério papal, em Nápoles, abria-se contemporaneamente um anticoncílio maçônico de livre-pensadores europeus, entre os quais Victor Hugo, Garibaldi, Ricciardi, etc. Destinava-se a contrapor ao ensinamento da Igreja as liberdades de consciência, de religião, de ensino, da idéia revolucionária: “Destruir o divino para fazer progredir o humano”.
Como o Concílio Vaticano II declarou ser a liberdade de religião (e de ateísmo), consciência e ensino um direito natural do homem, revolucionando a doutrina sagrada, parece claro que desta vez o anticoncílio, como o sínodo judaico, não aconteceram fora, mas dentro do Vaticano. Seria uma nova Igreja conciliar a implementá-los doravante.


O CONCÍLIO INSPIRADO AO PAPA JOÃO
Pelas palavras de irmã Lúcia, a vidente de Fátima, o mundo católico soube da grande tristeza de Nossa Senhora com a desatenção às suas palavras, o que redundava em aumento tanto das ofensas a Deus como do perigo de perdição para os homens. Mas, e depois de 1958, como teria sido?
Relatamos o modo pelo qual João XXIII recebeu o terceiro segredo de Fátima e mandou arquivá-lo. Se havia um novo apelo, não se sabe; se havia um aviso grave, ficou ignorado. O que foi proclamado, e pelo próprio papa, foi a inspiração que teve para convocar o concílio. Este deveria ser a resposta exemplar que os homens da Igreja dariam ao mundo: uma assembléia universal de paz.
O espírito que guiava João XXIII mostrou melhor suas feições no discurso de abertura desse concílio, dia 11 de outubro de 1962. Depois de lembrar ainda a inspiração recebida com “um toque inesperado, um lampejo de suprema luz”, e a comunicação dada disto aos cardeais, o papa passou a justificar a oportunidade dessa iniciativa grandiosa.
Falou da necessidade de aggiornamento para a Igreja e de um almejado salto na direção do pensamento moderno. Nesse sentido há duas passagens significativas que devem ser consideradas: “Parece-nos dever divergir desses profetas de desdita que pressagiam eventos funestos, como se pairasse a ameaça do fim do mundo. Nos tempos modernos há quem não veja senão prevaricação e ruínas; dizem que nossa época, comparada com as passadas, foi piorando; comportam-se como se nada houvessem aprendido da história, que é mestra de vida, e como se no tempo dos concílios ecumênicos precedentes tudo tivesse decorrido na plenitude de um triunfo da idéia, da vida cristã e da justa liberdade religiosa.”
Neste discurso, que também diverge — para não dizer contraria — a linguagem profética da Igreja de todos os tempos, somente queremos registrar uma objetiva discordância com tudo o que está dito na mensagem de Fátima. Se já na parte conhecida fala-se de fomes, guerras, perseguições à Igreja e ao santo padre, o que haveria na parte escondida que deveria ter sido dada a conhecer em 1960? Afinal, se o terceiro segredo ficou censurado para evitar alarme, como é que agora até a lembrança disso parece repreensível? A única resposta plausível a essas interrogações é que o papa discordava da verossimilhança do conteúdo da mensagem de Fátima, por demais “pessimista e retrógrada”, e queria distância dos que a lembravam e pediam que fosse publicada e cumprida.
A segunda passagem significativa concerne à repressão dos erros no passado.
“Vemos, na passagem de uma época a outra, que as opiniões dos homens se sucedem, excluindo-se reciprocamente, e os erros apenas despontam, freqüentemente esvanecem como névoa ao sol. A Igreja sempre se opôs a esses erros, os condenou mesmo com a máxima severidade. Agora, contudo, a Esposa de Cristo prefere antes usar o remédio da misericórdia que o da severidade.” João XXIII não deixa de lembrar perigosos erros e costumes atuais que desprezam Deus e sua Lei, mas “os homens mostram-se hoje, finalmente, propensos a condená-los por si mesmos”.
Soube-se depois, pelo próprio secretário do papa, que esse texto recebeu a colaboração da eminência parda, o arcebispo de Milão Montini, feito cardeal logo nos primeiros dias do pontificado de João XXIII, de quem foi conselheiro e depois sucessor com o nome de Paulo VI. Partilhavam claramente as mesmas idéias acima expostas, que de novo só tinham a aparência, pois já haviam sido, elas mesmas, condenadas pelo magistério da Igreja. Eram, de fato, os conceitos modernistas da evolução e progresso do pensamento humano. Pois a verdade seria capaz de impor-se por sua própria força intrínseca num enriquecimento progressivo, dispensando condenações dos que se lhe opõem. E em vista de tal evolução do pensamento, da moral e da compreensão da verdade, o único erro seria pressagiar a possibilidade de tempos piores. Eis a nova heresia!
Neste ponto não há nenhuma ironia em constatar que toda a pretensa novidade do discurso inaugural do Vaticano II, em face da verdade e da realidade do mundo, voltava-se contra o próprio concílio, porque o utopismo progressista não é vigilante abertura para o real, mas fechamento aos riscos, aos perigos, aos erros, aos castigos e às profecias, como se nada disto existisse e como se, ao contrário, não fossem os profetas de venturas e paz, os enganadores e falsos, segundo as Sagradas Escrituras. Basta percorrê-las: “E o Senhor destruirá num só dia a cabeça e a cauda de Israel, os que obedecem e os que governam. O ancião e o homem respeitável são a cabeça, e o profeta que ensina a mentira é a cauda. E os que chamam ditoso a este povo, enganando-o (...) serão precipitados na ruína”. (Isaías, 9,14). “Coisas espantosas e estranhas aconteceram nesta terra: os profetas profetizavam a mentira, e os sacerdotes aplaudiram-nos com suas mãos; e o meu povo amou essas coisas. Que castigo não virá, pois, sobre esta gente no fim de tudo isto?” (Je., 5,30). “Assim diz o Senhor” — Ai dos profetas insensatos que seguem seu próprio espírito sem ter visto nada! Os teus profetas, ó Israel, são como raposas entre ruínas. E não subistes a brechas, nem fizestes muralha em defesa da casa de Israel, para resistir no combate, no dia do Senhor.” (Ez., 13,3-5) “Ai, Senhor Deus! É possível que tenhas permitido (aos falsos profetas) que enganem este povo de Jerusalém dizendo: — tereis paz! E eis que a espada penetra até a alma.” (Je., 4,10). Pode-se citar inúmeras passagens bíblicas denunciando os falsos profetas de venturas, cuja adocicada demagogia populista se transforma em fel, na aversão ao profeta veraz. “Ai de vós quando os homens vos louvarem! Porque assim faziam os pais deles aos falsos profetas.” (Lc, 6,26). Esquecidos desse ensinamento, muitos eclesiásticos, desde então, demonstraram o que eram, repetindo aos homens o que gostavam de ouvir e ocultando o que lembrava males e perigos. Não admira, pois, o apoio que receberam dos chefes os demolidores críticos da mensagem de Fátima.
Destes, o mais cáustico, embora não elaborasse mais que conjeturas baseadas na mentalidade corrente, foi o jesuíta belga Eduardo Dhanis. Dedicou anos à tentativa de reduzir a aparição e a mensagem à dimensão de uma ilusão infantil somada a pias invenções com apenas uns pontos de verdade. Seriam fenômenos místicos possíveis em ambientes ignorantes e alheios ao progresso da psicologia e à maturação religiosa do homem moderno. Com toda essa “nova ciência”, Dhanis, que era professor de teologia em Louvain, foi convidado pela Universidade Gregoriana de Roma, da qual em 1963 Paulo VI o nomeava reitor. Quando morreu, soube-se por um artigo em sua homenagem no Osservatore Romano (20-2-79) que fora uma das pessoas em quem o papa Montini depositara mais confiança. Importante também foi sua parte durante o Concílio, e nisto se associou a outros bem-sucedidos inimigos de Fátima, como Karl Rahner, Kloppenburg e outros, citados por padre Alonso. (TVF, Vol. I, p. lie ss.)
Neste ponto, é importante verificar se há uma efetiva oposição entre o espírito de Fátima e o espírito do concílio, para então entender como isto se manifestou nos trabalhos do Concílio Vaticano II. Ora, este, como disse João XXIII no discurso inaugural, resumindo o seu pensamento, o do futuro Paulo VI e de muitos, queria a abertura da Igreja para o mundo, evitando condenações e divergindo dos profetas anti-modernos que condenavam o mal e lembravam castigos. Mas isto era justamente o oposto do espírito de Fátima. Havia então que fazer esquecer sua mensagem, redimensionando seus avisos e pedidos.


O MODERNISMO ANTIMARIANO DO CONCÍLIO
Um Concílio da Igreja, primeiro deste século, para ser moderno no sentido normal dessa palavra, deveria pôr em foco os fatos principais de nossa época, para submetê-los ao juízo do multissecular magistério da Igreja, que, por meio de sua hierarquia reunida em assembléia, os ordenaria ao fim último do homem e de sua sociedade terrena. Em outras palavras, a Igreja militante reunida, deveria, frente aos grandes fatos contemporâneos, julgá-los segundo o bem e o mal que podem causar aos indivíduos e aos povos. “O que for bom deve ser abraçado e o que for mau condenado”. (I Ts, 5)
Ora, os dois eventos decisivos de nossos tempos para a salvação ou castigo das almas e dos povos, aconteceram em 1917. Foram a Aparição de Fátima e a Revolução soviética que tomou conta da Rússia, e espalharia seus erros pelo mundo como está na mensagem de Fátima. As guerras, fomes, perseguições e o surgir de seitas e ideologias perniciosas, estão essencialmente ligados ao espírito revolucionário que atingiu o ápice do poder no comunismo. Esta foi a visão católica da história contemporânea que prevaleceu, bem ou mal, até o pontificado de Pio XII que reconhecia na Revolução o processo global organizado de todas as rebeliões individuais da história humana, sob tantos diversos nomes: “Este se encontra em todo lugar e no meio de todos, sabe ser violento e sub-reptício. Nestes últimos séculos tentou levar a termo a desagregação intelectual, moral e social da unidade no organismo misterioso de Cristo. Quis a natureza sem a graça; a razão sem a fé; a liberdade sem a autoridade; por vezes a autoridade sem a liberdade. É um inimigo que se tornou sempre mais concreto, com uma falta de escrúpulos que nos deixa atônitos: Cristo sim, mas Igreja não.


Depois: Deus sim, Cristo não. Finalmente o grito ímpio: Deus morreu, aliás nunca existiu. Segue a tentativa de edificar a estrutura do mundo sobre fundamentos que nós não hesitamos em indicar como sendo a principal responsável da ameaça que pesa sobre a humanidade: uma economia sem Deus, um direito sem Deus, uma política sem Deus. O inimigo empenhou-se e esforça-se para que Cristo seja um estranho nas universidades, nas escolas, nas famílias, nas administrações e justiça na atividade legislativa, na reunião das nações, onde se decide sobre a guerra ou paz.” (Pio XII, discurso aos homens da A.CL, 12-10-52)
Assim é descrito o processo revolucionário cujos fundamentos principais foram a pseudo-reforma protestante, o liberalismo da revolução francesa e, no nosso século, o marxismo-leninismo da revolução russa, que dava realidade a tantos diversos socialismos. Só não foi descrito o ritmo de crescimento desse processo. Mas isto somos nós a testemunhar diante dos efeitos do Concílio. Se o processo andou depois da Renascença, marchou depois da Bastilha e correu com o domínio bolchevista, hoje se precipita depois das aberturas do Concílio Vaticano II, e isto a despeito dos avisos de Fátima. A razão disso já foi vista: ao invés de reforçar as barreiras contra o processo revolucionário, os mentores do concílio houveram por bem fazer acordos de convivência com as igrejas-membro do conselho protestante, com as lojas da maçonaria liberal e com o Soviete supremo do comunismo internacional. Com isto seus trabalhos foram condicionados: o fim precípuo do concilio passou a ser não mais a defesa da fé, mas a promulgação da liberdade de consciência de marca liberal-maçônica, que por sua vez abriria as portas ao neo-ecumenismo e tornaria incoerente a condenação de erros como o comunismo. Restava, porém, uma pedra de tropeço que concentrava ao mesmo tempo o contrário disso tudo, lembrando os dogmas e devoção marianos, o inferno e os erros da Rússia. O Vaticano II não poderia conciliar estes quatro pontos com as prioridades citadas antes. Para abrir-se a estas, deveria fechar-se a Fátima. Naturalmente, de modo muito dissimulado. Senão, vejamos: O primeiro ponto são os dogmas marianos da Imaculada Conceição, da Assunção e da Mediação universal de Maria, ainda não definido mas que tem o consenso de toda a Igreja. A aparição e a mensagem dada representam um chamado a essas verdades de fé católicas que os protestantes não aceitam e o ecumenismo esconde.
O segundo ponto é a devoção especial a Nossa Senhora e seu Imaculado Coração, que além de passar pelos dogmas católicos todos contra os quais se debatem as heresias em particular e o modernismo em geral, realiza a mediação de Maria através da consagração pedida. E qual melhor ocasião para a consagração que um concílio, quando os bispos do mundo estão reunidos com o papa?
O terceiro ponto é a lembrança do inferno que Nossa Senhora na aparição de 13 de julho fez ver aos pastorzinhos, demonstrando a extrema importância para os homens de considerarem o castigo terrível que comporta a ofensa a Deus, sem conversão e penitência. É o ensinamento de sempre da Igreja no seu trabalho pastoral. E se a aparição veio lembrá-lo é porque seria esquecido ou modificado.
O quarto ponto, enfim, é o perigo dos erros espalhados pela Rússia, de que veio advertir Maria Santíssima em Fátima (1917), dias antes da tomada do poder na Rússia pela revolução comunista. Esta representou para a humanidade uma catástrofe sem precedente: milhões de mortes pela fome e guerra civil, abolição dos direitos naturais dos homens, destruição de seus valores fundamentais e perseguição da religião para a imposição do ateísmo de estado. Tudo isso concerne de modo especial à Igreja, que já havia condenado e prevenido contra essa doutrina intrinsecamente perversa.
Note-se que estes pontos constituiriam um programa obrigatório para a Igreja reunida em concílio nesta época histórica, mesmo se esta época fosse marcada somente pelo advento do comunismo e sem a aparição extraordinária de Fátima: os papas e os bispos sempre recorreram à Virgem Maria para combater os inimigos mortais da Fé e da Igreja. O perigo próximo é o comunismo e suas seqüelas, que naturalmente era preciso mencionar publicamente e convocar os fiéis à defesa. Mas, o que aconteceu nesse Concílio do Vaticano quanto a tudo isto?


O ESQUEMA ESPECIAL DE MARIA SANTÍSSIMA REPROVADO
Há que distinguir: o que o concílio propunha e o que realizou. Já nessa distinção, observando as transformações operadas nos esquemas iniciais propostos que deveriam guiar os debates, poderemos entender qual espírito conduzia essa assembléia. Aqui o faremos seguindo os quatro pontos descritos, que são indicações dadas pelo Espírito que determinou os eventos de Fátima.
Os problemas começaram com o título do esquema especial dedicado a Nossa Senhora. Os prelados do grupo dito “do Reno”, devido a procedência germânica, guiados pelo festejado perito Karl Rahner, opunham-se a tudo que pudesse incomodar os protestantes, com a intenção de abrir o caminho a um almejado neo-ecumenismo. Este já era difícil mencionando a Virgem Maria, e tanto mais chamando-a “Medianeira de todas as Graças”.
Ora, esse esquema de seis páginas era curto mas essencial, lembrando as prerrogativas da Mãe de Deus a uma geração beneficiada pela maior das aparições de Maria. Nele eram tratadas as importantes questões da Mediação universal e da Co-redenção, que um dia serão promulgadas como dogmas, tal o consenso que a Igreja sempre teve com relação a essas verdades católicas.
A oposição ao esquema, porém, não deu trégua, e tanto fez e tanto engrossou a voz em nome do ecumenismo e contra um culto exagerado a Maria que conseguiu reduzir o esquema especial de Nossa Senhora a um capítulo do grande esquema sobre a Igreja. Não bastaram as objeções a isto levantadas por muitos padres que viam sob má luz esses compromissos feitos em nome da Igreja e que envolviam, de qualquer modo, a honra devida à Virgem Santíssima.
Naqueles dias, questões como esta ainda encontravam uma geral resistência. Nas votações os “neo-ecumenistas” obtiveram a vitória com estreita margem de votos. O grupo Coetus Internationalis Patrum, com o arcebispo Marcel Lefebvre, dom Sigaud e dom Mayer, além de centenas de outros, operava coeso em defesa da Tradição, apesar de as forças contrárias receberem apoio indireto do papa. Das muitas intervenções contra essa insídia, lembraremos a voz de um bispo da selva amazônica, prelazia do Acre-Purus, o servita dom Giocondo Grotti, que naquela ocasião soube refutar os argumentos sinuosos contrários ao pleno louvor a Mãe de Deus, finalizando: “Esse ecumenismo consiste em confessar ou esconder a verdade?”
Com isto vemos que desde o princípio o espírito do concílio empenhava-se em marginalizar a lembrança de Maria Santíssima dos trabalhos. Que dizer de Fátima, de sua mensagem e de seus pedidos!


O ATO DE CONSAGRAÇÃO ELUDIDO
Os progressistas de hoje, como os modernistas de ontem, engenham-se na tentativa de domesticar a transcendência e simplificar o mistério com recursos psicológicos e semânticos, como se a mente humana progredisse nessa inteligibilidade. Quando, porém, mensagens e pedidos são confiados aos homens e em termos compreensíveis a qualquer nível cultural, então negam que sejam verossímeis, ou, se for preciso, negam que tenham sido dados. Não gostam de lembrar, do alto do próprio orgulho, as palavras divinas: “Em verdade vos digo: Todo o que não receber o Reino de Deus como um menino, não entrará nele.” (Mc, 10,15)
Estas palavras estão aqui para lembrar outro ponto fundamental de qualquer trabalho pastoral: a humilde confiança em Deus. Qual o ser normal que diante da dor, de um cataclisma ou da morte não exprime, mesmo que secretamente, um pensamento ao Alto? Pois bem, em Fátima foi prenunciado um cataclisma social que está hoje diante dos olhos de todos, o comunismo. Foi lembrada a sua causa, os pecados dos homens, e foi oferecida a solução, a consagração da Rússia ao Imaculado Coração de Maria e a devoção reparadora. Qual melhor atitude pastoral do que lembrá-la e atendê-la? E qual melhor ocasião que o Concílio Ecumênico, que reunia todos os bispos da Terra com o papa, em Roma, capital da cristandade, para ensiná-la? Poderiam estar tão ocupados com ciências e leis para esquecê-lo?
Ora, nem essa desculpa terão perante Deus, pois foram 510 os padres conciliares que assinaram uma petição expressamente pedindo ao papa essa consagração solene, entregue dia 3 de fevereiro de 1964 por dom Sigaud, arcebispo de Diamantina, embora fosse sabido que os bispos da Alemanha e França, além do importante cardeal Bea, fautor dos contactos ecumênico-maçônicos, opunham-se a essa consagração. Aqui será também o livro Le Rhin se jette dans le Tibre, da Ralph Wiltgen, svd, a descrever os fatos.
O ato pedido por Nossa Senhora não foi então atendido. Para atenuar essa omissão, que permanecerá como sumo escândalo na história da Igreja, Paulo VI em novembro de 1964 anunciou o novo título de Maria, “Mãe da Igreja”, mandou uma rosa de ouro a Fátima e comunicou que em breve para lá enviaria uma missão papal.
Com isto aquela importante assembléia mostrava não levar a sério as palavras de Nosso Senhor à irmã Lúcia (carta de 18-5-36 ao padre Gonçalves): “Quero que toda a Minha Igreja reconheça essa consagração como um triunfo do Coração Imaculado de Maria, para depois estender o Seu Culto e pôr, ao lado da devoção do Meu Divino Coração, a devoção deste Imaculado Coração.”


O INFERNO ESQUECIDO PELA PASTORAL CONCILIAR


No meio dos maravilhosos aspectos da aparição de Fátima, veio a horrenda visão do inferno. Mas foi justamente na piedade pelas almas, diante de tão impressionante perigo, que esses simples pastorzinhos cresceram de modo admirável na caridade que santifica pela Comunhão dos Santos. Eis uma lição pastoral.
Mas o que fez o Concílio, que se ufanava de ser pastoral, para continuar nessa obra? Pois bem, pode-se percorrer a volumosa documentação do Vaticano II atrás dos “novíssimos”: morte, juízo, inferno e paraíso, sem praticamente encontrar qualquer menção. Dirão que sobre esses ensinamentos não havia nada de novo a dizer. Talvez, mas certamente havia muito a lembrar, e por isso Nossa Senhora em Fátima, por amor aos homens, mais que falar mostrou o inferno.
É impossível não assinalar, porém, que a par da omissão sobre a justiça divina deu-se grande ênfase à necessidade de paz e justiça, humanismo de que o espírito conciliar se fazia promotor. Ora, os intelectuais do mundo, há séculos, acusam a Igreja de usar a ameaça dos castigos divinos para aumentar o seu poder em detrimento da justiça civil e da paz entre as nações. Com o silêncio sobre o inferno, os intelectuais do concílio, antes mesmo de reconhecer as “culpas” da Igreja, como aconteceria nos anos seguintes, davam tacitamente razão aos colegas externos.
Essa linha não foi casual, pois continuou e foi intensificada na atividade pós-conciliar através dos novos catecismos, dos sínodos etc, onde não só a noção de castigo, mas a de pecado, foram transformadas. No sínodo dos bispos de 1983, ocasião em que os fermentos do concílio já produziram seus resultados nas cabeças dos vários prelados do mundo, serão ouvidos disparates pseudo-religiosos, de fazer caçoar até os jornalistas, com títulos do gênero “Inferno e paraíso fechados para consertos”, “Novas categorias de pecados”; e enquanto a ofensa a Deus e à Sua justiça vai sendo deixada de lado como conceito na Igreja conciliar, despontam estranhos sucedâneos políticos, como seja o pecado social de quem não clama contra o capitalismo e de quem não faz a opção pelos pobres, nova comunhão dos santos, formato conciliar.
Se João Paulo II em suas alocuções lembra a perda do senso de pecado no mundo hodierno, o próprio pecado original é descrito como um conto imaginado por sábios do tempo do rei Salomão no catecismo francês pierres vivantes, patrocinado pela conferência dos bispos franceses (Il Tempo de Roma, Il Giornale de Milão, out. 83).
É claro que a par disso tudo também se tenta nos ambientes eclesiásticos baixar um véu sobre a Paixão de Nosso Senhor, ou adaptar-lhe o sentido para uso da nova pastoral sócio-política. Tratar-se-ia do martírio de um libertador que, como acontece continuamente na História, veio libertar seu povo da opressão. Que as torturas e morte ignominiosa sofrida pelo Filho de Deus venha lembrar a causa da redenção: o horror da rebelião a Deus dos primeiros pais e a degeneração pecaminosa que se seguiu, seria demais! Seria atentar contra a noção de dignidade humana que o Vaticano II houve por bem reformar!
À nova dignidade humana conciliar não podia deixar de seguir-se o novo orgulho de bondade que consiste em ir além do Salvador, não mais advertindo dos males e perigos, mas encobrindo-os. Assim, suprime-se a menção do castigo eterno, por caridade. Ensina-se que o inferno é uma metáfora, mas que, se porventura existe, não há provas de que haja condenados a tanta crueldade. Deus é amor (DIC, p. 79 e ss.). E todavia, a Virgem Maria, Mãe de Misericórdia, mostrou o inferno aos pastorzinhos para prevenir os homens e a Providência achou que deveria desvelar ao nosso século os sofrimentos de Jesus, gravados milagrosamente no Santo Sudário de Turim. Ainda por amor dos homens, vinham suprir as almas sequiosas de espírito divino, aquilo que os pastores sonegavam por orgulho humano. Pediam apenas que cada um rezasse pelo próximo dizendo ao fim de cada dezena do Terço: “Ó meu Jesus, perdoai-nos, livrai-nos do fogo do inferno, levai as almas todas para o Céu, principalmente as que mais precisarem.”
Qual espírito ocultaria aos homens o abismo infernal que a Mãe celeste mostrou em Fátima? Só se desse abismo subiu e a ele atrai.


O ESPÍRITO CONCILIAR ESTENDE A MÃO AO COMUNISMO
Para começar a esclarecer este ponto, vejamos o testemunho de quem viveu esse drama: monsenhor Lefebvre, falando aos jornalistas no aeroporto de Paris, dia 9 de dezembro de 1983:
“(...) Em todo lugar os fiéis nos dizem — mudaram nossa religião, não é mais a religião católica. Estão escandalizados em ver bispos com tendências marxistas. Mas isto não deveria surpreender, porque não se condenou o comunismo durante o concílio e agora não há como condená-lo. É algo absolutamente inaudito na história da Igreja.
Reuniu-se um concílio pastoral, dito pastoral, isto é, para cuidar das almas dos fiéis, da salvação destes e do mundo. Pois bem, ao maior mal, ao mais ignóbil, ao mais dissolvente da sociedade, da pessoa humana, da liberdade, que é o comunismo, foi dito: não o condenaremos durante o Concílio.
“Pessoalmente sei de algo. Fui eu quem, com dom Sigaud, reuniu as quatrocentas e cinqüenta assinaturas de bispos para a condenação do comunismo. Eu mesmo as levei à secretaria do concílio, foram postas numa caixa! E depois tiveram a pretensão de dizer que no concílio não houve nenhum pedido de condenação do comunismo! Havia sido eu mesmo a levar pessoalmente esse documento do qual conservei a lista dos bispos que o subscreveram. É realmente inverossímil. Imediatamente protestei e me foi respondido que não era verdade que haviam sido apresentadas 450 assinaturas. Depois disseram que estas chegaram tarde e que não se sabia onde estavam. Efetivamente haviam decidido que o comunismo não seria condenado, para que pudessem comparecer ao concílio os delegados de Moscou.”
Esse assunto já começou a ser tratado sob o título “Um acordo Montini-Stalin” (p. 51), onde se viu que essa tratativa sinistra, da qual ainda não se conhecem as circunstâncias e da qual jamais se poderá saber tudo, neste mundo, era o início de um processo de compromissos que teria no concílio uma aplicação prática, cujo êxito nos dará idéia do quanto valiam.
Tratava-se de obter a presença no concílio de observadores do patriarcado ortodoxo de Moscou, aliás sabidamente comprometido com o regime soviético. Note-se que os ortodoxos turcos e gregos já haviam decidido que não compareceriam ao concílio reunido em Roma, em 1962, desde que, antes do acordo Roma-Moscou, constava que os russos não iriam. Curiosamente essa solidariedade acabou por deixá-los fora, dada a mudança fulmínea destes, fazendo com que o arcebispo de Atenas os acusasse de haver rompido a “Unidade ortodoxa”. Isto tudo consta do livro Humanismo soviético, do padre Ulisse Floridi, Ed. Agir (p. 225). O mesmo autor escreveu o importante livro Moscou e o Vaticano, editado em muitas línguas. É dito aqui, para mostrar como o interesse ecumênico dos organizadores do concílio era, senão um pretexto, pelo menos muito mais propenso a uma aproximação com os teleguiados de Moscou do que com os patriarcados de Constantinopla e Atenas. Mas há um outro aspecto citado nesse livro que deve ser notado: “No Congresso pan-ortodoxo de Rodes, em 1961, o pedido da delegação russa causou grande impressão: que fosse cancelado da ordem do dia o assunto relativo às missões e ao ateísmo e fosse substituído por aquele referente à luta pela paz e contra o racismo. Falando da unidade das igrejas, o arcebispo Nikodim declarou que a Igreja russa era favorável, mas que ela não podia tolerar que certos ambientes ocidentais, e nomeou o Vaticano, aproveitassem desta aspiração para dela fazer a base ideológica da luta contra os povos empenhados no caminho da democracia (isto é, dos países comunistas!).” (cf. La Croix, 21/10/61)
Ficamos sabendo com isto que o patriarcado de Moscou segue a política de silenciar sobre o ateísmo e indignar-se contra um anticomunismo que ainda via em Roma. Revela-se assim uma “igreja popular-democrática” que tem por porta-voz o jovem Nikodim. Tudo isto pode ter assustado os popes orientais, não o papa da Roma conciliar.
Como se viu antes, João XXIII ordenou ao cardeal Tisserant que iniciasse tratativas com Nikodim, que para os serviços secretos ocidentais era um agente da KGB. O mesmo que iria morrer com a idade de 53 anos, em 1978, nos braços de João Paulo I, no Vaticano. Depois que o próprio papa deu explícitas garantias ao governo de Moscou de que não haveria debate sobre o comunismo e menos ainda condenações, essas tratativas foram tão aceleradas que em questão de dias monsenhor Willebrands, depois cardeal e substituto do cardeal Bea, partiu para Moscou disfarçado de executivo sueco, a fim de confirmar as garantias de não anticomunismo do concílio, obtendo assim a partida para Roma dos observadores ortodoxos russos.
Esses fatos e tantos outros detalhes estão registrados nos livros Papa Giovanni, il Papa della Tradizione, de Ernesto Balducci, e Pope John and His Revolution, de E.Y. Hales, e em artigos das revistas Itineraires de 1962, 63 e 84, Approaches de 83 e 84, e Si si no no dos mesmos anos. Como observa Jean Madiran em Itineraires, se sobre os detalhes dessa operação, que deve ser considerada a “vergonha da Santa Sé no século XX”, pode haver algumas dúvidas, sobre a sua atuação que perdura no presente não há nenhuma: o Vaticano deixou desde 1962 de fazer qualquer referência ao comunismo e seus males. No máximo voltou-se a falar das deficiências do marxismo, quando até os socialistas o fazem.
O jornalista católico inglês Gregory Macdonald, num artigo em Approaches, n.º 79, lembra que o Concílio Vaticano II ficou condicionado por essas misteriosas tratativas e diz: “Para aquilatar o significado disso tudo, seria necessário indagar a que ponto estaríamos hoje se, antes do Concílio de Nicéia, o papa tivesse concordado com o imperador, que não seria discutida a heresia de Ário. A promessa a um poder civil que venha a coagir os trabalhos de um concílio iminente, não constitui acaso a rendição da independência espiritual da Igreja? Disto vem outra pergunta: a que ponto as decisões e os documentos de tal concílio, mesmo se devidamente promulgados pelo papa, vinculam os fiéis?”
Na mensagem de Fátima Nossa Senhora diz: “Virei pedir a consagração da Rússia ao meu Imaculado Coração e a comunhão reparadora nos primeiros sábados. Se atenderem a meus pedidos, a Rússia se converterá e terão paz. Se não, espalhará os seus erros pelo mundo, promovendo guerras e perseguições à Igreja. Os bons serão martirizados. O santo padre terá muito que sofrer. Várias nações serão aniquiladas. Por fim, o meu Imaculado Coração triunfará.” Ora, todos estes fatos mostram que os erros da Rússia condicionaram o concílio e, através deste, tiraram a liberdade da Igreja e desarmaram seus militantes. Será, portanto, sobre o espírito desse concílio que deverá triunfar Maria Virgem.


PAULO V PROCLAMA NA ONU SUA LIBERDADE RELIGIOSA
Antes do encerramento do Concílio Vaticano II, em outubro de 1965, Paulo VI foi à sede da ONU em Nova York, onde pronunciou um surpreendente discurso no qual aquela entidade foi considerada a última esperança da humanidade. Depois de enaltecer os princípios em que operava, isto é, os direitos humanos, passou a falar do culto do homem e de seu direito fundamental à liberdade religiosa. Sobre essa matéria versava um dos documentos que continuava a ser apresentado ao concílio para aprovação. Dirá monsenhor Lefebvre: “Cinco vezes rechaçamos esse esquema no concílio, cinco vezes voltou nos mesmos termos, porque foi prometido aos maçons e aos protestantes aceitar a liberdade religiosa que é um direito inscrito na Declaração dos Direitos Humanos, algo que jamais antes havia sido aceito. A Igreja sempre foi pela tolerância, porém nunca pela liberdade religiosa de todas as religiões, porque a Igreja professa ser a Verdade e o erro pode ser tolerado, mas nunca posto em pé de igualdade com a Verdade. Eis a que chegamos”.
De fato, essa declaração conciliar anômala, pela qual seria a própria Igreja, em nome de Deus, a declarar que os homens podem escolher qualquer religião e até mesmo nenhuma, se preferissem, ainda encontrava resistência dentro do concílio. No entanto, nessa ocasião, diante da assembléia das Nações Unidas, Paulo VI houve por bem expô-la como doutrina já endossada pelo concílio.
Com isto mostrava ser o principal mentor não só da abertura à ONU e ao mundo que essa organização convoca aos seus princípios, mas dessa Declaração, mais afim com esses princípios, do que com os da Igreja.
Paulo VI quis ir à ONU e lá antecipar essa Declaração que o Concílio só aprovaria, quando de sua volta e na última sessão, dia 7 de dezembro 1965, com a renitência de 70 padres que alegavam grave objeção de consciência.
Passados vinte anos, ainda não foi devidamente aquilatado o que representa para os homens a aprovação, por um concílio ecumênico da Igreja católica, da declaração Dignitatis humanae sobre a “liberdade religiosa”. Quem cuidou de compará-la ao magistério anterior da Igreja ficou sabendo que o direito fundamental de que fala é considerado delírio, a Liberdade que proclama é chamada indiferentismo, a dignidade que exalta é julgada decadência, e quando considera a livre escolha isto sempre foi considerado erro ou heresia.
Em poucas palavras, essa declaração proclamaria o direito à liberdade de errar, degradando a própria dignidade na escolha do indiferentismo perante Deus, que vai desde a Sua negação até ao Seu ultraje. Tudo isto declarado como modo de realizar a dignidade natural do homem, dom do Criador. Portanto, Deus teria dado ao ser humano não só o livre-arbítrio, pelo qual deverá responder no juízo final, mas o “direito” de escolher o erro e, portanto, de cometer o pior delito. Tanto representa o direito à liberdade religiosa que, referindo-se a Deus, é a liberdade máxima da qual as outras advirão naturalmente. Não há de fato, delito material que não venha de um pensamento delituoso que, por sua vez, não provenha de um pecado espiritual. E quem ordena o espírito dos homens na verdade e no bem é a religião única, revelada pelo próprio Deus.
Bem entendido, a liberdade foi dada ao homem por Deus e apesar do preço altíssimo que esse bem implica. Isto é incontestável e é a razão mesma pela qual existem também a responsabilidade e a culpa. O que essa “declaração” quis acrescentar, seguindo as idéias do mundo, foi o direito a exercer publicamente uma liberdade sem vínculos com a verdade revelada que está na origem da moral e da religião únicas. Ora, as autoridades que aprovaram essa “declaração” em nome dessa religião, que tornariam opcional, é como autodeclinassem tanto da própria autoridade como dessa fé que se define única e indispensável. 249 padres a contestaram até o fim. Mas pela pressão aberta de Paulo VI, esse número caiu para 70, um número simbólico para representar a consciência católica diante de algo que é muito mais que um erro, mas que foi promulgado por um papa sob os aplausos delirantes de um concílio que se abria para o Mundo.
Além dessa declaração sobre a liberdade religiosa, Paulo VI promulgou a Constituição Pastoral da Igreja no Mundo Moderno, no dia 7 de dezembro 1965, fazendo um discurso de encerramento sem precedentes na história da Igreja; anunciava a glória do homem que se faz Deus.
Entre essas palavras de Roma e as palavras da ONU, muitos católicos perceberam nitidamente que o papa reinante estava inaugurando uma nova religião dentro da religião do Deus que se fez homem. O passo seguinte seria formar uma nova Igreja conciliar para acolhê-la, com uma nova doutrina, uma nova liturgia e uma nova lei canônica. Tudo o que era velho deveria ser adaptado ao novo.
Mas, diante de uma questão de tamanha gravidade, comecemos a descrição desse pontificado montiniano pela análise fria de Henri Fesquet no Le Journal du Concile, onde, lembrando que Paulo VI é o promotor do “humanismo integral” de Maritain, vê a sua doutrina como aplicação do “Reconhecimento de uma humanidade adulta”. E conclui: “A humanidade hoje não é, nem acredita ser, religiosa, mas tem fé em si mesma. Essa fé, embora inteiramente secular, foi de certo modo batizada por Paulo VI.”


Talvez por essa razão esse Papa, depois do seu discurso no palácio de vidro da ONU, em Manhattan, não se furtou em recolher-se à sala de meditação, diante da pedra-altar a uma potência incógnita, que certamente não é nada diante da Trindade divina, mas poderia cingi-lo do carisma de “grande irmão do movimento de animação espiritual para a democracia universal”. Seguir-se-iam anos de grandes transformações e miséria espiritual.


CARDEAIS DENUNCIAM A NOVA MISSA
No início de 1969 foi introduzida no culto católico uma nova missa que, sendo fortemente apoiada pelo papa, seria posteriormente chamada Missa de Paulo VI. Em setembro do mesmo ano, testemunharam contra a sua ortodoxia o cardeal Alfredo Ottaviani, que fora até o ano anterior o pró-prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, e o cardeal Antônio Bacci. Eis a carta enviada a Paulo VI:
Santíssimo padre,

Após examinar e fazer examinar o “Novus Ordo Missae” preparado pelos peritos do “Consilium ad exequendam constitutionem de Sacra Liturgia” depois de uma longa reflexão e preces, sentimos o dever diante de Deus e de Vossa Santidade de exprimir as seguintes considerações:

1) Como demonstra em modo suficiente o exame crítico anexo, por breve que seja — estudo feito por um grupo escolhido de teólogos, liturgicistas e pastores de almas —, o “Novus Ordo Missae”, considerando-se os elementos novos, susceptíveis de apreciações diversas que aparecem subentendidos e implicados, representa, seja no conjunto como nos detalhes, um impressionante afastamento da teologia católica da Santa Missa, tal como foi formulada na XXII Sessão do Concílio de Trento, o qual, fixando definitivamente os “canons” do rito, levantou uma barreira intransponível contra toda heresia que viesse atingir a integridade do Mistério.

2) As razões pastorais aduzidas para justificar tão grave ruptura, mesmo no caso de terem o direito de subsistir em face de razões doutrinais, não parecem suficientes. Aparecem tantas novidades no “Novus Ordo Missae”, por um lado, enquanto por outro, tantas verdades perenes são relegadas a um lugar menor ou diverso — se ainda encontram algum lugar — que poderia transformar-se em certeza a dúvida — que infelizmente insinua-se em muitos ambientes — de que verdades sempre acreditadas pelo povo cristão poderiam ser mudadas ou passadas sob silêncio sem que haja infidelidade ao depósito sagrado da Doutrina à qual a fé católica está ligada em eterno. As reformas recentes demonstraram suficientemente que novas mudanças na liturgia não levariam senão à total desorientação dos fiéis que já demonstram apreensão e uma inequívoca diminuição da própria Fé. Na parte melhor do Clero, isto causa uma crise de consciência torturante, da qual temos inúmeros e quotidianos testemunhos.

3) Estamos certos de que estas considerações, que só podem ser diretamente inspiradas no que ouvimos de viva voz dos pastores e do rebanho, não poderão deixar de encontrar eco no coração paternal de Vossa Santidade, sempre profundamente solícito para com as necessidades dos filhos da Igreja. Os súditos, para cujo bem é estabelecida uma lei, sempre tiveram o direito, e mais que direito, o dever — se a lei se revela nociva — de pedir ao legislador, como confiança filial, a revogação dessa lei.

Eis porque suplicamos insistentemente a Vossa Santidade que não nos tire — em um momento de tão dolorosas dilacerações e de perigos cada vez maiores para a pureza de Fé e a unidade da Igreja, que ecoam contínua e tristemente pela voz do Pai comum — a possibilidade de continuar a recorrer ao íntegro e fecundo “Missale Romanum” de São Pio V, tão altamente louvado por Vossa Santidade e tão profundamente venerado e amado por todo o mundo católico.


Alfredo, Cardeal Ottaviani Antônio, Cardeal Bacci
Ora, essa nova missa havia sido definida: (pt. 7) — Ceia do Senhor ou Missa é a sagrada reunião ou assembléia do Povo de Deus reunido em comum e presidido pelo sacerdote para celebrar o memorial do Senhor. Por isso, de maneira particular vale a promessa de Cristo: “Onde dois ou três estão congregados em Meu Nome, ali estou Eu no meio deles”. (Mt. 18,20) Era, porém, a definição de Lutero!
Depois da denúncia dos dois cardeais, que, aliás, deveriam ser diversos, não fora uma deserção de última hora para não “desagradar” o sumo pontífice, essa definição foi retirada sem comentários ou retratações. A nova missa continuou a mesma, mas em 1970 apareceu uma definição onde se corrigia a definição claramente herética.
Isto não poderá, porém, esconder nem o espírito da nova missa nem o de seus promotores. Estes irão impô-la com toda a autoridade e artifícios de que dispõem. Será então que muitos católicos, que quiseram acreditar que Paulo VI havia sido enganado, tiveram que se convencer de que ele era o grande promotor da novidade litúrgica. Os objetores serão perseguidos e até suspensos, como será o caso de monsenhor Marcel Lefebvre. Todas as novidades e experiências litúrgicas terão livre curso num impressionante afastamento do sacrifício da missa católica.


QUEIXA AO SANTO PADRE EM 1972
“O leigo tem o direito de receber dos sacerdotes todos os bens espirituais para obter a salvação da alma e para atingir a perfeição cristã: quando se trata de direitos fundamentais dos cristãos, ele pode fazer valer suas exigências (Cód. Dir. Can. 467; 892); é o sentido e o fim de toda a vida da Igreja que está aqui em jogo, assim como a responsabilidade diante de Deus, do padre e do leigo.”
São palavras de Pio XII no discurso Six ans, em 5 outubro de 1957.
Ora, o conhecido escritor francês Jean Madiran, assim descreverá as exigências que tinha a fazer em 1972 (Réclamation au Saint-Père, L’hérésie du XXe siècle II, Nouvel. Edit. Latines, Paris 1974, p. 9):
“Tudo o que na Igreja foi temerariamente inovado desde 1958, ano da morte de Pio XII, transforma-se visivelmente em confusão e aniquilamento. Tudo o que na Igreja posterior a 1958 se quis, com impiedade e desprezo, separar da Igreja anterior a 1958, traz a marca manifesta da mentira e da morte. Reconhecê-las-ei pelos frutos.
“Tudo o que a impiedade moderna quis pôr no lugar da Escritura, do Catequismo e da Santa Missa, já cheira a decomposição. Pode-se não ousar confessá-lo, com medo do partido no poder dentro da Igreja militante. Pode-se mostrar vontade de não ter ainda percebido nada, para não arriscar-se às represálias desse partido sectário, cruel e perseguidor. Mas, seja no segredo do coração, seja escondendo suas certezas reencontradas, os fiéis agora sabem. Os fiéis, esses que receberam, guardaram e cultivaram o dom da fé teologal, sabem que é um partido, justamente, um partido, não um magistério legítimo, que governa a administração eclesiástica; eles sabem que uma facção ilícita e injusta, tirânica e ímpia, confisca em seu proveito os poderes espirituais; eles sabem que a sua nova Igreja não é a Igreja; que a sua nova religião não é a religião de Deus vivo.
“E esta verdade devidamente reconhecida nos liberta.”
Carta a Paulo VI, de 27 de outubro de 1972, publicada em Itineraires.
“Santíssimo Padre,

Devolvei-nos a Escritura, o Catecismo e a Missa.

Estamos cada vez mais privados deles por uma burocracia colegial, despótica e ímpia, que pretende com ou sem razão, mas que pretende de todos modos sem ser desmentida, impor-se em nome do Vaticano II e de Paulo VI.
“Devolvei-nos a Missa católica tradicional, latina e gregoriana segundo o Missal romano de São Pio V. Deixais dizer que Vós a interditastes. Mas nenhum pontífice poderia, sem abuso de poder, proclamar a interdição do rito milenar da Igreja católica, canonizado pelo Concílio de Trento. A obediência a Deus e à Igreja nos obrigaria a resistir a tal abuso de poder, se tivesse efetivamente acontecido, e não a submetermo-nos em silêncio. Santíssimo Padre, seja com Vós ou sem Vós, que fomos cada dia mais, sob o Vosso pontificado, privados da Missa tradicional, não tem importância. O que importa é que Vós, que podeis devolvê-la, no-la devolva.
“Nós a reclamamos a Vós.
“Devolvei-nos o Catecismo romano, o que, segundo a prática milenária da Igreja, canonizada pelo Concílio de Trento, ensina os três conhecimentos necessários para a salvação (e a doutrina dos sacramentos sem os quais esses três conhecimentos resultariam ordinariamente ineficazes). Os novos catecismos oficiais já não ensinam os três conhecimentos necessários à salvação. Numerosos sacerdotes e bispos chegam, como se pode comprovar perguntando-lhes, a já nem mesmo saber quais seriam esses três. Santíssimo Padre, que seja por Vós ou sem Vós, que fomos cada dia mais, sob o Vosso pontificado, privados do ensino eclesiástico dos três conhecimentos necessários para a salvação, não tem importância. O que importa é que Vós, que podeis devolver o Catecismo romano, no-lo devolva. Nós o reclamamos a Vós.


Devolvei-nos a Sagrada Escritura: agora falsificada pelas versões obrigatórias que pretendem impor o novo catecismo e a nova liturgia. Em 1970 escrevi a Vossa Santidade a propósito de blasfêmias introduzidas na epístola do domingo de Ramos (blasfêmia 'aprovada' pelo episcopado francês e confirmada pela Santa Sé): que foi mantida substancialmente idêntica, em nossos livros litúrgicos, e simplesmente declarada facultativa (!). Deve-se citar ainda, entre cem outras, o cinismo libertino que faz proclamar liturgicamente, atribuindo a São Paulo, que para viver santamente é preciso casar-se. Santíssimo Padre, é no Vosso pontificado que as alterações da Escritura se multiplicaram a ponto de não haver mais, para os livros sagrados, uma garantia certa. Devolvei-nos a Escritura intacta e autêntica. Nós o reclamamos a Vós.
“A Igreja militante é atualmente como um país submetido a uma ocupação estrangeira: aparenta-se submissão a tudo, mas o coração não está nisso, oh não! É o condicionamento psicológico e é a pressão sociológica que fazem marchar as gentes. Um partido que Vós conhecestes bem, quando ele passava por inocente e escondia seus intentos, um partido que quando obteve sucesso revelou-se cruel e tirânico, domina diabolicamente a administração eclesiástica. Este partido atualmente dominante é o da submissão ao mundo moderno, da colaboração com o comunismo, da apostasia imanente. Ele possui quase todas as posições de comando e reina, sobre os covardes, pela intimidação, sobre os fracos, pela perseguição.
“Santíssimo Padre, confirmai na sua fé e em seu bom direito os sacerdotes e os leigos que, apesar da ocupação estrangeira da Igreja pelo partido da apostasia, guardam fielmente a Sagrada Escritura, o Catecismo romano e a Santa Missa católica.
“E depois, sobretudo, deixai que chegue a Vós o sinal de socorro espiritual dos pequeninos.
“Os meninos cristãos não são mais educados, mas degradados pelos métodos, pelas práticas, pelas ideologias que prevalecem com muita freqüência hoje em dia, na sociedade eclesiástica. As inovações que são impostas invocando, com ou sem razão, o último concílio e o papa atual — e que consistem, resumindo, em atrasar ou diminuir sem cessar o ensino das verdades reveladas, e aumentar e avançar sem cessar a revelação da sexualidade e de seus sortilégios —, produzem em todo o mundo uma geração de apóstatas e de selvagens, cada dia mais preparados a se matarem cegamente.
“Devolvei-lhes, Santíssimo Padre, devolvei-lhes a Missa católica, o Catecismo romano, e a versão e interpretação tradicionais da Escritura. Se Vós não lhes devolverdes neste mundo, eles vo-los reclamarão pela eternidade.
“Dignai Vossa Santidade de aceitar, junto à minha enfática queixa, a homenagem de meu filial apego à sucessão apostólica e ao primado da Sé romana, e para a Vossa pessoa, a expressão de minha profunda compaixão.”
Jean Madiran (Diretor de Itineraires e Présent)


FÁTIMA PROFANADA


Para descrever o momento do pontificado de Paulo VI em que Fátima foi focalizada, aqui é transcrito o trecho relativo do Liber Accusationis com que o padre Jorge de Nantes pede ao próprio papa que faça seu autojulgamento. Para tanto, foi a Roma com diversas pessoas de seu movimento de contra-reforma católica, a fim de apresentar o livro-libelo a Paulo VI. Como se pode imaginar, o pedido não foi nem mesmo ouvido, e o livro causou a prisão e expulsão da Itália de quem tentou entregá-lo em mão ao pontífice, durante uma audiência no Vaticano.
Poderia parecer aos fiéis que essa recusa representa uma condenação do Liber e suas descrições. Foi justamente o contrário, diante da impossibilidade de refutação do que este encerra. Não só, foi também a prova da contradição de quem proclamou o direito à liberdade religiosa, mas nega aos católicos a possibilidade de defender a integridade da fé, diante da cátedra papal. Eis o trecho: “Pela angústia sobre-humana em vista do que vai sucedendo [na Igreja], aconteceu-me mais de uma vez esperar uma peregrinação do papa a Fátima. O encontro do Vigário de Cristo e da Virgem Imaculada parecia-me poder tornar-se o 'Sinal Celeste' da graça e misericórdia que poderia tudo salvar e restituir ao antigo esplendor. (...) Parecia-me que os escândalos, a atmosfera de cisma, as suspeitas de heresia, que pesavam sobre nós como chumbo, ter-se-iam dissipado com a vossa ida a Fátima. De repente, teríamos reencontrado nossa confiança e amor filial, como que lavados por um batismo de graças. Naquele lugar, vos seria impossível senão rezar à Santíssima Virgem Maria, juntamente com a imensa multidão católica, leal, tradicional, e depois deixar que fosse a Mãe de Deus, Nossa Mãe tutelar a falar, revelando o seu Terceiro Segredo e obedecendo a seus pedidos. Com isto o mundo se teria convertido, começando por nós, vossos padres, vosso povo, os pobres pecadores. Tal era a nossa esperança...
“Fostes a Fátima, é verdade, dia 13 de maio de 1967, 50 anos de dias contados após a aparição celeste (...) mas cinco horas após não subsistia qualquer esperança de paz, estava perdida a última e misteriosa graça esperada desse encontro do Vigário de Cristo e de Sua Santa Mãe. Por que escrevi sobre esta imensa e certa desilusão? Porque ficou evidente demais, do começo ao fim, que fostes a Fátima não para ver, mas para mostrar-vos, não para ouvir, mas para falar, não para cair de joelhos mas para sobressair diante de um milhão de homens prosternados, não para acolher ordens celestes mas para impor vossos projetos terrenos, não para implorar a paz à Virgem Maria mas para pedi-la aos homens, não para santificar o vosso coração, purificando-o das nódoas de Manhattan, mas para impor justamente nos domínios de Maria o mundo dessa Manhattan. Fostes profanar Fátima.
“Desde o início percebeu-se claramente que Vossa intenção era continuar fiel a Vós mesmo. O presidente Salazar não é um presidente Obote, mas civilizado e cristão, é um dos mais prestigiosos benfeitores da civilização cristã, e Portugal é no mundo o país mais fiel à fé católica, proclamada corajosamente na sua Constituição e transcrita na sua Concordata. Mas naquela ocasião, com o pretexto de ser uma viagem breve, de peregrino, não destes a devida atenção nem ao país, nem ao seu chefe. E assim a imprensa progressista pôde fazer ecoar pelo mundo o desprezo demonstrado por Vós a esse valoroso povo.
“Premeditastes celebrar ali uma missa em português, quando o mundo inteiro e de todas as línguas estava à escuta, deixando claro ao Portugal tradicional que o vosso era o partido dos inovadores, da mudança, pondo a vossa vontade acima da glória de Deus, e celebrando assim uma missa apressada, ininteligível, fria e gaguejante, como observará Laurentin.
“Tínheis organizado uma série de audiências que ocupariam todo o vosso tempo. Em especial um encontro altamente significativo, ecumênico, com representantes de comunidades não católicas. Acabaram vindo somente dois destes, eram presbiterianos, mas como não compreenderam o francês do discurso que havíeis preparado, não tivestes outra escolha que trocar algumas palavras inúteis. Embora muitos católicos quisessem falar-vos, orar junto a vós, não foram recebidos.
“Permanecendo assim ocupado com as vossas quimeras políticas e ecumênicas, não fizestes a peregrinação, e aí começa o escândalo espantoso. Entre tantos discursos não se acham senão breves alusões superficiais e frias às aparições de 1917. Não quisestes ir aos lugares da cova da Iria, embora muito próximos, onde estas ocorreram, dando assim a impressão — voluntária? — de não acreditar nelas. Aliás, sendo desde o momento da chegada objeto de um culto apaixonado da parte da multidão, que vos prestou aclamações sem cessar por mais de uma hora de trajeto, diante da imagem de Nossa Senhora de Fátima, nem uma saudação fizestes. Nada escapa às câmaras de TV... Da tribuna saudastes repetidamente a multidão sem ter saudado a Virgem. Passastes diante da sua imagem, meta da vossa peregrinação, sem levantar o olhar. Não rezastes o terço com o povo e se dissestes uma Ave-maria, não se soube.
“Chegou enfim o momento do grande encontro, da última esperança que todos nós confusamente esperávamos. Teríeis encontrado a menina de Fátima, Lúcia, a última dos pequenos e santos videntes de 1917! Por amor à humanidade, por amor à Igreja e de todos nós, criaturas dispersas, por amor de vós mesmo, Santo Padre, o Céu vos oferecia essa graça: Lúcia vos pedia chorando alguns instantes de colóquio a sós. Não se recusa ouvir a pastora de Fátima, a pequena mensageira do Céu, confirmada na graça e na sabedoria por cinqüenta anos de claustro. — Vós recusastes essa graça.
“O vosso intérprete, padre Almeida, numa entrevista à Rádio Vaticana contou o episódio: A um certo momento Lúcia exprimiu o desejo de dizer algo ao papa a sós, mas este respondeu: compreenda, não é o momento. Além disso, se tendes algo a comunicar-me, dizei-o ao vosso bispo e ele me comunicará; tende toda confiança nele e obedecei-o em tudo. E o papa benzeu irmã Lúcia como um pai que benze um filho que talvez jamais tornará a ver. Há graças que passam e nunca mais voltam...
“Seis dias antes, 7 de maio, mostrastes um interesse bem diverso por Claudia Cardinale e Gina Lollobrigida, numa tarde movimentada em São Pedro. Quatro dias depois, 17 de maio, escutastes com a máxima atenção as duas presidentes israelitas da Organização oculta do Templo da Compreensão. E no entanto recusastes ouvir a mensagem pessoal que a Virgem teve a bondade de mandar-vos por meio de Lúcia, sua filha predileta. Quero que saibais o gozo infernal dos jornais progressistas e de todos as organizações anticlericais das comunicações sociais, diante dessa notícia. Finalmente respiravam tranqüilos! O papa havia resistido, não se deixara dobrar pela visão celeste, pela Voz vinda do Alto, como acontecera com o primeiro Paulo. Não aconteceu o vosso caminho de Damasco!
“Mas, o que queria dizer-vos aquela criatura? O que vos atemorizava tanto? A soma de vossas heresias, cismas e escândalos não deixa senão o embaraço da escolha: mas há uma possibilidade mais forte que as demais. A mensageira do Céu queria certamente lembrar-vos a vontade da Autoridade suprema, a única acima de vós, que é Deus; ver-vos publicar para o mundo o 'terceiro segredo de Fátima' (...) cujo teor essencial é sem dúvida análogo ao dos dois primeiros... Mas, não conhecendo as coisas terríveis com que o Céu adverte o mundo, este não se converterá e deslizará sem freios no pântano da corrupção e do sangue. Será a terceira guerra mundial do comunismo perseguidor e triunfante, a guerra atômica com suas inauditas devastações, a grande apostasia dos cristãos. E pelo fato de, com vosso silêncio, não terem sido advertidos e chamados à conversão, os povos perderão a fé junto com a vida.
“Este sinal de Jonas é esperado desde 1960. Todos os contraditórios pretextos que objetam à publicação do segredo não fazem senão agravar as responsabilidades de quem sabe e faz silêncio. Não, aquela mensagem profética não é insignificante, nem tranqüilizante, nem reservada. Era uma mensagem para todos em 1960! O é ainda hoje. E se pareceu terrível demais então, assim ficou. Mas é a única palavra que pode afastar o flagelo que se aproxima (...). Os desígnios do Céu não mudam (...) e o cálice está cheio, a iniqüidade atinge o auge. É absolutamente necessário que a Igreja inteira saiba a que abismo a humanidade está sendo arrastada pelo pecado. Senão, por que fostes a Fátima?
“Depois de vossa peregrinação é como se a tivésseis suprimido. Ninguém mais se ocupa nem das vontades de Deus que estão expressas nela, nem da conversão da Rússia, nem do segredo, nem das devoções recomendadas, especialmente 'a reza do Terço pela paz' que Lúcia vos havia pedido de viva voz, fazer intensificar, naquele famoso 13 de maio de 1967.
“Mas, como fizestes para chegar a tanto? A resposta é simples: substituístes com a vossa, a mensagem da Rainha da Paz; ao desígnio de Deus que nos foi revelado em Fátima (p. 14) substituístes o vosso grande projeto que revelastes em Manhattan e que consiste em pedir a Paz ao coração dos homens, aos quais vós a confiais.
“Para esse fim não hesitastes em fazer-vos passar por um ditoso beneficiário de uma revelação celeste. Aparecendo na janela do vosso apartamento do Vaticano na tarde de vosso retorno, dissestes: 'Em Fátima indagamos Nossa Senhora sobre as estradas que conduzem à paz e nos foi respondido que a paz é realizável.'
“Foi um jornalista do jornal Messaggero que resumiu a impressão geral que isto causou em Roma: 'Seria fácil demais forçar o sentido de uma expressão tão singular, mas dela pode-se crer, deduzir que durante sua peregrinação ao Santuário de Fátima Paulo VI tenha tido um momento, por assim dizer, de comunicação interior com a nossa advogada, mãe e protetora dos homens nos seus esforços pacíficos.'
“É justamente isto que quisestes fazer pensar. Que o Céu vos tivesse dito: Ide, avança no teu 'Grande Projeto'; convoca todos os homens a construir a nova paz, não mais somente os católicos com a oração e penitência, mas com a tua nova revelação: Populorum Progressio, com 'Progresso e Paz'... Vós quisestes atribuir ao Céu a mensagem do Inferno que não cessais de dizer e repetir desde Manhattan: a paz é possível porque os homens são bons; a paz é obra dos homens, de todos os homens, fruto de seus esforços convergentes sob a direção mundial das organizações judeu-maçônicas. É o culto do Homem que substitui o Culto de Deus.”
O padre de Nantes conclui citando uma oração de Paulo VI aos homens que considera discurso de anticristo, solicitando-o a desmenti-lo publicando o terceiro segredo, fazendo um convite universal à oração e penitência, intensificando o Terço pela paz e pronunciando a Consagração ao Coração Imaculado de Maria, do qual depende a paz, por que Deus lha confiou.
Inútil dizer que nada disso foi feito e esse Liber Accusationis, que tem escrito na sua capa — “Entregue à Santa Sé no dia 10 de abril de 1973 pelo Abbé Georges de Nantes e por sessenta delegados da Liga Contra-reforma Católica” — ficou como um registro histórico sem nenhuma resposta. Muitos alegaram que continha exageros e irreverências, e por isto não poderia ser tomado a sério. Na verdade, a resposta de Paulo VI consistiu em levar avante o seu “grande projeto”, como todos puderam ver, ignorando este “Liber” bem como as respeitosas cartas e estudos de exímios prelados.
Deveria ficar bem claro que a desculpa da irreverência não pode ser alegada nessa matéria, em que está em jogo a defesa da fé, nem sob o ponto de vista meramente formal, nem, por maior razão, sob o ponto de vista disciplinar, sobretudo não se pode negar a verdade que a preocupação maior da Igreja deve ser sempre a salvação das almas; e aqui se mostrou como estas estão em risco.
Há testemunhos que acrescentam alguns detalhes inéditos sobre o encontro de Paulo VI com irmã Lúcia, a fim de deixar claro o que podia significar irreverência para um pastor megalômano.
No momento do encontro, as pessoas mais próximas eram, além do secretário particular, padre Macchi, o bispo peruano monsenhor Alfonso Zaplana, da cidade de Tacua, falecido em 1975. Pois bem, este prelado contou repetidas vezes a alguns de seus padres e diocesanos um fato que muito o impressionara: depois de ter recebido a vidente com grande afabilidade e tê-la apresentado à multidão, Paulo VI trocou breves palavras com irmã Lúcia sobre a impossibilidade de falarlhe a sós naquela ocasião. Em seguida, percebendo que o importante momento passaria sem que dissesse ao papa o essencial, a religiosa prostrou-se de joelhos aos seus pés e em lágrimas perguntou-lhe se não lhe parecia chegado o momento de revelar a parte secreta da mensagem. Diante disto o rosto de Paulo VI alterou-se completamente e com voz irada interpelou Lúcia, dizendo; “Como ousais dizer a nós o que devemos fazer!” O tom paternal transformara-se, a ponto de deixar o bispo estarrecido.


CARTA DE D. ANTÔNIO DE CASTRO MAYER A PAULO VI (25-1-1974)
Sobre a distância que se estabelece entre o sumo pontífice e os fiéis, e mesmo sacerdotes, haveria muito a dizer. Nem sempre depende do papa, além do quê há muitas precauções de segurança e de conveniência a considerar sobre tão singular posição. Por vezes, serão os auxiliares imediatos do santo padre a criar à sua volta um 'cordão sanitário', que acaba por isolá-lo contra a sua vontade. Assim, diante de muitos erros e abusos que vêm de cima, será justo dizer: sua santidade não sabia; o papa foi enganado! Ora, no caso de Paulo VI, ficava claro ser ele que se furtava à obrigação de atender a quem lhe falava de questões de fé, bem como responder às graves acusações sobre desvios doutrinais e litúrgicos.
Consta que quando em seus últimos anos tinha terríveis momentos de depressão, pensando no que havia feito, seria ainda esse cordão sanitário progressista que o animaria com reuniões festivas, a fim de que sentisse o apoio popular para continuar sua obra. Essa forma de “animação” democrática e pouco católica era do seu gosto e conforto. Todavia, isto só fazia agravar a pertinácia com que levou avante seu projeto, apesar das sábias, respeitosas e ponderadas advertências que recebeu de alguns insignes prelados.


A carta que segue — e a falta de resposta — comprova essa culpa.
Beatíssimo Padre,

Prostrado respeitosamente aos pés de Vossa Santidade, peço vênia para submeter-lhe à consideração os estudos que seguem com a presente carta. O envio destes estudos efeito em obediência à ordem de Vossa Santidade transmitida por carta do Eminentíssimo Cardeal Sebastião Baggio ao Em. mo Cardeal D. Vicente Scherer, da qual este último me deu ciência oralmente em encontro que com ele tive no Rio de Janeiro a 24 de setembro p.p.

Em 15 de outubro último, tive a honra de escrever a Vossa Santidade, afirmando meu filial acatamento a tais ordens. Entre estas, estava a de que, dada a eventualidade de “em consciência não estar eu de acordo” com “atos do atual Magistério Ordinário da Igreja”, “manifestasse livremente à Santa Sé” meu parecer. É o que faço com toda a reverência devida ao Augusto Vigário de Jesus Cristo, ao entregar a Vossa Santidade os três estudos anexos.

Com isto — digne-se Vossa Santidade notá-lo — não pratico outra coisa senão um ato de obediência à Sua veneranda determinação. As apreciações que neles externo, eu as formei ao longo de anos de reflexão e de oração. Não é minha intenção entregá-los ao público, certo de que minha reserva agradará Vossa Santidade.

Eis que, Santo Padre, a obediência me obriga agora a comunicar a Vossa Santidade pensamentos que talvez lhe tragam pesar. Faço-o, no entanto, com paz de alma, pois estou na via da sinceridade e da obediência, na qual conto permanecer com a graça de Deus. Mas, se está tranqüila minha consciência, ao mesmo tempo está triste o meu coração. Com efeito, toda a minha vida de Sacerdote e de Bispo vem sendo marcada pelo empenho de — no meu limitado ambiente de ação — ser, por meu devotamento irrestrito, e por minha obediência inteira, motivo de alegria para os vários Papas sob cuja autoridade tenho sucessivamente servido.

Ora, na presente conjuntura, o devotamento e a obediência me levam a contristar a Vossa Santidade. Um episódio da História da França no século passado me açode ao espírito neste passo. Narra-o Chateaubriand nas “Memoires d'Outre tombe”. Certa vez o Rei Luís XVIII lhe solicitou a opinião sobre uma medida que o monarca acabava de tornar pública. A sinceridade impedia o escritor de elogiar tal medida. Mas o receio de contristar o Rei movia-o a calar-se. Esquivou-se, pois, de externar seu pensamento. Vendo isto, Luís XVIII mandou formalmente ao escritor que falasse com inteira franqueza. Este, atendendo ao nobre mandato, e antes de abrir-se a seu Rei, lhe dirigiu este pedido: “Sire, pardonnez ma fidélité”. É o que peço a Vossa Santidade: perdoe-me a fidelidade com que cumpro Suas ordens.

Suplico a Vossa Santidade compaixão para a obediência deste bispo já septuagenário, que vive neste momento o episódio mais dramático de sua existência. E peço a Vossa Santidade que me dispense pelo menos uma parcela dessa compreensão e dessa benevolência que tem tantas vezes manifestado não só em torno a si, como também com pessoas estranhas, e até inimigas do único Redil do único Pastor.

Ao longo dos anos foi tomando corpo em meu espírito a convicção de que atos oficiais de Vossa Santidade não têm, com os dos Pontífices que o antecederam, aquela consonância que com toda a alma eu neles desejava ver. Não se trata, é claro, de atos garantidos pelo carisma da infalibilidade. Assim, aquela minha convicção em nada abala a minha crença irrestrita e enlevada nas definições do concílio Vaticano I.

Receando abusar do valioso tempo do Vigário de Cristo, dispenso-me de mais amplas considerações e limito-me a submeter à atenção de Vossa Santidade três estudos: 1) Sobre a “Octogesima Adveniens”. 2) Sobre a Liberdade Religiosa. 3) Sobre o novo “Ordo Missae”. (Este último de autoria do advogado Arnaldo Vidigal Xavier da Silveira, a cujo conteúdo me associo.)

Supérfluo será acrescentar que neste passo, como já em outros de minha vida, darei cumprimento, em toda a medida preceituada pelas leis da Igreja, ao Sagrado dever da obediência. E neste espírito, com o coração de filho ardoroso e devotíssimo do Papa e da Santa Igreja, acolherei qualquer palavra de Vossa Santidade sobre este material. De modo especial suplico a vossa Santidade queira declarar-me: a) Se encontra algum erro na doutrina exposta nos três estudos anexos; b) Se vê na atitude assumida nos ditos estudos face aos documentos do Supremo Magistério, algo que destoe do acatamento que a estes devo como Bispo.

Suplicando, queira Vossa Santidade conceder-me, como à minha Diocese, o precioso benefício da Bênção Apostólica, sou de Vossa Santidade, filho humilde e obediente.
(ass.) Antônio de Castro Mayer, Bispo de Campos.

Essa carta tornou-se pública somente em 30 de junho de 1983 e foi a revista quinzenal romana Si si no no a primeira a fazê-lo, comentando:
“É uma documentação de grande atualidade e extremo interesse para a compreensão de um pontificado cujas opções desastrosas ainda pesam sobre a Igreja pelos seus muito amargos efeitos.
“Basta ler algumas linhas de seus documentos para entender que o tom de dom Mayer nada tem em comum com apelos emotivos ou protestos impulsivos: é um sucessor dos apóstolos que, ciente da sua enorme responsabilidade, dirige-se ao sucessor de São Pedro para expor-lhe gravíssimas objeções que se apóiam em argumentos incontestáveis. Ao mesmo tempo nota-se que seu respeito pela figura do santo padre quase o faz tremer, mas isto não o impede de expor com firmeza serena o seu discurso dos atos papais que comprometem as raízes mesmas da fé católica, apostólica, romana.
“A carta de Sua Excia. Antônio de Castro Mayer não recebeu outra resposta que esta, transmitida dia 22 de março de 1974 através do núncio apostólico Carmine Rocco: 'As cartas de 25 de janeiro pp. dirigidas ao Em.mo Card. Baggio e a Sua Santidade Paulo VI, junto aos estudos feitos por V.Excia., chegaram ao destino.'
“Sobre o conteúdo dos estudos desceu um impenetrável silêncio. Desse modo sumário a autoridade decaída pensava resolver a questão. Nem a gravidade das objeções doutrinais, nem a aflição de um venerável bispo que se sentiu obrigado a discordar do papa para permanecer fiel a Cristo, à Igreja, às almas, puderam induzir Paulo VI a entreabrir os anteparos atrás dos quais escondia a sua face verdadeira.
“E todavia, como se pode ver pela carta de dom Mayer, foi-lhe dito expressamente, em nome do santo padre, que manifestasse com toda a liberdade as razões do seu dissenso. Na realidade, Paulo VI, ou alguém em seu nome, queria somente averiguar até que ponto teria ido a resistência do então bispo de Campos. Já nos anos sessenta, quando a este bispo havia sido atribuída uma rigorosa análise teológica sobre a possibilidade de um papa herege e sobre o novo Ordo Missae, o secretário de Estado Cardeal Jean Villot e o cardeal Baggio intervieram pessoalmente, não para esclarecer questões doutrinais, mas para pressionar o bispo dissidente a usar 'reserva e discrição que se fazem obrigatórias'.
“Pois bem, na carta que acompanhou os três estudos, dom Mayer assegura a sua reserva e intenção de não tornar pública a questão. Tanto bastava ao papa Montini e aos montinianos. Tudo mais, a integridade da fé, a fidelidade à tradição católica, a aflição de quantos, como dom Mayer, sentiam-se dilacerados entre a obediência à Igreja e a obediência indevida mas imposta, a um curso eclesial que contrasta com a fé e a tradição imutável da Igreja, tudo isto pouco importava a quem pusera seu próprio 'eu' no lugar de Deus. E assim foi enganada a boa fé, a devoção e a confiança de um bispo que ainda não havia aquilatado a profundidade do abismo em que precipitara a suprema autoridade da Igreja.
“Somente com o passar dos anos e a evidência dos fatos convenceu-se de que em tempos como este o silêncio de quem tem responsabilidade pelas almas é omissão culposa e a obediência incondicional é deplorável cumplicidade.”
No fim desse artigo, que segue o estudo sobre o novo conceito de liberdade religiosa da declaração conciliar Dignitatis humanae, há uma nota que diz “À primeira carta de Sua Excia. Mons. Castro Mayer a Paulo VI em 1974, seguiram-se outras, dirigidas também ao atual pontífice. Todas continuam sem resposta.”



TRÊS ESTUDOS — TRÊS PREVISÕES VERIFICADAS
O pontificado de Paulo VI reflete de modo sinistro todas as conseqüências que advieram dos erros liberais e modernistas descritos por São Pio X e sintetizados nos três estudos de dom Mayer.
De fato, o aspecto geral do presente aggiornamento e transformação religiosa tem as características da tática modernista, descritas pelo papa Sarto no início do século: uma aparente dispersão de uma miríade de novas idéias, expressas numa linguagem vaga, indefinida e por vezes hermética como textos arcanos. Essa tática “(...) consiste em não expor nunca suas doutrinas de modo metódico e no seu conjunto, mas dando-as em fragmentos e espalhadas cá e lá, o que contribui para que sejam julgados flutuantes e indecisos em suas idéias, quando na realidade estas são perfeitamente fixas e consistentes (...)” Eis o “hamletismo montiniano” descrito pela Encíclica Pascendi de S.S. São Pio X.
O primeiro estudo versa a Encíclica Octogesima adveniens, de Paulo VI. Nele é demonstrado como o socialismo, que em todas as suas formas foi declarado incompatível com a doutrina católica pelo magistério da Igreja, nessa encíclica, que alterna trechos tradicionais com novidades, expressões obscuras, elogios às intenções, justificações parciais de heterodoxias e, até mesmo, identificações destas com a doutrina católica, esse socialismo recebe no fim uma parcial abertura, uma velada “redenção” como erro, uma espécie de batismo verbal na prática. Exemplo disso é o “socialismo-cristão”. Não há dúvida de que essas tendências já viviam no seio da Igreja desde pontificados anteriores, mas com Paulo VI foram primeiro toleradas e depois, com esta Encíclica, doutrinalmente justificadas. De fato, esta desenvolve uma apologia do igualitarismo social, do utopismo, do democratismo e, por fim, para aplicar tudo isto à religião, do interconfessionalismo.
Não é difícil imaginar como também a ordem inversa pode ser posta em prática para fazer com que grupos religiosos cheguem ao socialismo, aplicando o interconfessionalismo. Isto se viu nas “comunidades de base”, que comungam numa crença que deixa de lado os dogmas da fé, “que podem separar”, para aceitar a solidariedade revolucionária, que pede sobretudo a união.
Nesse sentido é significativo o programa proposto por dom Hélder Câmara ao teórico marxista Garaudy: “O próximo passo para nós cristãos é proclamar publicamente que não é o socialismo, mas o capitalismo, intrinsecamente perverso. O socialismo só é condenável nas suas perversões. E para você, Roger, o próximo passo é demonstrar que a revolução só tem um vínculo histórico com o materialismo e ateísmo, mas ao contrário e co-natural ao cristianismo. (Parole, d'homme, ed. Laffont, Paris, 75) Ora, sob Paulo VI, amigo deste bispo, essas idéias se alastraram no mundo passando por católicas. Seria isso possível se essa encíclica não as favorecesse?
O segundo estudo anexo à carta a Paulo VI tratava justamente da questão pela qual uma atitude de isolamento e perseguição se manifestaria com mais dureza para com os católicos fiéis à tradição: o problema da nova missa. Ali é feita uma análise desta, à luz de tudo o que a Igreja estabelecera nos séculos para dar força litúrgica às verdades de fé professadas pela religião de Deus que se fez Homem, para, sacrificando-se, redimir os homens.
O estudo demonstra que a nova missa é uma clara concessão aos protestantes, no sentido de diminuir ou cancelar tudo quanto seja uma profissão de fé litúrgica dos dogmas católicos, que são inaceitáveis para os reformados. Torna-se, assim, protestantizante.
Esta análise crítica, porém, não era nem única nem nova. Já fora feita sob múltiplos pontos de vista e pelos mais diversos estudiosos, religiosos, leigos e até diversos protestantes convertidos. Além disso, havia sido avaliada desde o início nada menos que pelo prestigioso prefeito da Congregação para a Doutrina da fé, cardeal Ottaviani, que juntamente com o cardeal Bacci apresentou carta a Paulo VI acompanhada do “Breve exame crítico”, onde é explicado por que a nova missa “afasta-se de modo impressionante da Teologia Católica como foi formulada no Concílio de Trento”. (p. 91 e segs.)
A questão da revolução litúrgica promovida por Paulo VI é grave demais para ser resumida. Aqui lançaremos apenas um olhar sobre o espírito que a guiou e os frutos que produziu. Estes foram, desde o início: falsidade, desprezo e perseguição da tradição católica, dessacralização, e, pior que tudo, geral profanação da Casa de Deus. A falsidade já se mostrou diante do exame crítico dos cardeais. Em novembro, 1969, com uma alocução em audiência geral, Paulo VI indiretamente contestava a evidência, afirmando que a nova missa era o rito de sempre até mesmo melhorado. Palavra de papa? Enquanto dizia isso, mandava retirar, para discretamente fazer corrigir, a “Instrução geral” da nova missa que continha uma definição protestante e, portanto, herética do sacrifício da missa. Mas ficou evidente que mesmo a nova edição corrigida de 1970 não podia encobrir o erro. Enquanto isto, o cardeal Ottaviani foi vítima de injúrias e traições veladas, e aproveitando-se de sua cegueira até cartas se falsificaram. Era o início de uma surda perseguição contra a fidelidade católica, que ainda continua. Documentam isto, entre outros, os livros sobre a revolução litúrgica do inglês Michael Davies, especialmente Pope Paul’s New Mass (1980, Devon, Ed. Augustine).
Quanto aos péssimos frutos de protestantização vistos por dom Mayer, estão aí a vista de todo mundo. Para nos limitarmos ao país das estatísticas, em 1959 havia nos EUA 39.505.475 católicos, 3.481.498 a mais com relação a 1958, e 12.787.132 a mais com relação a 1949. Um aumento de quase 50% em dez anos. São cifras da Enc. Britannica (1960), que fazem um espantoso contraste com as de monsenhor George Kelly The Battle for the American Church, Doubleday, NY, 1981: “Depois do concílio, cerca de 10 milhões de católicos (30%) deixaram de ir à missa dominical; cerca de 2 milhões a menos inscreveram-se em escolas católicas; há meio milhão a menos de batizados e 50 mil conversões a menos.” Seguem as estatísticas da perda de fé entre os fiéis: quanto aos religiosos, 50 mil freiras deixaram os conventos entre 1966-76; 10 mil sacerdotes abandonaram o seu ministério e a matrícula nos seminários caiu de 50 mil para 17 mil. Da fé destes é melhor não falar.
Eis, portanto, uma resposta em números que dá apenas uma pálida idéia da transformação profunda operada pelo Concílio Vaticano II com suas inovações, sua liturgia, seus erros inimagináveis. O desastre é universal, não só no espaço terreno, mas na estrutura desta mesma Igreja, cujos bispos e sacerdotes, desnorteados, deixam de entender se a própria missão e autoridade devem coibir os abusos anticatólicos, ou promover as estranhas novidades conciliares, se devem falar ainda da sacralidade suprema do santo sacrifício da missa ou participar e co-celebrar em ceias ecumênicas ágapes sindicais, confraternizações revolucionárias e até gay.
Não admira, porém, que as dúvidas superficiais se esvaeçam, quando, para exemplo dessa protestantização galopante, são os papas que celebram, rezam e abençoam nos outros templos, enaltecendo até a religiosidade de Lutero e outros heresiarcas.
O terceiro estudo feito por esse doutor em sagrada teologia de renome mundial que é dom Mayer, tratava do conceito de liberdade religiosa na declaração Dignitatis Humanae, aprovada pelo Concílio Vaticano II, isto é, pela maioria dos padres, menos 70 que até o fim, e apesar das garantias dadas por Paulo VI, discordaram.
De fato, as implicações desse documento são de tal monta que concentram tudo o que é devido aos erros dos outros, pois pretende sancionar como direito natural a própria escolha do erro. Ora, o erro, seja político, social ou religioso, tem a inverdade por origem e o direito a escolher uma mentira religiosa implica a negação da religião verdadeira, até mesmo como conceito.
Vai nisso tudo uma incrível confusão entre o livre-arbítrio, pelo qual o homem pode optar pelo mal, arcando naturalmente com as conseqüências dessa escolha, e a liberdade religiosa fundamental, pela qual deve poder aderir à verdade religiosa. E esta é a revelação, Depositum Fidei, guardada pela Igreja Católica.
Considerar indiferente essa reta adesão religiosa, isto é, dar o direito à liberdade de aceitar ou não a verdade, segundo a própria preferência ou opinião, seria dar legitimidade à negação do bem, da religião, da revelação e, portanto, da encarnação, da redenção, do pecado original, da criação mesma e, pois, de Deus. Ora, isto podem dizer os agnósticos e os ateus, e já é difícil que quem professe sinceramente uma religião qualquer possa partilhar dessa indiferença, mas que venha num documento católico é inaudito.
Uma declaração da Igreja é pronunciada com a autoridade divina; portanto, aceitar o que proclama a Dignitatis humanae seria admitir que Deus dá a cada homem, como direito fundamental, a escolha da  crença ou negação que preferir, mesmo contra a verdade, contra a revelação, contra a sua autoridade absoluta.
Ora, entre os absurdos desse documento está o fato de pretender falar com a autoridade mesma da qual dispensa os homens de obediência, não só em foro íntimo, mas publicamente. Em outras palavras, equivaleria a alguém que se apresentasse como autoridade legítima para autorizar todos a duvidarem de sua legitimidade e do que declara.
Como se vê, está em jogo a questão da autoridade. Uma associação qualquer poderia declarar que os cidadãos são livres para aceitá-la e até mesmo para tomá-la a sério. Seria extemporâneo e irrelevante, mas não absurdo. Nenhuma autoridade ficou nisso implicada. No caso, porém, de uma declaração em nome da Igreja, cuja existência mesma vem da autoridade de Deus, é muito diferente porque seus homens são meros porta-vozes da autoridade. Eis o impasse! Como seria possível, sequer pensar, que Deus, tendo revelado as verdades de fé necessárias ao homem para salvar-se, depois faria declarar pela Sua Igreja que é um direito fundamental que Ele concedeu desde as origens a liberdade de aceitá-las ou negá-las, legitimando assim todas as crenças e seitas religiosas, todos os agnosticismos e ateísmos. Se assim fosse, também Adão teria o direito de escolher e comer o fruto que quisesse. O direito natural está ligado à natureza de todos os homens, e desde o início, e a escolha do primeiro homem foi religiosa porque teve relação com a vontade revelada de Deus. Certamente conhece esta de modo mais direto que seus descendentes, mas o problema religioso humano está na adesão filial, não no conhecimento, que é sempre limitado.
Ora, pretender justificar essa liberdade de pensamento, de opinião, de consciência; pretender mesmo que no seu uso reside a dignidade da pessoa humana implicou todas as aberturas ideológicas e experiências dentro do próprio catolicismo. Tudo seria então permitido, dentro e fora da Igreja conciliar menos a fé. A fé única, fundamento da doutrina e liturgia católicas há dois mil anos e que Fátima veio lembrar, tornava-se sinal de contradição na própria Roma!



DECLARAÇÃO DE MONSENHOR LEFEBVRE
Festa da Apresentação de Maria Santíssima, 21/11/74
Nós aderimos de todo o coração e com toda a alma à Roma católica, guardiã da fé católica e das tradições necessárias para a preservação desta mesma fé, a Roma eterna, mestra de sabedoria e de verdade.

Nós rejeitamos, ao contrário, e recusamos sempre seguir a Roma de tendência neomodernista e neoprotestante que se manifestou claramente no Concílio Vaticano II e depois do concílio, em todas as reformas que dele procederam.

De fato, todas estas reformas contribuíram e ainda contribuem para a demolição da Igreja, para a ruína do sacerdócio, para o aniquilamento do sacrifício e dos sacramentos, para o desaparecimento da vida religiosa, para um ensino neutro e teilhardiano na universidade, nos seminários, na catequese, ensino que procede do liberalismo e do protestantismo, já tantas vezes condenado pelo magistério solene da Igreja.

Nenhuma autoridade, nem mesmo a mais alta hierarquia, pode obrigar-nos a abandonar ou a diminuir a nossa fé católica, claramente expressa e professada pelo magistério da Igreja há 19 séculos.
“Mas, ainda que nós mesmos ou um anjo do céu vos anuncie um evangelho diferente daquele que vos temos anunciado, seja anátema!” (Gl. 1,8)


Não é, talvez, o que nos repete hoje em dia o santo padre? E se uma certa contradição se manifestar entre suas palavras e seus atos, assim como nos atos dos dicastérios, então nós escolhemos o que foi sempre ensinado e não daremos ouvidos às novidades que destroem a Igreja.

Não se pode modificar profundamente a lex orandi sem modificar a lex credendi. A nova missa corresponde ao novo catecismo, ao novo sacerdócio, aos novos seminários, à nova universidade, à nova Igreja carismática, pentecostal, todas coisas opostas à ortodoxia e ao magistério de sempre.

Esta reforma tendo saído do liberalismo e do modernismo, é toda e inteiramente envenenada; nasce da heresia e termina na heresia, mesmo que todos os seus atos não sejam formalmente heréticos. É, portanto, impossível a qualquer católico consciente e fiel adotar esta reforma e submeter-se a ela de algum modo.

A única atitude de fidelidade à Igreja e à doutrina católica, para a nossa salvação, é a recusa categórica de aceitar a reforma.

Por isto, sem nenhuma rebeldia, nenhuma amargura, nenhum ressentimento, nós prosseguimos na nossa obra de formação sacerdotal sob a estrela do magistério de sempre, persuadidos como estamos de não poder prestar maior serviço à santa Igreja católica, ao sumo pontífice e às gerações futuras.

Por isto nós aderimos firmemente a tudo que foi acreditado e praticado na fé, os usos, o culto, o ensino do catecismo, a formação do sacerdote, a instituição da Igreja, da Igreja de sempre, e codificado nos livros que apareceram antes da influência modernista do Concílio, esperando que a verdadeira luz da tradição possa dissipar as trevas que obscuram o céu da Roma eterna.

Fazendo assim, estamos convencidos, com a graça de Deus, a ajuda da Virgem Maria, de São José, de São Pio X, de que permanecemos fiéis à Igreja Católica e Romana, a todos os sucessores de Pedro e de que somos os fideles dispensatores mysteriorum Domini Nostri Jesu Christi in Spiritu Sancto. Amém. (ass.) Marcel Lefebvre.
Ora, aconteceu que tudo o que está escrito aqui, e pede a atenção de qualquer católico, foi tomado como um desafio a Paulo VI e ao seu pontificado conciliar, em que o próprio papa já vira a autodemolição operando e a fumaça de Satã infiltrando-se. Seguiu-se a perseguição ao valoroso arcebispo, um dos mais fiéis e prestigiados por Pio XII.


A CONTINUIDADE NA AUTODEMOLIÇÃO DA IGREJA
Não há católico que deixe de ter um natural sentimento de respeito e devoção pelo Papa, vigário de Nosso Senhor na Terra. De fato, ao santo padre compete arcar com o maior peso na defesa e preservação da fé, contra a qual vêm embater-se as paixões e as concupiscências do mundo, e sem a qual ninguém se salva.
É claro, porém, que o Chefe da Igreja instituiu um Seu representante terreno, e tudo mais na Igreja, para a fé, não para fim contrário. Por essa razão São Paulo enfrentou São Pedro quando este pôs em perigo a fé, e os padres e doutores de todos os tempos ensinam que os fiéis devem fazer o mesmo se estiver em jogo a fé. Agora, depois de tudo o que se relatou aqui a propósito do que foi a ação do papa Paulo VI, alguém poderá objetar que todos os homens erram, e que se deve levar em conta tudo que foi feito de bom também. Desse papa ficou registrado que mesmo durante o Concílio ele tomou atitudes decididas para sanar documentos já bastante comprometidos pelos maiores inovadores. Com isto foi ao encontro de dissabores e antipatias. Mais tarde compôs o “Credo do Povo de Deus”, que era uma profissão de fé bastante ortodoxa e decididamente malvista pelos modernistas mais ousados. Outrossim, não negou a por sua assinatura à encíclica mais impopular de nossos dias, a Humanae Vitae, sobre a natalidade e proibição da pílula.
No entanto, com relação à maior parte dos problemas que enfrentou, achou por bem experimentar soluções novas no campo da fé. Quando em seguida via que os resultados eram infaustos, chegava a dizer, alarmado, que a Igreja estava em fase de autodemolição, ou que o fumo de Satã a invadia por alguma fresta. Mas nem por isto voltava ao que sempre se fez, aplicando medidas corretivas: o caminho pastoral da Igreja conciliar era irreversível. Por quê?
Porque o pretexto pastoral e até as pausas no processo de transformação da Igreja serviram para consolidar o terreno conquistado pelo progressismo. Mas a prova definitiva da implantação do espírito transformista se teve em duas modificações principais e que dependeram do papa. A primeira foi o reforço das conferências episcopais que na prática vinham condicionar os bispos ao que era decidido nas cúpulas e comitês. E a segunda foi a aceleração do processo de renovação, pelo estabelecimento de novos limites de idade para bispos residenciais e para cardeais eleitores, bem como da ampliação do número destes.
Sobre essa modificação, iniciada no tempo de João XXIII, haveria muito a dizer. Aqui bastará uma referência ao que diz respeito à eleição do papa. Como é fácil imaginar, isto sempre foi uma grave preocupação para a Igreja. Certamente o Espírito Santo protege Sua Obra, mas a presença do inimigo nessas circunstâncias tão delicadas é igualmente certa e ajudada pela ambição que esse mau espírito sabe incutir nos homens. Ora, um dos perigos foi sempre o continuísmo humano, tanto por interesses pessoais como por consolidar erros que tiram da Igreja a liberdade de renovar-se.
Foi tendo em vista esse bem maior que o papa Sisto V reorganizou entre 1586-88 a Cúria Romana e o Colégio dos Cardeais, que teria um número máximo de setenta. Desse modo era mais fácil assegurar um consistente número de cardeais de pontificados anteriores, que compensariam, para efeito de continuidade, os novos, feitos pelo último papa. Diz-nos a propósito o renomado historiador Georges Goyau: “A experiência de três séculos atesta a solidez e a oportunidade da obra de Sisto V”. Reformas parciais foram feitas só em 1908, sem alterar o limite de 70. Mas em 14-12-58 João XXIII faz 23 novos cardeais, perfazendo um total de 74. Dentre estes, monsenhor Montini, que anos após seria eleito papa num conclave de 80 cardeais. Este número seria elevado por Paulo VI para 120 e as novas nomeações iriam servir para consolidar os novos critérios conciliares e inovadores dos últimos pontificados revolucionários.
A razão alegada para esse aumento pode parecer plausível, pois visa uma representatividade maior nesta época democrática em tudo. Não pode, porém, deixar de ser notado que para fazê-lo usaram certamente um poder soberano, mas no sentido contrário à intenção dos papas precedentes que visavam um interesse maior da Igreja, que pouco tem a ver com o processo democrático: a continuidade na fé. Ora, o fato de os velhos cardeais terem sido afastados nas últimas eleições papais, e as escolhas feitas para novos cardeais, não deixam dúvida de que os homens da Igreja quiseram assegurar não mais a continuidade da Igreja de sempre, mas aquela das próprias inovações e diretivas. Eis a seqüência dos fatos: dia 1.º de outubro de 1975 Paulo VI emite uma “Constituição Apostólica sobre a Eleição do Supremo Pontífice”. Desta ficam excluídos os cardeais com mais de oitenta anos. Na primavera de 1976 nomeia 20 novos cardeais de mentalidade progressista, terceiro-mundista, ou mesmo produtos da ostpolitik como monsenhor Lekai, sucessor do cardeal Mindzenty na Hungria. Note-se que os nomes de Arns, Lorscheider, Pironio, etc, então já eram muito malvistos pela Cúria vaticana.
No conclave para a eleição do sucessor de Paulo VI, dos 111 cardeais eleitores 100 haviam sido apontados por este papa. Nele, as rigorosas condições de segredo e de abstenção, por parte dos cardeais, de campanhas eleitorais e compromissos, seriam regularmente esquecidas. Cardeais, como Aloísio Lorscheider, dariam entrevistas sobre o caráter e o programa do candidato ideal.
Curiosamente, o cardeal que votaria em Lorscheider, subscrevendo indiretamente esse programa, seria o sucessor de Paulo VI. Era Albino Luciani, patriarca de Veneza e futuro João Paulo I.


A MORTE DE PAULO VI5
“Um papa sem alma? A transmissão televisiva da viagem do féretro do sumo pontífice, S.S. Paulo VI, de Castel Gandolfo à Basílica de São Pedro em Roma, foi um espetáculo estranho, nunca visto.
“Ao microfone estava um sacerdote para animar a cerimônia: seu comentário era dirigido a todo o mundo pela TV! Mas o mundo não ouviu uma só prece a Deus pela alma do defunto. O que o mundo viu foi o carro fúnebre percorrendo a Via Appia, por onde passaram os apóstolos e mártires que vieram a Roma para ensinar sobre Deus e a alma, e para rezar a Deus, o que significa entregar-lhe a alma.
“O mundo viu o carro passar perto das catacumbas, de onde ainda hoje se elevam orações a Deus. Viu a passagem entre edifícios perfilados nas ruas de Roma, mas faltou sempre o ritmo solene e único da oração e da fé na vida imortal.
“Durante sua última viagem terrena, acaso não teria o sumo pontífice S.S. Paulo VI, uma alma a salvar? E, no entanto, o cortejo passava assim como as imagens da sua glória histórica terrena, materialística, marxisticamente, para a Sua tumba na terra nua. Era como se das ruínas de aras fumegantes viesse somente o murmúrio pagão de louvor ao Vencedor!”
Teria Paulo VI deixado disposições também para sua última viagem?
Quem sabe! Em todo caso, com as reformas que operou na Cúria, o secretário de Estado cardeal Villot assumia todas as posições-chave para controlar tudo no Vaticano, absolutamente tudo, e não hesitava, com relação ao resto, em interferir diretamente, mesmo passando por cima dos chefes dos vários dicastérios. Sabia também como manipular as conferências episcopais. Eis o novo poder!


O SUCESSOR DOS PAPAS JOÃO E PAULO
Sucedeu a Paulo VI o cardeal Albino Luciani, que foi o primeiro bispo consagrado pelo papa João XXIII na Basílica de São Pedro, em dezembro de 1958. Em 1969 Paulo VI o transferia para Veneza, onde foi feito patriarca. Era um fiel continuador dos precedentes pontífices e do Concílio Vaticano II. Tomou o nome de João Paulo.
A escolha desse nome duplo já diz muito, mas aqui nos interessa saber a atitude do novo papa em relação à Fátima. Pois bem, o cardeal Albino Luciani não só foi a Fátima como quis falar com irmã Lúcia, sem esconder, de quem o indagou sobre essa visita, o quanto julgava importante a mensagem trazida por esse verdadeiro “sinal dos tempos” (cf. revista Cuore della Madre, jan. 78).
Teria João Paulo I tomado conhecimento do terceiro segredo? Se o fez, nem por isso associou a crise da Igreja, que nele deve estar descrita, ao que acontecia nas suas imediatas cercanias. E a prova disto é que confirmou provisoriamente o status quo, como podemos ver pela carta aberta publicada pelo diretor do quinzenário Si si no no, com data de 29 de agosto de 1978:
“Santidade, agora são já muitos em Roma a saber que:
— A Providência permitiu a identificação certa da efetiva cumplicidade sectária de altos eclesiásticos, depois da repetida declaração oficial de vértices de tal seita (maçons);
— Das várias provas dessa identificação, estão perfeitamente ao corrente não poucos membros do colégio cardinalício, entre os quais o cardeal Seper (prefeito da Congregação para a Doutrina da fé);
“Evidentemente, o cardeal Albino Luciani não estava ao corrente disto tudo, senão seria inexplicável a apressada confirmação que vossa santidade fez de todos os máximos prelados da Cúria e sobretudo do condicionante secretário de Estado (card. Villot)6. A menos que se deva ver nisso a conseqüência de uma eleição de compromisso. Tal conseqüência, porém, continuaria para prejuízo de tantas almas, como tem sido no passado, e isto não deve ser admitido por vossa santidade. Ainda que fosse para 'ganhar tempo', redundaria numa evidente continuação desse prejuízo das almas. Nós demonstramos repetidas vezes a responsabilidade de alguns diretores da Cúria na atual deturpação da doutrina católica, que através da transformação antropológica conduziu a uma progressiva autodemolição da Igreja, já lamentada pelo vosso predecessor.
“Agora vossa santidade confirma os mesmos responsáveis.
“Com isso vossa santidade entrega-se ao inimigo, o qual se mostrará habilíssimo — como vossa santidade ainda não pode saber, mas saberá ao preço de indescritíveis amarguras — em colocar o papa diante de fatos consumados que determinarão um curso eclesial segundo caminhos que não são da fiel observância e testemunho, mas do renegamento e da traição.
“Nós não seguimos ilusões humanas, mas cumprimos, por meio desta carta, um dever de consciência para com o sacerdócio e para com a Igreja, pelo amor a Nosso Senhor. Se faltássemos em fazer chegar a vossa santidade este aviso, nos sentiríamos culpados de pusilânime omissão.
“De fato, a Salus Ecclesiae deve permanecer, para todo católico, a suprema lex. Com toda deferência devida a vossa santidade.”
Teria sido este um aviso profético para o papa Luciani?


FOI JOÃO PAULO I ENVENENADO?
Com o livro Em nome de Deus o jornalista inglês David Yallop dá por certa a hipótese de que João Paulo I foi assassinado na noite de 28 para 29 de setembro de 1978, depois de apenas 33 dias de pontificado. Seja como for, o autor enumera fatos suspeitos suficientes para que fossem abertos não um, mas vários inquéritos. São fatos ligados a tramas tenebrosas em que estão envolvidos personagens do mundo financeiro e maçônico, dos quais já se ocupam há tempo as justiças italiana, inglesa e norte-americana.
São certamente questões muito intricadas que envolvem vultosos interesses, os quais — é impossível negar — têm fios invisíveis que passam pelo Vaticano atual. Diante deles, um papa inquiridor teria de arriscar a vida, e os traficantes em conluio, motivação e meios para eliminá-lo, nos seus próprios recintos.
Yallop dedicou-se a reconstruir, com os meios de que dispunha, as doze horas do cardeal Villot, secretário de Estado, consecutivas à morte do papa Luciani. Com isto visa a demonstrar que estas foram ocupadas numa tentativa de transformar um envenenamento em morte natural. Ora, seja ou não verdadeira a sua tese, o que é certo é a existência de poderes ocultos e totalmente estranhos à religião, para não dizer à moral e honestidade, que depois dessa morte ficaram intocados. De fato, para o pontificado que se seguiu tudo foi considerado normal e continuou como dantes.
Por essa razão o padre de Nantes escreve, narrando o que é descrito pelo livro de Yallop: “Caim, que fizeste de teu irmão?” A esse grito que remonta às origens da história dos homens, João Paulo II responde do mesmo modo que o pai de todos os assassinos: “Porventura sou eu guardião de meu irmão?”
Mas, afinal, quais são os fatos certos que levantam suspeita?
É certo que a morte de João Paulo I foi inesperada. E, além disso, deve ter sido súbita, para que não tivesse tempo de tocar a campainha ao seu alcance. Ou se tocou, é estranho que não tenha sido socorrido. Quanto ao fato de ter ingerido uma superdose de calmante para dormir, como comentou o cardeal Villot, causa espécie não só a hipótese de suicídio, mas também a de um engano tão banal. De qualquer modo, seus objetos, documentos e o vidro de Efortil de que se teria servido, não foram encontrados. Será que o que se passa dentro do Vaticano não deve ser verificado em caso de suspeitas? Por que essa morte do pai espiritual dos católicos não deve ser explicada do mesmo modo, ou com ainda mais rigor, que as outras mortes?
Aqui, de fato, pode ser traçado um legítimo paralelo com as operações financeiras em que ficou envolvido o banco do Vaticano, e que são do conhecimento público, mas nenhum alto prelado considerou necessário explicar, senão com a alegação de que seu diretor fizera uma avaliação não muito cuidadosa sobre informação de terceiros (a cifra envolvida é de UM BILHÃO E DUZENTOS MILHÕES DE DÓLARES). Ora, somente em 1982 seria feito um relatório acerca dessas operações financeiras suspeitas. Mas, como podemos verificar, o relatório em si, com seus pretextos incríveis, já é motivo de escândalo.
Teriam então usado as mesmas desculpas para apresentar o caso a João Paulo I? Teria o papa concordado em acobertar tudo isso? Não há dúvida de que a falcatrua refere-se ao tempo de Paulo VI, assim como não há dúvida de que o cardeal Luciani sabia de algo. Quanto às pessoas envolvidas, deixando de lado o grão-mestre maçon Licio Gelli, Ortolani, Sindona e Roberto Calvi, que são casos de polícia, não é possível considerar alheio aos fatos Marcinkus, diretor do IOR, nem os cardeais Villot, Baggio, Casaroli e Poletti, que há muito têm o controle da política vaticana e dos quais há provas ou fortes indícios de serem filiados à maçonaria. Assim, o cardeal Ugo Poletti, inscr. 17/2/1969, matr. 32/1425, nome UPO (cf. revista OP); o cardeal Agostino Casaroli, insc. 29/9/57. matr. 41/076, nome CASA (Chiesa Viva 145); o cardeal Sebastião Baggio, inscr. 14/8/57, matr. 85/2640, nome SEBA (cf. Chiesa Viva).
Mas, passemos brevemente pelo que relata o jornalista Yallop e que teve por único desmentido o comentário de ser absurdo, dado o prestígio dos envolvidos (!). Eis a resposta evasiva desses prelados que, mesmo se não forem responsáveis pelas finanças diretamente, são sempre responsáveis pelo aspecto moral destas.
A gestão financeira do Vaticano em 1942 foi entregue ao organismo montado para esse fim, o IOR, Instituto para as Obras de Religião. Este, sob Paulo VI, ampliará suas operações, dando cobertura a grandes movimentos de capitais internacionais à procura de paraísos legislativos fiscais. Isto acontecia desde que fora nomeado para dirigi-lo Paul Marcinkus7, de Chicago, que passara a fazer parte dos colaboradores mais próximos a Paulo VI, também pela sua amizade com padre Macchi, secretário pessoal do papa. Destacou-se logo porque, com seu porte colossal, entrava naturalmente na função de “gorila”, tendo imobilizado nas Filipinas a faca assassina que atentara contra a vida de Paulo VI. Como, porém, a truculência não basta para dirigir um banco, veio a calhar na época a orientação de quem hoje sabemos ter sido o banqueiro mafioso e maçom, Miguel Sindona, ligado à loja P2 do famigerado Licio Gelli.
Ora, quando começou a ruir o enorme complexo de negócios que haviam montado pelo mundo, quem sabe com que escrúpulos, mas certamente tirando partido da credibilidade do Vaticano, deu-se início uma série de liquidações e vendas apressadas ou fictícias, entre as quais a do tradicional Banco Católico do Vêneto, que o bispo Marcinkus vendeu ao banqueiro Calvi. O patriarca de Veneza, Albino Luciani, vindo a saber da operação, foi a Roma para tentar impedi-la. Teve então uma violenta discussão com Marcinkus, que acabou pondo o futuro papa porta afora de seu escritório vaticano.
Uma séria investigação sobre aquelas atividades financeiras era uma necessidade, que se não foi satisfeita no reinado de Paulo VI, seria uma das primeiras preocupações do novo papa. Assim, embora mantendo inicialmente o mesmo secretário de Estado Villot, João Paulo I, que também renovava provisoriamente todo o governo anterior, pensou que poderia apurar esta e outras irregularidades ordenando inquéritos. Aqui vem o comentário do padre de Nantes, lembrando a frase evangélica de São Marcos 3,6: “Então os fariseus saíram e reuniram-se em conselho com os herodianos para ver como o haviam de perder”.
Tudo indica que um mês de pontificado bastou para João Paulo I ver que o Vaticano havia sido transformado num covil de bandidos assim como aconteceu com o Templo de Jerusalém nos dias de Jesus. Portanto, havia decidido operar remoções e transferências de muitos altos prelados. Assim, recebeu em audiência dia 28 de setembro o cardeal Baggio, prefeito da Congregação para os Bispos, que vinha apresentar-lhe sua lista de novas nomeações de bispos. Ora, consta que o cardeal teria saído desse encontro furioso, porque não só as nomeações receberam objeções do papa como o próprio Baggio seria transferido para Veneza.
Seguiu-se o encontro do papa com o cardeal Villot, que recebeu instruções de remover Marcinkus do IOR. Quanto à proposta de sua própria substituição na Secretaria de Estado pelo cardeal Casaroli, especialista em Ostpolitik e outros compromissos, foi afastada por João Paulo I, em favor do poderoso vice de Villot, o cardeal Benelli.
Mas naquela mesma noite essas decisões, conhecidas somente por poucos, seriam anuladas com a morte do papa. Teria sido a digitalina, que não deixa vestígios? Não foi possível saber, pois a autópsia não foi permitida, como muitos pediram, tendo-se imediatamente iniciado um estranho processo de embalsamento sem que sequer uma gota de sangue fosse extraída para exame. Ora, uma análise do sangue teria podido revelar muito da causa mortis. Não admira, portanto, que depois disso tudo e mais o desaparecimento dos papéis e objetos de uso pessoal do defunto, estes fatos sejam considerados suspeitos por muitos e como provas do envenenamento, por Yallop e outros.
O que não deixa margem a dúvidas é que tudo continuou como antes para aqueles que seriam removidos, transferidos ou substituídos. Quando mais tarde morreu também o cardeal Villot, quem o substituiu no poder foi o cardeal Casaroli. Era o pontificado de João Paulo II, primeiro papa não italiano desde o século XVI, mas pouco mudou também para os cardeais Baggio e Poletti e para Marcinkus. Só este último teve alguns problemas, mas com a justiça italiana, e bastou que permanecesse dentro do Vaticano para ficar a salvo.
Consta, porém, que havia uma voz que usava o nome de Luciani quando fazia ameaças telefônicas ao banqueiro Calvi. Este foi encontrado enforcado sob a ponte de Blackfriars, em Londres. Conheceria algo do que se passara no Vaticano? Certamente quem o chantageava devia estar ao corrente de muitos fatos ocultos e sinistros, e é impossível dizer que estes fossem estranhos às finanças do IOR.
Causou surpresa o maçom Lício Gelli, chefe da loja P2, quando, apresentando fotos do novo papa tomando banho de piscina (que disse haver resgatado de um fotógrafo-espião para proteger sua imagem), comentou o quanto seria fácil para quem pôde fotografar também atirar para matar. Estariam chantageando o papa?
O supremo cargo de papa, à semelhança de Quem é representado, está sujeito às piores insídias dos senhores do mundo. Estes, na medida mesmo que o vigário de Cristo revela suas maldades e hipocrisias, só podem votar-lhe sentimentos de ódio, não aplausos.
Hoje, muitas coisas estão mudadas na aparência. É certo, porém, que as recentes aberturas conciliares deram livre curso aos inimigos da Igreja e do papado, dentro do Vaticano e da Igreja toda.
Ainda que João Paulo I não tenha morrido envenenado, como não é difícil acreditar, é certo que não pouco veneno moral e espiritual ingeriu nos 33 dias de seu pontificado, enfrentando os relatórios da avalancha de erros e traições que ocorrem em toda parte do organismo flagelado da Igreja. Teve certamente em mãos os relatos da atividade político-revolucionária dos jesuítas na América Latina. Não pode ter evitado saber das inovações teológicas e releituras evangélicas para o uso das “teologias de libertação”. Deve ter sido advertido das insídias preparadas pelos fautores das falsas igrejas populares, para a Conferência dos Bispos em Puebla, a realizar-se em 1979. Não podia ignorar a proliferação e apoio episcopal dado às comunidades eclesiais de base, postas a serviço das reivindicações sindicais e da luta de classes.
Devia estar ao corrente, como ninguém, de que todas essas faces ameaçadoras para a sociedade e para a Igreja eram do mesmo vulto, do inimigo prenunciado em Fátima como flagelo de um mundo cada vez mais corrompido, ávido de prazeres e indiferente a Deus. Por essa razão, se tomou conhecimento do terceiro segredo de Fátima, a amargura maior poderia ter sido a constatação do quanto seu predecessor havia desprezado um aviso tão claro e essencial.
Diante de tudo isto e dessa morte tanto súbita quanto suspeita, o sucessor no trono papal tornava-se herdeiro ligado diretamente às causas de sua inesperada eleição: os enormes problemas de uma Igreja dilacerada pelos seus inimigos externos e internos, que fazem com que ela seja perseguida internamente e o papa tenha muito que sofrer com as insídias de seus próprios irmãos e predecessores.
Ora, o sucessor Karol Wojtyla assumia o nome de João Paulo II que derivava de seus três imediatos predecessores. Que faria?



3ª PARTE- CUIDAI QUE NINGUÉM VOS SEDUZA

(O tempo está próximo - Lucas, 21,8)
Quem, como o papa Luciani, acredita ser Fátima o verdadeiro “Sinal dos tempos” procurará inteirar-se de tudo que diga respeito a essa aparição e sua mensagem. Quando, então, entender que os grandes eventos preditos vão acontecendo, saberá que ali está descrita também a espantosa crise da Igreja contemporânea. Onde? Em que termos? Com quais conseqüências? E qual o epílogo?
Ora, se à primeira pergunta respondermos que a parte oculta deve estar no terceiro segredo, é como se respondêssemos a tudo mais. De fato, os termos em que se manifesta essa espantosa crise são de ausência, silêncio, omissão, engano e demolição com respeito a tudo que a Igreja ensinou em vinte séculos e ao que a mensagem de Fátima veio lembrar. Assim é que a atitude para com esta reflete também a atitude para com a doutrina de sempre: silêncio, quando não engano e demolição. E o mesmo deve ser dito para o terceiro segredo pela atitude de ocultamento e omissão.
Não deve admirar, pois, que desde o advento da Igreja conciliar tanto se fale em sinais dos tempos e nova Pentecoste, dignidade humana e liberdade de consciência, em abertura ao progresso e amor pelo mundo, em igualdade e ecumenismo, etc. etc, tudo menos de pecado, de perigo, de castigo, que são a causa e o efeito para os povos e indivíduos que, esquecidos de Deus, não voltam à oração e penitência, dando ouvidos ao verdadeiro “sinal dos tempos”.
Sobre isto, a Igreja e os papas conciliares têm silenciado, assim como sobre a admoestação ao pecado; a descrição dos grandes perigos presentes, e a descrição dos castigos terrenos para os povos, eternos para as almas. O ocultamento do terceiro segredo não é, nem mais nem menos, que a representação desses silêncios, enganos e omissões.
Quanto às conseqüências para a própria Igreja, foi Paulo VI quem as descreveu, assustado, quando falou em autodemolição e fumaça de satanás. E, no entanto, ignorou que para cada efeito há uma causa, para cada erro uma correção e em cada sinal um aviso.
Nosso Senhor em João (9, 39-41) disse: “Eu vim ao mundo para exercer um juízo — para que os que não vêem vejam e os que vêem se tornem cegos. E ouvindo isto alguns fariseus que estavam com Ele, disseram-lhe: Porventura nós também somos cegos? E Jesus respondeu: Se vós fósseis cegos, não teríeis culpa; mas, pelo contrário, dizeis: nós vemos. Permanece portanto o vosso pecado.”
Esses fariseus são aqueles doutores religiosos que não aceitavam os sinais que o Messias lhes dava com os Seus milagres. Antepunham a



estes as suas regras, pensamentos e deliberações, adotadas nos sinédrios e nos concílios de marca humana e venal. E as conseqüências foram de destruição na Jerusalém antiga como hoje na Jerusalém católica e do retorno e Babel e à Babilônia mundana. Assim foi no passado e assim é no presente. Mas, pode ser este o epílogo na era cristã?
Certamente não. As portas do inferno não prevalecerão contra a Igreja, já foi dito por Jesus; “Por fim meu Imaculado Coração triunfará”, foi lembrado por Maria em Fátima. “O Santo Padre consagrar-me-á a Rússia, que se converterá, e será concedido ao mundo algum tempo de paz.” O que nos separa ainda dessa hora?
Eis que ao novo papa se dirigiu a esperança de que atendesse ao pedido de Fátima. Se ele tem o espírito mariano isto podia ser possível. Se ele confia na Mãe de Deus a ponto de ter escrito no seu brasão Totus tuus, isto pareceria provável.
É certo, porém que, não poderia fazê-lo sem restaurar antes a fé católica que foi manchada e alterada. Qual outro pode ser o triunfo do Imaculado Coração de Maria? Pode ele triunfar com sua devoção esquecida, sua mensagem escondida e sua reparação silenciada?
Não é tudo isto, devoção, consagração e reparação, fruto da íntegra e imaculada fé católica? Qual triunfo sem o “dogma da fé”?


CARTA AO PAPA JOÃO PAULO II8
“Santidade,
Consideramo-nos entre os que com júbilo sincero deram graças a Deus pela vossa eleição ao supremo pontificado.
“De fato, a vossa exposição no Sínodo Episcopal de 1974, as vossas lutas contra a opressão atéia e, sobretudo, a vossa união ao primaz da Polônia católica, davam ainda mais garantias de firmeza na vossa orientação diante da agressão externa à Igreja. Contudo, depois de ter meditado atentamente sobre os vossos primeiros discursos e os vossos primeiros atos, surgem em nosso ânimo filial apreensões. E não somos os únicos e indagar se as duras condições do vosso passado labor pastoral vos tenham permitido conhecer a crise interna da Igreja. Essa crise, santidade, é muito grave. Ela é doutrinal, mas ao mesmo tempo é do governo; é do povo cristão, mas é sobretudo dos pastores; é das associações (sempre mais secularizadas), mas também dos colégios episcopais (em contradição com o papa e com as autênticas responsabilidades episcopais); é das igrejas locais, mas é principalmente da 'mater omnium ecclesiarum'.
“Ignoramos quanto vós conheceis até agora dos absurdos, de fato e de direito, que são tecidos quotidianamente por alguns dicastérios da Santa Sé em prejuízo das almas. Tememos, santo padre, pensando a qual relator infelizmente vos submeteis por ter confirmado no cargo o cardeal Villot. Esta confirmação, mesmo provisória, significa para Vós ter uma 'cortina' mais limitadora que aquela com a qual até agora tendes combatido.
“Santidade, pedimos fervorosamente a Deus que vos ajude não a venerar, mas a medicar o homem contemporâneo, gravemente afetado pelo vírus do imanentismo; que vos torne testemunha inflexível da encarnação redentora, cumprida por Deus, não certamente numa humanidade genérica, mas no único Homem qui est benedictus in saecula: que Ele vos proteja dos inimigos domésticos e das insídias dos falsos irmãos, dando-vos a visão das ambigüidades internas dos que vos circundam, e a coragem de uma reserva soberana e de solicitude heróica. Com toda a reverência devida,
Dom Francesco Putti.”

Esta carta aberta pode dar idéia do quanto o novo pontificado foi desde o início condicionado pela sombra de um continuísmo decepcionante para os católicos. Antes de tudo, pela confirmação no poder eclesial de homens que já haviam mostrado propensão a maquinações e compromissos. Depois, pela insipiência demonstrada em apurar erros e responsabilidades e encontrar soluções claras diante das gravíssimas pendentes e crônicas, que direta ou indiretamente foram causa da morte de seu predecessor.
Mas a maior apreensão com o novo pontificado era que atrás da solicitude aparente em querer agradar gregos e troianos viesse uma nova forma de culto do homem que alimentasse principalmente o indiferentismo religioso e o populismo social.
As gravíssimas questões de fé que pesavam sobre o concílio e os pontificados conciliadores continuavam ignoradas, porque os promotores das suas reformas continuavam a dominar e a ser promovidos. Caso sintomático foi o de monsenhor Virgílio Noé, grande inimigo da santa missa tradicional e maçom, (inscr. em 3/4/61, matr. 43652/21, nome VINO, cf. Chiesa Viva, n. 149), nomeado Secretário da Congregação do Culto.
Tudo indica que se evitou o remendo e o vinho novo porque não se queria trocar nem as vestes nem os odres velhos. Preferiam-se estes ao conteúdo perene, mas sempre novo. (cf. Mt. 9,14)
Como poderiam, nessas condições, remendar e sanar as gravíssimas rupturas e o deterioramento doutrinal conseqüente do Concílio Vaticano II e do pontificado de Paulo VI? Era mais fácil continuá-los.


FÁTIMA, 62 ANOS DEPOIS: CARTA A SUA SANTIDADE9
“Santidade, no dia 13 de maio completam 62 anos as aparições de Fátima, no curso das quais a Virgem Santíssima confiou a Lúcia uma mensagem na qual estava contido também o 'terceiro segredo'. Este em 1960 deveria ter sido divulgado segundo o desejo de Nossa Senhora, mas medidas de prudência toda humana opuseram-se. Decorreram desde então 19 anos. Não parece a vossa santidade que já é tempo de torná-lo conhecido integralmente ao mundo católico?
“Esperamos ardorosamente que vossa santidade, devoto, de modo particular, da Santíssima Virgem, queira considerar que o objetivo da mensagem mariana, qualquer que seja seu conteúdo ou forma, é certamente o bem do mundo católico e da humanidade e, portanto, das almas. Tornar pública uma mensagem de aviso quando os fatos estiverem consumados, é reduzir seu proveito para as almas. Hoje, porém, ainda poderia ser luz e ajuda nesse momento em que, contrariamente a toda expectativa e previsão, deve-se constatar um progressivo obscurecimento que há anos vem envolvendo a Igreja em todo o mundo. Não vai nisso pessimismo: são fatos a documentar essa lamentável realidade.
“Faço este pedido, que não é pessoal, mas de muitos católicos que veneram a Virgem Santíssima e pensam nas almas, sabendo que agora resta só confiar em uma decisão pessoal de vossa santidade.
Com toda a deferência devida a vossa santidade. Festa de São José (ass.) Dom Francesco Putti.”

Segue-se um comentário sobre a enorme desilusão causada pelo silêncio a que João XXIII condenou o terceiro segredo de Fátima.
“Naqueles dias a imprensa católica, que tinha como certa a sua divulgação, dividiu-se entre o estupor e a tentativa de justificar essa deliberação da autoridade na Igreja. Mas as desculpas não poderiam ser suficientes nem para dissipar a desilusão nem para dirimir perplexidades. Era o caso de perguntar por que a Mãe do Céu teria acrescentado algo a uma mensagem se o resto já bastava. Não se estava a confundir, de novo, prudência da Igreja com insipiência de seus homens? Afinal, com qual senso de responsabilidade ousava-se impedir uma intervenção celeste a favor das almas e da Igreja se o terceiro segredo não era mensagem pessoal ao papa?
“Essa hipótese não se justificava porque desde o primeiro momento Lúcia dissera claramente que o segredo referia-se aos fiéis. De fato, ao entregá-lo em 1944 ao bispo de Leiria, disse que poderia lê-lo. Este só não o fez por deferência ao santo padre, mas também, como declarou, porque não queria nada com segredos. Ora, se o segredo fosse mensagem pessoal ao papa, nem Lúcia poderia ter-lhe dito que o lesse, nem o bispo poderia tê-lo retido consigo tantos anos.
“Afinal, deveria ficar secreto até 1960 não para as autoridades eclesiásticas, mas para divulgação ao povo cristão. Eis que este povo era o destinatário da parte que completava a mensagem. Qualquer consideração lógica só fazia aumentar as perplexidades: se a aparição foi reconhecida oficialmente pela Igreja, por que a sua mensagem não devia ser revelada por inteiro? Pode um aviso celeste ser desprovido de sabedoria, de prudência, e ter outro fim senão a salvação dos homens? Censurar o segredo com o silêncio, equivale a considerar que a argúcia dos homens deve pôr um limite à inoportunidade de Maria Santíssima. Os homens são capazes de tudo!
“Não seria a primeira vez que homens da Igreja desprezam avisos celestes. Esse desprezo foi dispensado a muitos que Deus enriquecera de dons extraordinários para chamar ao bom caminho uma humanidade pecadora. A lista dessas pessoas perseguidas em vida pelas autoridades da Igreja, mas declarados santos pela Igreja infalível depois de mortos, é bem longa. Que um nome recente sirva de exemplo por todos: padre Pio de Pietralcina, a quem alguns eclesiásticos rebateram os pregos para melhor crucificá-lo, e de quem hoje se comprovam, sempre mais, as virtudes heróicas.”
Mas, voltando ao silêncio feito sobre o terceiro segredo, em 1963 numerosos jornais começaram a difundir um seu “resumo” que não foi no começo desmentido pelas autoridades vaticanas. Pelas suas palavras pode-se compreender por que homens da Igreja resistem sempre a essas mensagens: são admoestações aos faltosos e infiéis.


O RESUMO APÓCRIFO DO “TERCEIRO SEGREDO”
“Não tema, minha pequena. Sou a Mãe de Deus que te fala e pede que tornes pública esta mensagem ao mundo inteiro. Fazendo isto encontrarás fortes resistências. Sê firme na fé e vencerás toda hostilidade. Ouve e guarda bem o que te digo: — Os homens devem corrigir-se. Com súplicas humildes devem pedir perdão pelos pecados cometidos e que continuam a cometer. Pedes que eu te dê um sinal de modo que todos creiam em minhas palavras, ditas a ti para o gênero humano. Viste o milagre do sol e todos, crentes e descrentes, camponeses e cidadãos, estudiosos e jornalistas, leigos e sacerdotes, todos viram. Agora, anuncie em meu nome: — Um grande castigo cairá sobre o gênero humano inteiro, não hoje nem amanhã, mas na segunda metade do século XX. Já o havia revelado aos meninos Melania e Maximino em La Salette e hoje repito-o a ti. A humanidade não melhorou como Deus pedia, mas pecou ainda, pisoteando os dons que lhe foram oferecidos. Em nenhum lugar do mundo há ordem e Satã reina sobre as mais altas posições, dirigindo o andamento das coisas. Ele sabe como penetrar até o vértice da Igreja; Ele conseguirá seduzir a mente dos grandes cientistas inventores de armas, com as quais será possível destruir em minutos metade da humanidade. Dominará os poderosos que governam os povos e os induzirá a acumular grande quantidade de armas.

Se os homens não deixarem de agir mal e não se converterem, serei forçada a deixar cair o braço de meu Filho. Se os que estão nos vértices, tanto no mundo como na Igreja, não opuserem resistência a tanto mal, eu pedirei a Deus Pai que os castigue com os homens, usando a severidade da Sua Justiça, mais que no dilúvio.

Virá então o tempo dos tempos, e o fim de todos os fins. Também para a Igreja virão grandes provações: cardeais combaterão cardeais, bispos estarão contra bispos. Satã estará no meio deles e em Roma haverá grandes mudanças. O que está podre cairá e não mais retornará. A Igreja será obscurecida e o mundo invadido pelo terror. Tempo virá em que nenhum governante, cardeal ou bispo, estará à espera de Quem há de vir para punir segundo os desígnios do Pai.

Uma grande guerra será desencadeada na segunda metade do século XX. Fogo e fumo cairão do céu e as águas dos oceanos se transformarão em vapores e a espuma elevar-se-á submergindo tudo. Milhões e milhões de homens morrerão de hora em hora e os sobreviventes invejarão os mortos. Haverá angústia e miséria por todos os lados, ruínas em todos os países.

O tempo está próximo e o abismo se alarga sem esperanças. Os bons morrerão junto com os maus, os grandes com os humildes, os príncipes da Igreja com os fiéis e os que governam com seus subordinados. Haverá morte em todo lugar e pelos erros cometidos os sequazes de Satã dominarão nesses dias o mundo inteiro.

Por fim, quando os sobreviventes voltarem, gratos, a invocar a Deus e proclamar Sua glória, Ele será de novo servido como no tempo em que o mundo não se havia pervertido tanto.

Eu convoco todos os verdadeiros imitadores de meu Filho, todos os apóstolos dos últimos tempos! O tempo dos tempos está próximo, o fim dos fins se aproxima. A humanidade deve converter-se e ser chamada à conversão pelos chefes do mundo e pelos chefes da Igreja. Ai, ai, ai, se a conversão não vier e tudo restar como está, ou se piorar ainda! Vai minha pequena e proclama isto. Eu estarei ao teu lado para ajudar-te.”
“O conteúdo deste 'resumo' parece repercutir o que foi dito ao padre Fuentes (p. 67), onde é repetido o aviso urgente sobre a crise que estava para afligir a Igreja, e em particular sacerdotes e religiosos, com grave prejuízo para os fiéis. Sobre esse resumo a revista Lo Specchio (n.º 20, de 14-5-67) comentava: 'Mesmo aos mais céticos o relatório da pastorzinha portuguesa demonstra-se, pelo seu conteúdo, de tal modo ligado à realidade do mundo hodierno que a ninguém consente ficar indiferente.'
“Depois de outros doze anos esse retrato fiel da realidade — e, devemos especificar, da realidade eclesiástica hodierna —, é mais impressionante ainda. Dizia Lúcia ao cardeal Ottaviani, que lhe perguntava por que o segredo devia ser divulgado em 1960: 'Porque tudo será mais claro então'. Eram as vésperas do Concílio Vaticano II, no qual todos os fermentos modernistas iriam inchar na Igreja.”


SEGREDO DE LA SALETTE OU DE FÁTIMA?
Sobre o texto desse “resumo” é preciso tecer algumas considerações, porque contém diversos erros e defeitos. Padre Alonso, em seu livro sobre o segredo de Fátima, informa que o “resumo” foi publicado pela primeira vez no semanário alemão Neues Europa de 15 de outubro 1963. Ali era dito que tal texto fora comunicado por Paulo VI aos chefes de estado Macmillan, Kennedy e Kruschev, que ficaram impressionados o bastante para antecipar a assinatura do acordo de cessação das experiências atômicas para agosto daquele ano. O autor dessa incrível versão seria o escritor alemão Ludwig Emrich.
Tudo isso é pouco plausível, mas a verdadeira objeção a esse “resumo” está em dizer que foi dado a Lúcia dia 13 de outubro 1917, depois do milagre do sol, e não no dia 13 de julho 1917, como se pode ver pela mensagem interrompida. Seria, pois, um erro cronológico, que somado à estrutura literária diversa do restante da mensagem, indica a inautenticidade desse “resumo”.
A este ponto padre Alonso escreve: “O texto é uma lamentável cópia do assim chamado 'Segredo de La Salette', mas ainda mais distorcido, exagerado e falsificado.” E com essa frase fez um julgamento indireto sobre a mensagem dada em 19 de setembro de 1846 na montanha de La Salette, aos pastores Maximino e Melania, que viram Nossa Senhora chorando sobre o destino dos homens. A aparição foi reconhecida pela Igreja e a mensagem de Melania teve o imprimatur de bispos. Por essa razão, há que desconfiar do julgamento de padres que desde então combatem essa mensagem que revelava a mísera decadência de homens da Igreja já no século passado. Acaso isto não era uma realidade? Pois bem, a aversão ao segredo o comprovou, tanto para padres como para muitos bispos. Diz Si si no no: “Também em La Salette a Virgem havia confiado a pastores uma mensagem sobre a corrupção que prenunciava a apostasia de muitos homens da Igreja: 'Os padres, ministros de meu Filho, pela vida ruim que levam, pelas suas irreverências, pela falta de piedade ao celebrar os santos mistérios, pelo amor ao dinheiro, às honrarias e prazeres, os padres transformaram-se em cloacas de impurezas. (...) Muitos abandonarão a fé e grande será o número dos sacerdotes e religiosos que se separarão da religião verdadeira, entre estes haverá também bispos. (...) Será o tempo das trevas; a Igreja terá uma crise espantosa (...).
“Também diante da mensagem de La Salette os homens da Igreja comportaram-se com a mesma incoerência de agora: a aparição foi oficialmente reconhecida mas procurou-se proibir a divulgação da mensagem... anticlerical de Nossa Senhora. Não se quis refletir que ela veio prevenir os fiéis contra os maus padres, os mercenários, não os bons. O aviso teria afastado os fiéis dos inimigos internos da Igreja, impedindo que dela se separassem, precipitando-se junto aos maus pastores.
“Sem dúvida a denúncia materna foi clara, implacável, sem véus ou diplomacias. Mas os bons pastores nada podiam temer dela. Eram os maus a ficar desmascarados. Por que então procurou-se silenciar a voz da Santa Mãe que avisa os filhos de perigo? Proibir sua divulgação mostrou a vontade de cancelar a ajuda de Maria às almas.
“Consideremos o desastre eclesial que vivemos há 20 anos. Sacerdotes apóstatas que ocupam cátedras em universidades eclesiásticas e seminários, ministrando o veneno das heresias a jovens mentes indefesas. Sacerdotes apóstatas que dirigem ou colaboram em revistas ditas católicas e outras mais, divulgando doutrinas errôneas ou imorais a fiéis indefesos. Párocos e confessores que não iluminam nem guiam, mas são poços tenebrosos para as almas a eles confiadas. Bispos e conferências episcopais que aprovam documentos abertos e comportamentos destoantes ou contrários à moral.
“De tudo isto periódicos como o nosso têm informado com ampla documentação, aliás, inútil, porque a dolorosa realidade está à vista de qualquer homem honesto. Diante de tal desastre eclesial e considerando a ruína das almas, é justo perguntar: seria imprudência divulgar a mensagem de Nossa Senhora que nos punha em guarda contra o que ainda estava por vir mas hoje é atual? Ou a imprudência foi impedir a divulgação do aviso da geral apostasia?
“Tudo indica que infelizmente a mesma atitude repete-se com o terceiro segredo de Fátima, isto é, com a presunção de ser mais prudente que o Céu, impediu-se que ecoasse no mundo católico aquele alarme que teria ajudado tantas almas ignorantes dos perigos, mas confiantes  nas aparências e fábulas, a não seguir os falsos pastores na ruína.” (assinado Franciscus)
Feitas estas considerações sobre o segredo de La Salette e o “resumo” apócrifo do terceiro segredo de Fátima, que copia defeituosamente o primeiro, autêntico, vejamos se essa iniciativa foi uma reles falsificação, ou se encerra um aspecto positivo.
Pois bem, embora inautêntico, não contém nada inaceitável diante da fé, e copiando a mensagem de La Salette, vem lembrar esta que foi culposamente esquecida. Não só, mas lembra também que as mensagens celestes, apesar da diversidade de linguagem e conteúdo, não se contradizem, mas sucedem-se em harmonia.
E isto ficará claro quando, para o triunfo de Maria Virgem, todas as suas mensagens aos homens vierem à luz do dia, mostrando quanto se perdeu por não tê-las recebido, gratos e confiantes, e nem tê-las estudado e defendido pelos tesouros que são.


FATOS ACERCA DO SEGREDO DE LA SALETTE10
“No fim da mensagem dada por Nossa Senhora da montanha de La Salette, foi dito aos dois pastorzinhos: 'Bem, meus filhos, fareis conhecer isto a todo o meu povo'. Começou então uma verdadeira perseguição aos pequenos mensageiros desse novo sinal de contradição. A vidente Melania escreveria ao padre Combe (1903): 'Os bispos que consideraram o segredo dirigido a si, foram os grandes inimigos desta mensagem de misericórdia, justamente como os sumos sacerdotes que condenaram à morte o divino Salvador.' De fato, tinham razão em reagir, o segredo não fazia mais que refletir suas vidas desviadas.
“Assim foi com monsenhor Ginoulhiac, que substituiu o venerável bispo de Bruillard na diocese de Grenoble. Para livrar-se da incômoda vidente, enviou-a a um convento de clausura em Darlington, na Inglaterra, com a ameaça de excomunhão se voltasse à diocese. Em 1860 Melania volta, mas teve que exilar-se.
“Não muito depois o bispo enlouquece e morre num manicômio.
“Seu sucessor é o monsenhor Fava, que acalenta grandes planos para o santuário construído em La Salette, meta de grandes peregrinações, mas acirrado inimigo da mensagem, razão pela qual faz pressões sobre Melania, que vai procurar no sul da Itália, cônscio de que será recebida por Leão XIII. Teme que a mensagem prejudique seus projetos.
“Passados poucos anos foi encontrado morto em seu quarto. Estava estendido no chão, nu, olhos esbugalhados e punhos crispados.
“Quanto ao bispo Gilbert de Amiens, e depois de Bordeaux (que havia dito: 'O segredo de La Salette não é nada mais que uma trama anti-religiosa feita de exageros e mentiras') anos depois de tal acusação, em 1889, foi igualmente encontrado morto no chão de seu quarto e durante os funerais o féretro desabou do catafalco.
“Outro famoso inimigo da mensagem foi o arcebispo de Paris, Darboy, que interrogou pessoalmente Maximino, pressionando-o para que revelasse o segredo, denúncia clara da maçonaria e das tramas urdidas pelo imperador Napoleão III. Não obtendo o que queria, gritara ao jovem: 'As palavras de tua bela Senhora são cheias de estupidez, como estúpido deve ser o teu segredo.' Maximino replicara: 'Ele é tão veraz, e tão certo que eu vi a bela Senhora, como dentro de três anos vossa excelência será fuzilado'.”
Esse prelado já em 1865 havia sido admoestado por Pio IX pelo seu aceso galicanismo. Anos depois, no Concílio Vaticano I, alinha-se ao famoso monsenhor Dupanloup contra Pio IX, desertando Roma nas vésperas da definição do dogma sobre a infalibilidade papal. Volta à França imperial, onde parecia impossível que em pouco tempo iria desencadear-se a fúria revolucionária da “Comune”. Foi assim que em 24 de maio 1871 Paris presenciava com horror o fuzilamento de seu arcebispo pelos comunardos rebeldes11.
Como se vê, os inimigos do segredo de La Salette de certo modo também eram adversários da verdade, da devoção católica e opositores do papa. Em contrapartida, aderiram contritos e gratos à palavra dada pela Virgem Mãe, Pio IX, Leão XIII e monsenhor de Bruillard12.
Também o pároco Perrin, já no dia seguinte à aparição e antes mesmo de interrogar os meninos, fazia uma comovida homilia para chamar seu povo à conversão e à penitência.
O papa Pio IX, ao ler o segredo diante dos padres franceses que o trouxeram ao Vaticano, exclamou: “Oh, isto é muito sério!” E afirmou que meditaria naquela mesma noite sobre mensagem tão importante. Na manhã seguinte os padres receberam esta nota de Pio IX: “O papa ficou convencido da origem celeste do segredo. Ele o terá em conta para as ações que deverá empreender. Abençoa os meninos.”
Igualmente o papa Leão XIII acolheu Melania em Roma e ordenou que lhe dessem toda a assistência a fim de que escrevesse com toda a serenidade a “regra” da ordem religiosa desejada por Maria Santíssima.
O papa Pio X afetuosamente chamou Melania Calvat de “nossa santa.” Os bispos italianos que a hospedaram por diversos anos, dando imprimatur ao segredo, monsenhor Petagna de Castellamare e monsenhor Zola de Lecce, morreram em “odor de santidade” e tiveram iniciadas, ambos, causas de beatificação.
O segredo de La Salette foi censurado e perseguido pelas suas profecias apocalípticas. Teriam feito o mesmo com o apocalipse! Quanto à mensagem de Fátima, dada no setuagésimo ano da mensagem de La Salette, deve concordar e continuá-la como aviso apocalíptico. Se hoje não é fácil entendê-la toda, virá o dia em que não se entenderá como puderam os homens da Igreja censurá-las e especialmente o terceiro segredo de Fátima, que certamente está ligado a La Salette, sendo o completamento das trevas, crises e perseguições anunciadas.
Lembremos então algumas passagens da mensagem dada a Melania, que poderia ser conhecida, como diz o texto, desde 1858. Isto não ocorreu pelos obstáculos postos pelos chefes religiosos que exilaram a pastorzinha. Em 1858 Nossa Senhora aparecia em Lourdes, e que triunfo se essa vinda tivesse sido acolhida pela Igreja peregrinante preparada pela mensagem de La Salette! Mas...
“Os chefes, os guias do povo de Deus, relaxaram a oração e a penitência; o demônio obscureceu suas inteligências; transformaram-se naquelas estrelas errantes que o velho diabo arrastará com a cauda para fazê-los morrer.
“No ano 1864, Lúcifer e um grande número de demônios serão soltos no inferno e abolirão pouco a pouco a fé, também nas pessoas consagradas a Deus (...) diversas casas religiosas perderão inteiramente a fé e perderão muitas almas. Os livros ruins abundarão na terra e os espíritos das trevas difundirão um relaxamento universal por tudo que respeita o serviço de Deus (...) será pregado um outro Evangelho (...) haverá prodígios por toda parte porque apagou-se a verdadeira fé e uma falsa luz ilumina o mundo.
“Desgraça aos príncipes da Igreja que se ocuparão em amontoar riquezas e salvaguardar a própria autoridade para dominar com orgulho. O Vigário de Meu Filho sofrerá muito porque por algum tempo a Igreja será abandonada a grandes perseguições: será o Tempo das Trevas; a Igreja sofrerá uma crise horrenda.
“Os governantes terão todos o mesmo projeto, que será abolir e fazer desaparecer todos os princípios religiosos para substituí-los pelo materialismo, ateísmo, espiritismo e todo o tipo de vícios. No ano 1865 será vista a abominação nos lugares santos; nos conventos as flores da Igreja estarão putrefatas e o demônio se tornará como que o rei dos corações.
“Roma perderá a fé e se transformará na sede do anticristo. A Igreja será eclipsada e o mundo estará na consternação. Mais eis Enoque e Elias cheios de Espírito Santo (as duas testemunhas do Apocalipse) (...) Roma pagã desaparecerá (...) É tempo, o sol se obscurece; só a fé viverá. Eis o tempo, o abismo se abre. Eis o rei das trevas.
Eis a besta, o pretenso salvador do mundo, e seus súditos.”
São passagens do Apocalipse de São João. Portanto, em La Salette fomos advertidos de que estávamos para entrar nessa época de trevas espirituais e delitos materiais. Quanto às datas, em 28 de setembro de 1864 Karl Marx fundou em Londres a 1.ª Internacional com o fim de instaurar a expansão e domínio do comunismo no mundo. O aviso de 1917 em Fátima vinha completar esse quadro com a vitória armada.
No livro Le secret de La Salette (Ed. Stella, 1981) Raoul Auclair levanta a hipótese de que Nossa Senhora houvesse aludido aos anos '58, 64 e 65', que se aplicam bem ao nosso século, correspondendo ao fim do pontificado de Pio XII, ao ano das decisões conciliares, e 1965 à proclamação de erros pela autoridade da Igreja, que pode ser visto como a abertura do poço do abismo. De fato, a estrela é o bispo, com a chave é o bispo de Roma, o papa, e pelo que saiu do poço pela liberdade religiosa, vimos a descrição no início deste livro do papa Gregório XVI. O que os sábios papas vêem, Nossa Senhora confirma se é importante para a salvação das almas. Portanto, se já em La Salette é profetizada a falência das estrelas episcopais e a abertura apocalíptica, poderia não haver confirmação disso no terceiro segredo de Fátima, dado para ser conhecido cinco anos antes da conclusão espantosa do Concílio Vaticano II?


CARTA À SUA SANTIDADE13


“Santidade,
O vosso predecessor, João XXIII, convocou o Concílio sem dar-se conta de que acendia um pavio ligado a uma bomba. Mostrou-se, porém, subjetivamente certo de ter sido inspirado por Deus. .
“Também o vosso outro predecessor, Paulo VI, deu orientações sem dar-se conta da demolição que teria provocado (por ex., com a reforma litúrgica). Mas, mostrava-se também subjetivamente certo de ser inspirado por Deus, a ponto de não tolerar críticas.
“Quando vós assumistes os nomes de João e Paulo, pensamos que bem cedo perceberíeis as falhas de vossos predecessores. Não o fazíamos ao acaso, mas considerando vossa intervenção no Sínodo de 1974, a epopéia de Nova Huta e alguns juízos externados antes da vossa eleição ao pontificado e ouvidos por pessoas dignas de fé. Tudo autorizava a pôr em vós essa esperança.
“Em seguida, porém, verificamos que vossa santidade, depois de ter confirmado em seus cargos praticamente todos os responsáveis pelo desgoverno de vosso predecessor, decidistes também fazer algumas promoções desconcertantes. É evidente que vossos colegas do episcopado polonês não tinham idéias claras sobre quem fosse um Casaroli; vossas estadas na Itália não vos esclareceram, como trata com os partidários do laicismo, esses falsos cristãos italianos, um Silvestrini; vossos amigos romanos não vos informaram da gestão omissa como assistente da Ação Católica Italiana, de um Marco C'é; nem que Martini deu cobertura a um ensinamento errôneo quando dirigiu o Instituto Bíblico; nem que Caprio era muito discutível como administrador; nem que era enorme a responsabilidade de Jadot no desastre católico dos Estados Unidos; nem que Poupard dera um péssimo exemplo na Secretaria de Estado (e também em Paris); e que Etchegaray, à testa da diocese de Marselha, não merecia prêmios, bem o contrário...
“Evidentemente não percebíeis que as conseqüências que estas promoções teriam provocado assim como não percebestes o significado de outras nomeações que fizestes. Do mesmo modo parece que não avaliais as conseqüências de elogios feitos a cardeais demolidores do apostolado católico no Brasil, como sejam Lorscheider, Arns, Brandão Vilela etc; ao cardeal Marty, um dos maiores responsáveis pelo olvido que a França revela à sua origem católica; ao cardeal Garrone e até a seu subsecretário Marchisano, dos quais, como membros da Congregação para a Educação antes de vossa eleição, devíeis conhecer a obra ... (de demolição do seminários).
“Exultamos quando vos ouvimos acusar a teologia da libertação, convocar à disciplina da veste eclesiástica, ao celibato sacerdotal e ao culto eucarístico e mariano, ao ensinamento de Pio XI e Pio XII, e ao critério soberano de conformidade à tradição. Quando, porém, em uma entrevista respondestes sobre as ações necessárias para o governo da Igreja, com respeito a questões já estudadas pelos vossos discatérios e que pedem a presença vigilante do papa, afirmastes que as vossas viagens são inspiradas pelo Espírito Santo.
“Os fatos, porém mostram que nada mudou para melhor na América Latina, depois da viagem a Puebla. Nem nos Estados Unidos, depois da vossa visita; nem na França, onde, com vossa presença, tantas liturgias dessacralizantes ficaram como que endossadas; nem no católico Brasil, onde vossas palavras foram imprudentemente subvertidas.
“Fala-se agora de outras cinco grandes viagens apostólicas que distrairão ainda mais vossa necessária atenção de Roma, para o governo da Cúria Romana. É de Roma que parte o bem da Igreja, ou o mal, pelo visto ninguém vos informa que devido às vossas ausências as coisas vão ainda pior que antes... Mas, como seria possível um saneamento da Igreja sem o saneamento da Cúria?
“Por exemplo: vós não tivestes tempo, infelizmente, para apurar que nas vossas universidades pontifícias em Roma se ensinam heresias e imoralidades. E como poderíeis seguir o que é propagado pela Rádio Vaticana nas diferentes línguas, ou como são administrados o Osservatore Romano, o Avvenire e outros periódicos como Família Cristã, Mensageiro de Santo Antônio etc., além de várias editoras que ainda passam por católicas?
“Não parece ser de vosso conhecimento nem mesmo a permissividade nos tribunais eclesiásticos, denunciada recentemente e de público pelo cardeal Felici (o enorme aumento de anulações matrimoniais, que foi chamado divórcio eclesiástico). É muito provável também que não seja do vosso conhecimento que o cardeal Willebrands tomou a defesa de Schillebeecks, num processo iniciado com a vossa autorização para julgar esse teólogo. A mesma coisa com relação a outros cardeais que endossam publicamente as heresias de Boff. Quanto a Karl Rahner, desde 1973 é acusado de heresias pelo cardeal Siri, sem resultado... Não é, pois, uma simples suposição considerar que vossas contínuas viagens e audiências vos impedem de interessar-vos por questões de enorme gravidade para a fé.
“Contudo, o que nos deixa mais atônitos, é vermos que depois de dois anos que sois o bispo de Roma, não sabeis ainda quem seja o cardeal Poletti, vosso vigário da Urbe. Neste jornal desmascaramos a iníqua tentativa de vos fazer crer na integridade doutrinal desse cardeal, que há anos protege professores que ensinam heresias e imoralidades. Santidade, os elogios dirigidos por vós e esse cardeal só podem fundar-se na ignorância dos fatos por nós insistentemente denunciados. [... segue-se a lista das denúncias.]
“Santidade! É tempo de pôr fim aos equívocos: nós expusemos acusações de extrema gravidade sobre o tipo de ensino ministrado na Universidade Lateranense; esse escândalo não pode continuar acobertado. Assumimos a plena responsabilidade das nossas acusações, porque há nisso um crime. Portanto, ou os criminosos somos nós, que acusamos, ou então são os hereges contumazes e, ainda mais, seus protetores. Pedimos, portanto, a vossa santidade fazer instaurar a respeito um regular processo público, para que venha à luz a verdade, que não somente nós buscamos com todo o coração, mas toda a Igreja, que pela sua natureza é contra o erro.
“Com todo o respeito que vos é devido, somos obrigados em consciência a dizer-vos que providenciar para restabelecer a ortodoxia é gravíssimo dever ao qual não vos podeis subtrair, e apesar de vossos informantes tudo fazerem para vos distrair.
“Santidade, a sinceridade e a clareza com que nos dirigimos a vós, não querem ser, nem podem ser falta de reverência para com a vossa pessoa, embora os interessados assim o insinuem. A sinceridade e a clareza tornam-se necessárias pela dolorosa situação em que jaz a Igreja. Em tais circunstâncias, o silêncio e a omissão podem advir somente da falta de fé. Com toda a deferência devida a vossa santidade, [ass.] dom Francesco Putti.”
Esta carta objetiva é também concisa nas acusações, enquanto se limita ao que acontece em Roma e no Próprio Vaticano. Ora, quem perde o controle da própria casa não demonstra poder exercitar sua autoridade em outras partes. Esse periódico, por deferência a João Paulo II, fala sempre que estão enganando o papa. Mas, é incontestável que os acusados, por agirem contra a fé, são sistematicamente elogiados e promovidos. E os acusadores são isolados e esquecidos. Se os cardeais feitos no Consistório de 1980 eram em grande parte suspeitos demolidores, nos anos seguintes nada mudou senão para pior. Os demolidores da fé teriam algum poder se este não lhes fosse dado do alto? Não! Portanto, quem detém o maior poder tem a maior responsabilidade na autodemolição da Igreja.


JOÃO PAULO II DIANTE DO ABORTO
Não resta dúvida que João Paulo II sempre falou, e nas mais diversas línguas, da sacralidade da vida desde os seus albores e, portanto, contra o crime e pecado do aborto que suprime a vida no seio materno. Desse pecado, pediria depois que Nossa Senhora livrasse os homens. Mas, como foi justamente no seu pontificado que o povo italiano foi chamado às urnas para votar sobre esta questão, seria justo saber se o bispo de Roma juntou, às palavras, ações eficazes para evitar que a ofensa ao Criador e transgressão à Sua Lei pudessem ser objeto de escolha para tornar-se lei civil.
Para isto há que rememorar brevemente alguns fatos.
Durante o tempo de Paulo VI as forças anticatólicas cresceram de tal modo na Itália, que toda ordem jurídica e moral, na aparência ainda cristã, estava ameaçada. O partido Democrata Cristão, que recebia a maioria dos votos católicos, estava tão permeado de idéias liberais e progressistas que, embora majoritário, não constituía uma barreira contra a investida laica e socialista. Além disso, o Partido Comunista Italiano, não era o maior do ocidente como continuava a crescer às custas de defecções no campo católico. Ora, esse processo paulatino tornou-se explosivo depois de 1968, quando o espírito revolucionário passou a querer tudo e logo. Manifestava-se com violência através das Brigadas Vermelhas (em boa parte de extração católica), e de modo violento através dos radicais que faziam então seu ingresso no Parlamento.
A primeira batalha não foi parlamentar, porém, através de um referendo popular sobre o divórcio. Nessa campanha o partido DC (Democrata Cristão), estava, contra a vontade, em companhia do partido de direita contra todos os outros partidos. Não houve, por isto, uma convicta defesa de princípios. Seguiu-se a inevitável vitória do divórcio.
Depois dessa primeira derrocada dos princípios católicos da família, que deu aos divorcistas quase 60% dos votos italianos, estavam abertas as portas para as seguintes “conquistas sociais”: as do aborto, do cancelamento da concordata com a Igreja, da eutanásia, da educação sexual nas escolas, etc.
Ora, como se poderia imaginar, depois da derrota no referendo sobre o divórcio o partido DC, já pouco propenso à luta e menos ainda a cruzadas por princípios, preferiu conduzir essas questões através de conchavos parlamentares, tanto mais porque estava sendo ventilado um “compromisso histórico” com os comunistas.
Eis que os equilibristas demo-cristãos, capitaneados pelos mestres em compromisso, Aldo Moro, Andreotti e outros menores, concertaram a questão no próprio parlamento, para evitar crise do governo (!).
Foi assim que no dia 22 de maio de 1978 passava a lei 194, que introduziu o aborto na legislação italiana. Ironicamente, iriam assiná-la o presidente Leone e o primeiro-ministro Andreotti e seu gabinete, todos demo-cristãos, e o faziam para dar continuidade ao governo. Mas a realidade mostrou-se diversa. O líder Aldo Moro já estava nas mãos das Brigadas Vermelhas, que o liqüidaram sem piedade. O presidente Leone já tinha seus dias contados na presidência, que deixou devido a vários escândalos. O dúbio Andreotti já devia cogitar da formação de outro governo de coalizão, pois aquele (do aborto) cedo abortou.
A respeitabilidade aparente dessa classe política que tudo justificava para reter o poder, não foi contestada por nenhum alto prelado. Somente poucos e isolados lembraram a ofensa à Lei divina e só dom Putti lembrou, em Si si no no, a excomunhão automática prevista para os católicos colaboracionistas do aborto.
Resistência legal a essa lei veio, porém, de alguns tribunais que levantavam a questão de inconstitucionalidade de uma norma que aprovava uma ação que dias antes era considerada delito (pela mesma constituição). Também nessa ocasião foi Andreotti quem encaminhou o caso para que a procuradoria do Estado defendesse a lei homicida diante da Corte Constitucional. Enquanto isto, Tina Anselmi, nova ministra da Saúde, organizava as estruturas sanitárias para levar a termo o aborto estatal aprovado. Eram os demo-cristãos empenhados na defesa do aborto por vias governamentais.
Nada disso, porém, alterou a simpatia de João Paulo II pelo político Andreotti, que escreveu um livro sobre sua relação com os papas recentes. Ele agora enriquecia sua coleção de memórias, com as fotos que os repórteres fazem nas ocasiões em que passeia com João Paulo II, que, confidencial e sorridente, o conduz pelo braço. Teriam do papa um pouco dessa atenção os católicos que se batiam contra o aborto?


RESISTÊNCIA CATÓLICA AO ABORTO LEGALIZADO
Como se viu, a oposição demo-cristã foi de natureza parlamentar e de tênue consistência. Quando a lei 194 foi votada, havia diversos parlamentares da DC ausentes. Depois que a lei passou, então tudo foi considerado matéria resolvida. Se algo veio comprometer essa passividade pusilânime, foi do campo oposto dos radicais, que consideravam a lei insuficiente.
A legislação italiana prevê que se dentro de quatro meses após a aprovação pelo Parlamento de uma nova lei um grupo apresentar uma petição de referendo popular revocatório, subscrita por mais de 500 mil eleitores, a questão, se constitucional, deverá ser submetida a voto popular. Isto só poderia ser evitado se o parlamento, nesse meio tempo, introduzisse modificações substanciais na lei que fizessem cair as razões da contestação.
Ora, embora os católicos na Itália ainda sejam maioria, pelo menos nas estatísticas, não se pode dizer que foram guiados para opor resistência a essa lei iníqua. Naqueles dias os esforços foram canalizados para uma iniciativa de tutela a ajuda à maternidade, que, embora pudesse ser louvável em si, desviava a atenção do problema principal. Mesmo assim essa campanha, sem fazer alarido e fugindo às possíveis contestações de rua, recolheu bem mais de 500 mil assinaturas em brevíssimo tempo. Mas a consciência católica naquele 1979 ainda não estava anestesiada a ponto de esconder-se atrás de tais panacéias, ou das palavras e conchavos dos chefes demissionários. Houve duas iniciativas católicas no sentido de uma lei ab-rogativa. Aqui mencionaremos a da Aliança Católica, grupo de católicos tradicionais que formaram a “Aliança para a Vida” com o fim de combater o aborto, apresentando uma lei sobre a matéria. Para recolher o meio milhão de assinaturas, porém, solicitaram o apoio dos bispos italianos e eventualmente do papa. A resposta indireta veio através da reação hostil da imprensa católica, que acusava a iniciativa de ser de direita. Quanto às razões contrárias dos bispos, ficou a incógnita, porque nem 1 % deles dignou-se responder, embora não houvesse nenhuma outra solução em vista.
Quanto a João Paulo II, sabedor dessa iniciativa, que foi acompanhada por um congresso romano das associações católicas de defesa da vida de diversos países, dirigiu-se a estes na audiência pública na praça de São Pedro com palavras genéricas em francês, e recebeu os dirigentes da Aliança Católica numa audiência privada para dizer com grande afabilidade que a questão estava nas mãos dos bispos italianos. Confortado pela atenção do papa, mas neutralizado por sua evasiva, esse grupo ficou confundido e acabou por dividir-se sobre o que se seguiria.
Decorreram dois anos de imobilismo católico, mas não dos radicais abortistas. Estes continuavam trabalhando para que houvesse um referendo que levasse a uma lei abortista totalmente libertária e aplicável também a meninas. Foi quando esse projeto ganhou corpo, e a decisão das urnas tornou-se inevitável, que uma iniciativa de sinal contrário e apoiada indiretamente pela DC e pelo episcopado veio à luz. Mas curiosamente a proposta já nascia dividida e ambígua na origem. De fato, foram apresentados dois projetos de lei revogatórios parciais da lei 194: o primeiro, na modalidade considerada máxima possível, isto é, admitindo somente a intervenção de aborto terapêutico; o segundo, na modalidade mínima, admitindo o aborto voluntário e direto por motivos terapêuticos e concedendo a distribuição gratuita a menores de preservativos de qualquer tipo.
Como se vê, dois projetos de lei possibilistas, pelos quais os católicos seriam levados a adaptar a lei natural e os princípios morais às leis permissivas. Diante dessa manobra, feita em detrimento da Lei de Deus, da defesa da vida e da preservação dos princípios de uma sociedade cristã, foram poucos os opositores. Entre estes, manifestaram pública desaprovação a “Europa Pro Vita” e a “Federação Mundial de Médicos para o Respeito da Vida Humana.” Mas a CEI, Conferência dos Bispos Italianos, havia apoiado, senão promovido a campanha para conseguir que os católicos votassem a favor dessas propostas. E isto apesar da instrução da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, de 18/11/1974, dizer: “Não é lícito participar de uma campanha em favor do aborto nem dar o sufrágio do voto a ela, nem colaborar com sua aplicação.”
Foi assim, que com uma “comédia de enganos” orquestrada como única saída política viável pelos políticos de DC e da CEI, os católicos foram convidados a votar um “miniaborto” para evitar o maxiaborto radical. Até a abstenção desse voto foi hostilizada.
Nesse meio tempo, a Corte Constitucional houve por bem reprovar a proposta “máxima” apresentada pelos demo-cristãos, tornando definitivamente obrigatório o aborto terapêutico, que ainda em 1978 era crime, e com isto a escolha do eleitor dividia-se em quatro: votar a proposta radical de aborto total; votar a proposta mista DC-CEI de aborto limitado; votar pelo não a estes projetos, mantendo o aborto parlamentar “moderado” da lei 194; e abster-se de votar, o que se obtivesse apoio maciço indicaria a nulidade do referendo.
Dir-se-ia que a única opção católica era esta última. Mas assim não pensavam os bispos, nem uma profusão de católicos entre os quais até uma parte da mencionada Aliança Católica. E a confusão reinante não era de modo algum esclarecida por João Paulo II, que fortemente, embora indiretamente, fez a campanha pelo aborto, versão mínima, defendida pelos bispos como mal menor.
Na audiência com o papa dia 13 de maio de 1981, um conhecido expoente católico francês exprimia a João Paulo II sua perplexidade diante dessa rendição moral dos bispos italianos às pressões do mundo. A resposta do bispo de Roma foi para explicar que a ele não competia interferir sobre a decisão dos bispos. Era, pois, uma questão da lei de Deus, que nem o supremo pontífice da Igreja ousava enfrentar, para evitar o rancor dos bispos e o ódio do mundo.
Não decorreram nem duas horas, e na praça de São Pedro em Roma ocorreu o sacrílego atentado à vida do papa.
A emoção do mundo inteiro foi enorme. Os católicos ficaram abalados por aquele crime horrendo. Alguém pensou que seria justo suspender a campanha política pelo referendo que se realizaria dia 17 de maio. Mas apesar da grande comoção tudo prosseguiu de modo regular. Nas urnas foram reprovados tanto o aborto radical como o aborto CEI-DC. Venceu o aborto parlamentar. O gravíssimo atentado não influiu.


TREZE DE MAIO — 1917 E 198114
“Dia 13 de maio de 1917 a Virgem Santíssima apareceu pela primeira vez em Fátima, onde confiaria a Lúcia uma mensagem em três partes para o nosso tempo. Duas foram conhecidas anos após. A terceira deveria ser revelada em 1960, porque então seria mais clara.
“João XXIII leu esse terceiro segredo, mas não permitiu sua divulgação apesar da febril espera do mundo. O motivo dessa decisão, à luz dos eventos que desde então se sucederam em ritmo frenético, foi-se tornando sempre mais claro: era uma advertência aos eclesiásticos e à humanidade prenunciando provações e perseguições para a Igreja se os bispos, e por conseqüência o clero, não fossem fiéis à sua missão; e ulteriores castigos para a humanidade se ela continuar em sua perversão moral e religiosa.
“Ora, desde 1960 a degradação da Igreja e da humanidade aumenta vertiginosamente. Os infiltrados maçons trabalham há anos na demolição da Igreja, como revelam inúmeros documentos, mas, sobretudo, os fatos sempre mais ruinosos que resultam da desastrosa reforma pós-conciliar, o último dos quais foi o apoio dado pelos bispos ao referendo miniabortista.
“A esse respeito, sua santidade João Paulo II, que parece ter ficado surpreso por haver sido enganado, achou que não devia intervir, para não desautorizar a CEI e dividir os bispos italianos. Como se fosse possível manter uma unidade à custa da verdade, ou tocar a essência da fé e da moral, sem dividir os católicos.
“Mas, o panorama de todo o mundo católico é desolador. A Igreja na França, Bélgica, Holanda, América Latina, EUA, Canadá, etc., dá um espetáculo da incrível degeneração orquestrada e dirigida festivamente pelas diversas conferências episcopais nacionais. São os frutos amargos da colegialidade mal-entendida e pior aplicada a partir do Concílio Vaticano II.
“As conferências episcopais nacionais revelaram-se, em quase todos os lugares, centros de poder através dos quais infiltrações maçônicas podem manobrar a vida da Igreja, condicionando até o papa.
“A Igreja, obscurecida pela fumaça de Satã, deixa de ser sinal luminoso para os povos (influência política não significa influência religiosa), as trevas do mundo se tornam mais densas, a redenção é recusada, o príncipe deste mundo reina e os ministros da redenção não mais o enfrentam.
“Eis que as provações e perseguições prenunciadas são sempre mais presentes e a humanidade sempre mais abandonada à sua desordem espiritual que reclama castigos: Quos Deus vult perdere amentat15. Esses sinais são já visíveis.
“Uma infâmia inconcebível — No dia 13 de maio de 1981 um evento inaudito o mundo: o papa foi vítima de um atentado que por pouco não foi mortal. O gesto sacrílego provoca horror e aflição, pois a escalada da violência atingiu até a sagrada pessoa do vigário de Cristo.
“Poucos dias antes o santo padre havia dirigido palavras de estranho pressentimento aos novos recrutas da guarda suíça. Também monsenhor Deskur, polonês amigo do papa, havia recentemente manifestado seus temores ao padre Virgílio Levi (cf. L'Osservatore Romano, 15 de maio de 1981, p. 5).
“Tudo parece indicar um complô internacional. O autor do atentado não é um exaltado. Desde o início revela a frieza de killer profissional. As investigações orientam-se imediatamente para a hipótese do complô pelo cuidado com que foi escolhido o assassino: condenado à morte na Turquia, evadido misteriosamente de uma superprisão, graças a altas cumplicidades, munido de passaporte regular emitido pela polícia turca e largamente subvencionado a ponto de viajar por dois anos e com luxo por nove países, o killer tinha tudo a ganhar e nada a perder com o sacrílego gesto. A pior hipótese seria a prisão perpétua na Itália, em vez da pena de morte na Turquia, país com o qual a Itália não tem acordo de extradição.
“Quem tinha interesse em eliminar o Papa? O pensamento corre para os problemas da Polônia católica (vítima do comunismo 'espalhado pela Rússia', flagelo prenunciado em Fátima) que busca, para sua desesperada resistência, apoio no papa polonês. No n.º 10, ano VI, de 1980, publicamos o artigo ‘A KGB contra João Paulo II’ no qual se reproduzia a informação do Centre Européen d'Information de que a KGB (serviço secreto soviético) armava um complô para assassinar o papa (mais tarde a pista búlgara o confirmou).
“Mas a outra hipótese é que os mandantes são dos ambientes maçons, cuja condenação voltou a ser confirmada recentemente pela Sagrada Congregação da Fé, por vontade do papa e desagrado dos que na Revista Maçônica de julho 1978 fizeram o elogio fúnebre de Paulo VI: 'Que fez cair a condenação de Clemente XII e sucessores.'
“Que a Maçonaria tem numerosas infiltrações na Cúria Romana e especialmente na Secretaria de Estado, é notório. Ao prefeito da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, cardeal Seper, foi fornecida uma lista de eclesiásticos maçons, com a respectiva documentação, por um eminentíssimo cardeal, ainda no tempo de Paulo VI. Infelizmente, (ver cartas à suas santidades), nem com João Paulo I, nem com o atual pontífice, os maçons infiltrados nos altos escalões da hierarquia eclesiástica foram removidos (ao contrário, como se viu).
“A inesperada morte de João Paulo I permanece um denso mistério, e foi em vão que de diversas partes fizeram-se pedidos de autópsia. Consta que Karol Wojtyla, apenas eleito papa, teria mandado remover de seus aposentos pesadas tapeçarias que escondiam microfones. Sabe-se também que se cercou de pessoal polonês de sua confiança, a começar pelas irmãs, que cuidam da cozinha.
“Mesmo assim, há não muito tempo circulou nos ambientes próximos ao papa que este havia escapado a grave perigo, no Vaticano e também em Castel Gandolfo. E eis que justamente agora, quando no mundo político se fala da ligação entre o terrorismo e a maçonaria, um terrorista atenta contra o santo padre.
“Seria a terceira hipótese: o atentado como resultado do entendimento entre a KGB e a maçonaria internacional.
[Nota do autor: no mesmo número, à p. 3, faz-se notar como o segredo de La Salette previne contra o complô perpetrado contra a Igreja e o papa pela maçonaria, sempre denunciada pelas autoridades da Igreja.]
“Entre as duas datas — 13 de maio de 1917 e 13 de maio de 1981 — vemos uma estreita ligação. Quer-nos parecer que Nossa Senhora deseja que seja devidamente considerado, independentemente da divulgação, o que ela revelou em Fátima para o bem da Igreja, para o bem dos fiéis e para o bem de toda a humanidade. Por essa razão pedimos a sua santidade João Paulo II que leia, se ainda não o fez, o terceiro segredo de Fátima. Não é mais tempo de belas palavras, mesmo apreciáveis, porque o mundo eclesiástico e leigo as rejeitam e fazem silêncio sobre qualquer admoestação, especialmente se de natureza religiosa ou moral. No atual estado de perversão, são necessários oportunos e decididos atos de governo, sem medo de que a Igreja possa reduzir-se a uma pequena grei. Este é o único caminho que pode evitar, se ainda houver tempo, que seja Nosso Senhor a prover a purificação de Sua Igreja (ass. Pius).”
Nenhum católico pode duvidar de que o fato de 13 de maio de 1981 esteja nos desígnios de Deus, que permitiu o atentado quase mortal ao Seu Vigário, mas proveu a sua sobrevivência. A violência inconcebível do ato parece gritar um aviso extremo. Que desgraça desconhecê-lo a ponto de sentir sua vida preservada para continuar como antes.


JOÃO PAULO II FALA DO TERCEIRO SEGREDO


É certamente importante saber que atenção e significado dá o papa ao terceiro segredo de Fátima, que continua escondido no Vaticano, sem que nenhuma notícia seja fornecida aos católicos. Deve-se reconhecer, pelo que relataremos em seguida, que o atual pontífice, ao contrário de João XXIII, que leu o segredo e o arquivou em silêncio, e de Paulo VI, que ignorou sua existência, evitando falar até com irmã Lúcia, João Paulo II mostrou-se bem mais acessível e confiante no justificar sua ocultação. A prova está no diálogo que teve com católicos de Fulda, por ocasião da viagem à Alemanha em novembro de 1980. Este foi registrado e autenticado para ser publicado pela revista Stimme des Glaubens (10-81). Aqui é reproduzido com os comentários de Si si no no, n.º 2, ano VIII (jan. 82).
“Perg.: Que é feito do terceiro segredo de Fátima? Não deveria ter sido publicado já em 1960?


Resp.: Dada a gravidade do conteúdo, para não incitar a potência mundial do comunismo a tomar certas iniciativas, os meus predecessores no ofício de Pedro preferiram diplomaticamente sobrestar a sua publicação...”
“Obs.: Ter silenciado sobre o segredo (...) equivaleu a acusar a Rainha do Céu de imprudência e de inoportunidade. Equivaleu a considerar a prudência dos homens superior à celeste.
“...Por outro lado, aos cristãos basta saber isto: se há uma mensagem em que está escrito que os oceanos inundarão partes inteiras da terra, que de um momento para outro milhões de homens morrerão, não é deveras o caso de insistir na divulgação de tal mensagem secreta.”
“Obs.: Essas palavras reproduzem quase literalmente a profecia apocalíptica do terceiro segredo que circula há anos e diz: 'As águas dos oceanos se transformarão em vapores e a espuma se elevará, submergindo tudo. Milhões de homens morrerão de hora em hora'... (p. 125). Ainda para justificar o silêncio dos predecessores, diz:
“Muitos querem saber por simples curiosidade e sensacionalismo, mas se esquecem de que saber comporta também responsabilidade. Procura-se somente satisfazer a própria curiosidade, e isto é perigoso se ao mesmo tempo não se tem a disposição de fazer algo, ou nos convencemos de que nada se pode fazer contra o mal.”
“Obs.: Não é um fato real, nem demonstrável que muitos queiram saber só por curiosidade e sensacionalismo. De qualquer modo, muitos não significa todos. Além disso, de uma natural curiosidade pode nascer um sincero arrependimento e propósito de emendar-se. É doutrina comum da Igreja, que Deus move as criaturas segundo seu comportamento natural. Ora, sendo a curiosidade mola do conhecimento para os homens, é claro que a graça divina não deixará de movê-los partindo justamente do limite extremo dessa curiosidade natural.
“É verdade também que conhecer comporta uma responsabilidade. E isto em relação ao livre-arbítrio, que pode decidir rejeitar o bem conhecido. Mas o conhecimento em si é um bem, porque aumenta as possibilidades de agir retamente. Por isto, instruir as almas é um dever, e quem se nega a fazê-lo é culpado de omissão e co-responsável da ruína do próximo.
“Enfim, visto que o castigo pende sobre toda a humanidade, é lógico pensar que a Virgem Santíssima queria que cada assumisse as próprias responsabilidades. Existe, portanto, um direito dos homens de conhecer a mensagem celeste que nos diz respeito e cujo desprezo pode trazer-nos conseqüências apocalípticas.
“As revelações de Fátima não se destinam ao bem pessoal de irmã Lúcia ou do sumo pontífice, mas a toda a humanidade. Quem pode negar à Mãe dos santos e dos pecadores o direito de comunicar algo a seus filhos? O papa, dir-se-á, é juiz das aparições e de suas revelações, na Igreja. Mas a aparição e as revelações de Fátima foram declaradas autênticas justamente pelo papa. Eis a incoerência: de um lado, reconhece-se que em Fátima a Mãe de Deus falou para a salvação da humanidade; de outro, acrescenta-se: 'Mas o que revelou não é prudente dar-se a conhecer.'
“Perg.: O que acontecerá na Igreja?


Resp.: Devemos nos preparar para passar dentro em breve por grandes provações, que pedirão de nós a disposição de sacrificar até a própria vida numa dedicação total a Cristo, por Cristo. Com a vossa oração e a minha será possível atenuar essa atribuição, mas não é mais possível desviá-la, porque somente assim a Igreja poderá ser efetivamente renovada. Quantas vezes do sangue surgiu a renovação da Igreja! Também desta vez não será diferente. Devemos ser fortes, preparar-nos, confiar em Cristo e em Sua Santíssima Mãe e ser muito, muito assíduos na prece do Santo Rosário.” Pegando um Rosário havia dito antes: “Eis o remédio contra esses males. Rezai, rezai e não pergunteis mais. Confiai o resto à Mãe de Deus!”
“Obs.: Também Paulo VI exclamou em Fátima, angustiado: 'Nós dizemos: o mundo está em perigo ... o espetáculo do mundo e de seu destino apresenta-se aqui imenso e dramático. É o quadro que nos descerra Nossa Senhora, o quadro que contemplamos com os olhos estarrecidos ...' (v. L’Osservatore Romano, 14 maio 1967). Mas, e os remédios? Foi justamente a partir do pontificado desse papa que os reiterados pedidos marianos de oração e penitência foram desprezados no triunfante naturalismo pós-conciliar, as suas formas degeneradas, o seu número diminuído (até mesmo nas ordens contemplativas), e quanto à penitência não se fala mais, ficando o jejum eclesial reduzido a duas vezes por ano.
“Pior ainda: permitiu-se que as profanações se multiplicassem, e que a devoção mariana, com o Santo Rosário, fosse obstada durante anos, com um zelo realmente diabólico. Este desprezo da prática das devoções pedidas na mensagem de Fátima não partiu do povo cristão, mas veio dos vértices da Igreja.
“A consagração da Rússia ao Imaculado Coração de Maria, do modo como foi pedido por Nossa Senhora, não foi nunca feita. E o que se fez para a conversão da humanidade? Ambigüidades e erros doutrinais e a difusão de uma 'moral' imoral, que favorecera o triunfo de leis civis, opostas à Lei divina, natural e positiva. O divórcio, o aborto, a contracepção, a pornografia e a conseqüente corrupção, especialmente da juventude, estão acumulando sobre a humanidade eaira do Senhor. Não se trata somente do silêncio sobre o terceiro segredo, mas de se ter feito exatamente o contrário de quanto havia sido revelado na mensagem de Fátima.
Nossa Senhora de Fátima é 'incômoda'. Tem o defeito de ignorar a 'diplomacia' e falar com toda a clareza. De tal modo, pode-se até levar em procissão a Imagem, sempre que os bispos não o impeçam, como aconteceu no Canadá, no Vêneto, etc, mas quanto à mensagem essa é deixada o mais possível na obscuridade e no silêncio.
“Começou-se por substituir a palavra 'Rússia', que Nossa Mãe havia explicitamente mencionado, pela fórmula 'nações inimigas de Deus'.
“E, todavia, Fátima é uma profecia para o nosso tempo. 1917 foi o ano da revolução bolchevista, que fez da Rússia a primeira nação declaradamente atéia, difusora do ateísmo teórico e prático, imposto no Oriente e infiltrado com todos os meios no Ocidente. Representa o ápice da apostasia da humanidade. (...)” Pius.


JOÃO PAULO II RESPONDE SOBRE FÁTIMA
Em maio de 1982 o papa foi a Fátima e na homília da missa celebrada dia 13, no lugar das aparições, foi como se respondesse a diversas interrogações dos católicos.
“Vim hoje aqui porque justamente neste dia do ano passado, na praça de São Pedro, em Roma, ocorreu o atentado à vida do papa, que coincidiu misteriosamente com o aniversário da 1.ª aparição de 13 de maio 1917 em Fátima. Estas datas encontram-se entre si de tal modo que me pareceu reconhecer nisto uma chamada especial para que viesse aqui.
(Como vê a mensagem de Fátima?)
“À luz da maternidade espiritual de Maria, procuramos entender a extraordinária mensagem que começou a ressoar no mundo, desde Fátima, a partir de 13 de maio de 1917, e que se prolongou por cinco meses até 13 de outubro.”
(Como a Igreja acolhe a mensagem?)
“Se a Igreja acolheu a mensagem de Fátima foi sobretudo porque ela contém 'uma verdade e um chamado' que no seu conteúdo fundamental são 'a verdade e a chamada do próprio Evangelho.'“
(O papa reconhece um conteúdo especial e atual na mensagem?)
“Esta chamada (de conversão e penitência) foi pronunciada no início do século XX e, portanto, é a este século que particularmente se dirige. A 'Senhora da Mensagem' parece ler com uma especial perspicácia os 'sinais dos tempos', sinais de nosso tempo.”
(O papa reconhece em nossa época os sinais prenunciados?)
“Enquanto se completam 65 anos desde aquele 13 de maio de 1917, é difícil não divisar como este amor salvífico da Mãe abraça em seu raio de modo particular o nosso século (...) o que mais se opõe ao caminho do homem a Deus, diretamente, é o pecado, o perseverar no pecado e, enfim, a negação de Deus. O programado 'cancelamento de Deus' no mundo do pensamento humano. A separação Dele de toda atividade terrena do homem. 'A rejeição de Deus da parte do homem' (...) se esta se torna definitiva conduz logicamente à rejeição do homem por parte de Deus (cf. Mt. 7,23; 10,33), é a perdição.”
“Pode a Mãe que deseja a salvação de cada homem calar sobre o que está minando as bases dessa salvação? Não, não pode! Por isto a mensagem da Senhora de Fátima, tão maternal, é ao mesmo tempo tão forte e decidida. Parece severa. É como se falasse João Batista nas margens do Jordão. Convida à penitência. Adverte, chama à oração. Recomenda o Rosário.”
(A quem é dirigida?)
“Objeto de Seu cuidado são todos os homens da nossa época, juntamente com as sociedades, as nações e os povos. As sociedades ameaçadas pela apostasia, ameaçadas pela degradação moral. A ruína da moralidade traz consigo a ruína das sociedades (...)”
(Empenha a Igreja?)
“O conteúdo do apelo da Senhora de Fátima é tão profundamente radicado no Evangelho e em toda a Tradição 'que a Igreja se sente interpelada por esta Mensagem.'“
(Como se apresenta o papa, hoje?)
“Apresenta-se relendo com tremor a chamada materna à penitência e à conversão, o apelo ardente do Coração de Maria que ressoou 65 anos atrás em Fátima. Sim, com tremor porque vê quantos homens e quantas sociedades, quantos cristãos foram na direção oposta à indicada pela mensagem de Fátima. O pecado ganhou um direito de cidadania tão forte no mundo, e a negação a Deus difundiu-se amplamente nas ideologias, nos conceitos e programas humanos!”
(Por todos esses males, não é atual, e urgente atender e lembrar o que é pedido na mensagem de Fátima?)
“Mas justamente por isso o convite evangélico à penitência e à conversão, pronunciado com as palavras da Mãe, é sempre atual. Ainda mais atual que há 65 anos. E ainda mais urgente. Portanto, este se torna o assunto do próximo Sínodo dos bispos do ano próximo. Sínodo para o qual já nos estamos preparando.”
Estas palavras de João Paulo II, colhidas no meio de tantas expressões gerais, de tantas circunvoluções verbais, foram como uma centelha de esperança para muitos católicos desiludidos. Seria acaso o anúncio prévio de que a mensagem inteira viria à luz? Estariam o papa e outros bispos prestes a proclamar a importância sobrenatural das suas palavras para a conversão dos povos? Estariam preparando uma desassombrada acusação dos grandes males atuais para pedir uma universal reparação? Usariam da ocasião de um sínodo, quando os bispos se reúnem com o papa, para fazer a consagração solene da Rússia ao Imaculado Coração de Maria?
Tudo isto parece muito longe das cogitações episcopais, mas pode ser que o papa em Fátima tivesse tomado plena consciência de quanto seja providencial e necessário o caminho que neste lugar foi indicado por Maria Santíssima; se Deus quer que a Igreja reconheça, por essa consagração da Rússia, o triunfo do Imaculado Coração, essa é a via única e infalível para obter a conversão russa.
As esperanças, porém, ficaram reduzidas por um ato de consagração incompleto que não cumpria o que fora pedido por Nossa Senhora. Perduravam neles as preocupações de natureza diplomática e política em evitar qualquer menção ao nome Rússia, como se fosse impossível localizar no regime que a domina os erros e o ativismo ateu prenunciados na mensagem de Fátima.
Seria possível esperar que aquele ainda fosse um ato preparatório para uma consagração solene e completa no sínodo do ano seguinte?
Infelizmente, naquela ocasião e em outras subseqüentes, tanto as palavras como os atos foram cada vez mais demonstrando como estavam distantes do espírito de Fátima, que sopra somente onde é preservada a pureza e a integridade da fé e a vontade de testemunhá-la.


A VISÃO CONCILIAR DE JOÃO PAULO II
Não há intenção aqui de enveredar pelos complexos meandros do pensamento de João Paulo II sobre o Concílio, para o qual colaborou com o texto da Gaudium et Spes, e hoje promove sem reservas. A visão conciliar que interessa ver é a ligada ao ato de consagração pronunciou em Fátima com a intenção de atender ao que ali foi pedido por Nossa Senhora — a consagração da Rússia.
Não é preciso repetir que faltavam condições. Mas, faltaria também a compreensão do sentido católico extraordinário? Poderia a visão conciliar coadunar-se com ele? Há boas razões para duvidar. Senão, vejamos. João Paulo II disse e repetiu: “O concílio Vaticano II lançou as bases para uma relação substancialmente nova entre a Igreja e o mundo (...)” (discurso de 22/12/1980 ao Sacro Colégio). Ora, como o mundo não mudou em relação à Igreja de Cristo, senão pelo afastamento do seu ensinamento, teria sido a Igreja que mudou, adaptando-se às condições do mundo, mas isto só é possível para uma nova Igreja, a que se costumou chamar de “igreja conciliar.” De fato, nos seus documentos conciliares transparece essa mudança e reconhecimento às crenças diversas. Por exemplo, na declaração Nostra aetate está escrito (§ 2): “[a Igreja] considera com respeito sincero o modo de viver e de agir por preceitos e doutrinas (...) [de outras religiões].” Igualmente, João Paulo II dirá ao escritor Frossard que tem “um respeito total pelas convicções dos que crêem de modo diferente [ou negam].” Do mesmo modo, manifestou muitas vezes a necessidade de “procurar uma inteligência e uma 'expressão da fé' que corresponda e torne-se aceitável à maneira de pensar e de falar de nossa época” (1-11-1982, aos teólogos de Salamanca). “Uma fé à medida do mundo”, dirá muitas vezes, e também ao escritor Frossard (Dialogues, Ed. Laffont, Paris).
Qual seria essa fé? Na sua primeira Encíclica Redemptor hominis é dito: “A natureza humana está elevada em cada homem a uma sublime dignidade pelo fato mesmo da Encarnação.” Esse conceito está na constituição conciliar Gaudium et Spes (n.22): “Com a Encarnação o Filho de Deus uniu-se, de certo modo, a cada homem.” Mas a Igreja sempre ensinou a necessidade do batismo para tornar-se cristão, este é o sacramento que dá essa dignidade e une o batizado ao Corpo Místico de Cristo. Sem este, não há esta adesão, e nenhum homem poderia deduzi-la por esses vagos conceitos mais humanitários que propriamente religiosos. Além disso, se assim fosse muitos homens estariam unidos ao Filho de Deus sem crer Nele, ignorando-O ou então negando-O. Não seria nem moral nem lógico pensá-lo. Em todo caso, não é catolicismo ortodoxo, pois exclui a união pela conversão e fé cristã. E sendo assim, também a consagração a Deus é inútil; esta, de certo modo, já ocorreu através de Encarnação, segundo esses conceitos. Não haveria, portanto, errantes a exortar, nem erros graves a condenar no mundo. Todos seriam consagráveis.
Passemos agora ao texto da homília de João Paulo II do dia 13 de maio de 1982 em Fátima; “Consagrar o mundo ao Coração Imaculado da Mãe significa voltar sob a cruz do Filho. Mais: significa consagrar este mundo ao Coração transpassado do Salvador, trazendo-o à fonte mesma de sua redenção. A redenção é sempre maior que o 'pecado do mundo', a potência da redenção supera infinitamente toda a gama do mal que está no homem e no mundo.”
Essas palavras dão a entender uma redenção que opera mesmo sem o reconhecimento do pecado, sem arrependimento e sem conversão. A redenção e a consagração seriam tão potentes a ponto de prescindir da renúncia a toda gama do mal e da penitência para ser eficaz.
“Consagrar-se a Maria significa fazer-se ajudar por Ela a oferecer nós mesmos e a humanidade a 'Aquele que é Santo', infinitamente Santo; (...) para oferecer o mundo, e o homem, e a humanidade, e todas as nações, a 'Aquele que é infinitamente Santo'. A santidade de Deus manifestou-se na redenção do homem, do mundo, da inteira humanidade, das nações, redenção efetuada mediante o Sacrifício da Cruz”.
— Por eles Eu consagro a Mim mesmo —, havia dito (em João 17, 19) Jesus.
Como se vê, fala-se de uma consagração total e indiscriminada do mundo, e o mesmo é dito da redenção. “Por eles Eu me santifico a Mim mesmo, para que eles também sejam santificados na verdade” (Jo, 17, 19). Mas, como podem ser santificados na verdade os ateus, os homens que rejeitam a Cristo e Sua Igreja, um mundo corrupto e uma humanidade apóstata do ensinamento cristão? E como poderiam beneficiar-se dessa consagração e converterem-se se não é indicado o mal em que estão mergulhados? Antes houve uma alusão ao mal e à recusa de Deus, da qual se lembra a recíproca, que é a recusa dos homens da parte de Deus, a danação. É a palavra mais forte usada na homília, mas que permanece única, vaga, sem ser ligada aos erros do ateísmo militante e do comunismo inimigo da ordem cristã. Poderiam tais palavras ser consideradas um apelo à conversão? Pelo texto parece que esse cuidado é deixado à Mãe celeste, como se a função de confirmar na fé não fosse dever do sucessor de São Pedro.
Em todo caso, há também omissão no trecho evangélico, porque Jesus está referindo-se em sua “oração sacerdotal” aos fiéis, aos que receberam a palavra de Deus e de Seu Filho. “Manifestei o Teu Nome aos homens que me deste do mundo; eles eram Teus e Tu mos deste e guardaram a Tua palavra. Agora conheceram que todas as coisas que me deste vêm de Ti; porque lhes dei as palavras que me deste; e eles as receberam e conheceram verdadeiramente que Eu saí de Ti, e creram que Me enviaste. É por eles que Eu rogo; não rogo pelo mundo, mas por aqueles que Me deste, porque são Teus. “ (Jo. 17, 6)
Para obter a paz pela conversão à fé católica da Rússia comunista, Maria Santíssima pediu sua consagração ao Imaculado Coração.
O espírito conciliar, porém, afetou gravemente a visão espiritual dos seus arautos, temerosos de invocar conversões, principalmente da Rússia.


FOI O PEDIDO DE CONSAGRAÇÃO SATISFEITO?
João Paulo II, indo a Fátima um ano depois do atentado que sofreu e não escondendo que conhece o terceiro segredo, certamente mostrou a todos, não só com palavras, a importância e urgência com que deve ser vista a mensagem de Fátima. Acrescente-se a isto que em menos de dois anos, de 1982 a 1984, consagrou o mundo ao Imaculado Coração de Maria por três vezes, a saber: na ocasião de sua visita a Fátima; no Sínodo dos bispos de 1983, em Roma; e na cerimônia solene em São Pedro, dia 25 de março de 1984.
Pode parecer paradoxal, então, afirmar que tanto empenho não demonstrasse acolhimento do pedido e adesão ao espírito da mensagem dada por Nossa Senhora em Fátima. Voltemos então à homilia lá pronunciada por João Paulo II, em 13 de maio de 1981. Logo antes da consagração que estava para fazer, é perguntado com referência às consagrações feitas por Pio XII em 1942 e 1952: “Com aquela sua consagração, acaso não satisfez à evangélica eloqüência do apelo de Fátima?”
Ora, vista a importância dessa questão ligada à promessa feita por Nossa Senhora: “Se atenderam Meus pedidos, a Rússia se converterá e terão paz; se não, espalhará seus erros pelo mundo, promovendo guerras e perseguições à Igreja; os bons serão martirizados, o santo padre terá muito que sofrer, várias nações serão aniquiladas...” Visto que quem pergunta ou responde sobre isto é justamente a suprema autoridade eclesiástica a quem esse pedido foi dirigido, há que considerar com cuidado o que isto comporta.
A primeira resposta deveria vir pelo cumprimento do prometido. E esta ninguém melhor que João Paulo II pode dar. Trata-se de comprovar se os males anunciados da difusão dos erros da Rússia, o comunismo e o ateísmo, pelo mundo, com a conseqüente perseguição da Igreja, martírio de muitos cristãos e grandes sofrimentos do santo padre, deixou de ser uma realidade de hoje. Se no mundo em geral, ou na Polônia em particular, ou mesmo na própria Roma, onde um ano antes foi tentado um assassinato contra o papa, chegou finalmente a paz, pela conversão da Rússia.
Parece que vivemos bem o contrário disso tudo, e mais ainda: esse espírito inimigo infiltrou-se na Igreja, onde há bispos e padres que acolhem os “erros da Rússia” como se fosse um novo Evangelho. João Paulo II viveu isso pessoalmente por ocasiões de sua viagem à Nicarágua. Sabe também o quanto é difícil ao prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, cardeal Ratzinger, e outras autoridades da Igreja, enfrentar as insídias das igrejas populares, as falsidades das teologias de libertação, o ativismo político das comunidades eclesiais de base, e outras iniciativas apoiadas por certas autoridades “intocáveis” dentro da Igreja.
Portanto, deve-se deduzir: ou o pedido de Fátima não foi atendido pelo papa com a Consagração pedida, ou a promessa feita não foi mantida pelo Céu, que não mandou a paz à Terra.
É claro que antes de considerar a segunda hipótese, seria melhor dizer que a aparição e a mensagem de Fátima são ilusões que não merecem crédito. Seria menos impudente que insinuar ser o poder celeste ineficaz ou enganoso.
Pela realidade do mundo de hoje, portanto, ninguém disposto a fazer um breve raciocínio de causa e efeito, entre os “erros da Rússia” e suas conseqüências, poderia dizer honestamente que o problema não subsiste. Nem os marxistas ocidentais o fazem. Como seria então para os católicos que conhecem a mensagem de Fátima e sabem que isto foi prenunciado desde 1917 e oferecida solução?
Passemos agora a considerar a resposta dada pela documentação onde está registrado o que irmã Lúcia, a quem foi confiada a mensagem, diz do seu cumprimento. Usaremos ainda o livro Documentos de Fátima, no qual o padre Antônio Maria Martins S. J. publica as cópias dos manuscritos originais da vidente, com as respectivas traduções em italiano e espanhol, além do texto em português.
Veja-se então o anúncio do pedido de consagração feito dia 13 de julho de 1917 (p. 6 deste livro e p. 219 e 341, op. cit.). Vejam-se, outrossim, as palavras do pedido feito em Tuy, na Espanha, dia 13 de julho de 1929, para a consagração da Rússia (p. 18 deste livro e 465, op. cit.): “É chegado o momento em que Deus pede para o santo padre fazer, em união com todos os bispos do mundo, a consagração da Rússia ao meu Imaculado Coração, prometendo salvá-la por esse meio.”
Essas palavras foram transmitidas aos papas, mas na carta de irmã Lúcia a Pio XII, em 1940, esta foi solicitada pelo seu bispo a mudá-las para: “(...) consagração do mundo ao Imaculado Coração de Maria, com menção especial da Rússia, e ordenar que em união com vossa santidade e ao mesmo tempo a façam também todos os bispos do mundo, abreviar os dias de atribulação, com que tem determinado punir as nações de seus crimes, por meio da guerra, da fome e de várias perseguições à santa Igreja e a vossa santidade (...).” Não entraremos aqui nas razões dessa modificação, basta dizer que as palavras originais estavam na mesma carta (op. cit. p. 431-437).
Foi visto antes que Pio XII atendeu parcialmente o pedido. Assim, em carta de 4-5-1943 de Tuy, ao padre superior (op. cit. p. 465), Lúcia confirma: “Deus promete o fim da guerra para breve, em atenção ao ato que se dignou fazer Sua Santidade (consagração de 31-10-1942). Mas como ele foi incompleto, fica a conversão da Rússia para mais adiante.” De fato, não houve a explícita menção da Rússia no ato de 1942, e se isto se realizou em 1952 faltava também naquela ocasião a participação dos bispos do mundo.
Em carta de Tuy, 2-3-1945, ao padre Aparício (op. cit. p. 497 e segs.), Lúcia diz: “Era preciso intensificar muito a oração e o sacrifício pela conversão da Rússia, para ver se, apesar da consagração desta nação não ter sido feita nos termos pedidos por Nossa Senhora, conseguimos a sua volta para Deus. Eu tenho grandes esperanças, porque o bom Deus conhece bem as dificuldades. Aí reza-se pelo santo padre? É preciso não deixarem de pedir por sua santidade. Faltam-lhe ainda grandes dias de aflição e tormenta.” (Padre Martins pergunta em nota: é referência inconsciente à crise da Igreja?)
Vemos, assim, também pela confirmação escrita de irmã Lúcia sobre a consagração pedida em Fátima, que esta não foi atendida por Pio XII. É interessante observar que em carta subseqüente de 11-1-1946 (op. cit. p. 499), onde se fala da ida de padres à Rússia, Lúcia diz que não pode falar ou escrever abertamente porque tem ordens rigorosas. E comenta: “Não admira. As obras de Deus são sempre perseguidas.” Vejamos agora, à luz dessas declarações de Lúcia, que nada mais fazem que confirmar, serem como qualquer um pode verificar, os termos da consagração pedida e da realizada diferentes, como foi feita a consagração em Fátima dia 13 de maio de 1982.
Antes de mais nada, deve-se registrar um comunicado escrito do cardeal Casaroli, secretário de Estado de João Paulo II, de 20-4-1982, e dirigido a todos os bispos do mundo, para comunicar a intenção do santo Padre de consagrar o mundo a Maria por ocasião de sua ida a Fátima para o 13 de maio. Falava-se nela da repetição do ato de Pio XII e pedia-se em termos gerais a união espiritual na oração. Era uma missiva claramente formal, pois não é segredo a desaprovação dessas medidas “antiecumênicas” por grande número de prelados. Mas, seja como for, as intenções do papa ficaram desconhecidas dos fiéis, tanto quanto essa carta. Portanto, quanto à participação dos bispos do mundo, que deveria ser ordenada claramente pelo papa, ela não houve. A dificuldade enorme para consegui-lo, devido aos novos caminhos ecumênicos do concílio, era descontada na situação atual, mas nem pôr isto era veraz a frase usada por João Paulo II na consagração de 13 de maio: “Estou aqui unido com todos os pastores da Igreja nesse particular vínculo, pelo qual constituímos um corpo e um colégio (...).” A intenção do papa não poderia suprir a dos bispos, e, portanto, nesse aspecto a consagração já era incompleta.
No que diz respeito à menção explícita à Rússia, na consagração do mundo de 13 de maio de 1982 em Fátima, João Paulo II usou a seguinte frase: “De modo especial confiamos e consagramos a Ti, aqueles homens e aquelas nações que desta entrega e consagração têm especial necessidade” (cf. Osservatore Romano). Ora, isto vale para muitas, diversas nações.
Neste ponto, à pergunta de papa Wojtyla — “aquela consagração acaso não satisfez ao apelo de Fátima?” — e se deve receber uma resposta negativa no que se refere às consagrações de Pio XII, tanto mais  negativa será para a sua consagração, cujo texto não se aproximou da primeira nem renovou as palavras da segunda.
Mas para dirimir a última possível dúvida formal a respeito, havia ainda um meio: perguntar diretamente à Lúcia. Isto deve ter sido feito quando, naquela ocasião, o papa conversou a sós com a vidente por quase meia hora. Poderia ela ter contrariado o que sempre escrevera, e confirmado fatos objetivos? Tudo indica, porém, que João Paulo II, consciente da importância da consagração, pela gravidade e atualidade do terceiro segredo que conhece, pensava ainda resolver a questão com as fórmulas vistas há pouco.
Para confirmá-las, mandou depois seu núncio em Lisboa visitar Lúcia em Coimbra. Isto aconteceu em 19-3-1983, e acompanhavam o núncio, o dr. Lacerda e o padre Messias, como relatará um artigo do padre Caillon, que teve essa parte reproduzida em outras publicações, entre as quais Approaches (n.º 82); Si si no no (n.º 3, ano X, fev.84). Eis a declaração de irmã Lúcia: “A consagração da Rússia não foi feita como Nossa Senhora pediu. Não pude dizê-lo antes porque não tive a autorização da Santa Sé para fazê-lo.”
Depois disso o papa ainda tentaria fazer duas consagrações, como veremos, o que demonstra com eloqüência em que ponto avançado a humanidade e a Igreja devem encontrar-se diante dos enormes perigos prenunciados. Mas, seriam finalmente completas? Conseguiria João Paulo II pronunciar o nome Rússia publicamente, para o bem da Igreja e a glória da Virgem Maria?
Sobre as imensas dificuldades, hoje, de enfrentar os erros da Rússia, isto é, o comunismo e o ateísmo, e sobre a evidência dos progressos que esses erros continuam a fazer no mundo e na Igreja, não pode haver ilusão. São empregados todos os recursos e articulados todos os terrores. Pelo medo, abrem-se-lhe as portas.
Só poderia sustar esse avanço alguém que de uma cátedra muito alta e com autoridade indiscutível acusasse o mal pelo nome sem procurar compromissos ou escapatórias, nem com as palavras.
Essa cátedra, essa autoridade e esse amor destemido são os atributos do sucessor de São Pedro, rocha da fé íntegra e pura. A força está na fé sem mancha, sem misturas humanas, sem compromissos mundanos. E a ação vem da caridade, que não existe sem a fé.
Ora, a fé conciliar demonstrou ser apenas um sentimento confuso e uma caridade espúria, aberta a qualquer compromisso. Nada tem a ver com Fátima, antes é contra tudo que seja genuinamente mariano. Eis a conversão necessária, pois: a renúncia, ao “concílio irreversível”, suprema desgraça que abalou o sucessor de São Pedro e deixa a arca de salvação à deriva.


O PAPA TEM DEVERES PARA COM FÁTIMA?


Para a mentalidade do mundo e também da Igreja conciliar, a piedade mariana em lugares como Fátima é uma manifestação de um catolicismo superado que pode ser aceito, mas nada pode impor. Por essa razão, a visita de um papa ao lugar de uma aparição celeste nada mais seria que um gesto de solicitude pastoral para com os devotos, ou, eventualmente, resultado de sua pessoal devoção mariana.
Assim, já o comparecimento de Paulo VI em Fátima se justificaria em atenção ao grande número de fiéis apegados a esse tipo de piedade. Portanto, nada haveria de mal que aproveitasse a ocasião para fazer um apelo de paz para a edificação de um mundo mais justo e fraternal, com a colaboração de todos os homens de boa vontade, sem exclusão dos aderentes a credos políticos e religiosos diversos, mesmo opostos ao catolicismo, ao culto mariano e a Deus.
Mas, para a fé católica, que reconhece a verdadeira guerra do mundo na oposição do mal ao bem, da sinagoga de Satã à Igreja, do príncipe deste mundo a Cristo, qual é o sentido de Fátima? Ora, Fátima, acontecimento excepcional de nosso século que não pode ser visto apenas como um entre tantos fatos sobrenaturais de que é rica a história da Igreja, vem lembrar essa oposição vital, que os belos discursos certamente não irão elucidar.
Assim sendo, o fato de o papa ir em peregrinação a Fátima tem sentido católico, enquanto o chefe da Igreja e supremo custódio da fé quer demonstrar que esta deve ser aceita e os ensinamentos que trouxe seguidos à luz da fé católica. Disso estará dando exemplo, para a glória de Deus e o bem da Igreja.
Recapitulemos, então, o ensinamento que a mensagem lembrou. Antes de tudo, que os pecados dos homens são a verdadeira causa de todos os seus males. Segue-se que estes males e castigos são permitidos ou mandados por Deus, que é Senhor da História. Assim, do mesmo modo que males e calamidades são conseqüência da ofensa a Deus, paz e prosperidade, se reais, são o resultado da aceitação, por parte do Senhor, da reparação aos erros e ofensas feitas no espírito de louvor e glória a Deus, pela Sua Igreja.
Aplicando isto à nossa época, as mensagens marianas lembram o que vai esquecido, advertem dos perigos e dos castigos, e mostram os meios para evitá-los, prometendo, se forem usados, a intervenção pelo bem e pela paz dos homens e nações. Não admira, portanto, que tal mensagem seja confiada sobretudo ao papa.
De sua suprema cátedra e púlpito, só ao pontífice romano é dado julgar se essa mensagem é autêntica e deve ser recebida, e então ensiná-la e proclamá-la universalmente. Isto, no caso da mensagem de Fátima, seria feito atendendo fielmente ao seu pedido, e invocando os homens a fazê-lo igualmente. Assim procedendo renderia glória a Deus por reconhecer Sua oferta, pela esperança da Igreja em vê-la aplicada, e após, pela gratidão e conversão de muitos homens pela intervenção salvadora.
Tudo isto seria também triunfo para a religião que ensina a dar a glória de Deus, não só como dever, mas como bem último do homem. Enfim, seria um compêndio vivo da fé, esperança e caridade que aos homens da Igreja compete ensinar sempre aos fiéis, para na oração comum preservar a fé e edificar uma sociedade melhor.
Ora, como se viu, a visão de Paulo VI estava muito distante disso tudo: não mencionou sequer a oferta de Fátima; a sua esperança estava no seu projeto e na ONU, e a salvação viria do culto ao progresso e ao homem, que irmanaria toda a humanidade. Para isto operou, indo à ONU e estabelecendo relações com as mais estranhas religiões e ideologias. E Fátima, por estar longe destas, e ser malvista pelo mundo, tornava-se um empecilho se não fosse devidamente redimensionada ou adaptada à reconciliação humana.
Seria diferente para João Paulo II, que demonstrara ter consciência da importância de Fátima, à qual fora chamado também pelo atentado que sofreu, como declarou? Apesar das aparências, a atitude é essencialmente a mesma, não obstante esse chamado, porque, como vimos, não se atendendo o pedido fielmente, nega-se a sua origem. E disto se segue que não se rende glória a Deus, acreditando na Sua oferta, esperando na Sua promessa, e operando para que possa manifestar-se com Sua intervenção milagrosa e salvadora.
E dizendo isto voltamos ao ponto inicial: a questão de fé.
Dissemos quais os pontos essenciais da fé católica que o pedido de Fátima veio lembrar. Se quisermos resumi-los numa frase, diremos: confiança na Providência. Nesta, até as ações mais ousadas serão tranqüilas. Nesta, até a contemplação mais passiva será ativa.
Nesta, o gesto mais louco será racional. Mas, tudo isto é a normalidade da religião de Deus, cujos pensamentos são loucuras para os homens, do Senhor sem o qual nada podemos, de Jesus Cristo cuja suprema prudência foi morrer na cruz pelos homens e que deu esse sinal. E quem não recolhe com Ele, dispersa.
No século XX o sinal da Providência foi lembrado em Fátima. Mas justamente então os homens antepunham suas soluções e seus sinais aos de Deus. E os resultados foram colhidos no mundo pelas guerras, calamidades e mortes. E no entanto, hoje, esses mesmos resultados destroem a vida espiritual, envolvendo a própria Igreja, cujos chefes almejam uma paz do mundo sem ver que esta, sem a fé, é a pior morte. Vivemos uma guerra satânica e o massacre de almas é a realidade invisível. A Igreja foi crucificada pelas heresias, dilacerada pelo cisma oculto de seus chefes, dessangrada pela apostasia de seus filhos que não deram ouvidos a Fátima.
Tinham os papas obrigações e deveres para com Fátima? A resposta é dada por uma outra pergunta: têm os papas obrigações e deveres para com a fé? Ora, enquanto Fátima é a lembrança dos pontos essenciais de fé que estão esquecidos, essa obrigação e dever são parte integrante desse supremo cargo. E até há não muito tempo os papas ao serem coroados juravam: “Não diminuir ou mudar nada de quanto encontrei conservado pelos meus predecessores, nem admitir qualquer novidade, mas conservar e venerar com fervor, como discípulo e sucessor fiel e com todas as minhas forças e empenho, o que me foi transmitido; (...) Portanto, submetemos ao mais severo anátema de interdição, trata-se de nós mesmos ou de outro, quem quer que tenha a pretensão de introduzir qualquer novidade em oposição a esta tradição evangélica ou à integridade da fé e religião cristã, ou também tente mudar qualquer coisa, acolhendo o contrário, ou de concordar com os soberbos que ousem fazê-lo com ousadia sacrílega.” Foram fiéis a isto os papas conciliares?
É o que seguiremos vendo. Mas, contrários à fé foram os hereges que fizeram a reforma protestante e anglicana. Foram esses papas fiéis às interdições de seus predecessores?
Seria interessante lembrar um precedente histórico. Honório Papa, que pactuou com o herege Sérgio sobre um ponto da doutrina, foi condenado postumamente pelo Concílio de Constantinopla III, e pelo papa São Leão II, “por ter permitido com uma traição sacrílega que fosse manchada a fé imaculada.”
Bem entendido, protestantes e anglicanos podem estar hoje na boa fé de uma religião que receberam, mas nem por isso podem cair as razões de interdição ao erro de que são vítimas. Os homens podem e devem ser convertidos, mas as idéias não, serão sempre novidades contrárias à fé dada por Deus e transmitida pelos apóstolos. A Providência só opera pela fé, primeiro passo para a Sua glória.



CONVERSÃO OU RECONCILIAÇÃO ENTRE HOMENS?
Durante sua peregrinação a Fátima e visita a Portugal, não se cansou o papa de pedir orações para sua viagem à Inglaterra. De fato, esta fora programada para o fim do mesmo mês de maio.
De volta a Roma, no dia 19, e na audiência geral na praça São Pedro, João Paulo II diz: O convite à conversão e à penitência é a primeira e fundamental palavra do Evangelho. Essa não cai nunca em prescrição e no nosso século assume dimensões particulares diante da consciência crescente da luta, jamais tão profunda, entre as forças do bem e do mal nesse nosso mundo humano. Este é também o ponto central do cuidado da Igreja, como estão a testemunhar as vozes dos pastores que indicaram ‘a reconciliação e a penitência’, como sendo o tema mais atual, confiando portanto o seu desenvolvimento à próxima sessão do Sínodo dos Bispos.”
Parece estranho que um discurso que começa falando de conversão como primeira e fundamental palavra do Evangelho, termine concluindo que por isso mesmo os pastores querem falar de reconciliação, tema mais atual para discutir no Sínodo dos Bispos. Ambas são palavras evangélicas, mas a referência feita a Fátima, sobre a sua mensagem, era da conversão a Deus. Agora os pastores devem ter considerado mais pastoral e prudente falar de reconciliação, que afinal, aplica-se também entre homens.
Para os nossos tempos a palavra “conversão” deve ter parecido, forte, quase ofensiva, talvez absoluta demais em tempos de ateísmo e apostasia. “Penitência” ainda é uma palavra lícita, visto que podem usá-la, como se viu, para dizer que a Igreja deve penitenciar-se pelos erros do passado.
Em todo caso, tudo isto vinha a calhar para o programa a ser feito dentro de dias: a ida do papa à Inglaterra, onde, dia 29, na catedral anglicana de Canterbury, com cujo arcebispo, primus inter pares da comunhão anglicana mundial, depois de um ofício comum, abençoaram lado a lado a multidão. Não mais o sucessor de São Pedro sozinho, mas os sucessores de São Gregório, João Paulo II, e de Santo Agostinho, dr. Runcie, em igualdade de condições. O papa equiparado a quem, para a Igreja, não é nem mesmo sacerdote.
É claro que se pretendia que essa reconciliação fosse em nome da Igreja Católica Apostólica e Romana, que vinha penitenciar-se de erros passados. Quais? Para isso fora rezar em Fátima João Paulo II? Ora, tal suposta reconciliação implicaria uma divisão efetiva da Igreja em partes, e isto é uma heresia já condenada por todos os papas precedentes. O único verdadeiro ecumenismo consiste na reconciliação dos anglicanos com a Igreja instituída divinamente por Jesus Cristo, que conferiu o primado a um só: a Pedro, que como supremo pastor é sinal da unidade e unicidade da Igreja.
Então, o que ocorreu em 29 de maio na catedral de Canterbury foi, perante a fé católica, somente uma falsa reconciliação entre João Paulo II e o laico Runcie, a desdouro somente dos homens da Igreja que admitiram possível algo que representava uma ruptura com tudo que o magistério estabelecera como irreformável.
Aos anglicanos em boa fé era dificultada, assim, a conversão à Igreja de Cristo, que é a Igreja Católica; e aos católicos, além da confusão, ficava a humilhação de terem tido um chefe que desconheceu a função e unicidade de seu cargo, dado para confirmar todos na fé e nunca estabelecer uniões e reconciliações fora dela. Eis que o projeto que o papa Wojtyla trazia no coração, quando foi a Fátima, era humano e tinha o mesmo sinal do projeto do papa Montini, que vinha do encontro na ONU, em 1967.
Este fato não foi único, pois. Desde o Concílio multiplicam-se iniciativas deste tipo. Isto é, reconciliações humanas e falazes que deixavam de lado, para ser discutida depois, justamente o principal, a fé, sem a qual, como Nosso Senhor e a Igreja toda sempre ensinaram, é impossível agradar a Deus e, portanto, salvar-se. Na fé única revelada por Deus Pai os homens reconhecem e ganham a filiação divina, tornando-se irmãos. Ora, pelo pseudo-ecumenismo conciliar, os homens receberam o direito de escolher a religião que preferirem, onde os deuses ou pais serão segundo os homens. Dependerá depois dos homens adaptá-los para a confraternização.
É inconcebível pensar que Nossa Senhora possa ter algo em comum com o espírito que levou a isto, e que é o mesmo que no passado, na Inglaterra como em outros países não católicos, levou ao ultraje de tudo o que fosse mariano ou relativo ao papa. Tudo isto é contrário à mensagem de Fátima, como à doutrina da Igreja. E pode-se pensar que quando se falou das ofensas ao Imaculado Coração de Maria, eram mencionadas justamente as ofensas dos católicos que, em favor de falsas uniões ecumênicas, deixam de lado os dogmas marianos que são abominados pelos protestantes em geral.
Disso tudo apreende-se que na Igreja Conciliar cultivam-se as suspeitas e objeções a tudo que diz respeito a Fátima, pensando poder ocultar que isto é feito na mesma medida em que contradizem e falsificam o magistério e a doutrina da Igreja. Estes são repetidos e sustentados em Fátima, é o espírito do Concílio que lhes é inimigo declarado, embora queira ocultar-se na ambigüidade e até na falsa devoção mariana.
A este propósito é bom registrar aqui um fato bem estranho. Existe em todo o mundo um Movimento Sacerdotal Mariano fundado pelo padre italiano Estêvão Gobbi. Este, depois de receber uma 'inspiração” em Fátima, 1972, diz ter passado a receber mensagens regulares de Maria, que são publicadas em opúsculos. Estes são traduzidos em todas as línguas e tudo recebe o apoio claro do papa e hierarcas vários.
O tom dessas mansagens não é diverso do ouvido em Fátima ou mesmo em La Salette, e em muitos aspectos parece igualmente uma chamada à conversão e penitência. Convoca, porém, os sacerdotes a uma total obediência ao papa e hierarcas a ele unidos, em qualquer ocasião, num tom adulatório e acrítico, pouco afim à vigilância católica. Aliás, é dito ali que lhes será dado o sinal do momento de agir, como se quase não vivêssemos já em plena apostasia e abandono da verdade, e aos ministros do Senhor fosse dado ficar à espreita.
A descrição do 13 de maio de 1982 em Fátima é uma apoteose de João Paulo II, feita pela voz interior que o padre diz ser da mãe do Céu: “Olhai o papa! O seu exemplo de oração é exemplo de fidelidade ao mandato recebido com a sucessão de São Pedro; (...) embora muitas vezes esteja circundado por um grande vazio e solidão. A sua palavra é aquela de um profeta, mas cai tantas vezes num imenso deserto (...) Dá exemplo de fortaleza. Avança sem temor, com a força do seu grande amor de pastor universal e vigário de meu Filho. Não teme nem críticas nem obstáculos; não pára diante de ameaças e atentados. (...) O que está agora vivendo já lhe foi predito por Mim.” É curioso que também nas aparições de Medjugorge, que estão acontecendo na Iugoslávia e, segundo o bispo local, monsenhor Zanic e expertos marianos, parecem tudo menos de Maria, essa “aparição maternal” dirija-se a um retrato do papa Wojtyla para beijá-lo carinhosa.
Também estas palavras soam estranhas: sabe-se que o papa, em Fátima para a consagração pedida, não conseguiu convocar os bispos para participarem nem teve o destemor de pronunciar o nome da Rússia, que deveria ser consagrada. Depois, de volta a Roma e antes de partir para sua abertura ecumênica anglicana, disse: “Fiz [em Fátima] quanto era possível naquelas circunstâncias.”
Mais que esse possível tão humano, é possível aceitar a notícia de que nesse mesmo 13 de maio, em Granada, na Espanha, uma antiga imagem de Nossa Senhora chorou lágrimas de sangue que foram vistas por muitos fiéis. Formaram-se longas filas para homenagear a Rainha do Céu, que demonstrava sua tristeza infinita aos homens da terra. Mas tudo não durou muito. Já no segundo dia o bispo local, d. Arsênio, mandou retirar a imagem para averiguações. Seguindo-se um longo silêncio, grupos de católicos requereram respeitosamente ao bispo que explicasse o que fora apurado. Apesar do grande número de assinaturas o bispo não deu qualquer resposta aos fiéis, como parece ser o hábito pós-conciliar. Foi feita apenas uma declaração para os jornais, na qual, sem mencionar análises de laboratório ou relatos eclesiásticos, dizia que nada havia acontecido: quanto a esta certeza poria as mãos no fogo.
Antes do fim do ano veio a notícia de que o palácio episcopal de Granada, um belo edifício de notável valor histórico, fora destruído num incêndio. Os eclesiásticos foram retirados incólumes, só o bispo teve as mãos queimadas.
Quantas já são as vezes em que os homens viram ou souberam que a Mãe chora sobre o destino dos filhos que se negam à reconciliação com o Pai, e dos pais que se recusam a reconciliar-se com o Filho. A longa e triste história da humanidade é o registro dessas desventuradas rebeliões. Mas, desde que Nosso Senhor fundou Sua Igreja, Seus ministros trabalharam pela reconciliação dos homens com Deus. Somente hoje, seduzidos pelo espírito do mundo que deve ter invadido a Igreja, convocam a uma reconciliação humana, em detrimento da fé dada por Deus. E se a Mãe vem lembrar a verdade, ofuscam sua presença, censuram suas palavras, arquivam suas mensagens e negam suas lágrimas, preferindo anúncios de paz e de venturas que os homens não podem dar-se.
Não admira que no dia 13 de maio de 1983 o padre de Nantes voltasse a Roma com 200 membros de seu movimento para entregar ao papa Wojtyla um Liber Accusationis em que era pedido ao pontífice que se autojulgasse por heresia, cisma e escândalo público.


O SÍNODO CONCILIAR DE 1983
Para uma reunião de bispos que se propõe falar de reconciliação, seria importante ter um quadro geral do estado religioso do mundo, onde, como se sabe, proliferam cada vez mais novas seitas e cultos satânicos, em meio a um indiferentismo geral. Havia, portanto, urgência na identificação das falhas e dos vazios pastorais para que os pastores católicos pudessem reparar tanto mal.
Na verdade, porém, não foram sequer capazes de identificar o próprio estado religioso em crise. Quem seguiu as notícias do sínodo sabe que o papa pediu à presidência que impusesse ordem nos trabalhos, chamando ao tema central da “reconciliação e penitência” que, para a Igreja, está no sacramento da confissão e não na política.
Mas, uma vez que o tema da reconciliação político-social ocupou tanto espaço nesse sínodo, há que notar ter sido esta reconciliação tratada no mesmo sinal do ecumenismo religioso, isto é, sempre com a preocupação de aproximações e uniões exteriores e humanas. Se antes era deixada de lado a fé para se entabularem negociações com protestantes, judeus ou budistas, depois, para se dialogar com movimentos e sistemas políticos, era posta de lado a doutrina social da Igreja e, naturalmente, as palavras de Fátima. Isto porque esses políticos, em geral, comungavam nos “erros espalhados pela Rússia” prenunciados desde 1917 em Fátima.
Agora que o potencial bélico soviético atingiu um nível sem precedentes na História e continua impondo seu comunismo e ateísmo em todo o mundo, quer por vias internas, quer externas, justamente agora desponta o espírito do diálogo e da reconciliação. E para os novos pacifistas eclesiais que se recusam acreditar ser esse um diálogo de surdos e uma recondução unilateral, além das evidentes implicações da KGB no atentado ao papa, através da trama urdida usando-se fios turcos e búlgaros, naqueles dias foi friamente abatido pelos soviéticos um avião jumbo civil coreano, com centenas de passageiros inocentes, que se desviou inadvertidamente de sua rota para o lado comunista. O fato foi inicialmente negado com cinismo e depois justificado com arrogância e até acusações. Mas o mal estaria na desconfiança recíproca!
Esse sínodo aconteceu, portanto, enleado no fragor de discursos e marchas pacifistas que pretendiam com isto acabar com as guerras, ocupações, repressões e conflitos, além de atentados e ações bélicas que indicam uma guerra onipresente. Mas, palavras falsas e agressões reais, tudo encontra guarida nos corações da nova pastoral reconciliatória. Veja-se a iniciativa desarmamentista dos bispos norte-americanos e também as palavras de João Paulo II declarando ao mundo que a causa dos conflitos reside na falta de confiança recíproca. A essa luz não estranharia uma mediação entre um ocidente que se quer dócil e desarmado e um oriente comunista que se reconhece agressivo e superarmado, só porque desconfiado.
No sulco desse pacifismo invertido, iriam seguir-se as mais estranhas iniciativas e até a apologia da objeção de consciência ao serviço militar em um país cujo empenho bélico é limitado à defesa. Os Jornais registraram no dia 12 de fevereiro de 1984 as seguintes palavras ditas a 400 jovens de uma paróquia romana: “Sobre o problema da objeção de consciência gostaria de dizer: demonstram maturidade aqueles Estados que são capazes de aceitar uma outra forma de serviço público para os jovens, que não seja o serviço militar, permitindo substituir um pelo outro.” Eram palavras de João Paulo II falando de improviso sobre a ameaça das armas e da guerra. Como polonês, teria dirigido esse discurso de maturidade à pátria ameaçada pelo nazismo? Será que o comunismo soviético é hoje menos agressivo e menos armado? Enfim, diante de idéias tão estranhamente irreais, podem os católicos não lhe opor objeção de consciência?
Depois dessa ampla divagação, que dá a medida do que sugere esse espírito de reconciliação, filho do espírito do Concílio, vamos considerar os documentos desse sínodo para ver como foi tratado o tema central, que segundo João Paulo II estava na mensagem de Fátima: “(...) ainda mais atual que há 65 anos e ainda mais urgente.”
Pois bem, já no fim de seus trabalhos, marcados por disparates e contradições doutrinais que impressionaram os próprios participantes e provocaram a ironia até dos jornalistas católicos, notou-se que falaram de tudo, mas alusões a Fátima só houve uma, e mesmo assim de passagem e num documento escrito. A esse ponto o arcebispo Mabutas y Lloren, de Davao, Filipinas, na 17.a congregação geral, dia 15 de outubro de 1983, achou que não poderia deixar de observar aos seus colegas uma incrível omissão; “Parece bastante estranho que tratando da missão de reconciliação (...) praticamente todos tenham feito silêncio sobre a pessoa que a Igreja invoca como Refugium peccatorum, a Santíssima Virgem Maria.”
Não admira, pois, que o papa, lendo isto, tenha no dia seguinte considerado necessário ele próprio fazer uma tácita admoestação, repetindo palavra por palavra para os padres sinodais reunidos a consagração do mundo à Nossa Senhora, que havia feito em Fátima no dia 13 de maio de 1982. É claro que também desta vez o nome da Rússia não seria mencionado, nem pedida a participação dos bispos no ato. Nos primeiros dias o papa havia repetido ao sínodo dos bispos e a todos os fies que no mundo ia-se perdendo o senso do pecado. Nos dias seguintes foi ficando claro, para quem ainda duvidasse, que isto acontecia também entre os que receberam a unção como sucessores dos apóstolos. Os pastores não haviam atendido às palavras de Maria Virgem que chorava sobre o destino dos homens. A que mais poderiam atender?


É POSSÍVEL REPARAR UM ERRO SEM DENUNCIÁ-LO?
Falou-se aqui continuamente na consagração da Rússia ao Coração Imaculado de Maria para dizer que não foi efetuada; mas, estará claro o significado deste ato e as condições necessárias para cumpri-lo?
Vejamos: consagrar significa oferecer, separar do mundo para tornar sacro, reconhecer a soberania divina sobre algo ou alguém que foi devotado a Deus. Portanto, consagrar implica também a ação de purificar e, sendo uma pessoa que se consagra, em renúncia ao que é impuro e mau: implica estar em estado de graça.
Do mesmo modo, e por maior razão, quem consagra deve ser consagrado e estar nesse estado, e querer, ou prometer seu empenho nisso, que o objeto de sua consagração esteja ou atinja esse estado de dignidade e purificação para ser recebido.
O contrário disto seria o mesmo que oferecer alimento contaminado como donativo, ou oferecer o que é indigno ou impuro como oferta ao Alto. “Vós ofereceis sobre o Meu altar um pão imundo e dizeis: Em que te profanamos nós? (...) Oferecei estes animais (defeituosos) ao nosso governador e vereis se lhe agradarão e se ele vos receberá com agrado, diz o Senhor dos exércitos.” (Ml. 1,7-8)
Ora, essa consagração implica então um juízo do que seja bom, puro, digno, estado este que o consagrado possa atingir ajudado por quem a consagra e quer operar para isso. Exemplo é uma criança que, batizada antes do uso da razão, é prometida cristã, pelo banho de graça de Quem nos lavou em Seu preciosíssimo sangue e pelo empenho de quem renunciando a Satanás por ela, lhe dará condições de receber o ensinamento cristão. Mas, e uma nação?
Embora uma nação se componha de homens das mais diversas extrações e credos, também uma nação pode ser consagrada para o bem de seus habitantes, sempre que a estes sejam dadas as condições, ou pedidas explicitamente a quem pode dá-las, para que se torne cristã nas suas leis, no seu governo, nos seus costumes.
Mas, também neste caso, alguém deverá renunciar a Satanás por ela, alguém que saiba claramente quais os males contaminantes que a afligem, quais os erros que a afastaram de Cristo, e estes sejam proclamados a todos os seus habitantes, que se quer cristãos, e para testemunha de todas as gentes.
Estamos, assim, diante do que deveria ser a consagração da Rússia. E neste ponto é bom voltar às palavras de Pio XII, tanto quando consagrou o mundo com menção da Rússia (p. 40) como quando falou sobre o modo como deve ser feito um pedido a Deus (p. 18). Em ambos os casos ficou claro qual deva ser o propósito de conversão e reconhecimento dos erros contrários que tornam os homens indignos diante do Senhor. Não é diverso do que se dá nas confissões pessoais.
Mas, como aplicar isto à Rússia? Ora, quem não sabe que essa grande nação já foi cristã, e, como lembrou Pio XII, era mariana, não havendo casa que não tivesse em lugar de honra um ícone de Maria? E nas palavras ditas à irmã Lúcia ficou claro: a Rússia foi confiada a Maria, que a salvará. Isto, porém, depende do retorno à Igreja Católica que assegurará a continuidade dessa conversão na Terra. Cabe assim à Igreja, pela boca de seu papa, consagrar a Rússia, não a um cristianismo vago, ecumênico, conciliar, mas ao catolicismo íntegro e puro de que é sinal o Coração de Maria, junto ao Sagrado Coração de Jesus e representá-lo em seu máximo esplendor e fidelidade dogmática e litúrgica.
É claro que para essa consagração solene deverá haver não só a menção explícita da Rússia, que não pode ser confundida com o que se quis chamar de União Soviética, mas a menção clara dos erros que a dominaram sob esse outro nome, levando essa nação, junto com outras, à gana de domínio, destruição e ódio a Deus e à Sua Igreja. Eis a razão clara para mencionar o nome da Rússia. Infelizmente, porém, esse nome parece arder mais que o amor pelas coisas de Deus, e hoje todos temem a fornalha soviética.
Afinal, esse pedido seria normal para a Igreja em outros tempos. Não se pediram cruzadas, nem flagelações, nem mesmo jejuns, mas apenas uma consagração com menção do nome do consagrado de forma explícita. E isto já pareceu impossível. Seria a renegação de uma Ostpolitik vaticana feita de ilusões e enganos, mas cara aos homens, porque criada por eles.
E, todavia, eis a obra de misericórdia espiritual que daria glória a Deus e juízo aos homens: acusar os erros, admoestar os pecadores e depois reparar diante do Ofendido, por eles e pelos perseguidos. Mas a Igreja Conciliar não quer mais condenar, inaugurou a nova misericórdia humana ao mesmo tempo que aggiornava a doutrina e revolucionava a liturgia. Eis a miséria atual. Dos homens da Igreja tivemos um novo culto, uma nova lei, uma nova caridade e uma falsa paz que não converte, mas corrompe.
Ninguém negará que pode ter havido no passado métodos humanos aplicados à religião que eram duros, insensíveis, intransigentes e por vezes incompreensíveis para muitos, que criaram resistências ao jugo suave de Nosso Senhor. Mas nem por isto pode-se negar que contra o mal toda intransigência é pouca. Comprometer-se ou conviver com o que é ofensa a Deus, ódio a Sua Igreja e perigo para as almas, sem denunciá-lo, nunca foi amor fraterno, mas omissão; nunca foi caridade, mas covardia. Não se faz bem ao próximo condescendendo com o que o aprisiona. Não se livra ninguém do mal silenciando o nome deste.
Um consagrado para consagrar uma nação deve apontar os erros que a submetem e dos quais se deve libertar para voltar à verdade e à justiça. Silenciá-los é cumplicidade com o erro. Tratando-se nessa época de erro culminante que vai sufocando todo o mundo, de que ideologia intrinsecamente perversa que inocula o espírito de revolta e descrença em populações sem fim, tratando-se do comunismo que é o maior flagelo que a humanidade já conheceu, Nosso Senhor só poderia confiar essa missão extrema ao Seu representante na Terra, ao sucessor de Pedro que, no temor e amor de Deus, fez sua profissão de fé fundamento da Igreja: o papa.
Para fazê-lo em tempos normais não havia escolha de métodos nem diplomacias. Tratava-se de denunciar o mal pelo nome, explicando em que consiste, como opera, quem são seus promotores e então condená-lo aberta e universalmente para o bem dos homens. As horas que vivemos não são, porém, normais. O mal é culminante e está armado como jamais revolução alguma esteve. Além disto, os homens acumularam tais pecados e afastaram-se tão ignominiosamente de Deus em troca de prazeres e dominação que pela multiplicação da iniqüidade se resfriará a caridade de muitos (Mt. 24,12). Quem terá ainda o amor necessário para arriscar a própria vida, para denunciar o que é morte e degradação para tantos? Hoje, não parece que esse alguém habite o nosso mundo eclesiástico, e quem detém o poder das chaves dedicou-se a novas aberturas. E eis que surgem inúmeros falsos profetas que a muitos seduzem. Levantam-se novas doutrinas como novos cristos e fazem-se grandes prodígios que poderiam enganar até os escolhidos. E as estrelas cairão do céu e as potestades do alto serão abaladas. E então aparecerá o Sinal do Filho do homem no céu. E todos os povos da terra chorarão.
No dia em que o testemunho católico deixar de condenar os erros e as heresias que contaminam o mundo, mas der ouvidos às novidades das falsas reformas, ignorando os verdadeiros sinais do céu; no dia em que todos os apóstolos fugirem... só restará o Juízo.


NOVOS CRISTOS E NOVAS DOUTRINAS...


A diferença entre as palavras “conversão” e “reconciliação” será mínima se usadas no sentido de volta do homem a Deus. Mas, já não é assim na nova era do culto ao homem. De fato, desde a queda os homens são roídos pela tentação de realizar com um passo mental o pulo do finito ao infinito, do humano ao transcendente, do profano ao sagrado. Na história da humanidade essa tentativa pertinaz já se repetiu incontáveis vezes e acabou no culto ao poder, nas idolatrias de todo tipo, e nas heresias que querem moldar o divino ao uso e especulações intelectuais humanas.
A imaginação já deu as mais diferentes formas religiosas a essa auto-religião, mas sua constante é pretender parecer uma nova bondade, uma compreensão do próximo, uma solução dos problemas existenciais. E isto para esconder que é sempre produto da soberba e da inveja. Para estas a conversão é indignidade, senão escravidão.
Fala-se da idolatria, hoje, como se fosse remoto culto do passado. E, todavia, ela é sempre a mais comum das religiões, porque o ídolo final nos humanismos do “culto ao homem” é a própria pessoa. Afinal, quem pode ser maior que um inventor do próprio deus! E isto repete-se até para os sectários de um líder carismático, por eles venerado com fervor, antes que ele mesmo suspeitasse ser um semideus. E depois, tudo vem por si mesmo: as lendas, o culto fiel, a representação de humildade, abnegação, heroísmo sem limites, tudo será atribuído de bom, de sábio e de santo, da parte de quem venera como potência imortal o ídolo que escolheu para ser-lhe superior.
Essa servidão idólatra foi divinamente rompida pela vinda do Verbo de Deus que se deixou crucificar por nós. Mas nós, homens, para nos salvarmos, precisamos glorificar o Deus que por nosso amor mostrou crucificadas em Si toda a miséria e idolatria humanas.
Diante de tal sacrifício redentor só a conversão é possível. Qual é o homem que cogita pagar a quem lhe deve? E um preço que nem todas as vidas nem todas as dívidas se lhe aproximam? Os homens! Os sacerdotes consagrados! Quem há entre vós que feche as portas e acenda o lume em Meu altar gratuitamente? (Ml., 1,10).
Quem pode converter-se a Deus, sem ainda ser atraído por Ele?
Ora, mesmo depois que o Verbo de Deus nos legou Sua palavra e Seu sacrifício para ensinar-nos e fortalecer-nos, a idolatria humana não morreu, mas o espírito do mal, infame imitador de Deus, saberia modelar ídolos à semelhança do próprio Cristo Redentor. Na era cristã, insinuaria falsos cristos e novos salvadores, numa contrafanação crescente até o ápice: O anticristo com poderes na própria Igreja de Cristo. Poderia triunfar sem a idolatria?
Eis que a idolatria levou ao dilúvio e levará ao fim. E os homens adorarão aquele que se elevará sobre tudo o que se chama Deus, ou que é adorado, de sorte que se sentará no templo de Deus, apresentando-se como se fora Deus, eis o mistério da iniqüidade descrito por São Paulo em Tes. II (2,4-11). E este artifício extremo do erro será permitido por Deus para que “aqueles que não tiveram amor pela verdade, creiam na mentira.”
Já Jesus havia ensinado e advertido: “Eu vim em nome de Meu Pai, e vós não Me recebestes; se vier outro em seu próprio nome, recebê-lo-eis. Como podeis crer, vós que recebeis a glória uns dos outros, e não buscais a glória que só de Deus vem?” (Jo, 5,43).
Eis, portanto, que em tempo de crise a maior vigilância deve ser dirigida aos próprios vigilantes. E estes entre si, lembrando como as heresias, os cismas, os escândalos religiosos quase sempre surgiram entre eles. Falsos cristos e falsos profetas, têm por meio natural, por caldo de cultura, o ambiente eclesiástico. Quem, sendo um alto prelado, negar isto, será pelo menos um falso vigilante, e quem vive falsamente sua função não pode estar longe de aceitar o engano que o vem afastando do dever. De certo modo já aderiu a ele, calando-o. Não podem bastar diante de Deus desculpas de enganos e silêncios que vieram da autoridade, do alto. Perante o erro, cada homem é responsável. Que dizer dos responsáveis da Igreja, que deveriam vigiar essa responsabilidade!
Vivemos, portanto, dias em que a vigilância maior deve ser dirigida não mais exclusivamente aos enganos grotescos de fora, mas às ciladas sutis armadas dentro da Cidadela da Verdade, e na medida mesma em que até revelações privadas de sabor mariano querem fazer passar tudo o que vem de cima, e mesmo do papa, como indefectível, acima de toda suspeita, a prova de todo engano.
É a papolatria de nossos dias contra a qual os mesmos papas preveniram deixando bem claro em que condições o papa é infalível, o quanto a Igreja é infalível. Esta, porém, é também indefectível e regida pelo Espírito Santo, enquanto o papa pode até dispensar esta assistência divina, como o fizeram no Concílio Vaticano II, que quiseram pastoral, e ao qual fizeram bastar a inteligência precária dos homens, que se sentiam vagamente inspirados e fortemente otimistas. Mas, quem sugeria isso tudo? Não, certamente, Quem havia ensinado — cuidado que ninguém vos seduza... vigiai e orai. Não, certamente, as mensagens marianas de Fátima ou de La Salette, que dizem, depois de falar da decadência dos consagrados e das seduções a que se expõem: Desgraça aos Príncipes da Igreja. O Vigário de Meu Filho deverá sofrer muito porque por algum tempo a Igreja será abandonada a grandes perseguições, tempo de trevas, a Santa Igreja passará por uma crise horrenda. A santa fé em Deus será esquecida, cada indivíduo quererá guiar-se por si mesmo e ser superior aos outros. Roma perderá a fé e se tornará a sede do anticristo. Isto é parte do que foi profetizado em 1846. Para quando? Certamente também não foram os papas a ensinar o otimismo a ser aplicado na defesa da Igreja, ao contrário. O papa Leão XIII, no dia 13 de outubro de 1884, no fim da santa missa, ouviu vozes atrás do altar, uma das quais arrogantemente dizia poder destruir a Igreja em menos de cem anos. A outra voz disse, então, consentir nessa prova.
Foi por essa razão que esse papa ordenou que no fim das missas, em todo o mundo, se invocasse a proteção de São Miguel Arcanjo. Além disso, mandou publicar um exorcismo para ser usado pelos sacerdotes onde é dito:
“As hostes astuciosíssimas encheram de amargura a Igreja, Esposa Imaculada do Cordeiro, e inebriaram-na com absinto; puseram-se em obras para realizar todos os seus ímpios desígnios. Ali onde está constituída a sede do beatíssimo Pedro, a cátedra da verdade para iluminar os povos, ali colocaram o trono da abominação de sua impiedade, para que, ferido o pastor se dispersassem as ovelhas.”
Foi Paulo VI quem declarou com horror ver a “autodestruição” da Igreja e a fumaça de Satã infiltrar-se no templo de Deus. Mas, havia sido ele mesmo a suprimir o juramento antimodernista ordenado por São Pio X para os sacerdotes e a remover as orações leoninas do fim da missa. É bem verdade que a principal intenção destas foi mudada em 1934 por Pio XI, em favor “da volta para Deus da Rússia.”
Já antes os papas Pio IX e Pio X, como Leão XIII, tiveram visões apocalípticas. Ao contrário, porém, de Paulo VI, reforçaram as defesas da Igreja, impedindo perigosas aberturas. São Pio X, que combateu valorosamente o modernismo diante da crescente perversidade, considerou que: “o Filho da perdição de quem falaram os apóstolos já está entre nós” (1903). Também Pio IX havia visto crescer de tal modo a aversão a Deus no mundo que: “Ele reservou para Si mesmo vencer seus inimigos.” Tudo isto está em POT (p. 206, 216, 229).


CARTA ABERTA AO PAPA — MANIFESTO EPISCOPAL
No dia 9 de dezembro de 1983 foi tornada pública uma carta ao papa João Paulo II com um documento anexo pelo qual o arcebispo Marcel Lefebvre e o bispo Antônio de Castro Mayer denunciavam as causas principais da profunda crise que dilacera a Igreja e a sociedade contemporânea. Eis como Si si no no a anunciou (n.º 17, ano IX): A carta e documento anexo entregues à Sua Santidade não regateiam comentários: com o devido respeito, denunciam com clareza e franqueza as causas da dolorosa situação em que está a Igreja, iluminando a figura dos dois insignes bispos, cujo amor pela Igreja e pelas almas vibra em cada linha.
“Essa denúncia é confirmada amplamente nos fatos dolorosos, nos números negativos em todos os setores (vocações, confissões, freqüência à missa dominical, etc.), nos seminários fechados, nos conventos desertos, na dispersão dos fiéis, em breve, nos frutos amargos que uma reforma de cunho protestante produziu na Igreja católica.
“O angustiado apelo dos dois prelados evoca também a dissenção manifestada de modos diversos, mas com idêntico conteúdo, nestes anos pós-conciliares por diversas autoridades eclesiásticas. Mencionaremos alguns principais: os cardeais Ottaviani e Bacci com o 'breve exame crítico do novo Ordo Missae'; o Cardeal Siri com a revista Renovatio e o livro Getsemani; o arcebispo Arrigo Pintonello no manifesto de dezembro de 1976; 'chegou a hora de dizer basta à sistemática traição da Fé' e na revista Seminari e Teologia, o cardeal Hoeffner no discurso em Fulda, que denuncia a ruptura com a tradição; o bispo de Ratisbona, Graber no livro Athanasius; o bispo holandês Gjissen, na sua oposição à Conferência Episcopal Holandesa; o bispo norte-americano Dwyer, na carta de 31-7-75 e Paulo VI, e no artigo 'A catedral devastada'. Deus queira que o número dessas testemunhas corajosas da fé aumente sempre.
“A denúncia dos dois bispos reflete o pensamento de muitos outros bispos, sacerdotes, religiosos e fiéis que sofrem com a humilhação da Igreja, mas não dispõem de meios para fazer ouvir a própria voz, ou porque lhes faltam força e coragem para falar contra a corrente, enfrentando as inevitáveis conseqüências, ou por que cedem a um falso conceito de obediência.


“O eclipse da Igreja, que é mãe e mestra, torna infrutuosa a redenção para a maioria das almas e acelera a decadência moral da sociedade com todas as espantosas conseqüências que presenciamos com a difusão da droga, da homossexualidade, do crime, do terrorismo, do divórcio, do aborto, etc. Eis que os bispos não podem, não devem ficar em silêncio para não faltar à missão que receberam de Nosso Senhor Jesus Cristo.” Segue-se a carta:
“Beatíssimo Padre:

Permita-nos Vossa Santidade que, com filial franqueza, lhe apresentemos as reflexões que seguem.

A situação da Igreja é tal, há uns vinte anos, que se assemelha a uma cidade ocupada.

Milhares de sacerdotes e milhões de fiéis acham-se num estado de angústia e de perplexidade, motivado pela 'autodestruição da Igreja': os erros contidos em documentos do Concílio Vaticano II, as reformas pós-conciliares, especialmente a reforma litúrgica, as falsas concepções difundidas por documentos oficiais, os abusos de poder cometidos por membros da hierarquia deixam os fiéis perturbados e confusos. Semelhante situação vem causando em muitos a perda da fé, o resfriamento da caridade, e destruindo o conceito de unidade da Igreja no tempo e no espaço.

Sensibilizados pelas angústias de tantas almas desorientadas que, em todo o mundo, desejam perseverar na identidade da mesma fé e da mesma moral, tal como definida pelo magistério da Igreja ou por ela ensinada de modo constante e universal, nós bispos da Santa Igreja Católica, sucessores dos apóstolos, julgamos que não nos seria lícito calar sem sermos cúmplices de obras malignas (cf. 2 Jo. 11).

Eis porque, baldadas as diligências feitas, nestes últimos 15 anos em caráter particular, vemo-nos obrigados a intervir publicamente junto a Vossa Santidade para denunciar as causas precípuas desta angustiante situação da Igreja e suplicar-lhe que, usando de seus poderes pontifícios, 'confirme seus irmãos' na fé que nos foi fielmente transmitida pela tradição apostólica (cf Lc. XXII, 32).

Com este propósito, tomamos a liberdade de, em anexo, apontar a Vossa Santidade mais pormenorizadamente, embora não de modo exaustivo, erros principais que estão na raiz desta situação trágica e que já foram condenados por vossos predecessores:

1. — Um conceito 'latitudinarista' e ecumênico da Igreja, dividida em sua fé (condenado especialmente pelo Syllabus, n.° 18; DS. 2918).

2. — Um governo colegiado e uma orientação democrática da Igreja (condenado especialmente pelo Concílio Vaticano I; DS. 3055).

3. — O falso conceito de direitos naturais do homem que aparece claramente no documentado sobre a liberdade religiosa do Concílio Vaticano II (condenado especialmente em 'Quanta cura' de Pio IX e 'Libertas' de Leão XIII).

4. — A falsa concepção do poder do papa (cf. DS. 3115).

5. — A concepção protestante do santo sacrifício da Missa e dos sacramentos (condenada pelo Concílio de Trento, sessão XXII).

6. — E, finalmente, de modo geral, a livre difusão de erros e heresias (como novo humanismo, evolucionismo, naturalismo, socialismo, comunismo, etc.), caracterizada pela supressão do Santo Ofício.

Tais erros em documentos oriundos de fontes tão excelsas criam, na Igreja, um profundo mal-estar e perplexidade em muitos fiéis. Trata-se, Santíssimo Padre, não de fiéis reticentes no acatamento da autoridade pontifícia, e sim, pelo contrário, de membros do clero e leigos que têm como base de sua fé a adesão profunda e inabalável à cátedra de São Pedro.

Com todo o respeito, ousamos dizer a Vossa Santidade: é urgente que esse mal-estar cesse logo, porque o rebanho se dispersa e as ovelhas abandonadas estão seguindo mercenários. Nós conjuramos Vossa Santidade, pelo bem da fé católica e da salvação das almas, a que reafirme as verdades contrárias a esses erros. Verdades que nos foram ensinadas pela bimilenar Igreja de Jesus Cristo.

Dirigimo-nos a Vossa Santidade com os sentimentos de São Paulo com relação a São Pedro, quando aquele o censurava por não seguir a verdade do Evangelho (cf. Gl. 2,11-4). Com esta atitude, cumprimos um dever para com os fiéis que perigam na fé.

São Roberto Belarmino, exprimindo, aliás, um princípio geral de moral, afirma que se deve resistir ao pontífice cuja ação seja prejudicial à salvação das almas (cf. 'De Romano Pontífice', lib. 2, c. 29).

É com a intenção de auxiliar Vossa Santidade que lançamos este grito de alarme, que se torna ainda mais veemente diante dos erros, para não dizer heresias, do Novo Código de Direito Canônico, e as cerimônias e discursos ao ensejo do 5.° Centenário de Lutero. Verdadeiramente, ultrapassaram-se os limites.

Exprimindo-lhe nosso filial devotamento, rogamos à Santíssima Virgem Maria sua especial proteção sobre Vossa Santidade.

Rio de Janeiro, 21 de novembro de 1983, Festa da Apresentação de Nossa Senhora.
+ Marcel Lefebvre, Antigo Arcebispo — Tulle.
+ Antônio de Castro Mayer, ex-bispo — Campos.


A CONSAGRAÇÃO DO DIA 25 DE MARÇO DE 198416
“Coincidência — Só em 1984 soube-se que com data de 8 de dezembro de 1983 João Paulo II mandara uma carta a todos os bispos do mundo, para convidá-los a unirem-se a ele, e suas respectivas dioceses, na consagração do mundo ao Imaculado Coração de Maria, no dia 25 de março de 1984.
“Ora, em 9 de dezembro de 1983, no dia seguinte a essa carta e ainda sem ter nenhum conhecimento dessa iniciativa, monsenhor Lefebvre e dom Antônio de Castro Mayer tornavam pública a 'Carta Aberta ao Papa' denunciando as principais causas da hodierna tragédia eclesial, cujo documento anexo terminava com a seguinte frase: 'É tempo de a Igreja recuperar sua liberdade de realizar o Reino de Nosso Senhor Jesus Cristo e Reino de Maria sem se preocupar com seus inimigos.'
“Deve-se dizer que João Paulo II mandara anexar à sua carta do dia 8 de dezembro aos bispo do mundo o seu texto de consagração, que era essencialmente o mesmo do ato efetuado em Fátima no dia 13 de maio de 1982 e no sínodo dos bispos no dia 16 de outubro de 1983, onde, como se viu, é omitido o nome da Rússia.
“Chegou-se assim ao dia 25 de março de 1984 e o papa, em Roma, diante da estátua da Virgem trazida de Fátima para esta ocasião, recitou seu 'ato de entrega' que redigira para consagrar o mundo a Maria Santíssima. Nessa ocasião, notou-se que fugia brevemente do texto acrescentando estas misteriosas palavras: 'Ilumina especialmente aqueles povos de que Tu mesma esperas a nossa consagração e o nosso ato de entrega.'
“Não houve notícia, nem antes nem depois, de que os bispos tenham aderido ao convite papal, dando à consagração um caráter colegial e universal. Por conseqüência, clero e fiéis ficaram em todo mundo e mesmo em Roma, indiferentes ou estranhos ao ato do papa, descrito não como um pedido explícito de Nossa Senhora em Fátima, mas como se fosse sugerido pela pessoal devoção mariana de João Paulo II. Nem faltaram as objeções dos 'ecumaníacos' (maníacos do ecumenismo), tanto bispos como fiéis ou padres, preocupados com as reações negativas dos protestantes ao processo de conúbio da nova Igreja conciliar.
“Mais ainda, considerando as palavras misteriosas pronunciadas pelo pontífice na ocasião, poder-se-ia indagar se havia nelas a intenção secreta de satisfazer o pedido de consagração da Rússia ao Imaculado Coração de Maria. Se assim é, como tudo indica, é preciso fazer algumas observações.
“O católico sabe que 'sem a fé íntegra e pura é impossível agradar a Deus' (Ebr. XI, 6). E se sem a fé é impossível agradar a Deus, ainda menos possível é dar-lhe a devida glória e reparar as ofensas cometidas contra Ele, contra Sua Igreja, contra Sua Santíssima Mãe, reparação e ofensas estas que são, em síntese, ligadas à fé e assim ao pedido de Nossa Senhora em Fátima.
“Ora, o ateísmo e as heresias são essencialmente reivindicações do direito de juízo e escolha sobre as verdades reveladas, das quais se rejeitariam todas, ou as consideradas incompreensíveis ou inaceitáveis. A Igreja hoje está ameaçada de fora pelos ateus e dentro pelos propugnadores de heresias que são secundados por quem, com uma 'caridade sem fé' já condenada por São Pio X, procura atenuar, ofuscar ou calar verdades reveladas que possam desagradar os 'irmãos' que as hostilizam.
“Posto isto, pergunta-se: seria possível satisfazer o pedido de consagração da Rússia ao Imaculado Coração de Maria com um ato hermético, com alusões veladas e apenas intuíveis? Pode-se desse modo prestar a glória devida a Deus? Impossível. A consagração só pode ser cumprida como pediu Nossa Senhora: de modo solene, universal e explícito. Somente assim é uma confissão de fé à altura de quem, na fé, vence os temores humanos e pela fé dispõe-se à retratação dos erros que a ameaçam e à reparação das ofensas e males que causam.
Desses erros o mais bestial e agressivo é o comunismo ateu, mas os mais insidiosos e corrosivos são os desvios e heresias conciliares que levam a um ecumenismo ferrenhamente antimariano, soprado pelo espírito inimigo de Fátima, que só pode conduzir ao abismo.
“Nas aparições de Fátima brilham os grandes dogmas marianos e católicos que falam da salvação, mas lembram do perigo da perdição eterna. Eis porque sua mensagem é uma verdadeira prova de fé ou de apostasia. E como a apostasia moderna é estranhadamente antimariana, como o seu inspirador que ameaça de morte a fé na Igreja, ao seu chefe foi pedido um ato de coragem na fé: a solene consagração da Rússia ao Imaculado Coração de Maria, que a converterá diante dos olhos estarrecidos do mundo, corrompido pelos seus erros e apavorado pelo seu poder destruidor. E assim na luz e força insuperáveis da fé seriam também dissipados erros e heresias que flagelam a Igreja.
“É claro, pois, que o caminho para chegar a essa autêntica consagração fiel ao pedido de Maria Santíssima não pode deixar de passar pela estrada estreita da fé sem mancha, lembrada no 'Manifesto Episcopal' dos dois bispos que dessa fé são fiéis testemunhas, e nunca pela avenida larga dos aplausos, das adulações e das tenebrosas cumplicidades ecumênicas que humilham a Santa igreja.
“A alguém poderá parecer que um ato de consagração a Maria é sempre boa coisa. Essa idéia só é verdadeira em sentido absoluto. Quando há um pedido específico de Maria Santíssima ela é falsa. E assim, um ato velado, parcial, truncado, quando foi pedido um ato claro, universal e uma explícita menção da Rússia, nada tem da glória devida a Deus pela Sua Igreja. Eqüivale a insinuar à Rainha do Céu e da Terra que o seu pedido é inoportuno, exagerado, incompreensível, e impor como resposta uma consagração revista e corrigida pela sagacidade e diplomacia humanas, com a qual o Céu deveria contentar-se. Mas, haveria nessa mentalidade o amor e a confiança que os filhos da Igreja devem à Mãe do Céu, Sedes Sapientiae, Virgo Prudentíssima? A resposta seria supérflua.
“A esse ponto voltam à mente as palavras de Pio XII (p. 20).
“Como se poderia obter de Maria Santíssima a conversão da Rússia, se o ato mesmo da consagração pedida para esse fim já está intrinsecamente viciado por compromissos, mais ou menos visíveis, com esse mesmo comunismo ateu que se teme acusar, e de que a Rússia é o centro de difusão mundial, mal esse que hoje corrompe os próprios ambientes eclesiásticos?
“Como seria possível obter a conversão da Rússia, quando na consagração pública feita para tal fim se evita mencionar o nome do mal que a sufoca, que é ameaça crescente para o nosso tempo e contra a qual a Mãe celeste debalde indicou os antídotos?
“É tempo de a Igreja recuperar sua liberdade de realizar o Reino de Nosso Senhor Jesus Cristo e o Reino de Maria sem se preocupar com seus inimigos. A resposta que os dois valorosos bispos davam no dia seguinte ao convite do papa, mesmo desconhecendo-o, soou mais atual que nunca.
Como se vê, a lembrança da verdade é sempre oportuna, mas o que para os católicos em geral pode ter passado despercebido, para João Paulo II, que no dia anterior mandara aos bispos um texto que sabia insuficiente, seria uma resposta tempestiva a essa obstinação, como a dizer: continuais prisioneiro de vossos compromissos. Não tenhais medo!


QUANTA VERGONHA!17
“O Manifesto Episcopal deve ter lembrado a muitos católicos esquecidos, e que acabaram por acostumar-se com as mudanças pós-conciliares, que havia em aberto graves questões de fé desde os dias do Concílio, que as novidades na prática religiosa só fizeram tornar crônicas e ... indiferentes. De fato, os católicos haviam visto tantos absurdos promovidos por autoridades eclesiásticas que na impossibilidade de compreendê-los ou corrigi-los, acharam que o jeito era desinteressar-se e esquecer.
“Limitemo-nos agora aos dias que se seguiram a essa denúncia dos dois bispos, para vermos a resposta prática que o destinatário da carta, o papa João Paulo II, daria às questões lembradas.
“Pois bem, já no dia 11 de dezembro iria ao templo Luterano de Roma, onde chegou até mesmo adiantado. Havia sido convidado?
“Eis os fatos dos bastidores dessa visita como foram referidos (sem desaprovação) na revista Carroccio de 22 de janeiro de 1984: Para que João Paulo II pudesse pronunciar umas palavras e o resto do seu “sermão” no culto vespertino dos luteranos foi preciso entabular longas negociações, que se prolongaram até o domingo, dia 11, enquanto o papa estava na paróquia vizinha de São Camilo. Discussões sobre a duração desse discurso, que, aliás, teve de ser abreviado, sobre onde o papa deveria sentar-se (mais baixo que o pastor, como um comum leigo, ao lado ou em frente do pastor Meyer), sobre a bênção final e como chamá-lo. Decidiu-se por “santitá”; única palavra em italiano e não em alemão de todo o culto. Essas discussões os luteranos as tiveram não só com as autoridades católicas mas também internamente, com inúmeros particulares, para dar a esse encontro um valor rigorosamente local, a ponto de ter-se paramentado na ocasião com vestes de pastor, não de decano, como lhe competia, pois isto seria elevar o nível do encontro que era “com o bispo de Roma, assim como houve outros com alguns bispos católicos.” Especificações e distâncias que são sinais quase obsessivos para os protestantes de nada fazer que pareça reconhecimento do primado pontifício.
“Que degradação! Um pastor protestante ou um chefe budista têm todo o cuidado em salvaguardar a inexpressiva dignidade dos seus cargos, enquanto o papa humilha publicamente a real, altíssima dignidade do Vigário de Cristo, aceitando ser posposto, no curso de visitas oficiais, a ministros de falsas religiões. Não é preciso deter-se em comentários para intuir o escândalo de tudo isso para os católicos.
“A dignidade de um cargo é coisa bem distinta da dignidade da pessoa que o ocupa. Um rei, um presidente de república, podem humilhar a si mesmos, mas não lhes é lícito humilhar a dignidade do próprio cargo. Por razões muito superiores, não é lícito a um papa humilhar a sua dignidade de Vigário de Cristo, porque esta tem por fundamento a própria Pessoa de Cristo que ele representa. Mas, contrariamente a isto, já começou com Paulo VI a busca da própria glória à custa da dignidade papal da qual mostrou dispor livremente como de coisa própria e pessoal e os seus sucessores continuaram na trilha por ele traçada. [Referência ao abandono de trirregno, e depois da coroação, como se essas dignidades fossem devidas à suas pessoas e não a Cristo Rei. É a falsa humildade.]
“Ao alinhavar estas breves reflexões sobre a recente viagem a Papua — Nova Guiné de quem não é um simples chefe de estado, mas o Vigário de Nosso Senhor na Terra, temos o coração dolorido, mas não podemos cancelar o acontecido, e calar de nossa parte seria omissão muito grave.
“— Novidades litúrgicas — Dia 8 de maio, em Mount Haggen, pela primeira vez na história uma moça participou de uma missa papal como 'ministro da palavra': fez a primeira leitura vestida com uma tanga de folhas e o peito nu (cf. Il Tempo, Roma, 9-5-1984). Diz o jornal: Trata-se de Susan Kenye, estudante de 18 anos do Holy Trinity College de Mount Haggen. Uma indígena, talvez? O nome leva a duvidar e o Osservatore Romano fala de estudante em costume indígena, em todo caso não era uma selvagem que não soubesse ler e ainda por cima aluna de colégio religioso. Portanto, uma exibição de nudismo planejada e certamente concordada entre os missionários do verbo divino de Mount Haggen e o séquito papal, esquecidos de Gn. 3,21: (depois do pecado original) 'o Senhor Deus fez para Adão e sua mulher umas túnicas de peles, e os vestiu.'
“Alguém entendeu na incrível novidade litúrgica uma ligação com o discurso sobre a inculturação que João Paulo II fez na tarde do mesmo dia ao episcopado de Papua — Nova Guiné. Mas essa tal inculturação não poderá jamais significar a aceitação do que, nos usos e costumes dos diversos povos, é fruto da decadente natureza humana e fonte certa, como o nudismo, de ulterior decadência moral: seria trair a missão da própria Igreja católica. Fica, portanto, a amarga consideração de que depois das 'novidades litúrgicas' dessa missa papal de Mount Haggen será ainda mais difícil para os sacerdotes católicos ensinar o pudor, a decência e a castidade [insistentemente pedidos em Fátima.]
“No curso dessa mesma missa 'no Ofertório começou uma procissão com dança ritmada por tambores e de tanto em tanto o general da banda lançava ao ar com a boca um punhado de pó, alternadamente amarelo e vermelho, para afugentar simbolicamente da assembléia os espíritos malignos.'
“A inserção no ato mais sublime da fé católica de um rito pagão supersticioso já é per se uma profanação. Feito na presença de quem tem o mandato de confirmar na fé torna-se, como a precedente 'novidade litúrgica', outro escândalo para a Igreja universal (Católica).
“Quando em Manágua (Nicarágua) a celebração da missa foi perturbada pelo indigno comportamento de agitadores políticos locais, foi dito que o papa empalideceu com a profanação. E, no entanto, aquele episódio foi pouco, em comparação com as profanações de Mount Haggen, onde a fé e a moral católica foram renegadas de fato por quem delas deveriam ser mestres.
“Honra ou desonra? — Dia 9 de maio João Paulo II nas Ilhas Salomão assiste sorrindo (fotos) à exibição de um grupo de 'dançarinas do ventre'. É verdade que é uso local 'honrar' desse modo os hóspedes. Mas parece que nem o bispo nem o clero local que organizaram o recebimento do papa, nem seu séquito, tiveram suficiente, não dizemos fé, mas bom senso para compreender que para o vigário de Cristo tal recepção podia ser somente desonrosa.
“A humilhação do papado — Dia 10 de maio o papa está na Tailândia, onde irá visitar 'Sua Santidade' Vasana Tera, supremo patriarca do budismo tailandês. Eis a reportagem de Il Tempo (11 de maio):
“O venerando ancião de 87 anos, em sua veste cor açafrão, estava sentado sobre os joelhos na posição meditativa dita da iluminação, fiel imagem do buda de ouro que tinha às suas costas. A figura imóvel de quem aprendeu desde a infância a técnica da meditação budista, que consiste em negar qualquer sentimento, mesmo do próprio eu, não se moveu. Ele não expressou o mínimo sorriso quando viu entrar o seu colega vestido de branco. O clamor, a exultação e a comoção espiritual que o pontífice romano suscita em todo o mundo não podia nem arranhar esse 'nirvana', essa paz ultraterrestre. Tanto mais que o 'séquito mundano' — que aos olhos desses bonzos é representado pela imprensa internacional — foi rigorosamente mantido a distância desse encontro entre pessoas dedicadas à abstração de si mesmas e à pura contemplação.
“João Paulo II entrou nesse templo real, resplandecente de luzes, e teve que tirar os sapatos. Enquanto o supremo patriarca parecia não dignar-lhe sequer um olhar, o pontífice romano inclinou-se diante do bonzo (e do buda que estava às suas costas) para ir sentar-se numa cadeira posta diante dele, mas num estrado muito abaixo de onde estava a máxima autoridade budista.”


NOVA ETAPA ECUMÊNICA IRREVERSÍVEL


É inegável que na viagem que fez à Suíça, em junho de 1984, João Paulo II acelerou o passo no caminho ecumênico iniciado pelo Concílio Vaticano II. No primeiro dia em Genebra, participou de um encontro de oração no CEC, Conselho Ecumênico das Igrejas, que reúne 300 igrejas-membros, ortodoxas, anglicanas e protestantes. Lá, falando de seu ministério de bispo de Roma (não pontificado), confirmou que o novo engajamento era irreversível e tudo na Igreja Conciliar, mesmo o novo código canônico, exprime a obrigação de promover o movimento ecumênico.
Teve ocasião, depois, de comemorar Calvino e Zwinglio, ferozes inimigos da Igreja, aos quais dispensou compreensão e desculpas. Quando, porém, esteve em Sion, a dez minutos do próspero Seminário de Ecône, não deu o menor sinal de querer encontrar-se com seu fundador monsenhor Marcel Lefebvre, que havia antes pedido para encontrá-lo. Era uma tácita confirmação da resposta negativa que dava João Paulo II ao “manifesto” dos dois bispos que haviam denunciado o falso ecumenismo que se afasta da doutrina tradicional.
Punha-se a questão: pode subsistir essa Igreja conciliar na Igreja católica, que há séculos ensina como dogma de fé ser a única Esposa de Cristo e, portanto, a única Arca de Salvação? Além disso havia a questão de localizar a origem de tanto engano e saber até que ponto o responsável supremo pela fé podia eximir-se de responder a estas gravíssimas questões, enquanto, na prática, acelerava o processo ecumênico.
Dom Mayer respondeu:


“Na raiz de todo esse mal está o falso ecumenismo instalado com o Vaticano II. Este apresenta-se mais como uma práxis que como uma doutrina. A doutrina encontra-se na declaração Dignitatis Humanae, com a qual o Concílio quis sancionar como direito natural do homem a liberdade religiosa, entendida como liberdade de religião. Para a doutrina católica esse direito seria uma aberração lógica, se antes não fosse uma blasfêmia, como foi dito no Manifesto Episcopal. De fato, é impensável que a Igreja, cuja voz é a mesma voz de Deus, possa afirmar o direito do homem de escolher entre as mais variadas concepções humanas de Deus, contra a verdade única que Deus mesmo revelou de Si.

A doutrina, portanto, contida nessa declaração conciliar é herética. O Vaticano II, declarando direito natural do homem seguir a religião ditada pela própria consciência, ou não seguir nenhuma, proclama o direito ao erro. Ora, o erro não pode ser o fundamento de direito algum. O erro é contra a natureza humana feita para a verdade. Como pode ele reivindicar conformidade com essa natureza ? Acresce que nessa matéria há uma lei divina que importa na obrigação por parte do homem de professar a religião católica. Como poderia a Igreja conceder direito contra essa vontade soberana? Pior ainda: como poderia dizer que esse direito contra a vontade divina é um direito natural? Fundado, pois, na própria natureza humana? Só admitindo que o homem está acima de Deus! Ora, isso é pior que heresia: é uma aberrante apostasia! Portanto, o Concílio Vaticano II proclamou uma heresia objetiva. Os que seguem e aplicam essa doutrina têm demonstrado uma pertinácia que normalmente caracteriza uma heresia formal. Ainda não os acusamos categoricamente dessa pertinácia para dirimir a mínima possibilidade de ignorância sobre questões tão graves. De qualquer modo, mesmo que essa pertinácia não se manifestasse na forma de uma efetiva ofensa à fé, manifesta-se claramente na omissão em defendê-la.

A Igreja que adere formal e totalmente ao Vaticano II com suas heresias não é nem pode ser a Igreja de Jesus Cristo. Para pertencer à Igreja católica, à Igreja de Jesus Cristo, é preciso ter fé, ou seja, não pôr em dúvida ou negar um artigo sequer da Revelação. Ora, a Igreja do Vaticano II aceita doutrinas que são heréticas, como vimos. Pode-se admitir, porém, a possibilidade de que haja fiéis em boa fé que não sabem ter o Vaticano II aderido à heresia. Mas, bispos? É difícil admiti-lo, mesmo não a excluindo como possibilidade absoluta.

Quanto à possibilidade de que um papa governe a Igreja rejeitando o que ela definiu, a história registra o caso do papa Honório I, condenado postumamente pelo III Concílio Ecumênico de Constantinopla e pelo papa São Leão II, por ter “... permitido com uma traição sacrílega que fosse manchada a fé imaculada.” (DZ 563)

É certo, porém, que a Igreja católica é a única Esposa de Cristo. Não há outras. Apresentá-la como “uma entre outras” é equiparar a verdade ao erro, o que é a essência de toda heresia. Uma Igreja engajada irreversivelmente nesse ecumenismo pós-conciliar não é a Igreja de Cristo, Igreja Católica Apostólica Romana. Os católicos, para conservar-se fiéis aos ensinamentos de Nosso Senhor Jesus Cristo, devem estar alertas e vigilantes para não se deixarem levar por essa falsa igreja.” (Entrevista concedida ao Jornal da Tarde de São Paulo, dia 6/11 /1984.)


AS PERSEGUIÇÕES À IGREJA E AO SANTO PADRE
“A última perseguição revestirá o aspecto de uma sedução.” (Père Emmanuel)
O que foi relatado mostra claramente que as perseguições que flagelam a Igreja e fazem sofrer o santo padre nem sempre vêm de fora. Mesmo que pareça paradoxal, o rebaixamento e humilhação que tem sofrido o papado, cátedra suprema da religião revelada, veio pela iniciativa e ação de quem ocupa fisicamente esse cargo. Mas só não entende isto quem perdeu de vista a que estão ordenados o papa, suas chaves, a Igreja e tudo o que haja nela: à fé única. Esta é a perseguida, assim como todas as guerras e revoluções deste mundo se desencadeiam contra um só: Nosso Senhor e Sua Igreja.
Deste modo, quando um concílio como o Vaticano II produz documentos que são contra a fé, e se as autoridades responsáveis por isto, ao invés de verificar com cuidado a acusação, referindo-se ao magistério e às escrituras, quiserem impô-los, estarão praticando uma violência contra a fé e perseguindo os que a defendem.
Nesse processo perseguidor usa-se a inversão da ordem lógica, moral e religiosa: ao invés de verificar se o que foi aprovado pelo papa, é de fé, dirão que é de fé porque o concílio e/ou o papa o aprovaram, mesmo que a infalibilidade não tenha sido empenhada nisso.
Ora, se fossem alguns mais abusados a fazê-lo, seria um caso que a autoridade religiosa mais alta poderia corrigir. Mas, se forem estas mesmas a impor o que é erro, ou gravemente suspeito, estamos no caso extremo do engano, prevaricação e perseguição, justamente da parte de quem compete a defesa da fé e do magistério.
Não há, portanto, nenhuma figura de retórica quando se diz que uma falsa fé persegue a fé verdadeira, neste caso dentro da própria Igreja, cuja autoridade é revestida contra ela mesma. Foi para adiar o mais possível tal iniqüidade que Jesus deu as chaves, junto às lágrimas e ao martírio no Seu amor. Mas, vendo o fraco pecador Jesus disse que rezaria para que sua fé não faltasse e acrescentou: “E tu, uma vez convertido, confirma os teus irmãos.” (Lc. 22,32) Ora, isto mostra que a Pedro e sucessores é garantida a fé, mas poderia também garantir a coragem, a perseverança, o destemor de chegar até o martírio para defendê-la? O Evangelho, a História e os fatos do presente mostram que não. E contra fatos não há argumentos, nem pode haver imposições exegéticas.
Voltando às questões de perseguições, sabe-se que aquelas do passado, vindas de fora, só fizeram solidificar a Igreja e expandir sua fé. Esse fortalecimento foi causa de muita dor física e de martírios, mas não seria próprio falar de sofrimentos do santo padre, senão no corpo. O Redentor foi crucificado para que os homens tivessem na verdadeira fé a salvação. A perseguição do mundo não deve ser temida. Ele venceu o mundo. “Não temei quem só pode matar o corpo.”
O perigo é outro: “Cuidai para que ninguém vos seduza, porque virão muitos em meu Nome...” (Mt. 24,4-5). O perigo, a verdadeira perseguição vem do engano religioso, são as tenebrosas falsidades internas da própria Igreja. Os sucedâneos político-revolucionários de aparência cristã e até eclesial.
Ora, aplicando isto à mensagem de Fátima e de modo especial à parte ainda secreta, observa-se que as autoridades da Igreja não teriam motivo para esconder o aviso de uma perseguição externa. Ao contrário um pré-aviso ajudaria a preveni-la, ou senão enfrentá-la. Não, porém, tratando-se de perseguição interna. Esta envolve culpas e responsabilidades graves de quem está no governo da Igreja.
Pois bem, é o momento de conhecer mais a fundo o perseguidor e o perseguido dentro da Igreja invadida e ocupada de modo invisível. Já vimos antes que a falsa fé sempre perseguiu a fé única.
Isso é fato já ocorrido na História, quando uma hierarquia eclesiástica e seu clero, quase por inteiro, passaram-se para o arianismo. O papa Libério também cedeu e, dizendo-se em paz com todos os bispos apóstatas, excomungou Santo Atanásio, o principal bispo dos raros resistentes. Só depois de anos de lutas e muitas vicissitudes para sacerdotes e povo, que em grande parte permaneceu fiel apesar do aggiornamento de seus maiores, a verdade prevaleceu contra a heresia dessas maiorias episcopais, que com o papa caíram em erro. A perseguição à fé única fracassou, Santo Atanásio voltou do exílio e a religião verdadeira retomou seu lugar. '
Foi este um caso incomum na história da Igreja, mas não único. Antes mencionamos a condenação do papa Honório I por um concílio ecumênico e pelo papa São Leão II. Foi devido a um compromisso feito com o patriarca Sérgio sobre a questão monotelita. Um acordo que hoje poderia chamar-se proto-ecumaníaco, pelo fato de colocar a união de igrejas e pessoas acima da pureza e integridade da fé.
Na questão das “investiduras”, o imperador Henrique V, para extorquir do papa Pascoal II concessões e promessas incompatíveis com a doutrina da Igreja, aprisionou o pontífice que cedeu e depois hesitou longamente em anular os atos que praticara coagido, excomungando o tirano. Se o fez, com grande atraso, foi devido à pressão exercida por cardeais e bispos como São Bruno de Segni, Santo Godofredo de Amiens, São Hugo de Grenoble e Guido de Vienne, futuro papa Calisto II. Foi então convocado um sínodo sem o papa, acusado de afastar os fiéis da comunhão em sua obediência. E não é preciso dizer que a retidão e santidade também dessa vez não estavam do lado do pontífice, que como não enfrentou devidamente quem perseguia a Igreja, tornava-se cúmplice dos perseguidores.
Sobre essa dissimulada perseguição camuflada em liberdade e igualdade ouçamos o papa Pio VII, que viveu as conseqüências da revolução francesa: “Sob a igual proteção de todos os cultos, esconde-se e disfarça-se a mais perigosa perseguição, a mais astuciosa que seja possível imaginar, contra a Igreja de Jesus Cristo e, infelizmente, a melhor combinada para nela lançar a confusão e mesmo destruí-la, se possível fosse às forças e astúcias do inferno prevalecer contra ela”. Parecia previsão da abertura da Igreja ao liberalismo, que dando livre curso ao erro, persegue a única antagonista que lhe se opõe: a verdade. Eis o que fez a declaração da Liberdade Religiosa aprovada pelo Vaticano II.


CONSERVAR SEMPRE O “DOGMA DA FÉ”
Na nossa época, em que o perigo que corre a fé tornou-se culminante, porque a impiedade esfriou a caridade de muitos, e a fé sem a caridade é morta, apareceu em Fátima a Mãe da Misericórdia. Eis a mulher, arco-íris do amor, contra o dragão, abismo de ódio. É a luta final que o Livro da Religião vem contando desde o Gênesis. Este bem pode ser chamado de exórdio da revelação, fundamento da verdade, princípio do que se deve crer, ponto de partida da fé.
Ora, tudo isto parece ser o senso comum da expressão “dogma da fé”, que precede na mensagem de Fátima o terceiro segredo e, portanto, pode constituir a sua chave ficando ao alcance de todos. Embora não pareça haver definições teológicas sobre o que possa significar “dogma da fé” por antonomásia, há então que compreendê-lo; indica o que está em crise e sendo atacado, hoje, dentro da Igreja.
Pois bem, o ponto de partida, princípio e fundamento da religião católica, é que as verdades de que é depositária a Igreja foram reveladas pelo próprio Deus. Como Deus é uno assim como a verdade, a religião revelada também é única e necessária para atingir a verdade e, por conseqüência, a salvação do erro, da falsidade e do mal. Assim sendo, a Igreja católica está fundada sobre este dogma da fé: ser a única verdadeira depositária da revelação, portanto da verdade, e assim foi colocada por Deus como passagem obrigatória para a salvação, e tudo que ignore essa fé é, por definição, falso, nocivo ao bem dos povos, humanamente funesto.
Todos os outros dogmas proclamados pela Igreja decorrem da revelação única, da verdade ensinada por Deus, cuja fé é indispensável aos homens para o entendimento do necessário nesta vida e para a salvação na outra. Eis o que poderia ser chamado de “dogma da fé”; o princípio pelo qual a fé é una e necessária — creio Deus, creio a Deus, creio em Deus. Se quiserem chamá-la de fé tradicional, não há objeção. Contanto que seja a única verdadeira e sendo universal, é chamada católica, sendo ensinada pelos apóstolos, é chamada apostólica, e sendo especialmente confirmada, explicada e presidida pelo sucessor de São Pedro em Roma, é chamada romana.
Eis que o dogma fundamental na Igreja Católica Apostólica Romana é ser a única arca de salvação, não porque os homens assim o dizem, mas porque Deus assim o revelou. Este fato e esta verdade tornam-se, portanto, o pressuposto do ensinamento salvífico, ou seja, a submissão ao ensinamento da Igreja e de seu chefe na Terra, o papa, é indispensável para a salvação de todos. É o próprio dogma revelado que pela sua origem, pela sua inestimável importância e pela sua necessidade vital deve ser reconhecido infalível pelos fiéis, como a Igreja e seu chefe o ensinam.
Ora, sobre tudo isto o modernismo, coleção de todas as heresias, joga suas sombras de muitas e diversas maneiras, como cada heresia o fez em um particular aspecto. A dúvida que sozinha reuniria todas, seria o reconhecimento de diversas revelações e da equivalência entre elas, além de outras religiões, ideologias e filosofias humanas. Seria o indiferentismo religioso, pelo qual todas as idéias são igualmente boas, mas dispensáveis, num pluralismo de bons sentimentos.
Essa idéia de que são muitas as boas opiniões, como ideologias, como religiões, e de que uma sociedade civilizada deve dar a seus membros o direito de escolher entre elas, deve assegurar essa liberdade de opinião e de religião, veio com o liberalismo, cuja grande “descoberta” foi a aplicação da liberdade não só àquilo que o homem aspira para aperfeiçoar-se na verdade, mas também àquilo que serve para exercitar-se no erro. Essa falsa liberdade do homem se apoiava na relativização da verdade e do bem.
Curiosamente, diz-se hoje que isto marcou o início da era moderna, quando a razão humana erguia-se “definitivamente” como critério absoluto da verdade em detrimento da fé. O grande empecilho da sua intrínseca imperfeição ficaria pela utopia de um evolucionismo sem limites. Quanto à fé, era confinada ao limbo reservado aos sentimentos interiores, que devem ser respeitados somente como tais. Era o triunfo do dogma iluminista da supremacia da razão como única fonte da verdade frente à revelação.
Mas se na sociedade civil este triunfo começou no século XVIII, na Igreja ainda era duramente condenado pelos papas até a metade do século XX. Nessa época, porém, as infiltrações na hierarquia e no clero já eram devastadoras. Foi provavelmente em 1960, quando o “aberturismo” de João XXIII ao mundo era um fato consumado, que dentro da Igreja também se instaurou a era moderna que com o Concílio Vaticano II ficou “irreversivelmente” reconhecida e afirmada pelos inovadores. Mas para nós, católicos, não é o juízo humano que conta, mesmo se desse lado se ache quase a totalidade de consagrados e mesmo o papa. Conta o que ensina a doutrina revelada, senão deixaria de ser a única religião para transformar-se, ela também numa ideologia humana de um partido qualquer.
A Igreja ensina que o “dogma de fé” é premissa obrigatória para os católicos. É de fato dogma que fora da Igreja Católica Apostólica Romana não há salvação. É claro que, sendo a mente das pessoas só conhecida por Deus, Juiz perfeito, só Ele pode aquilatar se há culpa e em que grau para cada um também em desconhecer essa verdade.
De qualquer modo, preservar o “dogma da fé” e ensiná-lo é absolutamente necessário e é um dever para os católicos, tanto mais para os consagrados na Igreja católica, especialmente se membros da sua hierarquia. Todos devem testemunhar que o Juiz supremo instituiu a Igreja como única depositária da revelação e, portanto, como Seu tribunal terreno, distribuidora de penas, mas, também, de Sua graça. No segredo de Deus, pode haver almas fora dessa jurisdição, excepcionalmente absolvidas na outra vida se encontradas em boa fé; mas sua religião, ideologia ou seita devem ser sempre condenadas, porque são sistemas humanos para negar ou modificar a verdade revelada, conduzindo seus aderentes ao erro.
Deste modo, se a premissa da fé consiste na existência de uma única religião e, portanto, de uma única Igreja verdadeira que a professe, a heresia contrária a ela consiste em admitir que as religiões contenham cada qual um aspecto da verdade, uma interpretação parcial, mas, correta, da revelação, alguns elementos da graça divina, enfim que se equivalem, grosso modo, principalmente pela possibilidade de despertar, nos diferentes indivíduos, sentimentos religiosos que irão ajudá-los a realizar suas próprias personalidades e alcançar a dignidade de pessoas humanas.
Com isto, também o conceito de dignidade à imagem e semelhança de Deus, como foi revelado, passa a sofrer retoques. O essencial e importante seria a fidelidade ao credo, gnose ou sentimento ensinado pela religião, seita ou partido a que se pertence. A verdade deixaria de ser objetiva para tornar-se subjetiva e, portanto, sujeita aos humores, sonhos e utopias que a mente do homem acolhe. Preservadas as conveniências políticas e sociais do respeito ao dever, comportamento ordeiro e fraterno, cada um seria livre de seguir ou inventar a verdade que preferisse. É claro que, nesse quadro, querer lembrar, ensinar ou, pior, proclamar uma verdade revelada e única passa a ser “aberração reacionária” e o proselitismo correspondente um crime contra a liberdade de consciência. Eis a subversão pastoral em que cai o neo-ecumenismo. Nele, a noção prioritária de verdade e de eventual tolerância ao que lhe é contrário cede às múltiplas noções de unidade e liberdade, criando, por conseguinte, um direito “fundamental” e “natural” que assegure a escolha e liberdade de religião, mesmo uma seita qualquer como a de Jones, responsável pelo suicídio coletivo na Guiana.
Resumindo assim as diferenças entre o que se chamou “dogma da fé” e a neo-ecumênica “escolha na fé”, a primeira é única, necessária, obrigatória, e suas verdades constituem dogmas acima da inteligência humana; a segunda é múltipla, optativa, dispensável, e suas verdades estão sujeitas à opinião e à escolha humanas, podendo evoluir com o utópico progresso moral democrático.
Ora, a origem da palavra heresia é justamente escolha. O homem moderno há muito habituou-se a ver aplicada essa livre escolha em tudo. As diversas declarações de direitos humanos não fazem mais do que afirmá-las. Nada disso, porém, no campo da verdade, do bem e da moral pode ser considerado direito pela Igreja, cujas declarações, embora pronunciadas por homens, vêm só do depósito de fé dado por Deus, e, portanto, vêm em nome de Deus.
Quando um hierarca eclesial diz que os homens são livres para escolherem em que acreditar, elegendo a própria religião ou nenhuma, e que esta liberdade é um direito fundamental devido à dignidade do homem e sua moderna maturidade, faz uma afirmação contrária à doutrina católica e, portanto, a quem revelou as verdades divinas, que, estas sim, os homens devem escolher para salvar-se.
Portanto esse hierarca engana, não fala como hierarca católico. Pois bem, estes ensinamentos errôneos provêm do Concílio Vaticano II, como explicou claramente dom Antônio de Castro Mayer. Conclui-se que, para conservar o “dogma da fé”, não se pode aceitar esse concílio, que encerra matrizes heréticas e também cismáticas.
Quem confessa o “dogma da fé” sem compromisso e neo-ecumenismos satisfaz a primeira condição agradável a Deus segundo São Paulo: “Sem fé é impossível agradar a Deus” (Hb., 11,6). Assim como: “Há um só Senhor, uma só Fé, um só Batismo” (Ef., 4,5).
Só dessa premissa pode vir a esperança: “De instaurar todas as coisas em Cristo” (Ef., 1,10). E isto pela oração feita ao Pai Nosso que ensina a dar, primeiro, glória ao Pai, para, então, pedir. Pedir o pão com o perdão. Pedir que nos preserve da tentação, como do mal. Se a primeira condição para sermos agradáveis a Deus foi a de ter fé, a seguinte está em demonstrar isto pedindo tudo de que necessitamos. Se a premissa é crer, a conclusão é pedir. A fé no Deus que é Amor e Verdade implica a esperança de Sua ajuda e vontade de salvação, e na caridade... de pedir. Pedir a Deus tudo o que necessitamos é confissão de fé, é confirmação de esperança, é criar as condições para a sua glória em atender-nos. Deus que, sendo a Verdade plena, de nada necessita; sendo o Amor infinito, precisa de nossos pedidos de servos inúteis, para salvar-nos. Dar glória a Deus é não só nosso indeclinável dever como nosso incomensurável benefício. E como atingi-lo senão pela prece contrita? E tudo segundo o ensinamento: “Em verdade vos digo que se pedires a Meu Pai alguma coisa em Meu nome, Ele vô-la dará” (Jo., 16,23). “Pedi e vos será dado; buscais e achareis; batei e abrir-se-vos-á (Mt., 7,7). Eis que o homem que pede a Deus faz um ato de fé esperança e caridade. Este ato foi pedido à Igreja na mensagem de Fátima. Pedindo a conversão da Rússia pela consagração ao Imaculado Coração de Maria, foi pedido um ato de esperança no poder de mediação de Maria, segundo a vontade de Deus que indicou esse caminho. Foi pedido um ato de caridade, porque quando o pedido for cumprido e a conversão realizada, será a glória do Imaculado Coração, a restauração da Igreja, a conversão dos homens.


A INFALIBILIDADE NA FÉ LEMBRADA POR GUSTAVO CORÇÃO
O grande escritor católico brasileiro falecido em 1978, solicitado a manifestar-se em 1973 sobre a carta enviada a Paulo VI por Jean Madiran (p. 111-2), lembra a importância da infalibilidade “natural” na fé, de que fala Santo Tomás de Aquino. Em resumo, para que o homem imperfeito possa conservar a fé que lhe foi infundida de modo perfeito por Deus, esta fé vem acompanhada de dons necessários a fim de que reconheça infallibiter o que lhe é contrário. Mas tal defesa implica naturalmente equivalente grave responsabilidade, que não será justificada pela defecção, nem de um papa.
E Corção volta à pergunta: “o que é, então, que leva todo o mundo a este estranho enfraquecimento?”
“Onde procurar a causa principal, a força central que produz a gradual redução da missa, que encoraja o Institutio Generalis que democratiza a missa, que aconselha a devolução dos troféus de Lepanto, que inspira os discursos da ONU, onde foi dito que essa associação é a nossa última esperança? Eu penso ter encontrado esse cordão central, relendo o 1.º capítulo aos Gálatas. Diversas lições nos vêm desse texto importante.
“Vejamos logo a primeira, onde o Apóstolo nos ensina uma coisa muito importante para os tempos modernos. Ele diz aos gálatas, gente simples e pobre, que é preciso lançar o anátema sobre quem quer que, apóstolo, papa ou anjo, ousar nos propor um outro evangelho; (...)
“Vejamos agora a segunda lição, a que nos desvela o espírito que leva as gentes à inquietude, ao gosto das mudanças, à febre das reformas, ao prurido das novidades. No mesmo 1.º capítulo, São Paulo, depois de ter explicado o que devemos dizer aos deformadores do Evangelho ou da Missa, continua: Por que afinal, é a aprovação dos homens ou a de Deus que eu procuro? Porventura é aos homens que eu pretendo agradar? Se eu agradasse ainda aos homens não seria servo de Cristo. Três vezes ele nos diz o nome do Cavalo de Tróia ou do espírito que parece embriagar os católicos modernos: o desejo de agradar aos homens sobreposto ao desejo de agradar a Deus. Ou às avessas: o medo de desagradar o mundo.
“Voltemos ao Catecismo de Trento: a Igreja denuncia três inimigos: o Demônio, o Mundo (ou antiigreja), a carne (ou amor-próprio); chegamos quase a ver funcionar as engrenagens dessa mecânica do desejo de agradar. Ele consiste em uma dupla capitulação: para consigo mesmo (amor-próprio); para com o mundo ou antiigreja: ambos comandados pelos cordões manipulados pelo Demônio que bem as conhece! É preciso, portanto, combater a consciência clara dessa mecânica central da subversão. Aqui poderíamos propor ainda uma idéia muito útil ao bom combate.
“(...) A propósito da evolução das reformas litúrgicas se lê: 'Ele (o Consilium), perfez o essencial da reforma litúrgica; principalmente ele a pôs em movimento, ele lhe imprimiu o movimento de queda livre, uniformemente acelerado...' (...) As grandes intuições por vezes se traduzem em duas ou três palavras.
“(...) Apliquemos a idéia da queda livre ao nível da metafísica. No nosso caso diremos: se a causa de um movimento permanece constante, os efeitos seguirão a lei do movimento acelerado.
“Madiran completa seu exame da mecânica do Consilium com esta conclusão espantosa: ... 'movimento acelerado que ninguém mais freará'. Sim, que ninguém freará se admitirmos que ninguém pode reduzir-lhe a causa, que ninguém pode nem mesmo frear esta força monstruosa que empurra nossa civilização para o nada, força que é em verdade a fraqueza humana, sim a fraqueza hedionda deste novo humanismo do culto do homem até o desprezo de Deus, diante do qual os levitas da Igreja modernizada se desvanecem felizes e festivos. Mas, o que nos impede de mobilizar-nos sob a bandeira de: AGRADAR A DEUS? Mas quem então nos impedirá de pôr nossa confiança na força das orações, a tempo e contratempo?
“Os que resistem são bem mais numerosos do que se pode pensar.
“Nesta orgulhosa oligarquia dos vivos — como dizia Chesterton — a parte maior é contra nós, contra a Missa, contra o Catecismo, contra a Sagrada escritura, mas os mortos trabalham para nós, os Santos estão do nosso lado nesta cruzada para libertar o Coração da Igreja; a Santíssima Virgem, Mater afflictorum, quer ajudar-nos — mas nesse jogo da salvação há uma condição, uma regra: é preciso pedir, é preciso saturar as horas do dia com preces incessantes. Batei, e vos será aberto, orai sem cessar, importunai a Deus e Ele vos ouvirá. É bem verdade que Ele não esconde Sua Ira pelos abusos da graça feitos por essa civilização perversa, que teve à sua disposição a abundância dos bens da Igreja na plenitude de Sua beleza.
E eis o que desvela um pouco o mistério sombrio da permissão de Deus de que se fartam os novos levitas que abriram as portas da Igreja ao culto do Homem até o desprezo de Deus!” (RSP p. 266-269)
Tudo o que se faz para lembrar e divulgar a mensagem de Fátima é coerente na medida em que mostra o quanto a Mater afflictorum quer ajudar seus filhos submetidos à orgulhosa oligarquia dos vivos. Essa ajuda vem pelo aviso dos perigos, pela lembrança da necessidade de oração e penitência, segundo os perenes ensinamentos da Igreja, mas vem também através de pedidos especiais. É preciso pedir sempre, mas é preciso saber pedir também, conforme é indicado.
Gustavo Corção, que nesse escrito não falou de Fátima, lembra, porém, o que aqui queremos lembrar: a ira divina pelos abusos feitos por essa civilização perversa contra a abundância de graças de que dispõe a Igreja. Nela os levitas e fariseus modernos abriram as portas aos detritos do mundo até o desprezo das graças de Deus.
Fátima é o espelho dessa prevaricação eclesial sem exemplo. Voltando ao escândalo do terceiro segredo escondido no Vaticano, percebemos logo que temos de pedir e suplicar ao Céu. Essa mensagem foi dada para a salvação das almas, para a paz das nações, para a renovação da Igreja, tudo na maior glória de Deus pela honra aos Sacratíssimos Corações. Revela ser a única saída, e, todavia, é censurada, criticada, esquecida e arquivada. Quanta vergonha! Bastaria que deixassem falar irmã Lúcia, ou o bispo de Leiria, ou qualquer prelado que os ouvisse ou lesse o segredo, sem empenhar a respeitabilidade da autoridade vaticana. Mas o que se faz é bem o contrário. Diz Fr. Michel de la Sainte Trinité: “É um fato assombroso! Há 25 anos o segredo de Fátima, só ele, está de certo modo no Index. Irmã Lúcia, só ela, está reduzida ao silêncio. Dia 15 de novembro de 1966 o papa Paulo VI ab-rogou os artigos 1399 e 2318 do Código de Direito Canônico que interditavam a publicação de livros e folhetos que propagavam sem autorização novas aparições, revelações ou profecias ainda não aprovadas pela Igreja. Isto é mantido no Novo Código. E assim, desde 1966, não importa quem pode publicar e divulgar para os cristãos as revelações mais fantásticas. Não importa qual impostura, qual diabrura. Nada mais será interditado. Tudo foi autorizado a aparecer. E o 'Príncipe da mentira' aproveita-se habilmente dessa licença multiplicando no mundo as aparições falazes e suas mensagens fraudulentas que, difundidas livremente, desviam incontáveis fiéis. Somente a mensagem, a mais segura, a mais incontestavelmente divina, o segredo da Virgem de Fátima, permanece escandalosamente no Index!”
Isto nos faz ver ainda mais claramente que temos de pedir não só em modo geral para que Deus nos livre de todo o mal, mas de modo especial para que a Sua vontade seja feita no que diz respeito a este segredo dado para a salvação. Devemos pedir aos homens que o façam conhecer, mas principalmente devemos pedir a Deus que no reconhecimento das lágrimas de Nossa Senhora “sejam descobertos os pensamentos escondidos nos corações de muitos” (Lc, 2,35). Isto representa hoje o segredo. Que Deus nos livre desse mal desolador: os projetos humanos substituindo as mensagens divinas.


O CARDEAL RATZINGER FALA SOBRE O TERCEIRO SEGREDO


Enquanto permanecem pendentes todas as gravíssimas questões que dizem respeito à fé, já vimos que as respostas ao “manifesto” dos dois bispos, que são as duas testemunhas episcopais que tiveram a coragem e a clareza de acusar os erros do Vaticano II, são apenas indiretas e negativas, continuando tudo como antes.
Agora vejamos o que diz o cardeal Ratzinger, que é prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé e que, portanto, tem por missão e dever precípuo ocupar-se desses problemas. Ora, como nada declarou sobre o “Manifesto Episcopal”, que provavelmente não deve ter toda a regularidade burocrática que esse alto funcionário vaticano quereria, deveremos ler uma entrevista à revista Jesus para ter uma idéia do que admite e do que continua a ignorar.
“Num mundo onde o ceticismo contagiou também os crentes, é considerada um escândalo a convicção da Igreja de que exista uma verdade e que essa verdade seja definível e exprimível de modo preciso. É um escândalo hoje partilhado também por aqueles cristãos que perderam de vista a estrutura da Igreja, a qual não é uma organização somente humana e que, portanto, deve defender um depósito de fé que não é seu. Não seria então mais a Catholica se esse depósito não fosse comum e aceito por todos.”
Como se vê, o grande “vigilante da fé” admite que o ceticismo e a negação da verdade objetiva contagiaram até os crentes, mas parece ignorar, até aqui, que haja uma causa, também definível e exprimível, que provocou tudo isso e que justamente a ele compete apurar e combater para defender o depósito único e imutável.
E o concílio? Certamente os resultados parecem opor-se de modo cruel às expectativas de todos, começando por João XXIII e depois Paulo VI: esperava-se uma nova unidade católica e foi-se ao contrário, na direção do dissenso, o qual, para usar as palavras do papa Montini, passou de autocrítica à autodestruição. Esperava-se um novo entusiasmo e muitos acabaram na desilusão e no tédio. Esperava-se um salto para frente, e em vez disso nos encontramos num processo de decadência progressiva que se desenvolveu sob o signo do concílio e portanto serviu para desacreditá-lo. O balanço parece negativo, pois; repito o que já disse 10 anos após a conclusão dos trabalhos: é incontestável que este período foi decididamente desfavorável para a Igreja católica. Mas esse amargo balanço é, mesmo em parte, atribuível a forças desencadeadas involuntariamente pelo concílio? Penso que não.
O cardeal segue explicando que o Vaticano II foi vítima do antiespírito do concílio, que queria tudo novo e que a história da Igreja recomeçasse a partir desse concílio. Mas, afinal, a “nova unidade”, o “novo entusiasmo”, o “salto para a frente” que ele mesmo queria e descreveu acima o que são senão o “novo espírito” antitradicional, anti-mariano e anticatólico? De que serve a cada dez anos fazer análises amargas sem procurar, com zelo, as causas dos problemas, sabendo ouvir quem os aponta com coragem?
A doutrina de que cada homem é chamado à salvação se obedece sinceramente aos ditames da própria consciência, mesmo se não é membro visível da comunidade católica, esta doutrina, diz o cardeal Ratzinger, “foi excessivamente enfatizada a partir do concílio, apoiando-se em teorias como a do 'cristianismo anônimo'; chegou-se a dizer que há sempre graça quando alguém, não crente em nenhuma religião, ou em uma qualquer, aceita a si mesmo como homem.”
É incrível como, do observatório que se encontra, este “vigilante” da fé possa ver esse problema como um fenômeno longínquo, provavelmente sem conexões com as teorias de “dignidade humana”, “liberdade religiosa” e “ecumenismo” promulgadas no concílio e aplicadas hoje irreversivelmente na Igreja Conciliar por João Paulo II.
Seria desejável uma restauração? 'Se por restauração se entende voltar atrás, não é possível. A Igreja avança para o cumprimento da sua. história, olha para a frente, para o Senhor. Mas se por restauração entendêssemos a procura de um novo equilíbrio depois dos exageros de uma abertura indiscriminada ao mundo; depois das interpretações, por demais positivas, do mundo agnóstico e ateu, então essa restauração é desejável e, aliás, está em curso.”
Tratando-se de problemas de fé, como seja possível um equilíbrio a meio caminho do mundo agnóstico e ateu, deve ser fórmula secreta e nova desse cardeal, que confessa, porém: “Antes do concílio não entendia inteiramente certas fórmulas antigas como 'Maria inimiga de todas as heresias'; outras, como 'De Maria numquam satis' pareciam-me excessivas. Mudando a situação durante e depois do concílio, tive que retratar-me.” De fato, ficou registrada para a História a sua contribuição no concílio contra o esquema de Maria e a idéia de que o Seu culto era excessivo, mas agora, no meio de tantos erros e heresias, ele pode ver o resultado.
Leu o terceiro segredo? “Sim, li.” Por que não é revelado? “Porque, a juízo dos pontífices, não acrescenta nada de novo ao que um cristão deve saber da revelação: uma chamada radical à conversão, à absoluta seriedade da história, os perigos que pesam sobre a fé e a vida do cristão e, portanto, do mundo. E depois, a importância dos Novíssimos. Se não é publicado — pelo menos agora — é para evitar que se confunda a profecia religiosa com o sensacionalismo. Mas o conteúdo desse terceiro segredo corresponde ao anúncio da Escritura e são confirmados por muitas aparições marianas, a começar dessa mesma de Fátima na sua parte conhecida. Conversão, penitência, são condições essenciais à salvação.”
Como se vê, há perigos pendentes sobre a fé censurados.
O cardeal Ratzinger, responsável da Doutrina da Fé, reconhece a profecia religiosa do terceiro segredo de Fátima. Mais ainda, confirma indiretamente as razões de seu ocultamento. Senão vejamos: — Contém uma radical chamada à conversão; esta não é mais repetida pelos pastores. — Fala dos perigos que pesam sobre a fé; estes não são enfrentados, mas omitidos. — Fala da importância dos Novíssimos e, portanto, da lembrança do Inferno; estes avisos preciosos estão apagados na nova “pastoral.” Quanto à absoluta seriedade da História, provavelmente significa a gravidade dos fatos prenunciados na mensagem de Fátima e já em boa parte acontecidos. Só faltam os últimos “sensacionalismos” que virão inevitavelmente desmascarar o “espírito do concílio” e sua obra de nefasta destruição e apostasia dentro da Igreja.
É claro que a juízo dos pontífices conciliares nada disso convém revelar. Quanto ao cardeal Ratzinger, voltando ao livro do padre Wiltgen sobre o “concílio desconhecido”, saberemos que já na primeira sessão ele exultou porque todo o trabalho preparatório fora descartado. Disse: “Foi uma forte reação contra o espírito que havia orientado por baixo esse trabalho.” Com qual espírito associou-se então? Estaria João XXIII sujeito a dois espíritos antagônicos, um que lhe inspirou o Concílio e outro que o fez abandonar os esquemas preparatórios? Quantos segredos e mistérios envolve tudo isso?
Ora, Ratzinger era o jovem teólogo (34 anos) do cardeal modernista de Colônia, Frings. Junto ao seu festejado mestre Karl Rahner ,trabalharam muito e em uníssono com os bispos da “ala do Reno” que se reuniam na casa do cardeal. Este, por sua vez, era o influente gestor dos fundos de Adveniat e Misereor que financiaram a transformação eclesial na América Latina. Para toda essa gente o problema do concílio estava no esquema especial de Maria Santíssima, “que resultaria num mal inimaginável para o ecumenismo” (op. cit., p. 58,90).


NÃO HÁ SEGREDO QUE NÃO SEJA DESCOBERTO

(Mt. 10,26)
Na luta culminante da história entre a cidade terrena e a cidade celeste, entre a sinagoga de Satã e a Igreja de Cristo, as armas finais contra a verdade serão não mais a violência aberta mas o engano sutil; não mais o embate frontal, mas a sedução sinuosa com o que é de aparência cristã. Serão os falsos cristos do ensino escatológico de Jesus. Mostrarão como sendo universal o que é sectário e como doutrina da luz um renovado ocultismo carismático.
“Satã é o macaco imitador de Deus”, já dizia Tertuliano.
Não se trata certamente de verdadeiras contraposições, pois a mentira é somente ofensa à verdade, que não pode ter contrário, assim como falsos cristos e falsos profetas não poderiam ser senão falsos pontífices e falsos mediadores diante do único Senhor e Mediador Jesus Cristo. E disso decorre que os opositores de Quem é a Verdade nada mais podem ser que seus imitadores e parasitas. Reconhecê-los-emos pelos seus frutos. As aparências serão sedutoras e enganosas e tanto o sectarismo como o secretismo servem a isto. De fato, estes recursos, mobilizando ocultamente as concupiscências humanas, conseguem estabelecer pactos e cultos que conduzem a um supremo chefe inacessível, que cedo ou tarde entronizará o anticristo.
Jesus assim responde ao pontífice: Ensinei sempre na sinagoga e no Templo, onde concorrem todos os judeus e nada disse em segredo (Jo., 18,20). Antes, instruindo seus discípulos havia dito: “Não os temais, pois; porque nada há de encoberto que não se venha a descobrir, nem oculto que não se venha a saber. O que Eu vos digo nas trevas, dizei-o às claras; e o que vos é dito ao ouvido, pregai-o sobre os telhados;” (Mt., 10,26)
Ora, se houve um momento para a Igreja em que seus homens mais operaram em maquinações secretas, utilizando recursos velados e ambíguos, foi durante o Concílio Vaticano II. Sobre o que deveria ser inserido nas entrelinhas de seus documentos, quem sabe quantos encontros e pactos obscuros foram feitos. E hoje seus frutos bem amargos estão aos olhos de todos que querem ver. É um dos seus teólogos mais ativos a reconhecê-lo, o cardeal Ratzinger, que fundara a revista Concilium com Rahner, Hans Kung e outros festejados teólogos liberais para fazer avançar o espírito do concílio. Qual? É o cardeal que responde em entrevista à revista Jesus (ano VI, 11): “O problema dos anos sessenta era adquirir os melhores valores expressos em dois séculos de cultura liberal. Há de fato valores que, depurados e corrigidos, mesmo se nasceram fora da Igreja, podem encontrar seu lugar na visão do mundo. Isto foi feito. O clima é diferente agora, mas piorou muito em relação ao que justificava um otimismo talvez ingênuo. Há que procurar, pois, novos equilíbrios.”
Eis que o tal espírito conciliar era o mesmo da revolução francesa, condenado durante dois séculos pelos papas juntamente com as maçonarias que o insuflavam na sociedade e na Igreja.
O desastre conciliar não tem nem mesmo a desculpa de haver encontrado um clima hostil na Igreja para aplicar suas novidades. Vindo junto com os “desejos” do papa, teve as portas abertas e seus arautos, como Ratzinger, foram premiados com brilhantes carreiras. Mas a corrupção acontecera antes, como sempre no campo das idéias. E estas naqueles dias, não foram curadas com a sã doutrina, mas deixadas livres para infeccionar todo o corpo que hoje agoniza.
São Paulo ensinava aos Coríntios (3,2): “A nossa carta sois vós, que escrita em vossos corações é reconhecida e lida por todos os homens.” Até o silêncio e o segredo das mentes pode ser visível. “Quando se converterem ao Senhor, então cairá o véu.” (II Cor., 3,16)
Quais novos equilíbrios podem procurar sem abandonar os velhos projetos que se revelaram extraviados? Como corrigir os efeitos sem remontar às causas? E parece bastante claro que foi a declaração conciliar Dignitatis Humanae que abriu uma brecha para conceitos liberais maçônicos e cavou o sulco para o neo-ecumenismo.
O presente impasse tem dimensões inauditas. Deus permitiu que pelos crimes dos homens fosse o mundo a converter os chefes da Igreja ao seu humanismo libertário. Forças antropocêntricas atraíram a hierarquia e o clero a compromissos históricos em torno de utópicos direitos humanos que, ignorando Deus, suprimem todo juiz. A nova pastoral parece feita para justificar tudo isto com palavras, enquanto a realidade desoladora desmente a justiça e a paz aventadas.
A mensagem de Maria Santíssima, para toda a cristandade, ficou ocultada no Vaticano por razões não confessadas. Mas são os planejamentos humanísticos e ecumênicos, tão opostos ao espírito de Fátima a desvelá-lo. A palavra celeste revela mesmo no silêncio o que se lhe opõe. O comportamento diante da mensagem de Fátima indica as intenções secretas para com tudo que é de Deus e de sua Igreja, como a repetir a profecia do velho Simão: “E uma espada transpassará tua alma, a fim de que se descubram os pensamentos ocultos nos corações de muitos.” (Lc, 2,35) Em verdade, a palavra de Fátima tem sido o sinal de contradição, a pedra de tropeço que colocada num ano crucial do início deste século, vai desde então medindo homens e eventos.
A crucificação de Nosso Senhor pelos doutores da lei que não quiseram reconhecê-Lo Filho de Deus vivo, tem hoje por imagem a crucificação de sua Igreja pelos seus próprios chefes que não a honram como única Esposa de Cristo. No ano 70 do Advento foi arrasado o Templo da Jerusalém que não reconheceu o Salvador. Como será neste século?
Na primavera européia de 1986 completaram-se 70 anos das manifestações do anjo que veio preparar os pastorzinhos Lúcia, Francisco e Jacinta para receber a Mãe do Céu que vinha trazer a mensagem de extraordinária importância para o destino dos homens. Mas esta não foi devidamente recebida e seguiram-se as guerras e perseguições para “punir o mundo de seus crimes.” Os homens não mudaram e parte da mensagem é mantida oculta em Roma, a Nova Jerusalém cristã. Até quando? Será como a profecia de Daniel: “uma pedra se desprendeu de um monte sem intervenção de mãos humanas e quebrou os pés de ferro e barro, despedaçando o colosso.” (Dn., 2,34)
As construções, impérios, imagens e alianças dos homens que reúnem todo o ouro, prata, bronze, ferro e argila do mundo podem atingir tal poder que não há autoridade humana capaz de enfrentá-los ou contestá-los. Para Deus basta uma pedrinha que rola da montanha. Estamos hoje diante de um colosso moderno sem precedentes: o compromisso histórico entre a revolução atéia e a reforma conciliar. Ambas podem ser filhas da mesma revolução, mas esse desdobramento de forças, aparentemente tão diversas, podem dominar toda a Terra para o mesmo dragão que dá o poder às duas bestas apocalípticas.
Teme-se ouvir evocar as imagens apocalípticas. E, todavia, esse Livro Sagrado nos foi dado para nos guiar sobre fatos decisivos que a história um dia registrará. Reconhecemos a besta das sete cabeças na revolução armada. Segue-a a segunda besta, “com dois chifres como os de um cordeiro”, que é a revolução religiosa que hoje presenciamos. Quem lhe preparou o caminho senão “a estrela caída do céu na Terra a quem foi dada a chave do poço do abismo?” A autoridade posta no alto para guiar e iluminar com o poder das chaves, mas que as usa para abrir aos erros.
Um Judas dos últimos tempos abriu o poço do abismo para fazer sair àquilo que o homem desejou mais que a Deus: o direito a uma liberdade moral e religiosa que a revolução sempre insuflou.
A revolução religiosa está gerando um Movimento de animação espiritual para a democracia universal no lugar da Igreja, e este sugere o pacifismo diante de avisos apocalípticos como a mensagem de Fátima.
Hoje a revolução conciliar parece imperar junto ao sincretismo das ideologias do mundo, numa conjura humanamente insuperável. Ficou para os cristãos uma pequena mensagem escondida. Não foi dada por mãos humanas. Dependerá destas para tornar-se conhecida de todos?


O IMPASSE DE TEMPOS FINAIS
No século passado, quando a agressão do mundo contra a Igreja abrangeu todas as esferas, inclusive a político-militar, pela invasão da Roma pontifícia, o papa Pio IX disse: “Visto que todo o mundo está contra Deus e Sua Igreja, é evidente que Ele reservou a vitória sobre Seus inimigos a Si mesmo. Isto será mais claro quando for considerado que a raiz de todos os nossos males presentes deve ser encontrada no fato de que os que possuem talento e vigor almejam prazeres terrenos, e não só desertam de Deus, mas O repudiam completamente. E assim parece que estes não podem ser trazidos de volta a Deus por nenhuma outra via senão através de um ato que não poderá ser atribuído a nenhum agente secundário, e assim todos serão forçados a ver o sobrenatural, exclamando: ‘Isto aconteceu pela intercessão do Senhor e é maravilhoso para os nossos olhos’! Acontecerá um grande ‘portento’ que encherá o mundo de admiração. Esse portento será precedido pelo triunfo da revolução! A Igreja sofrerá enormemente. Seus servos e seus chefes serão escarnecidos, flagelados e martirizados.” (POT, p. 206)
Pode-se mostrar que essa visão profética do papa Pio IX está perfeitamente de acordo com o “portento” de Fátima, tanto pela alusão à maravilhosa intercessão sobrenatural como por suas circunstâncias.
Não há contradição em dizer que o “portento” de Fátima será precedido pelo triunfo da revolução. As aparições e a mensagem da Mãe Celeste são um portento que anunciam o portento final: “Por fim, o Meu Coração Imaculado triunfará. O Santo Padre consagrar-Me-á à Rússia, que se converterá, e será concedido ao mundo algum tempo de paz.” As aparições de 1917 em Fátima (em número de seis) anunciavam e, portanto, precediam o domínio da revolução na Rússia e no mundo. O portento prenunciado por Pio IX é o fim desse poder pela vitória de Maria. E como isto está profetizado em Suas palavras de Fátima, ninguém poderá atribuí-la a agentes secundários, mas somente à intervenção de Quem o anunciou ao mundo há 70 anos.
Na primeira aparição do dia 13 de maio de 1917, Nossa Senhora disse aos pastorzinhos: “Vim para vos pedir que venhais aqui seis meses seguidos, no dia 13, a esta mesma hora. Depois vos direi quem sou eu e o que quero. Depois voltarei aqui ainda uma sétima vez.” (DOC, p. 331.)
A maneira como esta frase está destacada da outra pode indicar que a sétima vez, número da perfeição, seja a volta triunfal. É velado o esclarecimento sobre isto. É certo, porém, que o “portento” de Fátima ainda está por vir em sua forma final e triunfante. Assim foi profetizado.
Passemos então às circunstâncias. Quanto à raiz dos males dessa época, que vê o inexorável avanço dos “erros espalhados pela Rússia”, pode-se dizer que essa débácle é muito mais devida aos recuos, discórdias de espírito sectário de quem deveria defender a civilização cristã do que à eficiência dos “valores” comunistas. Essa ideologia tem tido resultados práticos sistematicamente falimentares e sobrevive pelo espaço e ajuda que obtém dos “adversários.”
Essa deserção e repúdio de Deus e dos valores cristãos de que falou o sábio papa não podem ser alheios à crise da própria Igreja, ainda em que seus dias seria inimaginável e impronunciável a autodemolição que flagela a Esposa de Cristo há 20 anos de pós-concílio, causando-lhe danos maiores que séculos de lutas, cismas e perseguições externas. Haverá ainda pelo mundo chefes e servos da Igreja humilhados e martirizados, mas este testemunho sempre foi uma força que a edificou. É o esfriamento na fé, a apostasia, a indiferença religiosa que abatem suas resistências como uma leucemia espiritual que a dessangra. Seus filhos vão perdendo o senso do pecado e não há quem os alerte. Também suas autoridades perdem a noção clara dos erros que arrancaram à Igreja povos inteiros pelas heresias ou cismas, como se isto a tivesse dividido na caridade ou na fé, o que é falso. A Igreja é una. Esta força vem do único Chefe, Jesus Cristo, que tem Seu supremo poder de jurisdição sobre bispos e fiéis, representado pelo sumo pontífice. O concílio Vaticano I definiu este dogma de fé. Quem vai, portanto, contra essa união na caridade é cismático e também herético. Separa-se tanto do corpo da Igreja como da verdade.
Por esta razão sendo cismáticas as Igrejas chamadas de ortodoxas são também heterodoxas, professando uma fé diferente da universal ensinada pelo magistério vivo dos papas. Essa cristalização doutrinal em fórmulas rígidas e arcaicas certamente as tornaram vulneráveis, senão às novidades, aos jogos do poder político que se multiplicam sobre corpos religiosos privados de universalidade e do vigor que só uma cabeça que representa todo o poder de Nosso Senhor na Terra pode dar. Na Rússia, o poder soviético cuidou de fundir por decreto a Igreja católica com a ortodoxa. Pretendia eliminar assim a verdadeira resistência, embora minoritária, e ocupava-se então de domesticar uma igreja nacional cuja cúpula vergonhosamente aceitou até o “patriotismo comunista”, como podem demonstrar livros e testemunhos de padres e intelectuais russos. É famosa a carta do escritor Soljenitsin ao patriarca Pimen, na quaresma de 1972. Soljenitsin: testemunhos, de André Martin (Ed. Salesianas, Porto, 1976).
Pois bem, tudo isto está implícito na mensagem de Fátima. Para salvar a Rússia, Nossa Senhora dirige seus pedidos ao papa de Roma, pedindo uma consagração ao Imaculado Coração de Maria que é uma verdadeira síntese de fé católica. Promete com isto converter a Rússia do ateísmo à Fé, da guerra à paz e do cisma à unidade romana sob o único pontífice que representa o Bom Pastor na Terra. Esta deverá ser a clara e pública intenção da Igreja que o santo padre deverá demonstrar para cumprir a consagração, tornando-a satisfatória.
Eis o problema. Esse pensamento parece estranho à visão ecumênica dos papas conciliares em geral e de João Paulo II em especial.
Confirma a evidência dos fatos uma otimista revelação. Mas como pode a Igreja conciliar, gerada de uma matriz cismática, discernir sobre cismas?
Nos dias em que o turco Ali Agca, que atentara contra a vida do papa, começou a falar do terceiro segredo de Fátima no tribunal que o julgava, fazendo referência ao diálogo secreto mantido com o papa Wojtyla, que fora à sua cela na prisão para perdoá-lo, jornais e revistas voltaram a ocupar-se do assunto publicando algumas novidades. A revista dos paulinos Madre di Dio, na edição de junho de 1985 traz uma confidencia do papa ao bispo Paulo Cordes: “(...) seu constante desejo era nomear expressamente a Rússia dia 25 de março, no texto da consagração, mas renunciou a isso temendo que suas palavras fossem interpretadas como uma provocação aos dirigentes soviéticos. Todavia, essa renúncia a uma expressa e particular consagração da Rússia pesou sempre sobre o seu ânimo, porque justamente a Virgem mesma dava tanta importância a este ato. Mas sua tristeza ficou aplacada quando soube que os bispos ortodoxos da Rússia, tendo sido informados de que o papa se preparava para fazer tinham providenciado a consagração da Rússia à Virgem.” (La Repubblica, 04/jun./85, p. 17)
Ignora João Paulo II que é o papa que detém o poder único e insubstituível para isso? Pode essa consagração de ortodoxos separados de Roma converter a Rússia à Igreja?
Em todo caso, para João Paulo II o ato já foi cumprido. Isto ele declarou ao padre Pierre Caillon numa audiência no Vaticano, e isto é o que faz saber através dos prelados que lhe estão mais próximos, como o monsenhor Paul Hnilica, bispo tcheco-eslovaco exilado em Roma.
É claro, porém, que a consagração pedida, sendo ordenada à glória de Deus pelo triunfo do Imaculado Coração de Maria, não pode ser um ato dúbio, pessoal e discutível, mas público e solene a fim de que ninguém possa duvidar que nele está a causa eficiente da conversão milagrosa anunciada há setenta anos à Igreja.
Eis, então, o impasse atual: o chefe da Igreja, que tem os poderes para cumprir o único ato capaz de salvar o mundo de castigos sem precedentes, não mostra disposição de fazê-lo. A perseguição interna contra a Igreja e o papado acabou por privar o mundo da única ponte capaz de alcançar a misericórdia divina, o Pontífice Romano. Hoje, só a intervenção direta de Deus pode restaurar a Igreja, restabelecendo sua autoridade pontifical.


O SÍNODO DE 85 RECICLA O CONCÍLIO


O mundo católico sabia que o ar de otimismo respirado na Igreja nos últimos anos é enganoso, e que o sínodo extraordinário convocado pelo papa para novembro de 1985, a fim de verificar os resultados do Concílio Vaticano II 20 anos após seu encerramento, deveria enfrentar problemas muito graves.
Fermentavam no âmbito eclesial e no civil manobras de caráter político baseadas em “teologias ideológicas” e mobilização de aparatos religiosos para promover a luta de classes com o rótulo católico. Era o caso da Teologia de Libertação, da Igreja Popular, das Comunidades de Base e das liturgias revolucionárias promovidas por bispos apesar das censuras e instruções contrárias emanadas de Roma. Houve até o caso de dom Ivo Lorscheider, presidente da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), que chegou a ameaçar o papa com um cisma se continuassem a vir do Vaticano essas críticas negativas.
Esse ativismo episcopal, secundado por uma violenta campanha da imprensa esquerdista contra a “nova inquisição” não bastava, porém, para explicar a tibieza das medidas vaticanas, inversamente proporcionais à gravidade e alcance internacional do motim. Havendo ataque à própria verdade ensinada pela Igreja, já na ameaça de cisma ficava patente que um cisma material fora consumado.
Mas, o que impedia uma destemida atitude da autoridade de Roma?
Alguns ainda se iludiam acreditando que esse sínodo, que teria a participação dos presidentes das conferências episcopais do mundo e da cúria romana sob a direção do papa, enfrentaria decididamente as questões porque estava em jogo a defesa da verdade, a proteção dos fiéis e a credibilidade da própria autoridade papal, contornada publicamente.
Além disso, a assembléia sinodal, embora reunida para tratar de assuntos religiosos, devia também um esclarecimento a toda a sociedade que estava envolvida por esses problemas, visto que só Roma tem o poder de confirmar ou negar o DOC, a origem controlada da doutrina que, em nome da Igreja de Nosso Senhor Jesus Cristo, se dá a beber aos povos. Alguns avisos gerais haviam sido preparados para contestar a genuinidade de tais enganos, mas a distribuição dos mesmos fora abertamente boicotada,”porque confiada aos contrafatores das conferências episcopais locais. A situação pedia medidas claras e urgentes.
Pareciam ecoar as palavras da mensagem de Fátima: “A Rússia espalhará seus erros pelo mundo, promovendo guerras e perseguições à Igreja...” Mas, agora que os erros eram internos, promovidos pelos próprios hierarcas contra a doutrina da Igreja, é impossível não ler nisto o que deve estar prenunciado no terceiro segredo.
Curiosamente, porém, os transgressores da ortodoxia católica a favor de ideologias e sistemas contrários à ordem cristã da sociedade, é que se sentiam perseguidos por não poder espalhar seus erros e “teologias” subversivas. Deveriam responder perante a justiça civil por suas falsidades ideológicas, mas, ao contrário, acusavam as autoridades civis de perseguição religiosa quando estas os interpelavam sobre iniciativas visando a luta de classes, armada ou não.
A promoção da Teologia da Libertação e da Igreja Popular como católicas depois da censura vaticana, é uma falsidade ideológica punível também pela lei civil. Dizer que isso é perseguição religiosa significa agravar a mentira. Contra esta devem estar também a religião e o papa, enquanto defensores da verdade, não de enganos. Estes, implicando uma ruptura com a legítima autoridade da Igreja católica, são também cismáticos, e isto não depende do “respeito” que ostentam. Não depende nem mesmo das declarações da autoridade em exercício. O cisma vai contra a autoridade papal, enquanto responsável pela unidade da Igreja, supremo juiz da lei canônica a serviço da fé. Que a subversão religiosa seja poderosamente sustentada pelas forças do mundo, a ponto de deixarem a autoridade vaticana atual apavorada quanto a pronunciar-se, não anula o cisma real, não oculta a ruptura, mas agrava e amplia enormemente suas conseqüências. A contrafação religiosa não declarada pela autoridade competente vai contaminar a sociedade civil, despreparada para defender-se dos erros e enganos que continuam a ser impingidos como católicos por pastores desviados.
Como quem cala consente, essas autoridades religiosas locais teriam no silêncio papal um implícito aval do supremo pontífice para pontificar localmente em seu nome e no da Igreja. Embora não seja o sínodo a sede para medidas disciplinares, certamente o é para confirmar a justa doutrina e condenar todos os enganos atuais que vão contra ela. Isto foi feito nos concílios e sínodos precedentes da igreja católica, razão pela qual, hoje, até a justiça comum pode discernir sobre o que é autenticamente católico, com direito a usar essa denominação no mundo.
Houve, por exemplo, o caso de um seminarista na Alemanha, há poucos anos, que abandonou o curso que seguia declarando que este não era católico. A direção do seminário intimou-o então a pagar os custos do ensino. O jovem recorreu à justiça comum que, com base na comparação da doutrina ensinada com a tradicional da Igreja por definição imutável porque revelada, deu ganho de causa ao aluno, vítima de uma falsificação.
É claro que essa adulteração no campo das idéias, a esse nível, corrompe a vida social, e, se deve preocupar os juízes, tanto mais deve preocupar as autoridades romanas, não fosse já ofensa a Deus. É preciso conhecer a matriz de males insidiosos dessa ordem, que possibilitam a falsificação religiosa já na formação do clero.
Ora, como os males de que falamos expandiram-se sem qualquer freio nos últimos 20 anos, seria justamente o sínodo, que se propunha verificar esse período de frutos conciliares, a ocasião para remontar às origens, as quais deveriam estar inevitavelmente nos documentos produzidos pelo Vaticano II. Seria temerário e ilógico negá-lo.
Diz Jerônimo de Santomás (Revista Roma, n.º 88): “Podemos afirmar sem necessidade de fornecer prova alguma que a causa de toda a crise é o próprio Concílio e sua aplicação. Quem deve fornecer provas é quem nega ser o próprio concílio a causa eficiente do desastre eclesial. Se quiser ser acreditado, porém, deverá desvendar qual é esse grande acontecimento que sobrepujou o Concílio por seus frutos e por sua doutrina. Que acontecimento foi esse? O único evento anterior ao Concílio e que surpreendeu a todo o mundo cristão foi a negativa da parte de João XXIII de dar a conhecer o segredo de Fátima que deveria ser publicado em 1960. (...) Jamais antes se fizera uma tal afronta a nossa Mãe celeste.”
De fato, o que, senão esse concílio, com seu espírito de abertura para o mundo, com seus documentos sujeitos a ampla interpretação a fim de favorecer um ecumenismo populista, com seu democratismo litúrgico e liberalismo doutrinal, poderia ter proporcionado enganos e cismas como a Igreja Popular, a Teologia da Libertação et alia huismodi?.
Das novas atitudes eclesiais que transpareceram logo antes da abertura do Vaticano II, há uma especial cuja influência nefasta ainda não foi devidamente aquilatada. Ao contrário, foi louvada e incorporada, acrítica ou deliberadamente, como uma inspiração celeste pelos sucessivos papas e bispos conciliares. Trata-se da idéia de que a Igreja não mais deve condenar o erro porque a verdade tem força para afirmar-se por si. Assim, a autoridade eclesial ficaria dispensada de uma função antipática e impopular, para dedicar-se inteiramente à missão do bom samaritano, provendo a assistência e a paz na sociedade humana. Com essas idéias inaugurava-se a nova bondade conciliar, que deixava entender ser a ação de julgar, condenar e executar a justiça pouco caridosa.
Diversas vezes os papas conciliares pronunciaram-se com esse conceito estranho que permeou os documentos do concílio e outros subseqüentes da Igreja. Na correspondência que Paulo VI, ansioso por dialogar com intelectuais não católicos, manteve com o prestigioso escritor italiano Prezzolini, este precisou explicar ao papa Montini que seu apelo de 1967 ao mundo pela justiça e paz, talvez tenha comovido muitos, mas a balança da justiça terrena continua associada à espada, não à paz. Um juiz sem nenhum poder para impor suas sentenças não pode ministrar a justiça. Mas ele ofenderia a própria noção de justiça se renunciasse ao poder moral ou espiritual que recebeu, negando-se a condenar culpados, com o pretexto de amor pela paz. No caso de um papa, supremo juiz da Igreja na Terra, essa tácita renúncia a exercer sua justiça levantaria questões de uma gravidade inimaginável.
O ensinamento cristão autêntico, tendo origem na verdade, sempre redimensionou as falácias e demagogias deste mundo. É claro que a promoção da paz em detrimento da justiça é alienação que leva à tirania do erro. “Não julgueis que vim trazer a paz à Terra; não vim trazer a paz, mas a espada” (Mt., 10,34). “Não a paz, mas a separação” (Lc, 12,51). Assim ensina Nosso Senhor Jesus Cristo: “Deixo-vos a paz, dou-vos a minha paz; não vo-la dou como dá o mundo.” (Jo., 14,27)
Por tudo isto, não se compreende bem como os papas conciliares puderam fazer uma opção preferencial pela ONU e Paulo VI, antes de encerrar o Concílio, tenha voado para Nova York a fim de proclamar no Palácio de Vidro seu novo conceito de liberdade religiosa, mais conforme à liberdade da UNESCO que ao Evangelho de Cristo segundo todos os papas. Os resultados desse novo conceito de liberdade, exarado por tal cátedra religiosa suprema, inevitavelmente iriam difundir-se em todo o mundo. No mundo católico deu origem às mais livres e estapafúrdias mutações doutrinais e litúrgicas, cuja conseqüência é o cisma difuso e subterrâneo que hoje vivemos. No civil deu status de direito à liberdade de negar e agredir a verdade em todos os níveis, deixando assim a moral, a justiça, o ensino e o próprio Estado à mercê do juízo dos mais ousados e violentos sediciosos. Vieram as revoluções de 68, das brigadas vermelhas, dos anarco-comunistas, dos homossexuais, etc., nas quais passaram a ser julgados e suprimidos os juízes, professores e estadistas da sociedade “repressiva.” Até o infeliz amigo de Paulo VI, o poderoso Aldo Moro, foi justiçado pelos novos juízes, autoproclamados arautos de uma nova ordem de justiça e paz. Enquanto isto, com os fundos internacionais para a paz impõe-se até as dialéticas portadoras de guerra. Está demonstrado, por exemplo, que os soviéticos utilizam recursos da UNESCO para a doutrinação comunista, até no Afeganistão por eles invadido. A moral capitalista recusa-se a financiar tais embustes e, assim, os EUA e a Inglaterra retiram-se da mesma UNESCO que a Igreja conciliar considera com olhar desvanecido, não porque ignore os fatos, mas por amor à nova idéia de paz!
Havia algum indício de que nesse sínodo de 1985, esses enganos espalhados funestamente pelo mundo seriam denunciados? A resposta é negativa. Por exemplo, apenas cinco meses antes, e com o mesmo espírito enganador, fora preparado pela Congregação para a Unidade dos Cristãos, sob o cardeal Willebrands, um documento segundo o qual cristãos e judeus deveriam esperar juntos pela vinda do Messias! A falsidade doutrinal era a matriz da adulteração política.


Levados ainda por um sopro de esperança, pedidos, súplicas, lembranças das promessas de Fátima foram dirigidas a Roma antes do início dos trabalhos sinodais. Monsenhor Marcel Lefebvre, juntamente com monsenhor Antônio de Castro Mayer, enviaram nova carta ao papa. O padre de Nantes fez distribuir aos prelados presentes em Roma uma nova súplica, pedindo a revisão dos erros conciliares. Fátima foi evocada de público.


CARTA DOS DOIS BISPOS AO PAPA

(para o Sínodo de 1985)
Santo Padre,

Durante quinze dias, antes da festa da Imaculada Conceição, Vossa Santidade decidiu reunir um Sínodo Extraordinário em Roma, a fim de fazer do Concílio Vaticano II, encerrado há vinte anos, “uma realidade sempre mais viva.”

Permita que por ocasião deste evento, nós que participamos ativamente no Concílio, possamos apresentar-vos respeitosamente nossas apreensões e augúrios, para o bem da Igreja e a salvação das almas que nos foram confiadas.

Estes vinte anos, segundo o prefeito da sagrada Congregação da Fé em pessoa, evidenciaram suficientemente uma situação que confina numa verdadeira autodemolição da Igreja, salvo nos meios onde a milenar Tradição da Igreja foi mantida.

A mudança operada na Igreja nos anos sessenta, concretizou-se e afirmou-se no Concílio pela “Declaração sobre a Liberdade Religiosa”: outorgando ao homem o direito natural de ser isento da coação que a lei divina lhe impõe de aderir à fé católica para salvar-se, coação que necessariamente se traduz nas leis eclesiásticas e civis submetidas à autoridade legislativa de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Essa liberdade de toda coação da lei divina e das leis humanas em matéria religiosa está inscrita entre as liberdades proclamadas na Declaração dos Direitos Humanos, declaração ímpia e sacrílega condenada pelos papas e em particular pelo papa Pio VI em sua encíclica Adeo nota, de 23 de abril 1791, e sua alocução no consistório de 17 de junho de 1793.

Dessa declaração sobre a liberdade religiosa emana como de uma fonte envenenada:

1) O indiferentismo religioso dos estados, mesmo católicos, que se realiza desde há 20 anos sob a instigação da Santa Sé.

2) O ecumenismo levado avante sem cessar por vós mesmo e pelo Vaticano, ecumenismo condenado pelo magistério da Igreja e em especial pela encíclica Mortalium animos do papa Pio XI.

3) Todas as reformas consumadas desde há 20 anos na Igreja para agradar aos heréticos, aos cismáticos, às falsas religiões e aos inimigos declarados da Igreja como os judeus, os comunistas e os maçons.

4) Esta libertação da coação da Lei divina em matéria religiosa evidentemente vai fomentar a libertação da coação em todas as leis divinas e humanas e mina toda autoridade em todos os campos, especialmente no da moral.

Nós não cessamos de protestar, no Concílio e depois do Concílio, contra o inconcebível escândalo desta falsa liberdade religiosa, nós o fizemos com a palavra e com escritos, privada e publicamente, apoiando-nos nos documentos mais solenes do Magistério da Igreja, entre outros: o Símbolo de Atanásio, o IV Concílio de Latrão, o Syllabus (p.15), o Concílio do Vaticano I (Dz 3008) e sobre o ensino de Santo Tomás de Aquino a respeito da fé católica [Sum. Theol., IIa, questões 8 a ], ensino que foi sempre o da Igreja durante cerca de 20 séculos, confirmado pelo direito e suas aplicações.

Eis porque, se o próximo Sínodo não voltar ao magistério tradicional da Igreja em matéria de liberdade religiosa, mas confirmar esse grave erro, fonte de heresias, nós teremos o direito de pensar que os membros do Sínodo não professam mais a fé católica.

De fato, eles agirão contrariamente aos princípios imutáveis do Concílio Vaticano I que afirmou em sua IV secção, no Cap. IV, “O Espírito Santo não foi prometido aos Sucessores de Pedro para permitir-lhes de publicar, segundo suas revelações, uma nova doutrina, mas para guardar santamente e expor fielmente com sua assistência as revelações transmitidas pelos Apóstolos, isto é, o depósito da Fé.”

Nesse caso, nós não podemos senão preservar na Santa Tradição da Igreja e tomar todas as decisões necessárias a fim de que a Igreja conserve um clero fiel à fé católica, capaz de repetir com São Paulo: “tradidi quod accepi.” (Transmitimos o que recebemos.)

Santo Padre, a vossa responsabilidade está gravemente comprometida nessa nova e falsa concepção da Igreja que conduz o clero e os fies à heresia e ao cisma. Se o Sínodo sob a vossa autoridade perseverar nessa orientação, não sereis mais o Bom Pastor.

Nós nos dirigimos à Nossa Mãe, e Bem-aventurada Virgem Maria, com o Rosário nas mãos, suplicando-A de vos comunicar Seu Espírito de Sabedoria, bem como aos membros do Sínodo, a fim de pôr um termo à invasão do modernismo no interior da Igreja.

Santo Padre, queira perdoar a franqueza desta iniciativa que não tem outro fim senão render ao nosso único Salvador Jesus Cristo a honra que lhe é devida assim como à Sua Única Igreja.
(ass.) Arcebispo Marcel Lefebvre e Bispo Antônio de Castro Mayer.

O Sínodo inaugurou-se com uma celebração solene na Basílica de São Pedro na manhã de domingo, 24 de novembro de 1985. No mesmo dia, à tarde, apenas do outro lado da colunata da praça e a poucos passos do Palácio do Santo Ofício, iniciavam-se os trabalhos da Conferência sobre Fátima com o título: “Este Sínodo Extraordinário de 85 é a última ocasião para a paz?” Sendo um dos organizadores, posso dizer que foi num encontro em que conheci Pe. Gruner (editor da revista Fátima Cruzader), dia 13 de novembro, que aventamos a importância de uma iniciativa sobre Fátima em Roma e às vésperas do Sínodo. A dificuldade estava na sua organização em tempo tão exíguo e na conhecida oposição da Igreja conciliar, além do silêncio da imprensa, dado como certo. Realizou-se, não obstante. Contou com a participação do padre Caillon, que estava em Roma, do sr. Emílio Cristiano, que veio de Nápoles, de Hamish Fraser, que veio da Escócia, e do irmão Michel de la Sainte Trinité, autor dos três volumes sobre Fátima, que veio da França (St. Parres Les Vaudes). Se a presença do público foi modesta em número, não o foi em qualidade. Havia dois bispos, muitos sacerdotes e freiras, professores e magistrados entre os fiéis. Falou-se então da resistência sempre encontrada pela mensagem de Fátima, da qual se deu testemunho. Lembrou-se, então, que Sua Beatitude o Patriarca Latino de Jerusalém, Giacomo Beltritti, presente no Sínodo de 1983 (p.204), havia naquela ocasião lembrado a João Paulo II e à Assembléia Sinodal a importância de fazerem a consagração colegial da Rússia ao Imaculado Coração de Maria, ainda não realizada nos termos pedidos. Como se viu, João Paulo II fez uma consagração novamente incompleta depois disso. A intervenção do patriarca, porém, foi omitida dos documentos sinodais e deixada no silêncio até aquele momento em que o revelamos nessa conferência e em presença do patriarca, sentado logo diante de quem falava.
Mais tarde esse alto prelado, embora confirmando o fato, pedia que não se mencionasse que pudesse ser o patrocinador da reunião, como foi noticiado nos folhetos e cartazes. Provavelmente isso incomodava as autoridades que votavam ao silêncio o que lembrava Fátima. O que conta é que, bem ou mal, também nesse Sínodo seus participantes não poderão dizer que não lhes foi lembrado o pedido pendente. Infelizmente, também nesta ocasião os bispos reunidos deixaram de lado a mensagem salvadora de Nossa Senhora. Mas não foi apenas isto. As questões das Igrejas populares, das teologias e liturgias revolucionárias e demais tramóias que vêm corrompendo a vida religiosa, foram igualmente escamoteadas. Prevaleceu o espírito conciliar, que tudo admite ou omite para não condenar. Os abusos, as prevaricações praticadas por grupos de poder que manipulam as conferências episcopais para impor ideologias anticatólicas, foram absorvidos também pelo espírito conciliar que louva a mesma autonomia que multiplica os abusos e o colegiado que disfarça as responsabilidades. O comunismo continuou sendo assunto tabu para respeitar o pacto Moscou-Vaticano das vésperas do Concílio (p.107). Foi um sínodo de paz!
A resposta sinodal consistiu, pois, na anistia de todos os erros e na absolvição de qualquer responsável. Foi uma renovada proclamação da “Pentecostes conciliar”, realizada na “maravilhosa união de bispos” junto ao papa. Nesta ficaram reciclados os graves problemas doutrinais, morais, sociais e litúrgicos, bem como cismas e heresias, mostrando que uma Igreja conciliar neles mergulhada não pode vê-los. Não só negaram que a causa da crise religiosa estivesse no Concílio, negaram que houvesse problemas e crise de fé. Foram além. Proclamaram que o que veio do Concílio eram bênçãos do Espírito Santo.
Se antes pairava dúvida sobre a amplitude dos desvios conciliares, agora havia certeza. Nessas declarações oficiais havia objetivamente a malícia da blasfêmia contra o Espírito Santo, pecado sem perdão.
Seria ainda possível pensar que João Paulo II agia sem conhecer os problemas e pedidos que lhe eram enviados, mas fraudulentamente desviados? Quase no fim do sínodo ocorreu um fato que mostra não ser esse o caso: monsenhor Lefebvre e monsenhor Castro Mayer, sendo informados na Argentina, onde celebravam algumas ordenações sacerdotais, da total indiferença para com as questões por eles levantadas na carta ao papa, autorizaram a distribuição desta aos padres sinodais, inclusive cardeais da Cúria. No dia seguinte, sabedor que a carta dos dois bispos era conhecida por muitos prelados, o papa fez o seguinte comentário, rindo, no banquete de encerramento: “Atenção, porque sou um mau pastor!” (Corriere della Sera, 9/12/85). Era uma clara referência à carta.
A suprema autoridade hierárquica da Igreja omitia-se de responder sobre graves questões de fé. Rindo, ocultava e transformava fatos, palavras e cartas que pediam sua intervenção em defesa da fé. Mas, quem não respondeu a Maria Santíssima como devia, a que podia ainda responder?


RUPTURA ABISSAL DE ASSIS
Desde a Introdução vimos assinalando as insídias e os erros com que a Revolução assalta a Igreja, por fora e por dentro, para destruí-la. Observamos também que, mesmo quando seus inimigos, em 1914, dominavam quase todo o mundo civil e estavam infiltrados em seu seio em posições importantes, como revelou São Pio X, as defesas doutrinais e litúrgicas estavam íntegras e continuava vivo o espírito missionário de tudo instaurar em Cristo. Espírito que não decorre de uma atitude pessoal de algum papa, mas é inerente à doutrina evangélica e à Tradição de que emana o Magistério papal pelo qual as leis humanas devem submeter-se às leis divinas, aos Princípios revelados e ensinados pela Igreja. Estes não são optativos e não há liberdade civil ou religiosa dos homens quanto à Lei imutável de Deus. Os Estados estão, como os indivíduos, vinculados a ela. Por isso, a chamada separação entre o Estado e a Igreja, que é a depositária da Revelação única, corresponde à separação deliberada dos homens em relação a Deus. Fato inaceitável diante do qual um católico não pode ficar impassível e muito menos uma autoridade da Igreja calar-se. Vai nisto uma questão doutrinária, e São Pio X levantou sua voz e exerceu sua ação para dirimir toda confusão a respeito. Preferiu suportar as represálias materiais do governo liberal-maçônico da França e depois de Portugal, antes que aceitar qualquer compromisso acerca do princípio da união da Igreja com o Estado.
Vimos então que de 1917 até 1960 houve uma gradual mutação neste testemunho intransigente do direito de Deus. As guerras e desgraças do mundo sopravam um hálito de fome e de morte, sugerindo aos chefes um novo espírito de compromisso e uma nova política de concordatas. Pareceu possível ao Vaticano dos anos vinte até mesmo propor concordatas e acordos com potências do ateísmo militante. Que pontos teriam em comum? Certamente não era o que mais se coadunava com a Mensagem de Fátima, que por esta razão nunca foi inteiramente acolhida.
Vimos depois como, de 1960 até 1982, com o Concílio Vaticano II, a Revolução ocupou a Igreja em cujo nome se fizeram documentos e atos inimagináveis. Mas os venenos conciliares continuaram a agir com força sobre João Paulo II, que desde então operou uma escalada ecumênica além de toda decência. Vinha entremeada de atos de índole mariana e conservadora, mas isto, longe de atenuar as mudanças, só fez agravá-las pelo contraste com o confusionismo religioso. Vejamos:
Em 12 de dezembro de 1985, dirigindo-se aos bispos filipinos, João Paulo II, confirmando o que havia dito ao lado do rei Hassan II, “comendador dos crentes” (do Islã), assim se expressou: “Quero repetir à Igreja das Filipinas o que disse na concentração de jovens muçulmanos em Marrocos: — Eu creio que nós, cristãos e muçulmanos, devemos reconhecer com alegria os valores religiosos que temos em comum... Creio que Deus nos convida a mudar nossos velhos costumes.”
No dia 25 de janeiro de 1986, falando da unidade dos cristãos, disse: “A tarefa ecumênica almeja precisamente esta meta — realizar a Igreja como sacramento da unidade sinfônica das múltiplas formas de uma só plenitude.”
Em fevereiro de 1986 temos a notícia: “Na viagem pela índia recebeu primeiro o sinal de Tilaba de uma sacerdotisa hindu, e depois, em Madras, as cinzas sagradas das mãos de uma mulher numa cerimônia iniciática.”
No dia 24 de fevereiro noticia o Vaticano que a “Igreja Católica” aderiu ao Conselho Ecumênico das Igrejas. Fato que colide com as proibições promulgadas pelos pontífices pré-conciliares.
No dia 13 de abril de 1986, pela primeira vez, quem ocupa o trono de São Pedro faz uma visita à Sinagoga de Roma e participa da recitação de salmos reconhecendo que a Igreja perseguiu os judeus. Disse que “este encontro conclui ... um longo período. ... Para que sejam superados velhos preconceitos e se reconheça este comum patrimônio espiritual. ... A religião judaica não nos é 'extrínseca', mas de certo modo é 'intrínseca' à nossa religião. São nossos irmãos prediletos e de certo modo, pode-se dizer, nossos irmãos maiores.”
No dia 27 de outubro de 1986, João Paulo II convocou os representantes das grandes religiões do mundo para um encontro de oração pela paz em Assis. Ali, pronunciou estas palavras: “Que tantos líderes religiosos estejam aqui juntos para rezar ... a fim de que o mundo tome consciência de que existe outra dimensão da paz ... não é o resultado de ... compromissos políticos e acordos econômicos, mas o resultado da oração que, na diversidade das religiões, exprime uma relação com um poder supremo que está por cima de nós. ... Nosso encontro somente testemunha ... que na grande batalha em favor da paz, a humanidade, com sua grande diversidade, deve tirar sua motivação das fontes mais profundas e vivificantes nas quais se plasma a sua consciência e sobre as quais se fundamenta a ação moral de toda pessoa. ... Daqui iremos a diferentes lugares de oração. Cada religião terá o tempo e a oportunidade de exprimir-se em seu próprio rito tradicional.”
Foi assim que o mundo assistiu ao espetáculo de bonzos incensando um Buda colocado sobre o Sacrário de um altar católico de onde havia sido removido o crucifixo.
Concluindo as orações pela paz de Assis, João Paulo II disse: “Eu professo de novo minha convicção, condividida por todos os cristãos, de que em Jesus Cristo, salvador de todos, pode-se encontrar a paz. ... Repito aqui humildemente a minha própria convicção: — a paz leva o nome de Jesus Cristo.”
Ora, como conciliar a convicção expressa nestes atos e nestas palavras com o convite de oração pela paz feito aos representantes de crenças não cristãs? Pode um papa ignorar sua missão de ensinar e confirmar a fé de modo universal?
Em abril de 1987 o Grande Oriente da Itália publica: “O nosso interconfessionalismo nos causou a excomunhão de 1738 por parte de Clemente XII. Mas a Igreja estava certamente em erro se é verdade que dia 27 de outubro de 1986 o atual pontífice reuniu em Assis homens de todas as confissões religiosas para rezar pela paz. Que procuravam de diferente nossos irmãos quando se reuniam nos templos senão o amor, a tolerância, a solidariedade e defesa da dignidade humana, considerando-se iguais acima dos credos políticos e religiosos?”
A maçonaria dava razão a João Paulo II, que dava razão a esta e a imitava em detrimento de tudo quanto a Igreja ensinou.
Ora, para quem crê que é possível pedir pela paz sem invocar o santo nome de Deus e professar Sua fé, também a Mensagem de Fátima, pela qual Deus confiou a paz do mundo ao Imaculado Coração de Maria, não pode ter sentido, ou pelo menos importância.
De fato, o espírito ecumênico de Assis não é conciliável como o verdadeiro ecumenismo fiel de Fátima que convida ao retorno à fé, à esperança e à caridade católicas. Foi assim que uma imagem de Nossa Senhora de Fátima levada a Assis por peregrinos da Calábria ficou excluída das igrejas naquela ocasião.


Devemos, agora, saber o que declararam os dois bispos fiéis em relação a este ato inaudito:
DECLARAÇÃO (como conseqüência dos acontecimentos da visita de João Paulo II à Sinagoga e ao Congresso das Religiões em Assis). — Roma mandou nos perguntar se tínhamos a intenção de proclamar nossa ruptura com o Vaticano por ocasião do Congresso de Assis.

Parece-nos que a pergunta deveria, antes ser esta: o senhor acredita e tem a intenção de declarar que o Congresso de Assis consuma a ruptura das autoridades romanas com a Igreja Católica?

Porque é precisamente isto que preocupa àqueles que ainda permanecem católicos.

Com efeito, é bastante evidente que, desde o Concílio Vaticano II, o papa e os episcopados se afastam, de maneira cada vez mais nítida, de seus predecessores.

Tudo aquilo que foi posto em prática pela Igreja para defender a Fé nos séculos passados, e tudo o que foi realizado pelos missionários para difundi-la, até o martírio inclusive, é considerado doravante como uma falta da qual a Igreja deveria se acusar e pedir perdão.

A atitude dos onze papas que, desde 1789 até 1958, em documentos oficiais, condenaram a revolução liberal, é considerada hoje como “uma falta de compreensão do sopro cristão que inspirou a revolução.”

Donde a reviravolta completa de Roma, desde o Concílio Vaticano II, que nos faz repetir as palavras de Nosso Senhor àqueles que O vinham prender. “Haec est hora vestra et potestas tenebrarum.” Esta é a vossa hora e o poder das trevas. (Lc, 22:52-53)

Adotando a religião liberal do protestantismo e da revolução os princípios naturalistas de J.J. Rousseau, as liberdades atéias da Constituição dos Direitos do Homem, o princípio da dignidade humana já sem relação com a verdade e a dignidade moral, — as autoridades romanas voltam as costas a seus predecessores e rompem com a Igreja católica, e põem-se a serviço dos que destroem a cristandade e o Reinado Universal de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Os recentes atos de João Paulo II e dos episcopados nacionais ilustram, de ano para ano, esta mudança radical de concepção da fé, da Igreja, do sacerdócio, do mundo, da salvação pela graça.

O cúmulo desta ruptura com o magistério anterior da Igreja, depois da visita à sinagoga, se realizou em Assis. O pecado público contra a unicidade de Deus, contra o Verbo Encarnado e Sua Igreja faz-nos estremecer de horror: João Paulo II encorajando as falsas religiões a rezar a seus falsos deuses: escândalo sem medida e sem precedente.

Poderíamos retomar aqui nossa declaração de 21 de novembro de 1974, que permanece mais atual que nunca.

Quanto a nós, permanecendo indefectivelmente na adesão à Igreja Católica e Romana de sempre, somos obrigados a verificar que esta religião modernista e liberal da Roma moderna e conciliar se afasta cada vez mais de nós, que professamos a Fé católica dos onze papas que condenaram esta falsa religião.

A ruptura, portanto, não vem de nós, mas de Paulo VI e de João Paulo II, que rompem com seus predecessores.

Esta negação de todo o passado da Igreja por estes dois papas e pelos bispos que os imitam é uma impiedade inconcebível e uma humilhação insuportável para aqueles que continuam católicos na fidelidade a vinte séculos de profissão da mesma Fé.

Por isso, consideramos como nulo tudo o que foi inspirado por este espírito de negação: todas as Reformas pós-conciliares, e todos os atos de Roma realizados dentro desta impiedade.

Contamos com a graça de Deus e o sufrágio da Virgem Fiel, de todos os mártires, de todos os papas até o Concílio, de todos os santos e santas fundadores e fundadoras de ordens contemplativas e missionárias, para que venham em nosso auxílio na renovação da Igreja pela fidelidade integral à Tradição.

Buenos Aires, 2 de dezembro de 1986
† Marcel Lefebvre

Arcebispo-Bispo emérito de Tulle
† Antônio de Castro Mayer

Bispo emérito de Campos
que concorda plenamente com a
presente declaração e a faz sua.


Dia 30 de dezembro, com a encíclica Sollicitudo Rei Socialis, João Paulo II acentua sua posição: “O encontro de 27 de outubro do ano passado em Assis, para orar e comprometermo-nos pela paz — cada um na fidelidade à própria profissão religiosa — nos revelou a todos até que ponto a paz e sua necessária condição de desenvolvimento de 'todo homem e de todos os homens' são uma questão também religiosa, e como a plena realização de ambos depende da fidelidade à nossa vocação de homens e de mulheres crentes porque depende antes de tudo de Deus.” Pode o conceito de fidelidade aplicar-se na indefinição de qual seja a fé? Só se for uma fé pessoal que não depende de Deus.
Devemos também sintetizar aqui a instância de católicos leigos ao Sínodo de Bispos de 1987, onde, depois de lembrar diversas contradições e omissões do Concílio sobre problemas atuais e suas conseqüências em iniciativas como a de Assis, diz:
“Quem hoje guia este curso, mostrando-se amigo de quem ataca a Fé enquanto ignora os apelos para a sua defesa, é justamente quem está no trono papal. Por isso, uma gravíssima questão de consciência se impõe a todos os católicos.”
Depois de lembrar os apelos não respondidos senão pela escalada nos erros conciliares, diz:
“Este desprezo pela verdade não revela a apostasia da fé e a ausência do autêntico pastor? Será que um poder anticatólico ocupa o Santo Redil e impede seu chefe terreno de defendê-lo? Ou será que este aderiu a novas doutrinas, renunciando por si mesmo à autoridade que lhe foi dada por Nosso Senhor para defender e confirmar a sua grei na Sua Doutrina?

Quem se separa da cabeça visível da Igreja, o papa, separa-se dela, excluindo-se por si mesmo da salvação. Mas isto não vale para todos quando a separação afeta a unidade e a continuidade da Fé na Igreja instituída por Cristo, onde todos, o papa, a hierarquia, o clero, a liturgia, o código canônico, se definem católicos por estar a serviço da Fé íntegra e pura revelada por Deus?

O cardeal Journet, citando Caietano (II, II, 39, 1), explica que o axioma — onde está o papa está a Igreja — vale quando o papa se comporta como papa e chefe da Igreja; caso contrário, nem a Igreja está nele nem ele na Igreja. Para São Roberto Belarmino (De Romano Pontefice, 1, 2, 30): ‘O papa herege manifesto deixa por si mesmo de ser papa e cabeça, do mesmo modo que deixa de ser cristão e membro do corpo da Igreja’. São Vicente Ferrer, no seu Tratado do cisma moderno, compara a obediência e honra prestados a um falso papa, ao culto a um ídolo estrangeiro (1a. p., c. 1). Podemos ser fiéis a Deus seguindo guias de fidelidade duvidosa?”
A instância termina lembrando que nestas circunstâncias cabe a quem está na Sede de Pedro pronunciar uma inequívoca profissão de Fé católica. E hoje nenhuma profissão de Fé seria mais completa e mais conforme à vontade de Deus que a consagração pedida em Fátima.
Não surpreende que nem esta instância, nem milhares de pedidos relacionados com Fátima chegados ao Vaticano, deixassem de ser atendidos. Pelo contrário, foi dito pelo cardeal Cagnon que todas aquelas cartas atrapalhavam o trabalho dos dicastérios vaticanos e João Paulo II não queria ser pressionado por causa de uma revelação particular.
No verão de 1988 soube-se então que fora comunicado à irmã Lúcia que a consagração da Rússia deveria ser considerada cumprida em 25 de março de 1987 e que não se deveria mais falar nisto porque a situação da Rússia havia melhorado muito nos últimos anos. Também o P. Caillon recebeu uma carta enérgica semelhante.
O arcebispo Lefebvre, que com sua Fraternidade estivera em Fátima, em 22 de agosto de 1987, havia dito sobre o Terceiro Segredo: “Porque queremos guardar a unidade da fé, aqueles que estão em vias de perdê-la nos perseguem. Porque os desobedecemos não querendo perder a fé, os que nos querem afastar dela nos perseguem.” Dias depois escrevia aos sacerdotes que convidava para serem consagrados bispos sem permissão de Roma:
“A Sede de Pedro e os lugares de autoridade de Roma estando ocupados por anticristos, a destruição do Reino de Nosso Senhor continua rapidamente no interior mesmo de seu Corpo místico da Terra, especialmente pela corrupção da Santa Missa, expressão esplêndida do triunfo de Nosso Senhor pela Cruz, 'Regnavit a ligno Deus', e fonte da propagação de seu Reino nas almas e na sociedade.”
Assim, parece com evidência a absoluta necessidade da permanência e da continuação do sacrifício adorável de Nosso Senhor para que “o seu Reino venha.” A corrupção da Santa Missa levou à corrupção do sacerdócio e à decadência universal da fé na divindade de Nosso Senhor Jesus Cristo.
Com a premissa dos anticristos em Roma, que perdem a fé e desviam o mundo católico, o arcebispo prosseguiu no intento de consagrar os quatro bispos. Quando isto se deu em Écone, no dia 30 de junho de 1988, João Paulo II, que opera para “realizar a Igreja como sacramento da unidade sinfônica das múltiplas formas de uma só plenitude”, que convida à grande comunhão universal de todas as religiões e crenças, excomungou o arcebispo fiel com os seus seguidores que ainda o reconheciam como papa. Era o cisma da perestroika conciliar.
Nesse mesmo dia João Paulo II recebe no Vaticano um grupo de jornalistas soviéticos, a quem diz: “Certamente há um clima de perestroika que seguimos com interesse. Esta democratização, esta maior participação dos cidadãos na vida política e social, não só satisfaz as expectativas do Ocidente... como corresponde também à doutrina social da Igreja.”
Ora, o líder soviético Gorbachev, pai da atual perestroika, diz: “A nossa inspiração vem de Lênin. São as idéias de Lênin que alimentam a nossa filosofia das relações internacionais e o novo modo de pensar.” O que têm a ver as trevas com a luz? Cristo com Belial?
Será que alguém pode crer que na nova dialética do regime soviético, nesta perestroika leninista, reside a conversão da Rússia para a qual Nossa Senhora pediu na consagração? Na linha do Vaticano II, depois da abertura ao protestantismo, à maçonaria, ao judaísmo, à democratização da religião, agora querem impingir aos católicos também as idéias do sanguinário Lênin recicladas com doutrina social da Igreja?
Estamos diante de fatos abissais. Mas, animados pela fé com que pastorzinhos derrubaram gigantes, guiaram reis e advertiram papas, devemos testemunhar desassombradamente a profecia de nossos tempos que contém o selo inestimável da vontade de Deus. O colosso revolucionário ocupou a Igreja e pontifica o erro por toda a Terra, seduzindo com uma solidariedade pacifista e sincretista que é ofensiva a Cristo Senhor. Mas em Fátima Ele colocou a pedrinha predita pelo profeta Daniel, que destruirá o leviatã infernal.


“POR FIM, O MEU IMACULADO CORAÇÃO TRIUNFARÁ”
Esta frase de Maria Virgem aos pastorzinhos de Fátima repete com outras palavras o que Jesus Cristo, Filho de Deus vivo disse referindo-se à Sua Igreja que assim O confessa pura e integralmente — AS PORTAS DO INFERNO NÃO PREVALECERÃO CONTRA ELA.
No dogma da Imaculada Conceição resplende a síntese dos dogmas católicos, como ensinava São Pio X: “Creiam os povos e confessem abertamente que Maria Virgem, desde o primeiro instante da sua concepção, foi isenta de toda mancha; com isto, será necessário admitir também o pecado original e a redenção dos homens por obra de Cristo, o Evangelho, a Igreja e até a própria lei da dor. Depois disto, tudo o que tem sabor de racionalismo e de materialismo será arrancado e destruído e resta à doutrina cristã o mérito de guardar e defender a verdade.” (Revista Sodalitium, n.º 5)
Essas verdades de fé constituem o fundamento de toda caridade, contra a qual vai o naturalismo com seus racionalismos e materialismos. A natureza dos homens, seres racionais, não pode prescindir na vida material da verdade e do amor, para evitar de embrenhar-se nos caminhos da degradação e da autodestruição, também na ordem natural. Mas sem a graça o potencial da mente decaída não consegue nem mesmo ordenar-se ao fim que justifica a vida terrena, nem preservar o valor do irrepetível sopro de verdade e de amor que cada um representa e deve salvar para restituí-lo ao Criador na eternidade.
O cristão sabe que o reino da verdade e do amor que perdemos com o pecado original, é sobrenatural. Mas, desde que foi trazido à Terra pela Encarnação de Quem é Verdade, Caminho e Vida, também a dignidade da sobrevivência no mundo depende de tudo instaurar Nele. Há que tomar consciência dessa verdade e agir com essa caridade. Para isto Nosso Senhor deixou-nos, como sinal visível de Sua presença na Terra, a Igreja, Esposa Imaculada, a cujos cuidados maternais, alimentação espiritual e modelo caritativo fomos confiados.
E todavia vemos hoje que a sagrada hierarquia eclesial malogrou pelo resfriamento da caridade na Igreja que foi medido pelo termômetro de Fátima. Nossa Senhora, aparecendo em 1917, mostrava o início de uma luta decisiva e final. A revolução tomava conta da Rússia para espalhar-se pelo mundo, enquanto na Igreja propendia-se a diplomacias e compromissos confiando em projetos humanos e limitando o recurso sobrenatural oferecido em Fátima. E foi assim que tanto o avanço da Rússia como o recuo da hierarquia assumiram proporções espantosas, mas que se pretende ainda ocultar, como o Terceiro Segredo.
Parecia certo aos católicos que toda a hierarquia da Igreja não poderia malograr, assim como aos antigos judeus parecia impossível que o Templo pudesse ser destruído. Hoje sabemos que só houve duas testemunhas episcopais que tiveram a caridade de avisar os fiéis que se atentava contra a fé na própria Roma, demolindo o Templo cristão.
O arcebispo Marcel Lefebvre fundou a Fraternidade São Pio X para continuar a formação do sacerdócio fiel à doutrina e liturgia tradicionais da Igreja. A estas continuou fiel a Diocese de Campos, enquanto d. Antônio de Castro Mayer ainda se manteve seu bispo, passando à resistência depois de sua demissão, a pedido de João Paulo II.
A Igreja da fé, esperança e caridade está ferida e humilhada como Nosso Senhor na Sua Paixão, e o mundo está sendo tomado pelo ateísmo, pelo materialismo e pelo comunismo, erros que a Rússia continua espalhando sem resistência real das nações. No vazio de fé, esperança e caridade todos os males podem avançar e dominar. Só voltando os olhos e as vontades do reino da verdade e do amor será possível vencer tanto engano e ódio diabólicos. Como fazê-lo?
Se fomos confiados à Igreja que está hoje crucificada, sabemos que Maria está ao pé da Cruz, Stabat Mater, para recolher seus pobres filhos dispersos pelas insídias da fera que sobe do abismo que foi aberto, levando-os para o retiro de penitência preparado no deserto. Isto o Imaculado Coração de Maria confirmou em Fátima aos pastorzinhos que se santificaram pelos meios recebidos, conquistando também graças para os seus e para a Igreja de Portugal. Imitemo-los.
Deve-se lembrar antes de tudo que sem a fé não se agrada a Deus e só a defendendo e conservando-a íntegra e pura pode-se atender às devoções e cumprir a consagração pedida em Fátima. Nada melhor para preservar essa fé contra o naturalismo do mundo que os dogmas marianos. Foi o que ensinou São Pio X e o Imaculado Coração de Maria veio suavemente confirmar junto às comunhões reparadoras dos primeiros sábados.
Se hoje vivemos a autodemolição da Igreja, que é a perseguição da fé no seu interior, saibamos entender a preciosa indicação que precede o terceiro segredo, parte da mensagem onde isto é certamente descrito: “Em Portugal se conservará sempre o dogma da fé (...).” Significa que no espírito de Fátima, reparador das ofensas a Deus e confiante nas promessas do Imaculado coração, pode-se perseverar sempre na fé e por ela preparar a restauração da Igreja.
A mensagem de Fátima alimenta a fé e, junto com esta, a esperança. Por ela sabemos o epílogo das guerras e perseguições de nossos tempos tenebrosos: “Por fim, o meu Imaculado Coração triunfará. O Santo Padre consagrar-Me-á a Rússia, que se converterá, e será concedido ao mundo algum tempo de paz.” Na crise atual da Igreja isto pode parecer um fato tão incrível como a conversão do império romano ao cristianismo no tempo de Constantino. Mas assim será, e nesse triunfo muitas almas se salvarão e a cristandade será restabelecida.
A fé e a esperança, porém, são mortas sem a caridade, e esta foi resfriada pela multiplicação da iniqüidade e da sedução dos falsos profetas, que desviaram a glória de Deus segundo Sua vontade. Esta está no cumprimento da mensagem de Fátima: “Porque quero que toda a Minha Igreja reconheça essa consagração como um triunfo do Coração Imaculado de Maria, para depois estender o seu culto e pôr, ao lado da devoção do Meu divino Coração, a devoção deste Imaculado Coração.” Ao reino dos Sagrados Corações chega-se só pela mensagem que, representando a vontade de Nosso Senhor, deve atrair-nos antes de tudo mais. Procuremos primeiro o Reino de Deus e sua Justiça e o resto nos será dado por acréscimo.
Pelo amor e dedicação à mensagem maternal de Maria, cujo conhecimento integral e divulgação universal queremos promover, estaremos perseverando na fé, esperança e caridade católicas que testemunham o poder mediador de Nossa Senhora, único que pode dar paz ao mundo. Neste amor devemos intensificar nossas orações, rosários e penitências pedidos, a devoção da comunhão reparadora dos cinco primeiros sábados e o terço quotidiano. Tudo isto não é mais que uma gota de reparação num espantoso incêndio de ofensas a Deus, às quais se juntou o descaso pela mensagem salvadora de Maria Santíssima dada há setenta anos e ainda incompletamente conhecida, honrada e amada.
Despertemos, cristãos, o tempo está sempre mais próximo! Voltemos à fé, ao nosso Rei Jesus Cristo, à Virgem Vencedora, à Igreja, à Idéia Divina, única que nos pode defender e salvar. Já muito tempo passou depois daquele aviso precioso: “Se não atenderem a meus pedidos, [a Rússia] espalhará seus erros pelo mundo, promovendo guerras e perseguições à Igreja.” Já muitos bons foram martirizados, já de muitos modos sofreu e sofre o Santo Padre.
E continuam sendo aniquiladas muitas nações.
A Santa Mãe desvelou a visão espantosa do Inferno aos pastorzinhos. Se nossos olhos não conseguem vislumbrá-lo, pensemos ao menos nos horrores das guerras fratricidas, nos genocídios e fomes. Pensemos nas gloriosas nações apagadas do mapa, pensemos nas civilizações antigas suprimidas e nos povos altivos oprimidos como escravos. Que é feito da Ucrânia, batizada há mil anos e cujo rei era coroado em Roma? E a Lituânia, que se estendeu no passado até o mar Negro? E a Polônia, e a Letônia, Hungria e Tcheco-Eslováquia? Mas se estas nações européias e a própria Rússia não tocam nossos sentimentos, sensíveis até às tragédias de hoje, que dizer do Vietnam, da Etiópia do Camboja onde um quarto da população foi dizimada pela fome, pela doença, por uma letal experiência em nome do comunismo? E o pobre Afeganistão, onde as crianças explodem com os brinquedos soviéticos? Podemos não pensar no hospitaleiro Líbano, hoje dilacerado?
Acaso não vemos que o ódio avança, que o terrorismo se expande pelo mundo, que onde não chegam armas chegam drogas mortais?
Despertemos, cristãos, com nossas famílias. Voltemos a preencher o dia de preces. Invoquemos os Sacratíssimos Corações com amor e confiança. Nesse amor nos voltarão as luzes, e nessas luzes o conhecimento de nosso estado lamentável. Basta de engano. As guerras e perseguições já atingiram a Igreja, invadiram-na. A arca periga, a civilização cristã está soçobrando enquanto os capitães e os marinheiros cantam embriagados e seduzidos por sereias.
Aos fiéis compete, hoje mais que nunca, professar alto e claro a fé íntegra e pura. Em Fátima foi dado um auxílio inestimável para isto. Os filhos de Quem é sabedoria e vitória não podem temer fazê-lo. Como justos, vivem de fé, como filhos, sabem confiar, como devotos que têm por mestre a caridade, compreendem o quanto devemos todos reparar pela avalancha de ofensas a Deus e pelos que não crêem, não amam, não esperam e adoram só a si mesmos.
Desde que foi dado aos homens o sinal celeste de Fátima, advertindo das guerras e perseguições causadas pelos pecados dos homens e crimes do mundo, a responsabilidade de todos aumentou, mas especialmente dos fiéis. A mensagem foi dada ao mundo, e o mundo não a conheceu. Foi dada à Igreja, mas os seus não a acolheram, aumentando o débito e diminuindo os recursos. Foi assim que sobreveio a Grande Guerra e depois desta multiplicaram-se os impulsos de auto-destruição da humanidade. Para quem, como Paulo VI, via na ONU a última esperança de paz, só ficaram a ilusão e o terror. Para os católicos não restou ninguém a quem apelar nesta Terra. A oferta de paz da Mãe de Deus fora esquecida, enquanto a mentira e o ódio cancelam a lei divina.
A amnésia conciliar conduz à crise, as reciclagens sinodais ao desvario. Um cataclisma desolador pende sobre a arrogância humana.
Reconheçamos ao menos o silêncio divino diante de nossa decadência, irreparável sem a graça, e multipliquemos nossas orações impetrantes e nossas penitências reparadoras. Este é o testemunho indispensável que cada um pode dar seguindo as devoções de Fátima a fim de que a mensagem de Maria Santíssima seja conhecida por inteiro e assim divulgada, honrada, cumprida e amada. Nisto está a vontade de Deus, que quer ver reconhecido o triunfo do Imaculado coração de Maria.
Para reforçar este testemunho indispensável nos foi dado o testamento de Fátima, que já em 1917 selava numa mensagem a descrição do estado lamentável a que chegaríamos pela oposição e indiferença à vontade divina.
Merecemos hoje as palavras de Jesus aos fariseus que lhe pediam um sinal: “Esta geração perversa e adúltera será condenada pelos ninivitas no dia do juízo, porque eles se arrependeram com a pregação do profeta Jonas, e aqui está quem é mais que Jonas.”
Tudo foi profetizado para o triunfo final da fé. Quando a Igreja testemunhar isto, revelando e acolhendo integralmente o inestimável testemunho de Fátima, poderemos merecer a atuação de Deus, que, por fim, suscitará o papa, que fará a consagração pedida para enviar-nos então a estrela da manhã, a luz nas trevas que cobrem a verdade pela impiedade e injustiça que invadiram até a Igreja.


Neste testemunho fiel do Signum magnun de Fátima estaremos participando do triunfo da Mãe que tudo restaurará no amor e na paz de Cristo Rei.


OBRAS CITADAS e Abreviações

DOC      
Documentos de Fátima, Pe. Antônio M. Martins S.J., Porto, LE, 1976.

NDOC  
Novos... mesmo autor, Livraria Apostolado da Imprensa, Porto, 1984.

FGS       
Fatima the Great Sign, Francis Johnston, Augustine Publ. De-von, 1980.

LFV       
La Verdad sobre Fátima, Pe. Federico Gutierrez CMF. Ed. Coculsa, Madrid, 1966.

FPM     
Les Faits de Paray — le Monial, Pe. Jean Ladame, Ed. Saint Paul, Paris Fribourg, 1970.

IP           
Insegnamenti Pontifici, Coletânea dei Monaci di Solesmes, Ed. Paoline, Roma, 1957-1963.

MM      
Pio VII per un Mondo Migliore, Pe. Ricardo Lombardi S.J., Ed. Civiltá Cattolica, Roma, 1954, 2.ª Ed.

RSP       
Réclamation au Saint-Père, Jean Madiran, Nouvelles Editions Latines, 1974.

TF          
Teologia de Fátima, vários autores, Ed. Coculsa, Madrid, 1961.

POT      
The Prophets and our Times, Rev. R. Gerald Culleton, Tan Books, Rockford, Illinois, 1974.

SF          
The Secret of Fátima, Fact and Legend, Pe. Joaquim Maria Alonso, CMF. The Ravengate Press, Cambridge, 1979.

TSF        
The True Story of Fatima, Pe. John de Marchi, JMC. Ed. William Fay, St. Paul 2, Minnesota, 1952.

TVF       
Toute Ia Verité sur Fátima, Frère Michel de la Sainte Trinité, Renaissance Catholique, Contre-réforme Catholique, 10260, Saint-Parres-Les-Vaudes, 1983-1985 (3 vols.).

SAC       
Sant’Atanasio e la Chiesa del Nostro Tempo, Mons. Rudolf Graber, Vescovo di Ratisbona, Ed. Civiltà, Brescia, 1974.

CD         
La Città di Dio, Santo Agostinho, Ed. Paoline, Roma, 1979.

SS          
Il Senso Cristiano della Storia, Dom P. Guéranger, Ed. II Falco, Milano, 1982.

HU        
Histoire Universelle, Discours sur, J.B. Bossuet, Ed. G. Charpentier et Fasquelle, Paris, 1893.

NSF       
Nossa Senhora de Fátima, William Thomas Walsh, Ed. Melhoramentos, São Paulo, 1949.

MF        
Le Message de Fatima, C. Barthas, Fátima - Editions, Toulouse, 1971.

PXI        
Sa Sainteté Pie XI, Mons. R. Fontenelle, Ed. Spes (2n), Paris, 1938.



Periódicos:

Approaches      
Diretor Hamish Fraser † (17/out/1986), Waverley Place, Saltcoats, Ayrshire, Scotland.

Chiesa Viva       
Diretor Sacerdote Dr. Luigi Villa, Ed. Civiltà; via G. Galilei 121, 25124 Brescia, Itália.

Si si No no          
Roma 00049, Velletri, Diretor Sacerdote Francesco Putti † (21 dez. 1984).




1 Os algarismos entre colchetes representam a paginação original do livro.

2 Há indicações confirmando que o rei Luís XIV recebeu o pedido do Sagrado Coração através — se não do padre La Chaise, provavelmente contrário a devoções que solicitassem demais a fé de um rei pouco religioso — da princesa Maria Beatriz d'Este, muito estimada por Luís XIV e que, tornando-se religiosa visitandina, esteve em estreito contacto com Sta. Margarida Maria. Note-se que o rei, que não atendeu ao pedido ao Sagrado Coração, em 1696 apresentou à Santa Sé o pedido de uma missa ao Sagrado Coração de Jesus, devoção que certamente provinha do convento de Paray-le-Monial e provavelmente por intercessão da princesa d'Este.

3 Dia 4 de junho de 1951, por ocasião da consagração da igreja romana de Santo Eugênio, realizada como oferecimento a Pio XII (Eugênio Pacelli), e onde há um altar de Fátima doado pelos portugueses, peregrinos vindos de Portugal saudaram o papa dizendo: "Viva o papa de Nossa Senhora de Fátima!" A isto respondeu Pio XII, sorrindo: "Nós o somos!" (ref. do padre G. da Fonseca, S.J. — TF, p.12).

4 Ano Santo de Fátima, 13 de outubro de 1951, em La verdad sobre Fátima, p. 190-191. Observou-se que nos três dias do triduum, a estátua peregrina de Fátima havia estado em Roma (MF, p. 29). Lembremos, porém, que os sinais celestes se destinam a incentivar a ação fiel, mais que a premiá-la.

5 Tradução de Si si no no, ano IV, n.º 9.

6 O cardeal Villot, acusado de ser inscrito desde 6-8-1966 com o nome de Jeanni na loja 041/3, negou-o ao jornal La Croix, Paris. Do mesmo modo, negou-o ao diretor da revista Lectures Françaises em 31-10-1976, depois que esta publicou documentação a respeito.

7 Apontado como maçom, com início em 23/4/58.

8 Reproduzido de Si si no no, 1/11/1978.

9 Reproduzida de Si si no no, ano V, n.º 5, maio de 1979.

10 Reproduzido de Chiesa Viva, n.º 14.

11 Monsenhor Darboy, enquanto ia sendo arrastado para o muro de fuzilamento, protestava dizendo que havia sempre defendido a liberdade. "Cala-te!" disse um dos executores comunardos — "A tua liberdade não é a nossa!" (La conjuration antichrétienne, monsenhor Henri Delassus, nota do Vol. II, p. 491).

12 Bispo de Grenoble na época da aparição de La Salette, o octogenário monsenhor Filiberto de Bruillard, há vinte anos no cargo, era considerado uma das mais belas figuras do alto clero francês. Seu comportamento aristocrático era temperado por grande generosidade e zelo pastoral, que o tornavam amigo dos pobres e doutor de seus sacerdotes. Foi ordenado em setembro de 1789 e logo depois colocado diante da escolha de prestar juramento à nova constituição ou emigrar. Evitou a primeira, mas permaneceu na Paris sacudida pela revolução. Havia escolhido uma missão heróica: embora procurado e ameaçado pelo regime revolucionário, foi um daqueles capelães que, disfarçados e misturados na multidão, seguiam os condenados à guilhotina esperando o momento para uma furtiva absolvição sacramental.
Consta que o "Sr. Filiberto" conseguiu assistir à morte de Luís XVI e conseguiu dar a absolvição à Maria Antonieta ao longo do percurso feito pelo carro da condenada à morte. Mas, além dos reis dedicou-se também à assistência religiosa dos doentes e moribundos.
Quanto a La Salette, já em dezembro de 1846 esse bispo nomeou duas comissões de canônicos e de professores, para examinar a fundo o evento. O resultado positivo foi aprovado pelo bispo em 19 de setembro de 1851 e lido do púlpito em toda a diocese de Grenoble.
Em maio de 1852, apesar de seus 87 anos, monsenhor de Bruillard subiu a cavalo as alturas da montanha da aparição para colocar a primeira pedra do santuário dedicado a Nossa Senhora de La Salette. Para assisti-lo, fundou também uma casa de missionários. Roma já havia aprovado tudo isto desde outubro de 1851.
Depois de ter-se assegurado do andamento dessa obra mariana e do encaminhamento ao papa Pio IX do segredo dado aos videntes, que, aliás, não quis conhecer antes do santo padre, apresentou sua demissão para retirar-se ao silêncio da oração. Em 1856, 30.º aniversário de sua consagração episcopal, subiu ainda Salette para rezar junto aos peregrinos de todo o mundo.
O venerável monsenhor de Bruillard morreu tranqüilamente em 12 de dezembro de 1860, com noventa e dois anos.


13 Reproduzido de Si si no no, nov. 1980.

14 Reproduzido de Si si no no, maio de 1981.

15 “Deus torna loucos aqueles que deseja perder”.

16 Reproduzido de Si si no no, n.º 8, ano X, jun-84.

17 Reproduzido de Si si no no, n.º 6, ano X, maio-84.