quarta-feira, 30 de agosto de 2017

Sto. Afonso de Ligório - A Selva - SEGUNDA PARTE MATERIAIS PARA AS INSTRUÇÕES - audiolivro



SEGUNDA PARTE

                MATERIAIS PARA AS INSTRUÇÕES

PRIMEIRA INSTRUÇÃO,

                Sobre a celebração da Missa

§ I
                Importância do santo Sacrifício e cuidado que ele exige do padre

                Todo o pontífice eleito dentre os homens é estabelecido a favor dos homens, para desempenhar as funções do culto divino, e oferecer dons e sacrifícios em expiação dos pecados. Oferecer sacrifícios, eis pois o fim para que Deus colocou o padre na sua Igreja; é propriamente a função dos sacerdotes da lei da graça, aos atuais foi dado o poder de oferecer o grande sacrifício do Corpo e Sangue do próprio Filho de Deus; sacrifício supremo e perfeito, infinitamente acima dos sacrifícios antigos, que outro mérito não tinha outrora senão o de serem desse a sombra e figura. As vítimas que então se imolavam eram novilhos e bodes; hoje a nossa Vítima é o Verbo eterno feito homem.

                Por isso mesmo, os sacrifícios da lei antiga não tinham poder algum; também o apóstolo os chama observâncias defeituosas e incapazes; o nosso, ao contrário, tem o poder de operar a remissão das penas temporais devidas ao pecado, e além disso - ao menos mediatamente, - de aumentar a graça e obter socorros mais abundantes àqueles por quem é oferecido. O padre que não está compenetrado da grandeza do sacrifício da missa, jamais o oferecerá como deve. Nada fez de maior na terra Jesus Cristo. É a missa a ação mais santa e mais agradável a Deus que se pode realizar, tanto em razão da Vítima oferecida, que é Jesus Cristo, Vítima duma dignidade infinita, como em razão do sacrificador principal, que é o mesmo Jesus Cristo, a oferecer-se pela mão dos sacerdotes, como no-lo ensina o Concílio de Trento.

                E São João Crisóstomo diz paralelamente: Quando virdes o sacerdote a oferecer o sacrifício, não penseis no padre, representai-vos antes a mão de Jesus Cristo que obra dum modo invisível.

                Todas as honras que têm prestado a Deus os anjos com as suas homenagens, e os homens com as suas virtudes, austeridades, martírios e santas obras, não podem render a Deus tanta glória como uma só missa; porque todas as homenagens das criaturas são finitas, ao passo que a que se presta a Deus com o sacrifício dos nossos altares, é dum valor infinito, por lhe ser prestada por uma pessoa divina. Necessário é pois reconhecer com o Concílio de Trento que a missa é de toda as obras a mais santa e divina.

                É pois o sacrifício da missa a obra mais santa e agradável a Deus, como acabamos de ver; é a obra mais capaz de aplacar a cólera de Deus contra os pecadores e abater as forças do inferno; é a obra que obtém graças mais abundantes para os homens na terra, e maior alívio para as almas do Purgatório; é finalmente a obra a que está ligada a salvação do mundo inteiro, segundo o pensamento de Santo Odon, abade de Cluni. E Timóteo de Jerusalém diz que é à missa que a terra deve a sua conservação; a não ser ela, os pecados dos homens a teriam há muito aniquilado.

                Segundo São Boaventura, em cada missa faz o Senhor ao gênero humano um benefício não inferior ao que lhes dispensou, fazendo-se homem. O que é conforme com a célebre exclamação de Santo Agostinho: Ó dignidade venerável a dos sacerdotes, entre cujas mãos o Filho de Deus encarna, como encarnou no seio da Virgem! De mais, não sendo o sacrifício do altar senão a aplicação e renovação do sacrifício da cruz, Santo Tomás ensina que, para o bem e salvação dos homens, tem cada missa toda a eficácia do sacrifício da cruz. E São João Crisóstomo escreveu: A celebração da missa tem o mesmo valor que a morte de Jesus Cristo na cruz. A Igreja plenamente confirma esta verdade, quando diz nas suas orações: Cada vez que se celebra no altar a memória deste sacrifício, renova-se a obra da nossa redenção. De fato, ajunta o Concílio de Trento, o mesmo Redentor, que se ofereceu por nós na cruz, é quem se oferece no altar por ministério dos sacerdotes.

                Numa palavra, segundo a expressão do profeta Zacarias, é a missa o que há de mais excelente e belo na Igreja: Que há de bom, que há de belo, senão o pão dos escolhidos e o vinho que gera virgens? No sacrifício da missa, dá-se Jesus Cristo a nós, mediante o sacramento do altar, que é o fim e consumação de todos os outros sacramentos, como ensina o Doutor angélico. Razão tem pois São Boaventura em chamar à missa o resumo de todo o amor divino e de todos os benefícios de que o Senhor há cumulado os homens. Eis por que o demônio sempre se tem esforçado por arrebatar ao mundo a santa missa por meio dos hereges, como por tantos outros precursores do Anticristo que, antes de tudo, cuidará de abolir e de fato abolirá, em punição dos pecados dos homens, o sacrifício do altar, segundo esta profecia de Daniel: Por causa dos pecados, ser-lhe-á dada força contra o sacrifício perpétuo.

                Grande razão tem pois o Concílio de Trento para exigir que os padres ponham todo o seu cuidado, em celebrar a missa com a máxima devoção e pureza de coração que seja possível. Como não menos razão adverte no mesmo lugar, que é precisamente sobre os padres, que celebram com negligência e sem devoção, que recai a maldição anunciada por Jeremias: Maldito o que faz indignamente a obra do Senhor! Segundo São Boaventura, celebra-se ou comunga-se indignamente, quando se chega ao altar com pouco respeito e consideração. Assim, para evitarmos essa maldição, examinemos o que deve fazer o padre antes, durante e depois da celebração da missa: preparação, antes de celebrar; respeito e devoção, enquanto celebra; ação de graças, depois de celebrar. São obrigações indispensáveis para o sacerdote. Segundo o pensamento dum servo de Deus, deveria a vida dum padre ser apenas uma preparação para a missa e uma ação de graças.

§ II
                Preparação para a Missa

                Em primeiro lugar, deve o padre fazer a sua preparação antes de subir ao altar.

                Antes de mais nada, pergunto a mim mesmo como é que, havendo no mundo tantos padres, haja tão poucos santos? A missa é chamada por São Francisco de Sales um mistério inefável, que encerra um abismo de caridade divina. Além disto, São João Crisóstomo dizia que o sacramento do altar contém o tesouro inteiro da bondade de Deus. Sem dúvida a sagrada Eucaristia foi instituída para todos os fiéis, mas é um dom especialmente feito aos padres. Não vades, diz o Senhor aos padres, dar a coisa santa aos cães, nem lançar as vossas pérolas a suínos. Notem-se estas palavras: As nossas pérolas. Dá-se em grego o nome de pérolas às espécies sacramentais; e essas pérolas são apontadas aqui como pertença própria dos ministros do altar: Margaritas vestras. Sendo assim, todos os padres deveriam, segundo São João Crisóstomo, descer do altar com um coração todo abrasado do amor divino, a ponto de serem um objeto de terror para o inferno.

                Mas não é isso o que se vê: observa-se que a maior parte descem do altar sempre mais tíbios, mais impacientes, mais soberbos, mais invejosos, mais apegados às honras, ao interesse e aos prazeres terrenos. Não é por falta do alimento que tomam no altar, nota o cardeal Bona, porque, no dizer de Santa Maria Madalena de Pazi, bastaria recebê-lo uma só vez para ficar santo; é pela falta de preparação para celebrar a missa.

                Há duas espécies de preparação: uma remota e outra próxima.

                A preparação remota consiste na vida pura e virtuosa, que deve ter o padre para celebrar dignamente. Se dos sacerdotes antigos Deus exigia a pureza, só porque deviam transportar os vasos sagrados, - quanto não deverá ser mais puro e santo, observa Pedro de Blois, o padre que deve trazer nas suas mãos e no seu coração o Verbo encarnado! Mas, para ser puro e santo, não lhe basta estar livre das cadeias do pecado mortal, é necessário que esteja isento de pecados veniais; (plenamente deliberados, entende-se) de contrário, Jesus Cristo não o admitirá a ter parte consigo. Guardemo-nos, diz São Bernardo, de fazer pouco caso dessas faltas; pois, como foi dito a Pedro, se não formos purificados por Jesus Cristo, não teremos parte com ele. Necessário é portanto que todas as ações e todas as palavras do padre, que quer celebrar missa, sejam bastante santas, para lhe servirem de preparação.

                A preparação próxima exige primeiramente a oração mental. Como quereis que celebre com devoção a santa missa o sacerdote, que sobe ao altar sem primeiro ter feito a sua meditação? Dizia o venerável João de Ávila que o padre deve fazer ao menos hora e meia de oração mental antes da missa. Eu me contentaria com meia hora e, para alguns até com um quarto de hora, ainda que um quarto de hora é muitíssimo pouco.

                Há tão belos livros de meditações preparatórias para a santa missa! A missa é uma representação da paixão de Jesus Cristo. Por isso com razão o papa Alexandre I disse que sempre nela se deve comemorar a paixão do Salvador. E foi o que prescreveu o Apóstolo: Todas as vezes que comerdes esse pão e beberdes esse cálice, anunciareis a morte do Senhor. Segundo Santo Tomás, o Redentor instituiu o sacramento do altar, para conservar sempre viva em nós a lembrança do amor que nos testemunhou, e do grande benefício que nos alcançou a sua imolação na cruz. Ora, se todos os homens se devem lembrar continuamente da paixão de Jesus Cristo, - com quanta mais razão o padre, quando vai renovar, ainda que dum modo diferente, o mesmo sacrifício no altar!

                Ao padre não lhe basta ter feito a sua meditação; importa-lhe que antes de celebrar se recolha sempre ao menos alguns instantes e considere bem o que vai fazer; foi o que ordenou a todos os padres o primeiro Concílio de Milão, no tempo de São Carlos Borromeu.

                Ao entrar na sacristia, deve o celebrante despedir-se de todos os pensamentos do mundo e dizer com São Bernardo: Cuidados, negócios, esperai por mim aqui; eu e o meu servo, isto é a minha razão com a minha indigência, vamos ali adorar a Deus, e logo voltaremos a ter convosco; pois voltaremos, ai!, e demasiado cedo. São Francisco de Sales escrevia a Sta. Joana de Chantal: "Quando me volto para o altar para começar a missa, perco de vista todas as coisas da terra". Postos de parte pois todos os pensamentos do mundo, não deve o padre ocupar-se então senão da grande obra, que vai fazer e do pão celeste, de que vai alimentar-se a essa mesa divina: Quando estiveres sentado à mesa do príncipe, considera atentamente as iguarias que te são servidas.

                Pense o padre que vai chamar do Céu à terra o Verbo feito homem, para se entreter familiarmente com ele no altar, para o oferecer de novo ao Padre eterno, e para enfim se alimentar da sua carne sagrada.

                O venerável João de Ávila, antes de subir ao altar, procurava excitar-se ao fervor, dizendo: "Eis que vou consagrar o Filho de Deus, tê-lo nas minhas mãos, falar-lhe, tratar com ele e recebê-lo no meio seio".

                Deve também o padre considerar que sobe ao altar na qualidade de mediador, para interceder por todos os pecadores, como diz São Lourenço Justiniano. Se está colocado entre Deus e os homens, de Deus obterá para estes as graças de que necessitam. É por essa razão, observa Santo Tomás, que se dá o nome de missa ao sacrifício do altar. Na Lei antiga, só ao sumo sacerdote era permitido entrar no Santo dos Santos, e isso uma só vez por ano; mas hoje, diz São Lourenço Justiniano, a todos os padres é dado oferecer cada dia o Cordeiro divino, para obterem para si próprios e para todo o povo as graças de Deus. Donde São Boaventura conclui que o celebrante se deve propor três fins: honrar a Deus, comemorar a paixão do Salvador, e obter graças para toda a Igreja.

§ III
                Respeito e devoção com que se deve celebrar

                Em segundo lugar, é necessário que o sacerdote celebre a missa com respeito e devoção. Sabe-se que o uso do manípulo foi introduzido, para que o padre enxugasse as lágrimas; porque outrora tais sentimentos de devoção experimentavam os sacerdotes, ao celebrarem, que não faziam senão chorar. Já dissemos que o padre ao altar é o representante do próprio Jesus Cristo, como escreveu São Cipriano. É nesta qualidade que diz: Hoc est corpus meum; hic est calix sanguinis mei. Mas, ó Céu! Que lágrimas, que lágrimas de sangue se deveriam chorar, quando se pensa no modo como a máxima parte dos padres celebram a missa! Causa pena, digamo-lo, ver o desprezo com que Jesus Cristo é tratado por tantos padres, até religiosos, e pertencentes a Ordens reformadas!

                Ao ver-se a negligência com que esses padres de ordinário dizem a missa, bem se lhes poderia fazer a censura que Clemente de Alexandria dirigia aos sacerdotes pagãos: que faziam do Céu um teatro, e de Deus o objeto da sua comédia.

                E que direi? Uma comédia! Ó, se eles tivessem um papel a representar no teatro, que cuidado empregariam! Ao contrário, que fazem eles ao altar? Truncam palavras, fazem genuflexões que mais parecem atos de desprezo e faltas de respeito; traçam bênçãos que não se sabe o que são; esboçam gestos ridículos; falam às rubricas, antecipando cerimônias e misturando-lhes palavras. E no entanto a verdade é que essas rubricas todas são de preceito, por isso que São Pio V, na bula que pôs à frente do missal, manda districte, in virtute sanctae obedientiae, que a missa seja celebrada segundo as rubricas do missal. Donde resulta que quem transgride as rubricas não pode eximir-se de pecado, que será grave desde que a matéria o seja.

                Tudo isso procede do desejo de chegar de pressa ao fim da missa. Celebram-na como se a igreja estivesse a desabar, ou como se os bandidos se avizinhasse e não restasse tempo para a fuga.

                Eis um padre que, depois de ter dado horas inteiras a uma vida inútil, ou a negócios mundanos, lá vai a celebrar a missa todo apressado!

                Começa com precipitação, prossegue do mesmo modo; chega à Consagração, toma Jesus Cristo nas suas mãos, e comunga-o com tanta irreverência como se ali só houvesse um bocado de pão! Seria necessário que tais padres sempre tivessem ao seu lado alguém, para lhes dizer o que um dia o venerável João de Ávila, chegando-se ao altar em que celebrava um desses, lhe disse: "Por piedade tratai-o melhor, que é o filho dum pai respeitável".

                Queria o Senhor que os sacerdotes da Lei antiga tremessem de santo respeito ao aproximarem-se do santuário. E um sacerdote da Lei nova, achando-se ao altar, em presença do próprio Jesus Cristo, a falar-lhe, a tomá-lo nas suas mãos, a oferecê-lo a Deus-Pai, a alimentar-se dele, - mostra-se tão irreverente! Na Lei antiga, ameaçou o Senhor com muitas maldições os sacerdotes que fossem negligentes nas cerimônias desses sacrifícios, que eram apenas uma mera figura do nosso: Se cerrares os ouvidos à voz do Senhor teu Deus, que te manda guardar as cerimônias, virão sobre ti todas estas maldições... Serás maldito na cidade e maldito nos campos. Dizia Sta. Teresa: "Pela mínima cerimônia da Igreja, daria eu mil vezes a minha vida". E o padre as despreza!

                Ensina o Padre Suarez que a omissão de qualquer cerimônia, na missa, não pode escusar-se de pecado. Muitos doutores ajuntam que uma negligência notável nas cerimônias pode chegar a pecado mortal.

                Na nossa Teologia moral demonstramos, com a autoridade de muitos doutores, que o que celebra em menos de um quarto de hora não pode escusar-se de falta grave, e isto por duas razões: primeira, por causa da irreverência contra o sacrifício, resultante da sua precipitação; segunda, por causa do escândalo que dá ao povo.

                Quanto ao respeito devido ao divino sacrifício, já citamos o que diz o Concílio de Trento: que a missa deve ser celebrada com a máxima devoção possível. E ajunta que a falta de respeito, mesmo exterior, constitui uma irreverência, que de algum modo chega a ser impiedade. Assim como as cerimônias, quando são bem feitas, infundem e significam respeito; também quando são mal executadas denotam irreverência que, em matéria grave, é um pecado mortal. Deve-se notar além disto que, para nas cerimônias haver o testemunho de respeito, que convém a um tão grande sacrifício, não basta fazê-las; porque uma pessoa qualquer poderia ter a língua assás desembaraçada e os movimentos bastante livres para expedir tudo isso em menos de um quarto de hora; mas é preciso que sempre sejam feitas com a gravidade conveniente, que pertence também intrinsecamente ao respeito que se deve ter pela missa.

                Por outro lado, celebrar a missa em tão pouco tempo é falta grave, em razão do escândalo que se dá aos fiéis que assistem a ela. Sobre este ponto, é necessário considerar ainda o que noutro lugar diz o Concílio de Trento: que as cerimônias da missa foram instituídas pela Igreja, para inspirar aos fiéis uma alta ideia deste augusto sacrifício, e toda a veneração devida aos divinos mistérios que encerra. Ora, quando estas cerimônias são feitas muito à pressa, nenhuma veneração inculcam ao povo, antes lhe fazem perder o respeito que merece um mistério tão santo. Observa Pedro de Blois que os padres que celebram com pouco respeito, dão ocasião a que os fiéis façam pouco caso do Santíssimo Sacramento. Não se pode dar um tal escândalo sem se incorrer em pecado mortal.

                Também o Concílio de Tours, em 1583, mandou que os sacerdotes fossem bem instruídos nas cerimônias da missa, para não destruírem a devoção no coração das suas ovelhas, em vez de as levarem à veneração pelos ministérios sagrados.

                Celebrando sem devoção, - como querem esses padres obter de Deus graças, sendo certo que ao oferecerem o santo sacrifício, o ofendam e, quanto deles depende, mais o desonram do que o honram? O padre que não acreditasse no Sacramento do altar, sem dúvida ofenderia a Deus; mas quanto mais o ofende o que nele crê e não só lhe recusa o respeito que lhe é devido, senão que ainda é causa de que outros, à vista da sua conduta, lhe percam igualmente o respeito? Os judeus a princípio respeitaram Jesus Cristo, mas, quando o viram desprezado pelos sacerdotes, perderam então a alta idéia que tinham dele, e acabaram por gritar com os sacerdotes: Tolle, tolle, crucifige eum! Do mesmo modo, para não sairmos do nosso assunto, os seculares que hoje vêem os padres a celebrar com tanta irreverência, perdem toda a estima e veneração por este divino mistério.

                Uma missa, celebrada com recolhimento, inspira devoção aos assistentes; pelo contrário, faz-lhes perder a devoção e quase a fé também, quando celebrada sem piedade. Eis um fato passado em Roma e que me foi contado por um religioso de todo o crédito. Tinha um herege resolvido renunciar aos seus erros; mas, tendo visto celebrar a missa sem devoção, foi ter com o papa e disse-lhe que não queria abjurar, porque estava persuadido de que nem os padres nem o papa tinha na Igreja católica uma fé verdadeira: "Se eu fosse papa, dizia ele, e soubesse que um padre celebrava a missa com tão pouco respeito, mandava-o queimar vivo; ao ver porém que os padres dizem assim a missa e não são castigados, persuado-me de que nem o próprio papa acredita nela". Dito isto, retirou-se, e não consentiu que lhe falassem mais em abjuração.

                Mas objetam certos padres que os leigos se queixam, quando a missa se prolonga. - O quê! Então, lhes respondo eu de pronto, a pouca devoção dos seculares há de ser a regra do respeito devido ao santo sacrifício! Ouçam mais: se os padres celebrassem a missa com o devido respeito e gravidade, os seculares se compenetrariam da veneração a prestar a tão grande mistério, e não lamentariam a meia hora que lhe devessem consagrar. Como porém, de ordinário, a missa é tão breve e nenhuma devoção inspira, os seculares à imitação dos padres, assistem a ela sem devoção, e com pouca fé; quando vêem que ela dura mais de um quarto de hora, aborrecem-se e queixam-se, em razão do mau hábito contraído.

                Assim, os mesmos que sem dificuldade passam muitas horas a uma mesa de jogo, ou numa praça pública, desperdiçando o tempo, não podem sem tédio gastar uma meia hora a ouvir missa! A causa de tudo isso são os padres: É convosco que falo, ó sacerdotes, que desonrais o meu nome e dizeis: Como desonramos nós o vosso nome? Nisso que dizeis: A mesa do Senhor é de pouca importância. O pouco que os padres se importam do respeito devido à missa, faz que também os outros a desprezem.

                Pobres padres! Ao saber que um sacerdote acabava de morrer após a sua primeira missa, o venerável João de Ávila exclamou: "Ó que terrível conta esse padre tem de prestar a Deus, por essa primeira missa!" À vista disso, que se deverá dizer dos padres que, no decurso de trinta ou quarenta anos, cada dia deram ao altar o escândalo de que vimos falando! E, repito, - como poderão tais padres tornar o Senhor propício e obter graças da sua misericórdia, celebrando a missa de modo antes a ultrajá-lo que a honrá-lo? Todos os crimes são expiados pelo sacrifício, diz o papa Júlio, mas por que oferenda se há de reparar a ofensa feita ao Senhor, se é na mesma oblação do sacrifício que se peca? Pobres padres! E pobres bispos que permitem a tais padres celebrarem! Segundo o decreto do Concílio de Trento, são os bispos obrigados a impedir as missas celebradas com irreverência.

                Notem-se estas expressões: Prohibere curent ac teneantur; significam elas que os bispos estão obrigados a suspender os que celebram sem respeito conveniente; e esta obrigação tanto abrange os sacerdotes regulares como os outros, visto que os bispos a esse respeito são constituídos pelo Concílio legados apostólicos, e por isso obrigados a vigiar pelas missas que se dizem nas suas dioceses.

                E nós, padres, irmãos meus, cuidemos de nos corrigir: se no passado temos celebrado o santo sacrifício com pouca devoção e respeito, atalhemos ao mal, ao menos daqui para o futuro. Antes de celebrar, pensemos no que vamos fazer: é a ação maior e mais santa que um homem pode realizar. Demais, que grande bem é uma missa celebrada com devoção, grande bem para o celebrante, e para os ouvintes! - Eis como João Herolt, de sobrenome o Discípulo, fala aos que assistem à missa: Quando fazeis a vossa oração na igreja, na presença de Deus, mais seguramente ela é ouvida... porque todo o sacerdote está obrigado a orar pelos assistentes em cada missa. Ora, se a oração dum secular, quando feita em união com a do celebrante, é mais prontamente ouvida de Deus, quanto mais ainda a do próprio sacerdote, se celebra com devoção! Um padre que oferece todos os dias o santo sacrifício com alguma devoção, há de receber sempre de Deus novas luzes e novas forças.


                Jesus Cristo o instruirá, o consolará, o animará cada vez mais, e lhe concederá as graças que deseja.

                É sobretudo depois da consagração que o padre pode estar seguro de conseguir do Senhor todas as graças que pede. O venerável Padre Antônio Colelis dizia: "Quando celebro e tenho o meu Jesus nas minhas mãos, consigo dele quanto quero". O celebrante obtém o que quer para si e para os que assistem à missa. Lê-se na Vida de São Pedro de Alcântara que as missas fervorosas que celebrava produziam mais fruto, que todos os sermões dos pregadores da província em que estava. Quer o Concílio de Rodez que os padres pronunciem as palavras e façam as cerimônias com uma devoção, que dê testemunho da sua fé e amor para com Jesus Cristo, presente no altar. A compostura exterior, diz São Boaventura, manifesta as disposições interiores do celebrante.

                Recorde-se aqui de passagem o que ordenou Inocêncio III: Nós ordenamos também que os oratórios, os vasos, corporais e alfaias sagradas se conservem em perfeita limpeza; porque é de todo o ponto contrário ao bom senso abandonar as coisas santas a uma imundícia, que não se sofria nem mesmo nas coisas profanas. Ai! Tinha o papa toda a razão para assim falar, porque se encontram padres que não se envergonham de celebrar com corporais, sanguinhos e cálices, de que não quereriam servir-se à sua mesa.

§ IV
                Ação de graças

                Em terceiro lugar, depois da celebração do santo sacrifício, é necessário render graças a Deus. Esta ação de graças deve estender-se ao dia inteiro. Exigem os homens que lhes sejamos reconhecidos e correspondamos aos mínimos favores que nos fazem, nota São Crisóstomo; quanto pois não devemos ser reconhecidos a Deus, que de nós espera, não uma retribuição, mas um ato de agradecimento, e isso somente para nosso bem! Se não podemos, ajunta ele, agradecer-lhe na medida da sua dignidade, agradeçamoslhe ao menos quanto pudermos.

                Mas que pena, que desordem ver tantos padres que, depois da missa, apenas recitam algumas breves orações na sacristia, sem atenção nem devoção, e logo falam de coisas inúteis ou de negócios mundanos, ou até sai em da Igreja e vão levar Jesus Cristo ao meio das ruas! Seria necessário proceder sempre com eles, como um dia o venerável João de Ávila: ao ver que um padre saia da Igreja logo depois de celebrar, fê-lo acompanhar de dois clérigos com círios acessos. Perguntou-lhes o padre o que significava aquilo, e eles responderam: "Acompanhamos o Santíssimo Sacramento, que levais ao vosso peito". Bem se podia dizer a tais padres o que São Bernardo um dia escreveu ao arcedíago Foulques: Ai! Como tão depressa vos enfastiais da companhia de Jesus Cristo, que tendes dentro de vós?

                Há muitos livros de piedade que recomendam a ação de graças depois da missa, mas quantos são os padres que cumprem este dever? Poderiam apontar-se ao dedo. Fazem alguns a oração mental, e recitam ainda muitas orações vocais; mas depois da missa poucos instantes se entretém com Jesus Cristo, ou até se dispensam disso por completo. Se ao menos o fizessem enquanto as espécies consagradas se conservam no seu estômago! Dizia o venerável João de Ávila que se deve considerar comi infinitamente precioso o tempo que se segue à missa; por isso ele de ordinário, a seguir à missa, passava duas horas recolhido em piedosos entretenimentos com Deus.

                Depois da comunhão, dispensa o Senhor as suas graças em mais abundância. Dizia Santa Teresa que Jesus Cristo está então na alma como num trono de graça e lhe diz: Quid vis ut tibi faciam? Recordemos também o que ensinam Suarez, Gonet e outros doutores, - que a alma aufere da comunhão tanto maior fruto, quanto melhor se dispuser por atos de piedade, durante a permanência das espécies sacramentais. A razão é que este divino Sacramento, tendo sido instituído à maneira de alimento, declara o Concílio de Florença que, assim como os alimentos corpóreos sustentam o corpo segundo o tempo que permanecem no estômago, também o Pão celestial continua a alimentar de graças a alma, enquanto permanece no corpo, contanto que as boas disposições do comungante prossigam.

                Além disto, os atos de virtude têm então mais valor e merecimento, em razão da alma estar mais unida com Jesus Cristo, que assim o declara: Quem come a minha carne e bebe o meu sangue, permanece em mim, e eu permaneço nele.

                Então, diz São João Crisóstomo, o comungante forma uma só e mesma coisa com Jesus Cristo. Deste modo, são mais meritórios os atos, por serem praticados por uma alma unida a Jesus Cristo.

                Mas, por outro lado, não quer o Senhor que as suas graças se percam, prodigalizando-as a ingratos, segundo a expressão de São Bernardo. Tenhamos pois cuidado de nos entretermos com Jesus Cristo depois da missa, ao menos durante uma meia hora, ou o mínimo um quarto de hora; mas, ai!, um quarto de hora é muitíssimo pouco. Devemos considerar que o padre, desde o dia da sua ordenação, não é de si próprio, mas de Deus. E o próprio Senhor disse: Hão de oferecer ao Senhor, seu Deus, o incenso e o pão; e por conseqüência serão santos.

§ V
                O padre que se abstém de celebrar

                Há padres que se abstém de celebrar por humildade; uma palavra sobre este assunto. Abster-se de celebrar por humildade é bom, mas não é o que há de melhor: os atos de humildade prestam a Deus uma honra finita, o sacrifício da missa rende-lhe uma honra infinita, que lhe é prestada por uma Pessoa divina. Ouçamos o que diz São Boaventura: Quando o padre deixa de celebrar, sem impedimento legítimo, faz quanto pode para privar a santíssima Trindade da glória que lhe é devida, os anjos de uma grande alegria, os pecadores do perdão, os justos de auxílios, as almas do Purgatório de alívio, a Igreja de um grande bem e a si próprio de remédio.

                Achava-se São Caetano em Nápoles, quando soube que em Roma, um seu amigo cardeal, que costumava celebrar todos os dias, impedido por certos negócios, começava a descurar este dever. Era na força do calor do estio, mas o santo, com risco da própria vida, deu-se pressa em ir a Roma instar com o seu amigo, para que retomasse o antigo costume; e só depois de conseguido o que desejava voltou para Nápoles. Eis o que se lê na Vida do venerável João de Avila. Indo um dia a caminho para celebrar num ermitério, sentiu-se tão enfraquecido, que temeu não chegar ao lugar, donde estava ainda bastante distanciado; pensava já em suspender o passo e desistir de celebrar, quando Jesus Cristo lhe apareceu em figura de viageiro e, mostrando-lhe o seu peito, lhe fez ver as chagas, sobretudo a do sagrado lado e lhe disse: "Quando eu estava coberto destas chagas, encontrava-se mais fatigado e enfraquecido que tu"; e desapareceu.

                Reanimando com esta visão, o servo de Deus retomou a marcha e teve a felicidade de oferecer o santo sacrifício.

SEGUNDA INSTRUÇÃO,

                O bom exemplo que o Padre deve dar

                Estabeleceu Jesus Cristo na santa Igreja duas ordens de fiéis, a dos leigos e a dos eclesiásticos, com a diferença que aqueles são discípulos e ovelhas, estes mestres e pastores. Daqui o preceito de São Paulo aos leigos: Obedecei aos vossos superiores e sujeitai-vos a eles, porque vigiam por vós e em boa parte são responsáveis pelas vossas almas. Por outra parte adverte aos eclesiásticos: Estai atentos a vós mesmos e a todo o rebanho, de que o Espírito Santo vos constituiu bispos, para governardes a Igreja de Deus. E do mesmo modo lhes fala São Pedro: Apascentai o rebanho de Deus que vos está confiado.

                Donde com razão conclui Santo Agostinho que nada há nem mais difícil, nem mais arriscado que o ônus sacerdotal; e isso precisamente em razão do dever, que incumbe ao padre de ser um espelho de virtude, no interior e no exterior, para que os outros aprendam dele a viver bem. Que bem não faz o exemplo dum santo padre! Diz-nos a Escritura que se vivia santamente em Jerusalém, sob o pontificado de Onias, por causa da sua virtude. O Concílio de Trento diz que a virtude dos chefes é a salvação dos súditos. Que males ao contrário não resultam dos maus exemplos dum padre! É do que o Senhor se lamenta pela boca de Jeremias: O meu povo é um rebanho perdido; foram os pastores que o transviaram. Não, exclama São Gregório, ninguém prejudica tanto os interesses de Deus como os padres, quando estabelecidos para corrigirem os outros, lhes dão maus exemplos.

                Segundo São Bernardino de Sena, ao verem a vida dos maus padres, os seculares não pensam mais em se corrigirem; chegam até a desprezar os Sacramentos, assim como os bens e penas da outra vida. Respondem como o pecador de que fala Santo Agostinho: A quem me propondes como exemplar? Quereis que faça o que nem os eclesiásticos fazem? Um dia dizia o Senhor a Santa Brígida: Os maus exemplos dos padres são causa de que os pecadores se obstinem no pecado; primeiro envergonham-se, mas depois fazem gala do pecado.

                Diz ainda São Gregório: São os sacerdotes na Igreja, como os alicerces num templo. Quando os alicerces falham, todo o edifício desaba. Por isso na ordenação dos padres a Igreja faz por eles esta prece: Que neles resplandeça a justiça, a constância, a misericórdia, a fortaleza e as outras virtudes; que a sua vida sirva de exemplo aos outros. Devem os padres não só ser santos, mas parecê-lo, porque no dizer de Santo Agostinho, se a boa consciência é necessária ao padre para se salvar, também lhe é igualmente necessária a boa reputação, para salvar os outros. Sem esta, embora fosse bom para si próprio, seria cruel para com os outros e, perdendo-os, perder-se-ia com eles. Escolheu Deus os padres entre todos os homens, não só para lhe oferecerem sacrifícios, mas para edificarem todos os outros com o bom odor das suas virtudes.

                São os padres o sal da terra. São os padres, diz a Glosa, que devem condimentar de algum modo os outros homens, para os tornarem agradáveis a Deus, formando-os na prática da virtude por suas palavras, e ainda mais pelos seus exemplos.

                São também os padres a luz do mundo, devem pois, como o divino Mestre acrescenta, brilhar no meio de todos os fiéis pelo resplendor das suas virtudes, e glorificar assim o Deus que tantas distinções e honras lhes prodigaliza: Sois vós a luz do mundo. Mostre-se pois radiante aos olhos dos homens a vossa luz, para que vejam as vossas boas obras e glorifiquem o vosso Pai que está nos céus. Era o que São João Crisóstomo recordava aos padres: Se nos escolheu, foi para que nos tornemos luzeiros. Por sua vez, dizia o papa Nicolau, são os astros que devem irradiar ondas de luz sobre todo o povo. Isto é conforme com as palavras de Davi: Os que formam a muitos na santidade, hão de brilhar como estrelas por todos os séculos dos séculos.

                Mas, para alumiar os povos, não basta que o padre brilhe pelos seus discursos; é necessário que lhes ajunte a luz do bom exemplo; porque a vida do padre, no dizer de São Carlos Borromeu, é o farol para o qual os simples levantam os olhos, do meio das vagas e trevas do mar tempestuoso do mundo, para escaparem ao naufrágio. O mesmo dizia São João Crisóstomo: Deve o padre levar uma vida edificante, para que todos vejam nele um modelo excelente; visto que Deus nos escolheu para que sejamos como luminárias, que mostrem aos outros o caminho a seguir. É a vida do padre a luz, da qual diz Nosso Senhor que deve ser colocada no candelabro para alumiar todos os homens: Não se acende uma luz para a meter debaixo do alqueire, mas para a por no candelabro, para que alumie todos os que estão em casa.

                Donde o Concílio de Bordeus conclui: De tal modo estão os eclesiásticos expostos aos olhares de todos os homens, que estes tomam, como regra os bons ou maus exemplos deles.

                É pois o padre a luz do mundo; mas, se a luz se demudar em trevas, o que se tornará o mundo?

                São também os padres os pais dos cristãos, como lhes chama São Jerônimo: Patres christianorum. Se são pais de todos os fiéis, acrescenta São João Crisóstomo, necessário é que tomem cuidado de todos os seus filhos, e se esforcem principalmente em levá-los para o bem, primeiro pelo bom exemplo e depois por sábias instruções. De contrário, se o padre der maus exemplos, diz Pedro de Blois, os seus filhos espirituais não deixarão de o seguir.

                Também os padres são mestres e modelos de todas as virtudes. Disse o nosso Salvador aos seus discípulos: Assim como meu Pai me enviou, também eu vos envio. Do mesmo modo portanto que o Padre eterno enviou Jesus Cristo à terra, para servir de modelo aos homens, o próprio Jesus Cristo estabeleceu os padres no mundo, para serem cá modelos de santidade. É o que significa o nome de Sacerdote, como o explica Pedro Comestor. O mesmo significado tem a palavra Presbítero, segundo Honório de Autun. Também o Apóstolo escreveu a Tito: Apresenta-te como modelo em tudo... para que os inimigos da nossa fé nos respeitem e nada tenham de que nos arguir. Diz São Pedro Damião que o Senhor, ao estabelecer os padres, os separou do povo, para que não vivam como o povo. Deve a vida deles ser uma regra que ensine os fiéis a viverem bem. Por isso São Pedro Crisólogo chama ao padre a forma das virtudes.

                E São João Crisóstomo, dirigindo-se ao padre, diz também: Que o espelho da vossa vida santa seja para todos uma lição e um modelo de virtude. As próprias funções do ministério sacerdotal exigem isto como escreve São Bernardo. Desejoso de ver os povos santificados, Davi fazia a Deus esta súplica: Que os vossos sacerdotes sejam revestidos da justiça, e exultem de alegria os vossos santos. Ser alguém revestido de justiça, é dar exemplo de todas as virtudes: de zelo, humildade, modéstia etc.

                Numa palavra, diz o Apóstolo, devemos mostrar, pela santidade da nossa vida, que somos verdadeiramente os ministros dum Deus santo: Mostremo-nos em tudo verdadeiros ministros de Deus... pela castidade, pela sabedoria, pela paciência. E é o que o próprio Jesus Cristo diz: Se alguém quer ser ministro meu, siga os meus passos. O padre pois deve reproduzir em si mesmo os exemplos de Jesus Cristo, de modo que, diz Santo Ambrósio, se torne um objeto de edificação para os fiéis, e ao vê-lo cada um possa dar testemunho da santidade da sua vida, e glorificar a Deus por tais ministros. Foi o que fez dizer a Minúcio Felis que se devem reconhecer os padres, não pela magnificência do trajo e elegância da cabeleira, mas pela modéstia e inocência dos costumes. Colocado na terra para lavar as manchas dos outros, observa São Gregório, é necessário que o padre seja santo, e faça ver que o é.

                São os padres os guias dos povos, segundo São Pedro Damião. Mas, diz São Dionísio, que ninguém tenha a audácia de se constituir diretor dos outros nas coisas divinas, se primeiro se não tiver tornado mui semelhante a Deus. E o abade Filipe de Boa-Esperança acrescenta: É a vida dos clérigos que serve de modelo aos leigos: aqueles caminham na vanguarda como guias, estes seguem-nos como um rebanho. Santo Agostinho chama aos padres Rectores terrae. Ora, quem é constituído para corrigir os outros, deve estar a salvo de toda a censura, como diz o papa Hormisdas. E no concílio de Pisa lê-se: Quanto os eclesiásticos estão acima dos leigos pela sua dignidade, tanto devem edificá-los como o resplendor das suas virtudes; deve ser tal a sua virtude que mova os outros à santidade. Como escreveu São Leão: A vida exemplar dos governantes é a salvação dos súditos.

                Por São Gregório de Nissa é o padre chamado um mestre da santidade. Mas, se o mestre é orgulhoso, como há de ensinar a humildade? Se é intemperante, como há de ensinar a mortificação? Se é vingativo, como ensinará a doçura?

                Quem está à frente do povo, para o instruir e formar na virtude, diz Santo Isidoro, tem obrigação de ser santo, sob todos os pontos de vista.

                Se o Senhor disse a todos os homens: Sê-de perfeitos, como o vosso Pai celeste é perfeito, como observa Salviano, com quanto mais rigor há de exigir a perfeição dos padres, que estão encarregados de formar na virtude os outros? Como poderá acender o amor de Deus no coração dos outros, quem não mostra pelas suas obras que está abrasado desse fogo sagrado? Nada pode incendiar uma luz apagada, diz São Gregório. E São Bernardo acrescenta que a linguagem do amor, na boca de quem não ama a Deus, é uma linguagem bárbara e estranha. Resultará, diz ainda São Gregório, que o padre que não dá bom exemplo tornará desprezíveis os seus sermões, e até todas as suas funções espirituais, ajunta Santo Tomás. Ordenou o Concílio de Trento que só sejam admitidos ao sacerdócio os que de tal modo se tornarem conhecidos pela sua piedade, e pureza de seus costumes, que se possam esperar deles exemplos excelentes de boas obras e advertências salutares.

                Veja a este respeito o que diz o No Concílio de Direito Canônico, principalmente no § 3. do cânon. 973.

                Assim, notai bem, o que primeiro se deve esperar do padre é o bom exemplo, e depois os bons conselhos, porque diz o Concílio, o bom exemplo é uma espécie de pregação contínua. Antes de pregarem com a palavra, devem os padres pregar com o exemplo, como ensina Santo Agostinho. E São João Crisóstomo diz: Nenhuma trombeta ressoa tão alto como os bons exemplos.Tal era a razão desta advertência de São Jerônimo ao seu caro Nepociano: Que a tua conduta não desminta as tuas instruções; de contrário, ao pregares na igreja, cada ouvinte poderia dizer baixinho: Porque não fazes o que pregas? A mesma linguagem emprega São Bernardo: Terão força as vossas palavras, desde que os ouvintes estejam persuadidos de que muito primeiro começastes a praticar o que pregais aos outros. Mais força tem o pregão das obras que a voz da boca.

                Para que um pregador persuada os outros do que ensina, é necessário que ele próprio esteja e se mostre disso convicto; mas, como poderá mostrar-se tal quando faz o contrário do que diz? Quem faz o contrário do que ensina, a si próprio se condena, em vez de instruir os outros, diz o autor da Obra imperfeita. Persuade e comove um sermão, diz São Gregório, quando a vida do pregador o confirma. Mais se movem os homens pelo que vêem do que pelo que ouvem; isto é, deixam-se persuadir antes pelos exemplos que lhes falam aos olhos, do que pelos discursos que lhes ressoam aos ouvidos. É o que fazem notar os padres dum Concílio, que por conseqüência querem que o sacerdote dê bom exemplo, tanto no modo de trajar como de viver. São os padres os espelhos do mundo, nos diz o Concílio de Trento; neles têm fixos os olhos todos os fiéis e os tomam como modelos em toda a sua conduta.

                No mesmo sentido, diz São Gregório: "É justo que o sacerdote se imponha pelos seus costumes, de modo que seja como um espelho em que o povo aprenda o que tem a fazer e a corrigir. É o que o Apóstolo nos dá a entender nestas palavras: Somos dados em espetáculo ao mundo, aos anjos e aos homens. Tudo reclama a santidade do padre, escreveu São Jerônimo. Segundo Santo Euquério, suportam os padres o peso do mundo inteiro, isto é, têm o dever de salvar todas as almas; mas como? Pelo poder da santidade e pela força dos bons exemplos. Dali este decreto do III. Concílio de Valença: "É necessário que o padre se esforce por se mostrar um modelo de regularidade e modéstia, na sua apresentação grave, no seu rosto e nas suas palavras. Notem-se estes três pontos: 1º. Habitus. Que exemplo de modéstia podem dar os padres que, em vez de trazerem um casaco comprido e decente, usam jaquetões impróprios, punhos com botões de ouro?... 2º. Vultus.


                Para inculcar modéstia, quando se aparece em público, é necessário conservar os olhos baixos, não só ao altar e na igreja, mas por toda a parte em que se encontrem pessoas do outro sexo. 3º. Sermonis. Deve o padre tomar todo o cuidado para não repetir certas máximas do mundo e certas chocarrices contrárias à modéstia. O IV. Concílio de Cartago mandou suspender das suas funções todo o clérigo que descesse a gracejos indecorosos. Mas que mal há em gracejar? Não, responde São Bernardo, essas chocarrices entre seculares não passam de graçolas, mas na boca dum padre são blasfêmias, que causam horror. E acrescenta: Vós consagrastes a vossa boca à pregação do Evangelho; não podeis sem pecado abri-la a palavras tais, nem acostumar-vos a elas sem vos tornardes culpado de sacrilégio. É sempre perigoso dizer coisas que não edifiquem os que as ouvem.

                E coisas há, diz Pedro de Blois, que para os outros são leviandades e para o padre são um crime; porque da parte dele todo o mau exemplo se lhe torna em falta grave, desde que seja ocasião de queda para os outros. Lê-se em São Gregório de Nazianzo: As manchas num vestido rico são mais sensíveis e causam maior impressão a quem as vê.

                Deve também o sacerdote abster-se de toda a maledicência. No dizer de São Jerônimo, há padres que se resguardam dos outros vícios e parece que não podem resistir à murmuração. Importa-lhes ainda não frequentar as pessoas do mundo, em cuja sociedade se respira um ar viciado, que com o tempo arruína a saúde da alma; é a reflexão de São Basílio. Deve finalmente o padre abster-se de certos divertimentos seculares, em que não seria edificante ver-se um ministro dos altares, como em comédias de todo profanas, bailes e reuniões, aonde afluem mulheres. É necessário, ao contrário, que ele seja visto a orar na igreja, a dar a sua ação de graças depois da missa, a visitar o Santíssimo, e a Mãe de Deus. Muitos há que cumprem os seus deveres de piedade às ocultas, com receio de serem vistos; é bom que se façam ver, não para atraírem louvores, mas para darem bom exemplo, e levarem os outros a glorificar a Deus, imitando-os.

TERCEIRA INSTRUÇÃO,

                Sobre a castidade do padre

§ I
                Excelência desta virtude, e quanto é necessária ao padre

                Em comparação duma alma casta, todas as grandezas e dignidades terrenas são de mui pouco valor.

                A castidade é chamada por Santo Efrém Vita spiritus; por São Pedro Damião, Regina virtutum; e por São Cipriano, Acquisitio triumphorum. Quem triunfa do vício contrário à castidade, facilmente triunfa de todos os outros; pelo contrário, quem se deixa dominar da impureza, com facilidade escorrega em muitos outros, como são o ódio, a injustiça, o sacrilégio etc.

                A castidade faz do homem um anjo: O castitas, exclama Santo Efrém, quae homines angelis similes reddis! São Bernardo diz: Castitas angelum de homine facit. A mesma linguagem tem Santo Ambrósio e acrescenta que quem a perdeu é um demônio. Também com razão são os homens castos comparados aos anjos, que vivem estranhos a todos os prazeres da carne. São os anjos puros de sua natureza; os homens são-no por virtude. Segundo Cassiano, esta virtude iguala o homem ao anjo. Na opinião de São Bernardo, é só a felicidade e não a virtude que distingue o anjo do homem casto; e acrescenta, - se a castidade do anjo é mais feliz, a do homem é mais gloriosa. São Basílio vai mais longe, dizendo que a castidade torna o homem semelhante ao próprio Deus, que é um espírito puro.

                Tanto a castidade é preciosa, como necessária aos homens para se salvarem; mas é sobretudo indispensável aos padres. Porque preceituou o Senhor aos sacerdotes da antiga Lei tantas vestes e ornamentos brancos, e tantas purificações exteriores? Só por haverem de tocar os vasos sagrados e por serem a figura dos sacerdotes da nova Lei, que haviam de tocar e imolar no altar a carne sagrada do Verbo feito homem. Isto fez dizer a Santo Ambrósio: Se tanto respeito exigiam as figuras, quanto não exigirá a verdade! Além disto, mandou Deus afastar dos altares os sacerdotes habitualmente infeccionados da lepra, símbolo do vício da impureza. É o que São Gregório explica: Está dominado de lepra perpétua quem segue os vergonhosos instintos da carne.

                Conforme refere Plutarco, os próprios pagãos exigiam a pureza aos sacerdotes das suas falsas divindades, porque diziam: tudo quanto respeita ao culto dos deuses deve ser puro - Diis omnia munda. E em Platão lemos que os sacerdotes de Atenas, para melhor conservarem a castidade, habitavam em lugares separados do resto dos homens. Sobre o que Santo Agostinho exclamava: Que vergonha para os cristãos receberem dos pagãos lições tais!

                Quanto aos sacerdotes do verdadeiro Deus, segundo São Clemente de Alexandria, só são e se devem dizer verdadeiramente padres os que passam uma vida casta. E. São Tomás de Vilanova acrescenta: Seja muito embora o padre humilde e devoto, se não for casto, não é nada. A todos os homens é necessária a castidade, diz Santo Agostinho, mas principalmente aos padres. Devem os padres ao altar por-se em relação íntima com o Cordeiro de Deus, com esse Cordeiro sem mancha, que tem o nome de Lírio e só se apascenta entre os lírios. Por isso Jesus Cristo quis ter uma Mãe virgem, um Pai adotivo virgem - São José - e um Precursor virgem. Foi ainda por causa da sua pureza excelsa, afirma São Jerônimo, que João foi o discípulo predileto de Jesus. Foi em consideração desta virtude da pureza que Jesus confiou a São João sua divina Mãe, como confia ao padre a sua Igreja e a sua própria pessoa.

                Isso fez dizer a Orígenes: O padre que se aproxima dos santos altares, deve antes de tudo achar-se revestido da castidade. E na opinião de São João Crisóstomo, deve o padre ser bastante puro para merecer um lugar entre os anjos. - Então, dirá alguém, quem não for virgem não poderá ser padre? - Responde São Bernardo: Reputa-se como virgindade uma castidade antiga.

                Nada há também que a Igreja tanto se empenhe em conservar, como a pureza dos padres. Quantos Concílios e cânones que tratam desta importante matéria! Eis o que diz Inocêncio III: Não seja admitido a Ordens sacras quem não for virgem ou pelo menos de uma castidade experimentada. E acrescenta: Quanto aos que estão ordenados, se não forem castos, é necessário privá-los de todas as funções sagradas. E São Gregório escreveu: Ninguém deve servir ao altar, sem primeiro ter dado provas da sua castidade. São Paulo dá a razão do celibato imposto aos padres, quando diz: O que está sem mulher dá toda a sua atenção às coisas do Senhor e pensa em agradar a Deus; o que porém está casado preocupa-se com as coisas do mundo e procura agradar a sua mulher; está dividido.

                O que está livre dos laços do matrimônio dá-se todo a Deus, porque só o domina o pensamento de agradar a Deus; quem está ligado pelo matrimônio tem que pensar em agradar a sua esposa; ocupa-se de seus filhos e do mundo: tem assim o coração dividido e não se pode dar inteiramente a Deus. Com muita razão pois Santo Atanásio chamava à castidade a morada do Espírito Santo, a vida dos anjos e a coroa dos santos. Por sua vez São Jerônimo a chama - a honra da Igreja e a glória do sacerdócio. Com efeito, como diz Santo Inácio mártir, deve o padre, que é casa de Deus, templo de Jesus Cristo e órgão do Espírito Santo, conservar-se puro, visto ser por seu intermédio que as almas se santificam.

§ II
                Meios para conservar a castidade

                Grande é pois o valor da castidade, mas mui terrível a guerra que a carne move ao homem para lhe arrebatar esta virtude. É a carne a mais poderosa arma que o demônio possui para escravizar o homem. Por isso, diz Santo Agostinho, poucos saem vitoriosos deste combate. Ó!, exclama com dor São Lourenço Justiniano, quantos desgraçados, depois de muitos anos de solidão dum deserto, depois de orações, jejuns e austeridades, se deixaram vencer dos apetites da carne, abandonaram o retiro, perderam a castidade e o próprio Deus! Eis porque os padres - obrigados a uma castidade perpétua - devem por todo o cuidado em a conservar. Não serás casto, disse São Carlos Borromeu a um eclesiástico, se não vigiares continuadamente sobre ti mesmo, porque a falta de vigilância faz perder a castidade num instante.

                Todo o cuidado a este respeito consiste no emprego dos meios para conservar esta bela virtude, meios que se reduzem a evitar tudo quanto possa acender o fogo impuro, e aplicar contra as tentações os devidos remédios.

1º. A fuga da ocasião

                O primeiro meio consiste em fugir à ocasião. Eis o que diz São Jerônimo: O primeiro remédio contra este vício é evitar os objetos, cuja presença nos leva para o mal. São Filipe de Néri dizia que nesta guerra a vitória cabe aos poltrões, isto é, aos que fogem à ocasião. No mesmo sentido se exprime Pedro de Blois: De nenhum modo se pode vencer melhor a luxúria do que pela fuga.

                Grande tesouro é a graça de Deus, mas somos nós que o trazemos, em vasos mui frágeis e mui expostos a perdê-lo. Não pode o homem adquirir a virtude da castidade, se o próprio Deus lha não der. De nós mesmos não temos força para praticar nenhuma virtude, e muito menos a castidade, porque temos naturalmente uma inclinação violenta para o vício contrário.

                Com o auxílio divino, pode o homem conservar-se casto, mas esse auxílio não o dá Deus a quem se lança na ocasião de pecar ou nela permanece por sua vontade: Quem ama o perigo há de perecer nele.

                Daí esta exortação de Santo Agostinho: Se quereis vencer as revoltas da carne, tomai a fuga. Ó!, - dizia São Jerônimo nos avisos que do leito da morte deu a seus discípulos, - quantos desgraçados caíram no lodaçal da impureza, por terem a presunção de se considerarem seguros! E acrescentava: ninguém se deve julgar seguro contra este vício; embora seja um santo, está sempre sujeito a cair.

                Não é possível, diz o Sábio, caminhar sobre brasas e não se queimar. Eis as reflexões de São João Crisóstomo: Sois vós de pedra? Sois de ferro? Sois homem, estais sujeito à fraqueza comum de todos os homens; tomais fogo nas mãos e contais que não vos queimareis? Aproximai da palha uma luz acesa e atrevei-vos depois a dizer que não haverá incêndio. O homem é como a palha. Impossível é pois expor-se uma pessoa voluntariamente à ocasião e não sucumbir.

                Diz o Espírito Santo que é necessário fugir à vista do pecado como à vista duma serpente. Não nos contentamos com fugir à mordedura das serpentes; evitamos até o seu contato, e nem as queremos ver de perto. Se há pessoas que nos podem ser ocasião de queda, devemos evitar até a sua presença e as suas palavras. Observa Santo Ambrósio que o casto José nem mesmo quis escutar o que a mulher de Putífar tinha começado a dizer-lhe; fugiu logo, persuadido de que seria arriscadíssimo demorar-se a ouvi-la. Mas, direis talvez, eu sei o que me convém. - Escutai estas palavras de São Francisco de Assis: "Eu sei o que deveria fazer, mas uma vez exposto à ocasião, não sei o que faria".

                Examinemos as ocasiões principais que um padre deve ter cuidado de evitar, para não perder a castidade.

I.

                Primeiro que tudo deve guardar-se de demorar os olhos sobre objetos perigosos nesta matéria. A morte entra pelas janelas; isto é penetra o pecado na alma pelos olhos, segundo a explicação de São Jerônimo, São Gregório e outros; porque, assim como para defender uma praça não basta fechar as portas, se se deixa aos inimigos uma entrada pela janela, também serão inúteis todos os outros meios de conservar a castidade, desde que não tome a precaução de fechar os olhos. Refere Tertuliano que um filósofo pagão se arrancara voluntariamente os olhos para se conservar casto. Este ato não é permitido a cristãos, mas, se queremos guardar a castidade, não lancemos, e sobretudo não demoremos, os nossos olhares sobre pessoas de diferente sexo. São Francisco de Sales nos adverte que o perigo não consiste tanto em ver como em olhar com demora os objetos, que nos podem ser ocasião de tentação.

                E não basta isto, acrescenta São João Crisóstomo; além de desviar os olhos das pessoas imodestas, é necessário desviá-los também das mais modestas. Por isso Jó fez com os seus olhos o acordo de não olhar nenhuma mulher, ainda que fosse uma virgem modesta, por saber que os olhares dão origem a maus pensamentos. É também o aviso que nos dá o Eclesiástico: Não olhes nenhuma jovem com receio de que a sua formosura te seja ocasião da queda. Do olhar nasce o mau pensamento, diz Santo Agostinho; do mau pensamento procede uma certa deleição carnal, embora involuntária; e a esta deleitação indeliberada sucede muitas vezes o consentimento da vontade, - assim a alma se perde. - Mandou o Apóstolo que a mulher na igreja esteja velada, por causa dos anjos; o que o cardeal Hugues comenta nestes termos: Pelos anjos é necessário que se entendam os padres, que poderiam à sua vista sentir tentações imodestas.

                Vivia São Jerônimo na gruta de Belém, em oração contínua, a macerar a sua carne com austeridades de toda a espécie; e, apesar disso, era atormentado violentamente pela recordação das damas, que muito tempo antes tinha visto em Roma. Guiado assim pela própria experiência, escreveu ao seu caro Nepociano a dizer-lhe que se abstivesse de olhar as mulheres e até de falar da beleza delas. Por ter olhado com curiosidade a Betsabé, caiu Davi miseravelmente em três crimes enormes: adultério, homicídio e escândalo. Dizia ainda São Jerônimo: Nostris tantum initiis (diabolus) opus habet. Ao demônio só lhe basta que comecemos a abrir-lhe a porta; em breve levará ele a sua obra até ao fim. Um olhar demorado sobre o rosto duma jovem será uma faúla do inferno, que levará a ruína e a morte à alma. Falando particularmente dos padres, dizia o mesmo Doutor que não lhes basta evitar toda a ação impura; devem absterse até dum simples olhar.
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II.

                Se, para conservar a castidade, é necessário não demorar os olhares sobre pessoas de diferente sexo, mais necessário ainda é evitar a sua sociedade. Guardai-vos de permanecer na companhia de mulheres, diz o Espírito Santo, e dá a razão disso: é que do mesmo modo que a traça se gera na roupa, assim a corrupção dos homens tem a sua origem nas relações com as mulheres.

                E assim como a tinha se produz na roupa contra a vontade do que a tem, observa o Padre Cornélio, comentando esta passagem, também da familiaridade com mulheres nascem, sem se querer, os maus desejos. Além disto, ajunta ele, assim como a tinha se gera insensivelmente na roupa e a rói, assim a convivência com mulheres acende insensivelmente o fogo da concupiscência no coração dos homens, ainda mesmo nos que se dão às coisas espirituais. Santo Agostinho ameaça com uma queda próxima e inevitável nesta matéria quem não quiser evitar toda a familiaridade com objetos perigosos. Conta São Gregório que o Padre Orsino, depois de se ter separado da sua mulher e recebido com assentimento dela as santas Ordens, quando estava para morrer, passados já quarenta anos, ao aproximar ela o ouvido da sua boca, para conhecer se ainda respirava, lhe disse Orsino: Retira-te, mulher, afasta daí essa palha, porque ainda há em mim uma centelha de vida, que nos poderia consumir a ambos.

                Para nos fazer tremer a todos, que mais será preciso que o triste exemplo de Salomão? Depois de ter experimentado os favores e a amizade íntima do seu Deus, depois de ter sido por assim dizer a pena do Espírito Santo, ele na velhice se deixou corromper pela influência das mulheres pagãs, chegando até a adorar os ídolos! Tornado velho, deixou-se seduzir pelas mulheres, a ponto de se dar ao culto de deuses estranhos.

                Mas que admira isto? É impossível, diz São Cipriano, estar no meio das chamas e não se queimar. Segundo São Bernardo, seria menor milagre ressuscitar um morto, do que conservar a castidade, vivendo em habitual familiaridade com uma mulher. Se quereis pois estar seguros, escutai o que vos diz o Espírito Santo: Procedei de modo que nem sequer passeis perto da casa daquela que o demônio toma como instrumento para vos tentar; afastai-vos de lá. E, quando houver necessidade verdadeira de falardes a uma mulher, fazei-o com brevidade em termos austeros, conforme o conselho de Santo Agostinho. É também o aviso de São Cipriano: Quando se houver de falar a mulheres, é necessário fazê-lo de passagem, sem demora, e como que de fugida.

                Mas, dir-se-á, esta pessoa é feia; Deus me livre dela! - A isso responde São Cipriano que o demônio é pintor; quando a concupiscência está em movimento, pode ele embelezar o rosto mais disforme.

                Mas essa pessoa é minha parenta. - Eis o que responde São Jerônimo: Não consintais que permaneçam convosco nem mesmo as que vos estão ligadas pelo parentesco. Por vezes o parentesco só facilita e multiplica os pecados, ajuntando o incesto à impudicícia e ao sacrilégio. Até se está mais exposto a pecar, acrescenta São Cipriano, quando a mesma enormidade do crime afasta o temor de suspeitas. São Carlos Borromeu fez um decreto, em que proibia aos seus padres que, sem permissão sua, tivessem consigo mulheres, embora fossem suas parentas próximas.

                Mas é minha penitente, e é uma pessoa santa; nada há a temer. - Nada há a temer? Ilusão, diz Santo Tomás: quanto mais santa é vossa penitente, mais deveis temer, e evitar toda a familiaridade com ela; porque as mulheres, quanto mais piedosas e dadas à espiritualidade, mais sedutoras são. Dizia o venerável Padre Sertório Caputo, como lemos na sua Vida, que o demônio começa por inspirar apego à virtude e procura assim afastar o temor do perigo; depois, faz conceber afeição pela pessoa; por último, tenta e arremessa ao abismo. É o sentir de Santo Tomás: "É sempre perigosa a afeição carnal, mas mais perniciosa quando tem por objeto uma pessoa devota; podem os começos ser inocentes, mas a familiaridade é um perigo de todos instantes; na medida em que essa familiaridade vai aumentando, enfraquece-se a pureza do motivo principal, que lhe tinha dado origem".

                Acresce que o demônio sabe muito bem esconder o perigo: a princípio não arremessas flechas que pareçam envenenadas, mas que avivem a afeição, fazendo no coração pequenas feridas; pouco depois essas pessoas assim dispostas já não procedem entre si como anjos, como a princípio, mas como seres revestidos de carne; não são imodestos os olhares, mas mais freqüentes de parte a parte; as palavras parecem espirituais, mas são demasiado ternas; depois desejam encontrar-se muitas vezes. E é assim, conclui o santo Doutor, que o apego espiritual se torna carnal. Aponta São Boaventura cinco sinais pelos quais se pode reconhecer quando é que a afeição de espiritual se torna carnal:

                1º. - Quando há entretenimentos longos e inúteis; e, desde que são longos, são sempre inúteis.

                2º. - Quando há olhares e elogios recíprocos.

                3º. - Quando um desculpa os defeitos do outro.

                4º. - Quando se deixam perceber pequeninos ciúmes.

                5º. - Quando o afastamento causa inquietação.

                Tremamos; somos de carne. O bem-aventurado Jurdano repreendeu fortemente um dia um dos seus religiosos, por ter dado a mão a uma mulher, ainda que sem má intenção; e, tendo-lhe o religioso observado que era uma pessoa virtuosa, respondeu-lhe: "A chuva é boa e a terra também, mas misturadas fazem lama". Esta mulher é santa e este homem é santo; mas, se se põem na ocasião, ambos se perdem. "Choca o forte com o forte e ambos caem". É sabido o caso funesto de que fala a História eclesiástica. Uma santa mulher, que tinha o costume de recolher os cadáveres dos santos mártires, para lhes dar sepultura, encontrou certo dia um, que tinham deixado por morto, mas que ainda conservava alguma vida. Fê-lo transportar para sua casa, onde lhe restituiu a saúde, à custa dos seus cuidados; mas que aconteceu? A convivência fez-lhes perder a castidade e a graça de Deus.

                Tais casos infelizmente não são raros. Quantos padres, muito piedosos a princípio, acabaram por perder a piedade e o próprio Deus, em razão de se terem deixado prender pouco a pouco de afeições espirituais! Santo Agostinho nos afirma ter conhecido muitos e grandes prelados, que ele não tinha em menor estima que a um São Jerônimo e a um Santo Ambrósio, e haviam sucumbido em ocasião semelhantes. Assim, São Jerônimo escreveu a Nepociano: Não te fies da tua castidade passada; quando te encontrares a sós, sem testemunha, com uma mulher, não te demores de nenhum modo. Santo Isidoro de Pelusa, exprime-se no mesmo sentido: Se a necessidade vos obriga a falar, conservai os olhos baixos; dizei somente o preciso, e apressai-vos a fugir. O Padre Pedro Consolini, do Oratório, dizia que com as mulheres, mesmo comas mais virtuosas, se deve exercer a caridade como com as almas do Purgatório: de longe e sem olhar para elas.

                Dizia mais este bom padre, que é muito útil aos sacerdotes, nas tentações contra a castidade, considerarem a sua dignidade. Contava a este propósito que um Cardeal, ao ser assaltado de pensamentos impuros, olhava o seu barrete, e refletia na dignidade de que se achava revestido, dizendo: "Recomendo-me a ti, meu caro barrete". Assim triunfava na da tentação.

III.

                Além da companhia de mulheres, quaisquer que elas sejam, deve evitar-se também a de homens que se comportem mal. Torna-se o homem semelhante àqueles que frequenta, dizia São Jerônimo. É escuro e escorregadio o caminho da vida presente - Lubricum in tenebris; - se temos um mau companheiro que nos impele para o precipício, estamos perdidos. Conta São Bernardino de Sena ter conhecido uma pessoa que vivera trinta e oito anos na inocência e na virgindade; tendo então ouvido nomear uma certa impureza, precipitou-se em desregramentos tais, que o demônio, diz o Santo, não se entregaria a semelhantes torpezas, se tivesse corpo.

IV.

                Necessitamos ainda evitar a ociosidade, se queremos permanecer castos. Adverte-nos o Espírito Santo que a ociosidade ensina a cometer muitos pecados. E o profeta Ezequiel diz que a ociosidade foi a causa dos crimes abomináveis dos habitantes de Sodoma, e por fim a sua total ruína. Como nota São Bernardo, foi também ela a causa da queda de Salomão. Por isso São Jerônimo exortava Rústico a viver de modo que o demônio, quando viesse a tentá-lo o encontrasse sempre ocupado. Quem se dá ao trabalho, acrescenta São Boaventura, não será tentado senão por um demônio, ao passo que quem se der à ociosidade será muitas vezes assaltado por um grande número.

2º. A mortificação

                Vimos acima quanto é necessário, para conservar a castidade, fugir à ocasião e à ociosidade; vejamos agora o que importa fazer.

                Em primeiro lugar, deve-se praticar a mortificação dos sentidos. É uma ilusão, diz São Jerônimo, tentar viver no meio dos prazeres, sem cair nos vícios a que eles dão origem. Quando o Apóstolo era atormentado pelo aguilhão da carne, encontrava auxílio e remédio nas mortificasses do corpo: Castigo o meu corpo e faço dele um escravo. A carne que não é mortificada só dificilmente se sujeita ao espírito. Conserva-se a castidade no meio das mortificasses, como um lírio no meio dos espinhos.

                Para permanecer casto, é necessário principalmente evitar toda a intemperança na comida e na bebida.

                Não deis vinho aos reis. Quem beber em excesso, sem dúvida experimentará muitos movimentos sensuais. Assim lhe será difícil dominar a sua carne e conservar a castidade, segundo o doutrina de São Jerônimo: Dum estômago aquecido pelo vinho, levantam-se os vapores impuros da luxúria; porque o vinho no dizer do profeta Oséas, faz perder ao homem a razão e degrada-o à condição de bruto. O Anjo, ao contrário, disse de São João Batista: Não beberá nem vinho, nem licores inebriantes e será cheio do Espírito Santo. Alguém dirá talvez que precisa do vinho, por causa da fraqueza do seu estômago; seja assim, mas beba com moderação que o Apóstolo manda a Timóteo: Em razão da fraqueza do teu estômago e das tuas indisposições freqüentes, usa dum pouco de vinho.

                É também necessário evitar todo o excesso de comida. Dizia São Jerônimo que a imoderação na comida é uma das causas da impudicícia. Do mesmo modo São Boaventura: A luxúria alimenta-se da glutoneria. Ao contrário, o jejum reprime os vícios e favorece as virtudes: é o que a Igreja nos ensina. Segundo Santo Tomás, quando o demônio se vê vencido numa tentação de gula, já desiste de tentar pela impureza.

3º. A humildade

                É preciso mais praticar a humildade. Segundo Cassiano, quem não é humilde, não pode ser casto. Não é raro que Deus castigue os orgulhosos, permitindo que caiam nalguma falta vergonhosa; tal foi a causa da queda de Davi, como ele próprio confessa: Pequei antes de ser humilhado. É pela humildade que se obtém a castidade, diz São Bernardo. E antes dele tinha dito Santo Agostinho: O guarda da pureza é o amor de Deus; mas é humildade a morada em que este guarda habita. - Segundo São João Clímaco, quem nos combates contra a carne quer vencer somente pela continência, assemelha-se ao náufrago que tentasse salvar-se, nadando com uma só mão. É necessário ajuntar a humildade à continência.

4º. A oração

                Acima de tudo, para obter a virtude da castidade, é preciso orar, e orar sempre. Já noutro lugar fica dito, que não se pode adquirir nem conservar a castidade sem o socorro da graça, e este não o concede o Senhor senão aos que lho pedem. Ensina-nos o Senhor que, para os adultos, a oração é de necessidade de meio, segundo a linguagem das Escrituras. Por isso o Doutor angélico diz: Depois do batismo, é necessária ao homem a oração contínua. E se, para praticar qualquer virtude, é necessário o auxílio do Céu, para conservar a castidade, requere-se um socorro mais poderoso, em razão da propensão violenta que o homem tem para o vício contrário. É impossível ao homem, diz Cassiano, manter-se na castidade por suas próprias forças e sem a assistência divina. Neste combate pois, acrescenta Abelly, precisa de solicitar com instância o socorro de Deus. Daí o aviso de São Cipriano, - que o primeiro meio para obter a castidade é pedir a assistência de Deus.

                Foi o que o próprio Salomão declarou: Sabendo eu que não podia possuir este tesouro se Deus mo não desse, - e era já sabedoria o conhecer de quem me advém este dom, - apresentei-me diante do Senhor, e roguei-lhe, e disse-lhe do íntimo do meu coração...

                Apenas sentirmos pois os primeiros estímulos da carne, que o demônio despertar em nós, é necessário, diz São Cipriano, resistir logo, e não permitir que o reptilzinho se torne em serpente, isto é, que a tentação aumente. O mesmo conselho dá São Jerônimo: Não deixeis avolumar o pensamento perigoso; matai o inimigo enquanto é pequeno. Quando o leão é grande, não é fácil matá-lo como em pequeno.

                Tomemos pois cautela nesta matéria, não nos demoremos a raciocinar com a tentação; apressemo-nos a repeli-la sem exame. Como ensinam os mestres da vida espiritual, o melhor meio de vencer as tentações da carne não é combatendo-as diretamente frente a frente, com demora no mau pensamento, fazendo produzir à vontade atos contrários; é antes indiretamente com atos de amor de Deus ou de contrição, ou pelos menos fazendo derivar o pensamento para outra coisa.

                O meio principal é recorrer então a Deus pela oração: é bom, logo aos primeiros movimentos da impureza, renovar o propósito firme de antes morrer do que pecar; e imediatamente depois é necessário recorrer às chagas de Nosso Senhor Jesus Cristo. Assim o têm praticado os santos que, sendo de carne como nós, estavam sujeitos às mesmas tentações, e foi assim que as venceram. Quando um pensamento vergonhoso se me apresenta ao espírito, dizia Santo Agostinho, recorro às chagas de Nosso Senhor Jesus Cristo. Está-se em repouso e segurança nas chagas do Salvador. Também Santo Tomás triunfou das provocações, duma mulher impudica, dizendo: Senhor Jesus e santíssima Virgem Maria, não me abandoneis!

                Demais, é então muito útil fazer o sinal da cruz sobre o peito, invocar o Anjo da guarda e o próprio patrono. Acima de tudo porém, importa não cessar de repetir os nomes santíssimos de Jesus Cristo e de sua divina Mãe, até que a tentação seja vencida. Ó!, que força a dos nomes de Jesus e Maria contra os assaltos da impudicícia!

                Entre todas as devoções próprias para conservar a castidade, a mais útil é a devoção à santíssima Virgem, que é chamada a Mãe do belo amor e a Guarda da virgindade = Mater pulchrae dilectionis et Custos virginitatis. É uma prática muito eficaz recitar todos os dias, ao levar e ao deitar, três A, M. em honra da pureza de Maria.

                Conta o Padre Segneri que um dia um pecador, todo impureza, fora confessar-se ao Padre Nicolau Zucchi, da Cia. de Jesus. Recomendou-lhe este, como remédio, que fosse pontual em rezar todos os dias, de manhã e à noite, uma A, M. à pureza da santíssima Virgem. Muitos anos depois, tendo esse penitente feito diversas viagens, voltou aos pés do mesmo Padre e mostrou-se de todo corrigido. Perguntou-lhe o padre como se tinha emendado: "Foi o fruto da pequena devoção que me ensinastes".

                Com permissão do penitente, o Padre Zucchi um dia narrou o fato da cadeira. Estava presente um militar, que vivia em relações criminosas; ouviu e começou a praticar todos os dias a mesma devoção; pouco depois, com socorro de Maria, teve coragem para se corrigir. Um dia, movido por um falso zelo, foi procurar a cúmplice das suas desordens, no intuito de a converter; mas, ao entrar na casa, sentiu-se fortemente repelido, e encontrou-se num lugar muito distanciado. Deu então graças à sua Benfeitora, reconhecendo que era por uma graça especial de Maria, que tinha sido impedido de se encontrar com aquela mulher; porque facilmente teria recaído, desde que se tivesse exposto à ocasião.

QUARTA INSTRUÇÃO,

                A pregação e a administração do sacramento da penitência

                Se todos os pregadores e confessores satisfizessem aos seus ministérios, como devem, estaria o mundo cheio de santos. Os maus pregadores e os maus confessores são a ruína do mundo; e por maus entendo os que não exercem o seu ministério como convém.

                Falemos em primeiro lugar do modo de anunciar a palavra de Deus; depois trataremos da administração do sacramento da Penitência.

§ I
                A pregação

                É pela pregação que a fé se propaga, e é também pela pregação que o Senhor quer que ela se conserve: Crê-se porque se ouve, e ouve-se porque a palavra de Jesus Cristo é pregada. Mas não basta que o cristão saiba o que tem a fazer; é necessário que se lhe recorde de quando em quando a divina palavra, se lhe mostre a importância da sua salvação eterna e os meios a empregar para a conseguir. Por isso o Apóstolo fazia a Timóteo esta recomendação: Prega a palavra; insiste a tempo e contra tempo; repreende, suplica, faze arguições; não cesses de ensinar com muita paciência.

                E foi o que o próprio Deus outrora mandou a Isaías e Jeremias: Clama, não cesses, faze retenir a tua voz como uma trombeta, e lança em rosto ao meu povo os seus crimes. Eis que ponho as minhas palavras na tua boca. Hoje te constituo sobre as nações e sobre os reinos, para que arranques e destruas... edifiques e plantes. A mesma obrigação impôs o Senhor aos padres, por ser a pregação uma das suas principais funções: Ide pois, ensinai todos os povos... a observar os mandamentos que vos dei. E se algum pecador vier a perder-se, por não ter tido ninguém que lhe anuncie a palavra de Deus, o Senhor pedirá contas da sua alma ao padre, que lha podia anunciar: Quando eu digo ao ímpio: Tu morrerás; se tu não o advertires, ele morrerá na sua iniquidade, mas eu te pedirei contas do seu sangue.

                Para salvar, porém as almas, não basta pregar; é necessário, como no princípio dissemos, pregar convenientemente. Ora, a primeira condição para bem pregar é a ciência, acompanhada do estudo; quem prega ao acaso e sem preparação, faz de ordinário às almas mais mal do que bem. A segunda condição é uma conduta exemplar. Despreza-se a palavra do pregador, quando se lhe despreza a vida, diz São Gregório. Lemos na Obra imperfeita: Desmentís com as vossas obras o que afirmais com as vossas palavras. Como persuadir por palavras aos outros o que se lhes dissuade pelas ações? Tudo quanto o pregador possa então dizer, só servirá para o condenar. Como diz São Paulo, a si próprio se condena quem dá exemplo do mal que censura nos outros: Não tens desculpa, ó tu, que julgas os outros! Porque, ao julgá-los, a ti mesmo te condenas.

                Daí a bela resposta do venerável João de Ávila, a quem lhe perguntava qual a regra melhor a seguir para bem pregar: "Amar muito a Jesus Cristo".

                Um facho apagado não pode incendiar, dizia também São Gregório. É necessário que o pregador primeiro se incenda do divino amor, para poder depois afervorar os outros. Dizia São Francisco de Sales: "Fala o coração ao coração". Queria significar que as palavras só por si ressoam aos ouvidos, mas não penetram no coração; só aquele que prega do coração, isto é, que sente o que diz, só esse pode falar ao coração dos outros e movê-los a amar o Deus. Eis por que um pregador deve amar muito a oração, para dela haurir os sentimentos que deve comunicar aos outros, conforme as palavras do Redentor: O que vos digo ao ouvido, pregai-o em público. É a oração a ditosa fornalha, em que os oradores se inflamam no amor divino: Na minha meditação se ateará o fogo. Ali se preparam os dardos de fogo que penetram os corações dos ouvintes.

                Além disto, é preciso que na pregação se tenha em vista um fim reto: que se pregue, não sob o impulso de algum interesse temporal, mas para glória de Deus; não para conseguir aplausos efêmeros, mas para salvar as almas. Neste intuito, procurará o pregador acomodar-se à capacidade dos ouvintes, como ordena o Concílio de Trento: Por si próprios, ou por outros pregadores idôneos, cuidarão os arciprestes de apascentar as almas que lhes estão confiadas, fazendo-lhes ouvir palavras salutares e amoldadas à sua capacidade. "É necessário evitar os quamquam e os longos períodos dos pedantes, dizia São Francisco de Sales; tudo isso é a peste da pregação. Assim é de fato, primeiramente, porque Deus não presta o seu concurso a esta maneira balofa de pregar; e em segundo lugar porque os ouvintes de ordinário são pessoas pouco instruídas, que não compreendem uma linguagem arrebicada.

                Que pena causa ver por vezes tanta pobre gente afluir a um sermão, sem colher dele nenhum fruto! Ei-los a sair da igreja, tristes e desanimados, por não terem compreendido o que lhes pregaram! O venerável João de Ávila, falando dos que pregam em estilo sublime, e ininteligível para seus ouvintes, dizia com razão que são traidores a Jesus Cristo esses que, enviados a procurar-lhe a glória, só se aplicam a pregar-se a si próprios. Com não menos razão que são traidores a Jesus Cristos esses que, enviados a procurar-lhe a glória, só se aplicam a pregar-se a si próprios. Com não menos razão, o Padre Gaspar Sanzio lhes chama os maiores perseguidores hodiernos da Igreja, porque se tornam causa da perda de muitas almas, que uma pregação simples e verdadeiramente apostólica teria salvado.

                O Apóstolo, que pregava animado do verdadeiro espírito de Deus, escrevia aos Coríntios: Ao pregar-vos, não me tenho servido dos discursos persuasivos da sabedoria humana, mas antes dos efeitos sensíveis do espírito e da virtude de Deus. Ao ler as vidas dos santos que trabalharam na salvação das almas, encontro muitos que foram louvados por terem pregado duma maneira simples e popular; não tenho encontrado nenhum que o fosso por haver pregado em estilo elegante e florido.

                A este propósito, convirá referir aqui resumidamente o que escreveu o sábio e célebre Luís Muratori no seu livro de ouro - Da Eloqüência popular. Eis o que ele diz: Há duas espécies de eloqüência: uma sublime, outra popular. Com a eloqüência sublime, compõem-se discursos cheios de pensamentos profundos, de argumentos engenhosos, expressões brilhantes e períodos arredondados; com a eloqüência popular, expõe-se simplesmente as verdades eternas, e ensinam-se coisas ao alcance de todos os auditórios, em estilo simples e familiar, de tal modo que cada um possa compreender tudo quanto lhe é anunciado. Nos sermões, não se fala somente a pessoas instruídas, mas a ignorantes, que de ordinário compõem a maior parte dos auditórios. Eis por que sempre convém pregar dum modo simples e popular, não só nas missões e exercícios espirituais, mas em todos os sermões feitos ao povo.

                Diante de Deus, tão preciosas são as almas dos sábios como as dos ignorantes, e o pregador é obrigado a procurar a vantagem duns e doutros, indistintamente, conforme a palavra do Apóstolo: Sou devedor aos sábios e aos ignorantes. Por outro lado, mesmo aos sábios, os sermões em estilo simples e familiar são mais proveitosos, que em estilo sublime e florido; porque, quando se assiste a esses discursos brilhantes e elevados, facilmente o espírito se detém a admirá-los, ou a criticá-los, - o que as mais das vezes acontece; e pela sua parte a vontade, privada do seu alimento, pouco fruto colhe deles. O Padre Paulo Segneri le Jeune, pregando duma maneira popular, arrebatava, diz Muratori, o coração dos próprios sábios. Outro tanto acontecia com os sermões de São João Francisco Regis.

                Assim, quem quer pregar, não para ser louvado, mas para ganhar almas para Deus, não deve desejar que digam dele: Ó que belos pensamentos! que orador brilhante! que grande talento! - Deve proceder de modo que todos os seus ouvintes se retirem cabisbaixos, a chorar os seus pecados, decididos a mudar de vida e a dar-se a Deus. Tal é o fim da verdadeira retórica: persuadir, tocar os ouvintes, e movê-los à prática das exortações que se lhes dirigem. De resto, a eloquência popular não esquece os segredos da arte oratória: admite as figuras, a ordem das razões, o colorido, a peroração, mas sempre com simplicidade, sem afetação, no intuito único de fazer fruto, e não de conquistar aplausos. Se em tais sermões os ouvintes não gozam o prazer de admirar a beleza da elocução e a sutileza das reflexões, colhem como fruto luzes e motivos, para trabalharem com ardor no único negócio importante, que é a sua salvação eterna.

                Tudo isso, segundo Muratori, tem aplicação aos sermões pregados nas cidades, onde o auditório é composto de ignorantes e pessoas instruídas; mas acrescenta que, quando se prega apenas ao povo humilde e aos habitantes dos campos, se deve usar da eloquência mais popular e chã, para acomodar a linguagem à curta inteligência dos pobres aldeões. É necessário que o pregador se considere como um dentre eles, que quisesse ensinar outro, ou persuadi-lo a cumprir algum dever. Devem portanto as expressões ser populares e usuais, os períodos curtos e desembaraçados, conforme o costume de raciocinar dessas pessoas. Numa palavra, todo o cuidado do pregador deve ter por objeto fazer compreender aos ouvintes o que lhes diz, e inspirar-lhes a resolução de praticarem as exortações; neste empenho deve empregar a forma mais própria para os impressionar.

                De acordo com o estilo, devem também os pensamentos ser simples e fáceis, evitando pontos discutidos pelos escolásticos, assim como interpretações engenhosas da Escritura que, embora bem compreendidas, seriam inúteis para essa gente. Consiste o talento do pregador em lhes expôr com simplicidade as verdades eternas, a importância da salvação, os artifícios do demônio, e os perigos em que se podem perder; indiquem-se-lhes os meios a empregar nos casos particulares, que lhes possam ocorrer, mas tudo isso de modo que nada exceda a sua capacidade. É assim que se parte o pão, conforme o Senhor manda aos pregadores, queixando-se dos que não cumprem o seu dever: Pediram pão os pequeninos, e não havia quem lho repartisse. É também muito conveniente, quando se prega a pessoas ignorantes, entre miar por vezes perguntas e respostas no sermão. Convém ainda citar-lhes os exemplos dos santos e pôr-lhes diante dos olhos os castigos, que Deus há infligido aos pecadores.

                Acima de tudo, importa insinuar-lhes coisas práticas, e repetir-lhas muitas vezes, para que lhe fiquem gravadas na memória.

                Foi isto o que Muratori escreveu, mas com maior desenvolvimento. Quis apresentar aqui um resumo, para fazer compreender a todos os pregadores que, em vez de colherem aplausos, provocam até as censuras das pessoas instruídas, quando falam em linguagem alevantada ao pobre povo, de que se compõe ordinariamente o auditório nas igrejas.

                Nada mais diremos aqui sobre a pregação. Ao falarmos dos exercícios nas missões, esperamos acrescentar outras reflexões, sobre o modo de pregar em missão, e acerca da ordem a observar nos sermões. Vamos falar agora da administração do sacramento da Penitência.

§ II
                Administração do Sacramento da Penitência

1º. Grave responsabilidade dos confessores

                O grande Papa São Pio V disse: Haja confessores capazes, e veremos uma reforma completa em toda a cristandade. Quer isto dizer que um bom hábil confessor deve antes de tudo olhar o seu ministério como uma função cheia de espinhos e perigos; razão por que o Concílio de Trento lhe chamou uma carga terrível, até para ombros de anjos. De fato, que coisa mais arriscada, diz São Lourenço Justiniano, do que assumir a pesada obrigação de prestar contas da vida dos outros? Não há matéria, diz São Gregório, em que o erro seja mais funesto. Certo é que, se uma alma se perder por culpa do confessor, o Senhor lhe exigirá contas dela: Eu lhes perguntarei o que fizeram das minhas ovelhas. É o que o Apóstolo nos declara: Obedecei aos vossos superiores e sujeitai-vos a eles; porque superintendem em vós, como quem há de responder pelas vossas almas diante de Deus.

                Donde conclui São Gregório que o confessor tem por assim dizer tantas almas, como penitentes, e de todas essas há de dar contas a Deus. E São João Crisóstomo ajunta esta reflexão: Se o termos de dar conta dos nossos pecados é pensamento que nos faz tremer, em que há de confiar o que tem de responder por muitas pessoas?

                Não tem isto aplicação aos bons padres que, compenetrados dum santo temor, se preparam convenientemente para o cabal desempenho deste terrível ministério, e só o exercem no intuito de levarem as almas para Deus. Fala-se aqui dos que se atrevem a ouvir confissões com vistas mundanas, quer por interesse temporal, quer por amor próprio, e algumas vezes sem a ciência suficiente.

2º. Ciência requerida para bem ouvir as confissões

                Quem intenta ressuscitar as almas dos outros, necessita de muita graça e duma ciência não medíocre. É São Lourenço Justiniano quem assim fala. Para ser bom confessor, é preciso em primeiro lugar ter muita ciência. Há quem olhe a ciência moral como muito fácil; mas Gerson afirma com razão que é a mais difícil de todas as ciências. Antes dele disse São Gregório Magno: A direção das almas é a arte das artes. E São Gregório de Nazianzo: A meu ver, dirigir os homens é a ciência das ciências. São Francisco de Sales dizia igualmente que o ministério de confessor é o mais importante e difícil de todos os ministérios; e tinha razão: é o mais importante, porque dele depende a salvação eterna, que é o fim de todas as ciências. É também o mais difícil porque a ciência moral exige o conhecimento de muitas outras ciências, e abrange uma multidão de matérias diferentes.

                O que a torna sobremaneira difícil é a necessidade de variar as decisões, conforme as circunstâncias múltiplas e os casos diversos, que se apresentam. O princípio, por exemplo, que aplica a um caso, acompanhado de certa circunstância, não poderá aplicar-se a outro revestido duma circunstância diferente.

                Há sacerdotes que desprezam a leitura dos moralistas e imaginam que, para confessar, basta conhecer os princípios gerais da moral, mediante os quais dizem, se resolvem facilmente os casos particulares. - Eis a minha resposta: É certo que todos os casos se devem resolver por meio de princípios; mas a dificuldade está em aplicar com precisão aos diferentes casos os princípios que lhes convém, e é o que têm feito os moralistas: têm procurado fazer ver segundo que princípios se deve resolver um grande número de casos particulares. Além disto, sem falar do antigos cânones, há hoje, em bulas e decretos, tantas leis positivas que o confessor é obrigado a conhecer! Mui difícil lhe será ter um conhecimento suficiente dessas leis, sem ler os autores de moral. O sábio autor da Instrução para os novos confessores diz com razão - que não é raro encontrar teólogos tão ignorantes em moral, como profundos nas ciências especulativas.

                No entanto, segundo Sperelli, os confessores que só se entregam ao estudo da escolástica, e olham como perdido o tempo dado ao estudo da moral, laboram em grande erro; acontece-lhes, como ele diz, não saberem distinguir entre lepra e lepra. E ajunta: Este erro leva à perdição eterna confessores e penitentes.

                Devemos pois persuadir-nos de que a administração do sacramento da Penitência exige muita ciência, e ao mesmo tempo muita prudência; porque um confessor, sem prudência, por sábio que seja, pouco fruto tirará do seu ministério, e até por vezes fará mais mal do que bem.

3º. Caridade e firmeza que deve ter o confessor

                Acima de tudo, necessita o confessor da santidade, para se manter com firmeza no exercício de seu ministério. Se não estiver adiantado na santidade, dizia São Lourenço Justiano, não poderá trabalhar na salvação do próximo, sem prejudicar a sua.

I.

                Precisa ele, primeiro que tudo, dum grande fundo de caridade, para acolher todos os que o procurem: pobres, ignorantes e pecadores. Padres há que não confessam senão pessoas devotas; se lhes aparece um pobre aldeão, de consciência embrulhada, ouvem-no com impaciência e despendem-no com dureza. Assim, esse desgraçado que se fez uma grande violência para se vir confessar, ao ver-se repelido, ganha horror ao sacramento, não ousa aproximar-se, e entrega-se desesperado a uma vida dissoluta. O Redentor divino, que veio para salvar os pecadores, e sempre foi cheio de caridade para com eles, dirige a tais confessores a censura que um dia fez a seus discípulos: Vós não sabeis de que espírito deveis estar animados. Não procedem assim os confessores caridosos, que observam a exortação do Apóstolo: Como eleitos de Deus, como santos e queridos dele, tomai entranhas de misericórdia.

                Quanto maior é um pecador que se lhes depara, e mais graves as suas iniquidades, tanto mais se esforçam por ajudá-lo, redobrando de caridade para com ele. Não sois encarregados de castigar como juízes de criminosos, mas de curar, diz Hugo de São Vitor, como juízes de doentes. É necessário, sim, advertir o pecador, para lhe fazer conhecer o estado miserável, em que se encontra de se condenar; mas sempre com caridade, exortando-o a não perder a confiança na misericórdia divina, e fornecendo-lhe os meios para se corrigir.

                Ainda mesmo que o confessor se veja na necessidade de diferir a absolvição, deve contudo despedir sempre o seu penitente com doçura, marcando-lhe o tempo em que deve voltar, e apontando-lhe os remédios, de que deve fazer uso, a fim de se dispôr para a absolvição. É deste modo que se salvam os pecadores, e não exacerbando-os com censuras, que poderiam lançá-los na desesperação. Dizia São Francisco de Sales que se caçam mais moscas com uma gota de mel, do que com abundantes aloes. - Mas dir-seá que para tudo isso, é necessário muito tempo; e então os que esperam não podem confessar-se. - A isso respondo que mais vale confessar um só pecador, que um grande número imperfeitamente. A melhor resposta porém, é que o confessor não tem que prestar contas a Deus dos que estão à espera, mas só daquele a quem começou a ouvir de confissão.

II.

                Em segundo lugar, precisa o confessor de uma grande firmeza, e em particular para ouvir as confissões das mulheres. Quantos padres, em ocasiões tais, têm perdido a sua alma! Acham-se em relação com meninas, ou moças solteiras, ouvem a confissão das suas tentações e muitas vezes das suas quedas; porque também elas são de carne. A própria natureza nos faz afeiçoar às mulheres, principalmente quando elas vem com tanta confiança revelar-nos as suas misérias; e quando são pessoas piedosas, dadas à espiritualidade, o perigo do apego é ainda maior, como diz o Doutor angélico, por que então exercer maior atrativo sobre o nosso coração. No entender do mesmo santo, de parte a parte cresce a afeição, e à proporção dela crescerá o apego, sob a aparência de piedade, a princípio; mas depois o demônio facilmente conseguirá que a afeição espiritual se torne carnal.

                Precisa também de muita firmeza para repreender os penitentes e recusar-lhes até a absolvição, quando se apresentarem mal dispostos, e isto apesar da nobreza e poderio deles, embora corra perigo de ser taxado de indiscreto ou ignorante. Não procureis ser juiz, se não vos reconheceis com coragem para reprimirdes as iniqüidades: não aconteça que vos acabardes diante dos poderosos. Um padre da nossa Congregação, tendo uma vez recusado com justiça a absolvição a um sacerdote, a quem confessava na sacristia, este desgraçado levantou-se orgulhoso e não se envergonhou de lhe dizer de cara: "Seja, não passas de uma besta".

                Não há remédio; estão expostos a estas aventuras os pobres confessores, obrigados a recusar ou diferir a absolvição aos penitentes indispostos dalgum modo: ou porque não querem sujeitar-se às justas obrigações que lhes impõem, ou porque são recidivos, ou se encontram em ocasião próxima de pecado.

                Devemos deter-nos aqui, a examinar a conduta que o confessor tem a seguir a respeito dos ocasionários e recidivos, assunto que exige dele o máximo cuidado, desde que queira salvar os seus penitentes. Mas é preciso que comecemos por observar que são igualmente perigosos para o confessor os dois extremos: o excessivo rigor e a demasiada indulgência para com os penitentes.

                A demasiada indulgência, diz São Boaventura, gera a presunção; o demasiado rigor leva ao desespero. Sabido que é que muitos confessores pecam por demasiada indulgência, e assim causam um mal, que chamaremos não só grande, mas grandíssimo; porque os libertinos, - que são o maior número, - correm de preferência a estes confessores relaxados, e neles encontram a sua perda. Mas é igualmente certo que o excessivo rigor é ainda mais funesto às almas: Vós os governáveis com severidade e altivez, e as milhas ovelhas se dispersaram. Assegura Gerson que o demasiado rigor só serve para lançar as almas no desespero, e do desespero em desenfreamentos extremos. Depois acrescenta: Não devem os teólogos precipitar-se a afirmar que certa ação ou omissão é um pecado grave, sobretudo quando a matéria é controversa e não certa. É também o sentir de São Raimundo.

                A mesma linguagem emprega Santo Antonino: É muito perigoso decidir se um determinado ato é pecado mortal ou somente venial, a não ser que haja fundamento expresso na autoridade da sagrada Escritura, nalgum cânon, numa decisão da Igreja, ou numa razão evidente. Com efeito, acrescenta ele, aquele que, sem se firmar nalgum desses fundamentos, decide que determinada ação é mortal, aedificat ad gehennam, isto é, coloca as almas em perigo de se condenarem. Noutra parte, ao falar dos vão adornos das mulheres, o santo arcebispo exprime-se nestes termos: Quando o confessor vir claramente, de modo a não poder duvidar, que tal pessoa peca gravemente nesta matéria, não a absolva enquanto se não emendar. No caso porém de não poder determinar, duma maneira certa, se a culpa é mortal ou venial, não precipite o seu juízo, não recuse a absolvição; não diga à penitente: É um pecado mortal.

                No caso contrário, se ela em seguida procedesse de encontra a esta decisão, pecaria mortalmente, embora a matéria em si não fosse grave; porque tudo o que é contrário à consciência condena ao inferno. (desde que se apreenda como grave) E como é mais próprio das leis desligar do que ligar, e vale mais, segundo São João Crisóstomo, ter de responder diante de Deus por uma excessiva misericórdia, do que por um exagerado rigor, o melhor partido a tomar nestes casos duvidosos parece que é absolver, deixando a Deus o cuidado de os julgar. Silvestre professa a mesma doutrina. Tal é também o sentir de João Nider que, depois de apontar a opinião de Guilherme, acrescenta: A nossa opinião concorda com a de Bernardo Clermont que diz: Quando uma opinião é discutida entre autores de peso, dos quais uns pensam que uma tal ação é pecado e outros negam, deve o confessor consultar alguns homens que lhe inspirem confiança e seguir a opinião deles.

                Pois, quando uma coisa é controvertida entre os sábios, e a Igreja ainda não decidiu, põe cada um optar pela opinião que lhe aprouver, contanto que se funde no parecer dos que julga mais autorizados.

                E isto está de acordo com a doutrina de Santo Tomás: Não pode escusar-se de erro quem segue a opinião de qualquer mestre, em oposição com o ensino claro da Escritura, ou contra o sentir comum e aprovado pela Igreja. Portanto, em sentido contrário, segundo o Doutor angélico, é lícito tomar como regra uma opinião autorizada, que não se opõe ao texto formal da Escritura, nem a decisão alguma da Igreja. Em confirmação desta doutrina, citemos enfim uma passagem cheia de força, de Gabriel Biel, que florescia pelos fins do século quinze: A primeira opinião parece mais provável, porque não se deve avançar que uma certa falta é mortal, sem haver uma razão evidente ou um texto claro da Escritura.

4º. Regra a praticar com os ocasionários e recidivos

                Examinemos agora em particular qual deve ser, na prática, a conduta do confessor a respeito dos penitentes, que estão em ocasião próxima do pecado, e dos que recai em habitualmente nalgum vício.

I.

                Quanto aos primeiros, é necessário distinguir muitas espécies e ocasiões:

                1º. Divide-se a ocasião em remota e próxima: remota aquela em que as quedas têm sido raras, e ainda aquele em que os homens, geralmente falando, só raras vezes caem; próxima per se é aquela em que os homens têm o costume de cair sempre ou quase sempre; e ocasião próxima per acidentes, ou ocasião relativa, é aquele em que o pecador cai freqüentes vezes, conforme o sentir mais verdadeiro e comum, contra os teólogos que não reconhecem como próxima senão a ocasião, em que se cai sempre ou quase sempre.

                2º. Há mais a ocasião voluntária, e a ocasião necessária: voluntária a que se pode facilmente remover; necessária a que não se pode evitar, sem grande detrimento, ou sem dar grande escândalo a outrem.

                Posto isto, grande número de doutores ensinam que se pode absolver primeira e segunda vez o penitente que está em ocasião próxima, mesmo voluntária, contanto que tenha a firme resolução de a remover logo que possa. Mas é necessário distinguir, com São Carlos Borromeu na Instrução aos confessores, as ocasiões chamadas in esse, como ter uma concubina na sua companhia, das que não são in esse, como seria, por exemplo, o jogo ou certa sociedade com pessoa habituada a blasfemar, maldizer etc.

                Quanto às ocasiões que não são in esse, São Carlos ensina que, quando o penitente promete firmemente abandoná-las, pode-se absolvê-lo duas ou três vezes; mas, se depois se não vir emenda, é necessário diferir-lhe a absolvição até que de todo remova a ocasião.

                É quando as ocasiões in esse, diz o Santo que não se pode conceder a absolvição ao penitente, sem que ele afasta primeiro a ocasião; a simples promessa não basta. Falando em geral, deve seguir-se esta opinião, conforme o provamos na nossa Teologia moral, pela autoridade dum grande número de doutores. A razão é que o penitente não estaria bem disposto para receber a absolvição, se pretendesse obtê-la antes de ter afastado a ocasião; por causa do perigo próximo em que se encontraria de faltar à sua resolução, e à obrigação grave, em que já estava de remover essa ocasião.

                Afastar uma ocasião próxima é coisa muita dura e difícil, que exige grande violência; ora, tal violência dificilmente se fará quando já se houver recebido a absolvição; passado o temor de não ser absolvido, de bom grado se lisonjeará o penitente de poder resistir à tentação, sem afastar a ocasião, e, permanecendo assim exposto ao mesmo perigo, certamente recairá; é o que nos mostra a experiência de tantos desgraçados que, recebida a absolvição de confessores demasiado indulgentes, não se tendo dado ao trabalho de remover a ocasião, recaíram e se tornaram piores que antes! Visto pois o perigo em que o penitente está de faltar à promessa, que fez de remover a ocasião, não tem as disposições requeridas para ser absolvido, desde que o quer ser antes de remover a ocasião; o confessor que neste estado o absolve certamente peca.

                É necessário notar aqui que, geralmente falando, quando se trata do perigo de pecados formais, e sobretudo de pecados vergonhosos, quanto mais o confessor usar de severidade para com os meus penitentes, melhor contribuirá para a salvação da sua alma. Pelo contrário quanto mais indulgente se mostrar, mais duro se lhes tornará. Dos confessores demasiado indulgentes dizia São Tomás de Vilanova, que são deshumanamente humanos - Impie pios. Tal caridade é contra a caridade.

                Dissemos acima ordinariamente falando, porque, em alguns casos raros, poderia o confessor dar a absolvição, antes de se haver afastado a ocasião, por exemplo, se o penitente já tivesse testemunhado uma firme resolução de se corrigir, junta com uma viva compunção, e por outro lado não pudesse remover senão longo tempo depois, ou não pudesse voltar mais ao mesmo confessor; ou enfim se ocorressem outras circunstâncias extraordinárias, que obrigassem o confessor a absolver. Estes casos porém são muitíssimos raros, tornando-se por isso difícil poder absolver os que estão em ocasião próxima, se não a removerem antes, sobretudo se já prometeram fazê-lo e não o fizeram.

                E não venha dizer-se que o penitente disposto tem direito estrito à absolvição, desde que confessou os seus pecados; porque os doutores ensinam comumente que ele não tem direito a recebê-la logo depois da confissão, e que o confessor pode e até deve, como médico espiritual, diferir-lha, quando entender que a dilação possa ser útil para a emenda do seu penitente.

                Isto quanto à ocasião voluntária, mas, se a ocasião é necessária, por via de regra, não há obrigação precisa de a remover; porque então, como o penitente não quer essa ocasião, antes a sofre e permite a pesar seu, há motivo para que o Senhor lhe conceda maiores socorros para resistir à tentação. Assim, por via de regra, pode-se dar a absolvição a quem está em ocasião necessária, contanto que esse esteja resolvido a empregar todos os meios para não recair.

                Os meios principais que ao pecador se devem inculcar para se corrigir, quando se encontrar em ocasiões necessárias, são três:

                I. - A fuga da ocasião, evitando quanto possível, encontrar-se de frente a frente com a pessoa sua cúmplice, entreter-se confidencialmente com ela, e mesmo olhar para ela.

                II. - A oração, implorando continuamente o socorro de Deus e da santíssima Virgem para poder resistir.

                III. - A freqüência da confissão e da comunhão, em que se recebem as forças para vencer o inimigo.

                Disse - por via de regra - porque se o penitente, apesar de todos os meios empregados, recair sempre, sem nenhuma emenda, então o sentir comum mais verdadeiro, e que se deve seguir, é que se recuse a absolvição, se não remover a ocasião, ainda mesmo que isso lhe custasse a vida, (etiam cum jactura vitae, segundo a linguagem dos doutores) porque a vida eterna deve ser preferida à temporal. De mais, embora na ocasião necessária se possa, sem faltar às regras da moral, absolver o penitente disposto, contudo, quando se trata de pecados carnais, será sempre bom, ordinariamente falando, diferir a absolvição, até que se tenha visto por uma experiência conveniente e assás longa, de vinte ou trinta dias, que o penitente pôs fielmente em prática os meios que lhe foram sugeridos e não recaiu mais.

                Acrescentarei que, quando o confessor vir que é vantajoso diferir a absolvição, é obrigado a fazê-lo; porque um confessor é obrigado a empregar os remédios mais próprios para operar a cura do seu penitente. Além disto, em matéria de pecados sensuais, se o penitente está habituado de longe a viver na impudicícia, não lhe bastará evitar as ocasiões próximas; terá mesmo de fugir a certas ocasiões, em si mesmas remotas, mas que para ele se devem considerar próximas, em razão da fraqueza extrema, a que as suas recaídas o têm reduzido, e da propensão que contraiu para um tal vício.

                II. Falemos em segundo lugar dos recidivos, que é necessário distinguir dos habitudinários.

                Chamam-se habitudinários os que cometem habitualmente algum pecado, mas que ainda não confessaram o seu mau hábito. Se estes pecadores estão bem dispostos, isto é, sinceramente arrependidos e no propósito de empregar os meios para destruírem o hábito contraído, podem absolver-se a primeira vez que se confessem, assim como quando se confessarem depois de haverem por espaço notável renunciado ao seu mau hábito. É necessário contudo notar que, quando o mau hábito já está contraído, e principalmente se é inveterado, pode o confessor diferir a absolvição para experimentar o penitente, e ver como ele se aplica a praticar os meios que lhe são prescritos.

                Os recidivos são os que, depois da confissão, recaíram no mesmo hábito mau, sem nenhuma emenda. Não podem ser absolvidos, se só derem os sinais ordinários, isto é, se se contentarem com confessar os seus pecados, dizendo que se arrependem e estão no propósito de não recair.

                Com justiça, Inocêncio XI condenou esta proposição: "Quando um penitente tem um pecado habitual contra a lei de Deus, contra a lei natural ou contra a lei da Igreja, ainda mesmo que não dê nenhuma esperança de emenda, não se lhe deve recusar nem diferir a absolvição, contanto que ele diga de boca que se arrepende e forma o propósito de se emendar. Eis por que esta proposição foi condenado. É verdade que a própria confissão, com a afirmação do penitente, de que está arrependido e disposto a emendar-se, dá ao confessor uma certeza moral das suas boas disposições, contanto que não haja a presunção em contrário; mas, uma vez contraído o mau hábito e tendo o penitente recaído depois de recebida a absolvição, sem mostrar nenhuma emenda, essas recaídas então fazem suspeitar com fundamento que a dor e o propósito não são verdadeiros.

                Eis a razão por que neste caso se deve diferir a absolvição, até que a emenda, por algum tempo, e a prática dos meios prescritos demonstrem as boas disposições do penitente.

                Importa observar aqui, que esta regra se aplica não só aos recidivos em pecados mortais, mas até aos recidivos em pecados veniais, muitos dos quais se confessam por costume, mas sem dor nem propósito. Se estes querem receber a absolvição, deve o confessor ao menos exigir que lhe apresentem matéria certa para o sacramento, acusando alguma falta mais grave da sua vida passada, que mais lhes pese e que estejam na resolução de não tornar a cometer.

                Assim, para absolver tais recidivos, exige-se a prova do tempo, ou pelo menos sinais extraordinários de boas disposições que, - ao contrário do que dizia a proposição condenada - façam transparecer alguma esperança fundada de emenda.

                Eis, segundo o sentir dos doutores, quais são os sinais:

                1º. - Uma grande compunção, manifestada em lágrimas ou por palavras saídas, não da boca, mas do coração, palavras que algumas vezes mostram melhor que as lágrimas a disposição do penitente.

                2º. - Uma diminuição notável no número dos pecados, todas as vezes que o penitente se encontra nas mesmas ocasiões e tentações.

                3º. - Precauções tomadas para não recair, evitando as ocasiões e pondo em prática os meios que lhe haviam sido prescritos; ou até uma grande resistência à tentação antes de sucumbir de novo.

                4º. - Pedir o penitente remédios, ou novos meios para sair do pecado, com verdadeiro desejo de se corrigir.

                5º. - Procurar ele o confessor, não por um piedoso costume estabelecido, como pelo Natal ou em certa festa, não por obediência a pais, mestres ou superiores, mas guiado por uma inspiração divina, para se congraçar com Deus, sobretudo se isso se lhe tornou custoso, fazendo uma longa viagem, ou se para vir teve de vencer grandes dificuldades e fazer-se dura violência.

                6º. - Se foi movido a confessar-se por um sermão que ouviu, ou por uma morte repentina, ou por uma desgraça iminente, ou por algum outro motivo espiritual extraordinário.

                7º. - Se acusa pecados que a vergonha lhe tinha feito calar nas suas confissões passadas.

                8º. - Se, em seguida às advertências, que o confessor lhe dirige, mostra que recebeu um notável acréscimo de luz, e concebeu novo horror do seu estado e do perigo de se condenar.

                9º. - Alguns doutores dão também como sinal extraordinário a promessa firme de empregar os remédios prescritos pelo confessor; mas é raro que se possa confiar bastante nessas promessas, não havendo outro sinal; porque os penitentes, para conseguirem a absolvição, prometem facilmente muitas coisas que talvez, nem mesmo então, estejam na resolução de cumprir.

                Com esses sinais extraordinários, pode o confessor absolver o recidivo; mas pode também diferir-lhe a absolvição por algum tempo, quando isso lhe possa aproveitar. Quanto a saber se é sempre conveniente, em casos tais, diferir a absolvição ao penitente disposto, - é uma questão discutida entre os doutores; uns negam, outros afirmam, contanto que a dilação não ofenda a reputação do penitente, por exemplo: se, não se aproximando da sagrada Mesa, houvesse de dar aos outros suspeita positiva do pecado cometido Quanto a mim, como disse na minha Instrução aos confessores, entendo que, quando não há ocasião extrínseca e se trata de pecados cometidos por fragilidade intrínseca, tais como blasfêmias, ódios, poluções, deleitações morosas etc., raras vezes há vantagem em diferir a absolvição, porque sempre se poderá esperar mais do socorro da graça, que o penitente recebe pela absolvição, que da demora que lhe impusesse.

                Quando houver porém uma ocasião extrínseca, embora necessária, penso, como anteriormente disse, que sempre será útil, e as mais das vezes indispensável para a emenda do penitente, ainda que disposto, diferir-lhe a absolvição.

QUINTA INSTRUÇÃO,

                Sobre a oração mental e ofício divino

§ I
                Necessidade da oração mental para os padres

                Se, moralmente falando, a oração mental é necessária para todos os fiéis, como observa o eminente sábio Padre Suarez, mais necessária ainda o é aos padres; por isso que necessitam de graças e socorros mais abundantes, obrigados como estão a aspirar a mais alta perfeição. O seu estado exigelhes maior santidade, e estão obrigados a trabalhar na salvação das almas: assim se encontram na necessidade de tomar um duplo alimento espiritual, à semelhança das mães que precisam de alimentos corporais mais abundantes, para se sustentarem a si próprias, e aos seus filhos.

                O nosso salvador, diz Santo Ambrósio, nenhuma necessidade tinha de se acolher à solidão para orar, por isso que a sua alma santíssima, gozando continuamente da visão intuitiva de Deus, o contemplava em todo o lugar e a todos os momentos, e orava por nós sem interrupção; no entanto, para nos fazer sentir a necessidade da oração mental, separava-se da multidão como refere São Mateus, e retirava-se a sós para o monte a fim de orar: E, deixada a multidão, subiu para o monte a orar isolado. E São Lucas nos diz que ele passava as noites inteiras em oração. Sobre este texto, faz Santo Ambrósio esta reflexão: Se Jesus Cristo passou as noites a orar pela tua salvação, com quanta mais razão deves tu orar para te salvares! E noutro lugar acrescenta: Devemos orar dia e noite pelo povo que nos está confiado. O venerável João de Ávila punha na mesma linha as duas funções do padre: oferecer sacrifícios e oferecer incenso a Deus.

                Ora, sabe-se que o incenso é o símbolo da oração: Que a minha oração suba à vossa presença como o fumo do incenso. São João viu os anjos a levar taças de ouro cheias de perfumes, que são as orações dos santos. ajunta ele. Ó! quanto agradam a Deus as orações dos bons padres! São Carlos Borromeu, considerando a necessidade, que têm os eclesiásticos de praticar a oração mental, fez decretar no Concílio de Milão que, nos exames dos ordinandos, se lhes perguntasse em especial se sabiam fazer a meditação, se de fato a faziam, e quais os pontos das suas meditações. E o venerável João de Ávila dissuadia de entrarem no sacerdócio os que não tivesse o hábito de se darem muito à oração.

                Não quero alongar-me aqui sobre os motivos, que tornam moralmente necessária a todo o padre, o exercício da oração mental; basta dizer que, sem oração, tem o padre falta de luzes, porque aprecia pouco o grande negócio da salvação, e pensa pouco nos obstáculos que lhe põe, assim como nas obrigações que tem a cumprir para se salvar. Por isso o Salvador disse a seus discípulos: Tende cingidos os rins, e lâmpadas acesas nas vossas mãos. Estas lâmpadas, diz São Boaventura, são as piedosas meditações, em que o Senhor nos alumia: chegai-vos a ele e sereis alumiados. Quem não faz oração tem pouca luz e pouca força. É no repouso da oração, diz São Bernardo, que se adquirem as forças necessárias, para resistir aos inimigos e praticar as virtudes. Quando se levou a noite sem dormir, de manhã não se pode uma pessoa ter de pé e cambaleia a cada passo.

                Tomai tempo para considerar que Eu sou Deus. Se ao menos de quando em quando se não deixam os pensamentos do mundo, se não se busca o retiro para tratar com Deus, mal se conhecem, e pouca luz se tem das coisas eternas. Um dia dizia Jesus Cristo aos seus discípulos, que se tinham ocupado muito tempo a trabalhar na salvação do próximo: Vinde, acolhei-vos a um lugar solitário, e tomai um pouco de repouso. Não falava o Senhor do repouso do corpo, mas do da alma; porque, se a alma se não retirar de tempos a tempos ao silêncio da oração, para só se entreter com Deus, não terá força para prosseguir no bem; em breve cairá no desalento e depois nas ocasiões fatais. Toda a nossa força está no socorro da graça: Tudo posso naquele que me conforta. Mas esse não o dá Deus senão aos que o pedem. Tem ele o maior desejo de nos conceder as graças, mas quer, como diz São Gregório, ser instado por nós, e dalgum modo forçado pelas nossas súplicas.

                Quem nunca pratica a oração mental conhece mal os próprios defeitos, assim como os perigos em que se encontra de perder a graça de Deus, e os meios para vencer as tentações. Por conseqüência mal conhecerá a necessidade em que está de orar, e negligenciará fazê-lo; e, se não orar, certamente se perderá. Por isso Santa Teresa, grande mestra de oração, dizia que quem despreza a oração mental não precisa que os demônios o levem para o inferno; por si próprio se lança nele.

                Pessoas há que recitam muitas orações vocais, mas essas orações, quando se não pratica a oração mental, dificilmente se fazem com atenção: dizem-se com o espírito distraído, e o Senhor pouco as escuta. Sobre o texto - Voce mea ad Dominum clamavi - faz Santo Agostinho esta reflexão: Muitos há que clamam, não com a sua voz, mas com a voz do corpo. O vosso apelo ao Senhor é o vosso pensamento. Clamai no interior, onde Deus escuta. Não basta pois orar com os lábios; é preciso orar em espírito, se se querem conseguir de Deus as graças que se pedem, conforme a expressão do Apóstolo: Orando a toda a hora em espírito. É o que a experiência demonstra:: vêem-se muitos que fazem diversas orações vocais, recitam o ofício, o rosário, e contudo caem no pecado e continuam a viver nele.

                Pelo contrário, quem pratica a oração mental dificilmente cai no pecado, e se alguma vez tem a desgraça de cair, não se deixa permanecer nesse miserável estado: ou abandona a oração, ou deixa o pecado. Oração e pecado não podem subsistir juntos. "Por muito relaxada que se ache uma alma, dizia Sta. Teresa, se ela perseverar na oração, o Senhor acabará por conduzi-la ao porto da salvação". É pela oração mental que todos os santos se elevam à santidade. Segundo São Lourenço Justiniano, a oração afugenta as tentações, dissipa a tristeza, repara as forças da alma, desperta-lhe o fervor e inflama-lhe a caridade divina. Afirmava Santo Inácio de Loyola que não lhe sobrevinha nenhuma amargura, que ele não pudesse adoçar com um quarto de hora de oração. A meditação, dizia São Bernardo, rege os afetos, governa as ações e corrige os excessos. São João Crisóstomo olha como morta uma alma que não ora. No sentir de Rufino, é da meditação que está dependente o progresso espiritual duma alma.

                E Gerson chega a dizer que quem não medita só por milagre pode viver como cristão. São Luís de Gonzaga, falando da perfeição, a que todo o padre está especialmente obrigado, tinha razão para dizer que, o que não se aplicar muito à oração mental jamais atingirá um alto grau de virtude.

§ II
                Responde-se às desculpas

                Nada mais direi aqui sobre a necessidade da oração mental; apenas me demorei a responder a três desculpas, que de ordinário costumam apresentar os padres avessos a este exercício.

I.

                Quanto a mim, diz um, não faço meditação, porque só experimento nela desolação, distração e tentação; o meu espírito, sempre vagabundo, não sabe fixar-se a meditar; é por isso que a ponto de parte.

                A isto responde São Francisco de Sales que ainda que o que medita só cuidasse de repelir continuamente as distrações e as tentações, não deixaria a meditação de ser bem feita, contanto que as distrações não fossem voluntárias. Vê o Senhor com prazer a boa intenção que se tem, e o trabalho que se emprega para perseverar até ao fim, nada diminuindo ao tempo marcado; não deixa ele de recompensar os esforços com graças abundantes. Não se deve ir à meditação para encontrar nela prazer, mas para dar prazer a Deus. Também as almas santas experimentam securas na oração, mas o Senhor as enriquece dos seus dons, porque são perseverantes. Dizia São Francisco de Sales que uma onça de oração, feita no meio de desolações, pesa mais diante do Deus, do que cem arráteis no meio de consolações.

                As estátuas imóveis, que adornam as galerias dum palácio, não deixam de prestar honra ao príncipe,;e o Senhor pois quer que sejamos como estátuas na sua presença, contentemo-nos em o honrar como estátuas; então nos bastará dizer-lhe: Senhor, estou aqui para vos agradar!

                Santo Isidoro nos assegura que nunca o demônio faz maiores esforços para nos tentar e distrair, do que quando fazemos oração. Por quê? Porque, ao ver o grande fruto que se tira da oração, quer que a abandonemos: deixála pois, por causa da aridez que nos causa, é dar grande prazer ao demônio. Nesses momentos de secura, o que a alma deve fazer é humilhar-se e suplicar. Humilhar-se: nunca estamos em melhor situação para conhecermos a nossa miséria e insuficiência, do que no tempo de secura e desolação espiritual. Então vemos bem que de nós mesmos não podemos nada, e o que temos a fazer em tal estado é unirmo-nos a Jesus desolado na cruz, humilharmo-nos e implorar a misericórdia divina, repetindo sempre: Senhor, ajudai-me! Senhor, tende compaixão de mim! Meu Jesus, misericórdia! - Uma oração assim feita será mais vantajosa que todas as outras, porque Deus abre os tesouros das suas graças aos humildes.

                Nessas ocasiões mais que nunca, apliquemo-nos a pedir misericórdia para nós e para os pecadores. Dum modo especial exige Deus dos padres que orem pelos pecadores: Os sacerdotes, os ministros do Senhor, estarão em lágrimas e clamarão: Perdoai, ó Senhor, perdoai ao vosso povo! - Para satisfazer a isso, dir-se-á, basta recitar o ofício divino. - Mas Santo Agostinho nos declara que o ladrar dos cães é mais agradável a Deus, do que as orações dos maus sacerdotes, como o são de ordinário os que nunca praticam a oração mental. De fato, sem a oração mental é muito difícil ter o espírito eclesiástico.

II.

                Pela minha parte, diz um segundo, se não faço a oração mental, nem por isso perco o meu tempo, porque o consagro ao estudo.

                Mais eis o que o Apóstolo, escrevia a Timóteo: Atende a ti e à doutrina. E primeiramente diz Tibi, isto é, aplica-te à oração, na qual o padre trabalha para si. Em segundo lugar diz Doctrinae, isto é, aplica-te ao estudo, para conseguires a salvação do próximo. - Como poderemos santificar os outros, se não formos santos? "Ditoso, ó Senhor, o que vos conhece, embora ignore tudo o mais"! Assim fala Santo Agostinho. Nada nos aproveitaria para a salvação eterna, possuir todas as ciências, se não soubéramos amar a Jesus Cristo; se pelo contrário soubermos amá-lo, saberemos tudo e gozaremos duma felicidade sem fim. Felizes pois aqueles a quem é dada a ciência dos santos, que consiste em saber amar a Deus. Além disto, uma só palavra, saída da boca dum padre que ama a Deus verdadeiramente, fará maior bem aos outros que mil sermões de sacerdotes sábios, que lhe têm pouco amor.

                Ora, esta ciência dos santos não se adquire pelo estudo dos livros, mas pela oração, em que o crucifixo é ao mesmo tempo o mestre que ensina, e o livro que se lê. Um dia perguntava a São Boaventura Santo Tomás em que livro tinha haurido tantos conhecimentos; o Doutor Seráfico apontou-lhe o crucifixo, dizendo-lhe que era o livro em que havia aprendido tudo quanto sabia. Por vezes se aprenderá mais num instante, na oração, do que em dez anos de estudo nos livros. É o que afirma São Boaventura: Os anseios de amor divino, diz ele, deixam na alma uma ciência mais perfeita que tudo o que se pode conseguir pelo estudo.

                Para adquirir as ciências humanas, precisa-se de muita inteligência; para a ciência dos santos, basta a boa vontade. Quem mais ama a Deus, melhor o conhece, conforme esta máxima de São Gregório: O próprio amor é ciência. E o mesmo disse Santo Agostinho: Amar é ver. Por isso Davi exortava assim todos os homens: Gostai e vêde como o Senhor é doce.

                Quanto mais se toma o gosto a Deus pelo amor, melhor se vê, melhor se conhece a grandeza da sua bondade. Quem saboreia o mel conhece-o melhor que os filósofos, que estudam e explicam a sua natureza. Daqui a sentença de Santo Agostinho: É Deus a própria sabedoria; donde se segue que o verdadeiro filósofos, ou amigo da sabedoria, é o que ama a Deus verdadeiramente.

                Para aprender as ciências do mundo, é preciso muito tempo e trabalho; para aprender a ciência dos santos, basta pedi-la. Eis como fala o Sábio: "A sabedoria divina facilmente se deixa encontrar, mesmo antes de ser procurada. Quem a procura com diligência, não terá dificuldade em a encontrar; porque a verá sentada à sua porta, à espera". Depois de ter assim encontrado a verdadeira sabedoria, que é o amor de Deus, dizia Salomão que todos os bens lhe tinham advindo com ela.

                Tal é a ciência dos santos. Ó! Quanto São Filipe de Néri aprendeu nas catacumbas de São Sebastião, onde passava noites inteiras em oração! Encontrou lá a que não tinha encontrado na leitura dos livros. Quanto mais aprendeu São Jerônimo na gruta de Belém, do que em todos os estudos que havia feito! Dizia o Padre Suarez que antes quereria perder toda a sua ciência do que uma hora de oração. Que os sábios do mundo se gloriem de sua sabedoria, dizia São Paulino, os ricos das suas riquezas, os reis dos seus reinos; quanto a nós, que a nossa sabedoria, riqueza e reino seja Jesus Cristo! Digamos com São Francisco de Assis: Meu Deus e meu tudo! É pois esta a verdadeira sabedoria que principalmente devemos pedir a Deus, que não deixa de a conceder a quem lha pede.

                Que o estudo seja útil e até necessário aos padres, não se nega; mas o estudo mais necessário é o do crucifixo. Dava-se com ardor ao estudo dos livros filosóficos um certo Jovio, e pouco se importava da vida espiritual, sob o pretexto da falta de tempo. São Paulino, numa carta, repreendo-o assim: Tens tempo para ser filósofo e não o tens para ser cristão! Há sacerdotes que gastam muito tempo a estuar matemática, geometria, astronomia e história profana. - Se ao menos se aplicassem a estudos próprios do seu estado! E depois disto desculpam-se, dizendo que não têm tempo para a oração! Seria a propósito fazer-lhes esta censura: Vacat tibi ut eruditus sis; non vacat ut sacerdos sis? Como diz Sêneca, se temos pouco tempo, é porque perdemos muito. E mais: Ignoramos as coisas necessárias, porque aprendemos coisas inúteis.

III.

                Um terceiro dirá: Eu bem queria fazer oração, mas o confessionário, e os sermões não me deixam um instante livre.

                Respondo-lhe: Visto que sois padre, é muito louvável que trabalheis na salvação das almas, mas não posso aprovar que, para serdes útil aos outros, vos esqueçais de vós mesmo. É preciso que nos ocupemos de nós mesmos, fazendo oração; depois cuidaremos de socorrer o próximo.

                Foram os apóstolos, sem contestação, os obreiros mais infatigáveis do Evangelho; apesar disso, ao verem que os cuidados prodigalizados ao próximo lhes não deixavam tempo para se darem à oração, instituíram diáconos que os ajudassem nas obras exteriores, para se poderem aplicar à oração e à pregação. Irmãos, disseram eles, escolhei homens, em quem possamos delegar este cuidado; pela nossa parte, temos que dar-nos por inteiro à oração e ao ministério da palavra.

                Note-se bem: quem eles dar-se primeiro à oração e depois à pregação, porque os discursos sem a oração produzem pouco fruto. Foi precisamente o que Sta. Teresa escreveu ao bispo de Osma, que trabalhava com zelo no bem das suas ovelhas, mas descurava a oração: "Nosso Senhor me fez conhecer, lhe diz ela, que nos falta o mais necessário, o que é basilar, e desde que os alicerces faltam o edifício desaba. Ora, o que vos falta é a oração e a perseverança na oração; daí procede a aridez que a alma experimenta. São Bernardo advertiu igualmente o papa Eugênio III: que não abandonasse a oração por causa dos negócios exteriores; que os que abandonam a oração podem cair numa tal dureza de coração, que percam os remorsos dos seus pecados e não sintam horror de os haverem cometido.

                "Temo, ó Eugênio, que a multidão dos negócios te impeça de te dares à oração e à meditação, e te leve a uma tal dureza de coração, que não tenhas horror ao teu estado, por não o sentires.

                Sem a doce contemplação de Maria, diz São Lourenço Justiniano, não poderiam as obras de Marta atingir a perfeição. Engana-se, acrescenta ele, quem pensa em levar a bom termo o negócio da salvação, sem o socorro da oração. Quanto mais uma empresa é nobre, tanto mais arriscada é; quem não cuidar de se alimentar da oração, cairá a meio de caminho. A seus discípulos mandou nosso Senhor que pregassem o que tivessem aprendido na oração: O que vos digo ao ouvido, publicai-o dos telhados. Trata-se aqui do ouvido do coração, ao qual Deus promete falar no retiro da oração: Levála-ei ao retiro e lhe falarei ao coração. É na oração, escrevia São Paulino, que se recebe o espírito que se tem de comunicar aos outros. Assim, gemia São Bernardo ao ver nos padres tantos canais e tão poucos reservatórios, devendo o padre ser primeiramente reservatório, que se encha de santas luzes e piedosos afetos, bebidos na oração, para depois ser canal benéfico do seu próximo.

                É necessário, diz São Lourenço Justiniano, que o padre antes de trabalhar na salvação do próximo se aplique à oração. São Bernardo parafraseando esta passagem dos Cânticos - Dignai-vos atrair-me; atrás de vós correremos, ao odor dos vossos perfumes - faz assim falar a Esposa sagrada, ou a Igreja: Não serei só eu a correr, comigo correrão também as jovens; correremos ao mesmo tempo, eu movida pelo odor dos vossos perfumes, elas excitadas pelo meu exemplo. Tal é a linguagem que deve ter um padre zeloso da salvação das almas, dirigindo-se a Deus: Atraí-me a vós, Senhor, e eu correrei para vós, e os outros correrão comigo: eu correrei atraído pelo odor dos vossos perfumes, isto é, pelas inspirações e graças que de vós receber na oração, e os outros correrão ao impulso do meu bom exemplo.

                Para poder pois atrair muitas almas a Deus, é necessário que o padre comece por se fazer atrair de Deus. Assim o têm feito os santos obreiros do Evangelho, tais como São Domingos, São Filipe de Néri, São Francisco Xavier, São João Francisco Regis, que gastavam o dia inteiro a trabalhar para o povo, e consagravam a noite à oração, até que fossem acabrunhados pelo sono. Um só padre mediocremente instruído, mas possuído dum grande zelo, ganhará mais almas para Deus, que muitos outros superiores em sabedoria, mas tíbios. Um só abrasado em zelo, diz São João Crisóstomo, basta para reformar um povo inteiro. Uma palavra dum pregador, inflamado no santo amor, fará mais efeito que cem sermões cuidadosamente preparados por um teólogo, que ame pouco a Deus. Diz São Tomás de Vilanova que, para ferir os corações e abrasá-lo no amor divino, se requerem palavras ardentes, que sejam como dardos de fogo.

                Mas, ajunta ele, - como poderão sair dum coração de gelo esses dardos de fogo? É a oração que abrasa os corações dos santos padres, e de gelados os torna ardentes. Ao falar especialmente do amor que Jesus Cristo nos testemunhou, o Apóstolo exclama: O amor de Jesus Cristo insta conosco. Assim nos faz compreender que é impossível meditar os sofrimentos e ignomínias, que o nosso Redentor suportou por nosso amor, e não nos sentirmos animados a procurar que todos se abrasem no seu amor. Foi o que o profeta Isaías predisse no seu Cântico: Haveis de ir cheios de alegria beber nas fontes do Salvador, e direis naquele dia: Louvai ao Senhor e invocai o seu nome. As fontes do Salvador são os exemplos da vida de Jesus Cristo.

                Ó! que fontes de luz e de santos afetos encontram neles as almas que os contemplam! Acende-se nos seus corações o fogo do amor divino, que elas depois comunicam aos outros, exortando-os a reconhecer, amar e louvar a bondade do nosso Deus.

§ III
                Sobre a recitação do Ofício divino

                Convém ajuntar aqui algumas palavras sobre a recitação do ofício divino.

                Eis os frutos do ofício divino: honrar a Deus, resistir ao furor dos nossos inimigos e obter misericórdia para os pecadores; mas, para isso, é necessário que se recite como convém, e como o exige o V. Concílio de Latrão, isto é, studiose et devote. Explicam-se assim estas duas palavras studiose, quer dizer pronunciar bem; devote, com atenção, segundo a palavra de Santo Agostinho, - que o vosso coração se ocupe do que os vossos lábios proferem. Como quereis vós, pergunta São Cipriano, que Deus vos ouça se a vós mesmos vos não ouvis?

                Feita com atenção, é a oração esse incenso de suave odor que tanto agrada a Deus e nos obtém tesouros de graças; ao contrário, se for feita com distrações voluntárias, torna-se como um fumo infecto, que irrita o Senhor e atrai castigos. Por isso, ao recitarmos o ofício, o demônio se empenha em nos tentar com distrações e defeitos. Então nos importa redobrar de esforços para o recitarmos dum modo conveniente. Eis para isto alguns avisos práticos:

                I. - Avivemos então a nossa fé, com a lembrança de que a vossa voz se une à dos anjos para louvar a Deus. Diz Tertuliano: Estamos a fazer ensaio do que havemos de praticar na glória; fazemos na terra o que fazem os bem-aventurados na pátria celeste, onde cantam sem cessar e cantarão eternamente os louvores do Senhor. Assim, antes de entrarmos na igreja, ou de lançarmos mão do breviário, devemos deixar à porta e despedir todos os pensamentos do mundo, segundo o aviso de São João Crisóstomo: Ninguém entre no templo com o fardo dos cuidados terrenos; tais coisas deixam-se à porta.

                II. - É necessário que os afetos do nosso coração acompanhem os sentimentos que à nossa boca exprime, segundo o que ensina Santo Agostinho: Se o salmo ora, orai; se geme, gemei; se inculca esperança, esperai.

                III. - É bom que renovemos a nossa intenção de tempos a tempos, por exemplo no começo de cada salmo.

                IV. - Finalmente, deve-se evitar tudo quanto possa ocasionar distração ao nosso espírito. Que atenção e devoção poderia ter no ofício quem o recitasse num lugar transitado, ou em presença de pessoas que soltassem risadas e grilos?

                Ó! quanto aproveitam os que todos os dias recitam o ofício com devoção! Implentur Spirictu Sancto, diz São João Crisóstomo. Os que, ao contrário, o rezam com negligência, perdem muitos merecimentos, e hão de prestar a Deus rigorosas contas.

SEXTA INSTRUÇÃO,

                Sobre a humildade

                Aprendei de mim que sou manso e humilde do coração. A humildade e a doçura foram as duas virtudes favoritas de Jesus Cristo, virtudes em que, dum modo muito especial, quis ser imitado por seus discípulos. Falemos primeiro da humildade, depois falaremos da doçura.

§ I
                Necessidade da humildade

                Segundo São Bernardo, quanto mais alta é a dignidade do padre, tanto mais ele deve ser humilde; de contrário, se cair no pecado, a da queda será a medida da sua elevação. Donde conclui São Lourenço Justiniano que a jóia mais brilhante e preciosa do padre deve ser a humildade. No mesmo sentido diz Alcuino: Visto que estás colocado na mais sublime dignidade, necessária te é a mais excelente humildade. E antes deles tinha dito o divino Mestre: O maior dentre vós faça-se o mais pequeno de todos. A humildade é a verdade; por isso o Espírito Santo nos adverte que, - se soubermos distinguir o precioso do vil, isto é, o que é de Deus do que é nosso, - seremos como que a sua boca, que sempre diz a verdade. Devemos pois repetir sempre esta súplica de Santo Agostinho: Que eu me conheça a mim e vos conheça a vós.

                É também o que continuamente dizia a Deus São Francisco de Assis, por estas palavras: "Quem sois vós e quem sou eu?" Estava tão compenetrado a um tempo, da grandeza e bondade que via em Deus, como da indignidade e miséria que descobria em sim mesmo. É assim que, à vista do Bem infinito, os santos se abatem até ao centro da terra; quanto melhor conhecem a Deus, tanto mais pobres e cheios de defeitos se reconhecem. Os orgulhosos, ao contrário, mal conheceu o seu nada, porque estão às escuras.

                Separemos portanto o que nos pertence a nós do que pertence a Deus. Da nossa parte só temos miséria e pecado. De fato, o que somos nós senão um pouco de pó manchado de iniquidades? E podemos orgulhar-nos? Porque se encheu de orgulho o que é terra e cinza? A nobreza, a riqueza, os talentos e os outros dons da natureza são apenas um manto lançado sobre os ombros dum pobre mendigo. Acaso não olharíeis como um louco o pedinte que se orgulhasse com sua cobertura bordada a ouro, que lhe houvessem emprestado? Que tendes vós que não hajais recebido? E se o recebestes, porque vos gloriais, como se o devêsseis a vós mesmos? Que possuís vós que não tenhais recebido de Deus, e que ele não possa tirar-nos, quando lhe aprouver?

                Mais ainda, dispensa-nos Deus os dons preciosos da sua graça, e nós misturamos-lhes inumeráveis faltas, distrações, fins desordenados e impaciências. Todas as nossas boas obras são como um tecido repleto de manchas.

                Deste modo, quando talvez nos cremos mais alumiados e ricos de merecimentos, - depois das nossas missas, ofícios e orações, - é que mais nos quadra a censura dirigida a um bispo no Apocalipse: Dizes tu: Sou rico; e não sabes que és pobre, miserável, cego e nu? Pelo menos, desde que aos olhos de Deus conheçamos a nossa pobreza e imperfeições, cuidemos de lhe endereçar as nossas súplicas, humilhando-nos e confessando as nossas misérias, conforme ensina São Bernardo: Suprireis com a humildade da vossa confissão o que falta ao vosso fervor. Estava ainda no mundo São Francisco de Borja, quando um santo homem lhe aconselhou que, se queria fazer grandes progressos na virtude, não deixasse passar nenhum dia sem considerar a sua miséria. Dócil a este aviso, consagrava ele cada dia as duas primeiras horas da sua oração ao conhecimento e desprezo de si mesmo.

                Foi assim que chegou à santidade e nos deixou tão belos exemplos de humildade.

                Diz Santo Agostinho: Deus está alto; se te elevas, foge de ti; se te abaixas, desce para ti. Aos humildes une-se o Senhor de boa vontade, e enriquece-os das suas graças; dos orgulhosos, afasta-se, e foge deles com horror. Ouve as preces dos humildes: A oração do que se humilha atravessará as nuvens... e não se retirará sem que o Altíssimo a tenha atendido. Repele ao contrário as orações dos soberbos: Resiste Deus aos soberbos e dá a sua graça aos humildes. Aos orgulhosos não quer vê-los senão de longe: Está Deus muitíssimo alto e olha com benevolência as coisas baixas; as altas olha-as de longe. As pessoas que vemos ao longe não as conhecemos; assim de certo modo parece que Deus não conhece nem ouve os orgulhosos que lhe pedem. Quando esses o invocam, responde-lhes: Em verdade vos digo que não vos conheço. Numa palavra, os orgulhosos são abomináveis a Deus e aos homens.


                Por vezes se vêem os homens obrigados a prestar homenagem aos soberbos; mas no seu coração detestam-nos e desprezam-nos, até em presença dos outros: Onde reina a soberba, lá reinará também o desprezo.

                Falando da humildade de Santa Paula, São Jerônimo tece-lhes este elogio: Obtinha a glória, fugindo dela; porque, assim como a sombra segue o homem que a evita, e parece fugir do que corre atrás dela, assim a glória se liga ao homem que a despreza, e se afasta de quem a procura. Quem se exalta será humilhado, e quem se humilha será exaltado. Se um padre, por exemplo, fizer uma boa obra e não falar dela, os que vierem a conhecê-la todos lhe darão louvores; se ele a publicar, para ser aplaudido, colherá desprezos em vez de louvores. Que vergonha, exclama São Gregório, ver os que devem ensinar a humildade, tornarem-se pelo mau exemplo doutores do orgulho! Desnecessário será dizer que não se fala dos benfeitores senão para manifestar o bem e dar por ele glória a Deus. Falar da obra, diz Sêneca, é louvar o obreiro.

                Quem vos ouvir publicar o bem que tendes feito, há de acreditar que o fazeis para serdes louvado; assim perdereis a estima dos homens e o merecimento diante de Deus que, ao ver-vos procurar os louvores do mundo, vos aplicará esta sentença do Evangelho: Na verdade, na verdade vos digo, já receberam o seu salário. Declara o Senhor que abomina, dum modo especial, três espécies de pecadores: O pobre soberbo, o rico mentiroso e o velho insensato. Vê-se que o primeiro na aversão de Deus é o pobre soberbo.

§ II
                Prática da humildade

                Vamos agora à prática: vejamos o que temos a fazer para sermos verdadeiramente humildes, não de nome mas de fato.

1º. Ter horror ao orgulho

                Primeiro que tudo, devemos conceber um grande horror pelo orgulho, porque Deus, como acima vimos, resiste aos orgulhosos e priva-os das suas graças. Um padre, sobretudo para se conservar casto, necessita duma assistência particular de Deus; como pois, se for orgulhoso, poderá guardar a castidade, quando o Senhor lhe retirar o auxílio, em castigo do seu orgulho?

                O orgulho, diz o Sábio, é o sinal duma ruína próxima. Por isso Santo Agostinho chega a dizer que, de certo modo, é proveitoso aos orgulhosos caírem nalgum pecado manifesto, para que aprendam a humilhar-se e a desprezar-se a si próprios. Assim Davi caiu em adultério, por falta de humildade, como depois confessou nestes termos: Pequei antes de ser humilhado. Diz São Gregório que o orgulho produz a impudicícia; porque a carne precipita no inferno os que se deixam enfatuar pelo espírito de orgulho. Está no meio deles o espírito de fornicação... E a arrogância de Israel se ostenta no seu rosto. Perguntai a um impudico porque recai sempre nas mesmas torpezas: Respondebit arrogantia: responderá por ele o orgulho, apresentando-se como causa; porque o Senhor castiga a audácia presunçosa do orgulhoso, permitindo-lhe que se afunde nas suas baixezas.

                Como diz o Apóstolo, foi o castigo infligido outrora ao orgulho dos sábios do mundo: Por isso os entregou Deus aos desejos do seu coração, à impureza, para que desonrassem o seu próprio corpo. O demônio não teme os orgulhosos. Refere Cesário que um dia um possesso, tendo sido levado a um mosteiro de Citeaux, o abade chamou para junto de si um jovem religioso, com grande fama de virtude, e disse ao demônio: Se este religioso te mandasse sair, ousarias tu resistir? - "Desse não tenho eu medo, porque é orgulhoso, respondeu o espírito maligno". - São José Calasâncio dizia que um padre orgulhoso é nas mãos do demônio como uma péla de jogar, que ele arremessa e faz cair onde lhe apraz.

                Sempre os santos têm temido mais o orgulho e a vanglória que todo os males temporais. Conta Súrio que um santo homem, a quem os seus milagres atraíam a estima e veneração de todo o mundo, pediu ao Senhor que o tornasse possesso do demônio, para se pôr a salvo das freqüentes tentações de vanglória, que o assaltavam; foi ouvido, e permaneceu possesso durante cinco meses, passados os quais foi livre do espírito infernal, e ao mesmo tempo do espírito de vaidade que o atormentava. Neste intuito permite Deus que os próprios santos estejam expostos às tentações de impureza e, apesar das suas súplicas, persistam no combate. Foi o que aconteceu a São Paulo, como ele escreveu: Para que a grandeza destas revelações me não fizesse orgulhar, foi-me dado o aguilhão da carne, um anjo de Satanás que me prega bofetadas.

                Por essa causa três vezes pedi a Deus que me livrasse dele; e respondeu-me: Basta-te a minha graça; porque a virtude aperfeiçoa-se na fraqueza.

                Assim, diz São Jerônimo, foi dado a São Paulo o aguilhão da carne, como despertador para o conservar na humildade. Donde São Gregório conclui que, para se conservar a castidade em toda a sua integridade, é necessário confiá-la à guarda da humildade.

                Façamos aqui uma reflexão: Para humilhar o orgulho do povo egípcio, mandou-lhe o Senhor como tormento, não ursos ou leões, mas rãs. Que quer isto significar? Que algumas vezes permite Deus que sejamos atormentados por certas palavras insignificantes que ouvimos, por pequenas aversões, por coisas de nada, para que reconheçamos a nossa miséria e nos humilhemos.

2º. Não se gloriar do bem praticado

                Em segundo lugar é necessário que estejamos prevenidos contra a vaidade, por qualquer bem de que sejamos instrumentos, - nós principalmente que nos achamos erguidos à sublime dignidade do sacerdócio. Como são altos os nossos ministérios! Foi-nos confiada a augusta função de oferecer a Deus o seu próprio Filho. Como diz São Paulo, foi-nos conferida a missão de reconciliar os pecadores com Deus, pela pregação e administração dos sacramentos. Somos os embaixadores e vigários de Jesus Cristo, órgãos de Espírito Santo. São as mais altas montanhas, diz São Jerônimo, que estão mais expostas aos ventos impetuosos; assim, quanto mais sublime é o nosso ministério, tanto mais sujeitos estamos aos assaltos da vanglória. Todos nos estimam, e nos olham como sábios e santos; facilmente se perturba a cabeça dos que estão em grandes alturas.

                Quantos padres, por falta de humildade, caíram no precipício! Montano chegou a fazer milagres, e depois a ambição fez dele um heresiarca.

                Taciano compôs muitos e belos escritos contra os idólatras, e o orgulho fê-lo cair também na heresia. O irmão Justino, franciscano, foi precipitado pelo orgulho, dos mais altos graus da contemplação, na apostasia, e morreu como réprobo. Na Vida de São Palemon se lê que um monge, caminhando sobre carvões ardentes se gloriava e dizia: "Qual de vós pode caminhar sobre brasas, sem se queimar?" São Palemon repreendeuo, mas o desgraçado encheu-se de orgulho, caiu num pecado e morreu em mau estado.

                Dominado pelo orgulho, o homem espiritual é o mais culpado de todos os bandidos, porque o que ele arrebata não são bens de terra, é a glória do Céu. São Francisco tinha o costume de fazer esta súplica: "Senhor! guardai vós mesmo os bens que me derdes; de contrário, eu vo-los roubaria". Tal é a oração que também nós, os padres devemos fazer. Digamos sempre com São Paulo: Tudo quanto sou, à graça de Deus o devo. De fato, segundo o mesmo Apóstolo, somos incapazes, não só de boas obras, mas até de termos de nós mesmos um bom pensamento. Daí a advertência que o Senhor nos faz: Uma vez cumprido o que vos é prescrito, dizei: Somos servos inúteis; só fizemos o que era do nosso dever. Que podem aproveitar a Deus todas as nossas obras? que necessidade pode ele ter dos nossos bens? Sois vós o meu Deus, dizia Davi, não careceis dos meus bens.

                Em Jó lê-se: Se fizerdes o bem, o que é que lhe dais? Que dádiva podeis oferecer a Deus, que o torne mais rico? Somos ainda servos inúteis, porque tudo quanto fazemos nada é, para um Deus que merece um amor infinito e tanto sofreu por nosso amor. Razão por que o Apóstolo dizia de si mesmo: Se pregar o Evangelho, não tenho que me gloriar disso, porque é dever meu fazê-lo. Por dever e também por gratidão estamos obrigados a fazer por Deus o que pudermos, e tanto mais que tudo o que fazemos é mais obra sua do que nossa. "Quem não mofaria das nuvens, se elas se gloriassem da chuva que nos dão?" É São Bernardo quem assim fala, e acrescenta que nas obras dos santos os louvores devem ir menos para os que as fazem, do que para Deus, que se serve deles para as fazer. No mesmo sentido diz Santo Agostinho, dirigindo-se a Deus: Se algum bem há, grande ou pequeno, é de vós que ele promana; da nossa parte só há mal.

                E noutro lugar: Quem vos apresentar como seus alguns merecimentos, que vos apresentará senão os vossos dons?

                Assim, quando fazemos algum bem, devemos dizer ao Senhor: O que das vossas mãos temos recebido, é o que vos retribuímos. Quando Sta. Teresa fazia ou via fazer alguma obra boa, louvava a Deus, dizendo que dele derivava todo o bem. Dali esta advertência de Santo Agostinho, - que, se a humildade não caminhar na vanguarda, tudo quanto fizermos de bem se tornará presa do orgulho. Está o orgulho como de emboscada para fazer perecer as nossas boas obras. É o que fazia dizer a São José Calasâncio: quanto mais Deus nos favorece com graças particulares, tanto mais nos devemos humilhar, se não queremos perder tudo.

                Por um pouco de estima própria se compromete tudo. Multiplicar atos de virtude, sem a humildade, é o mesmo que lançar poeira ao vento, diz São Gregório. E Tritêmio ajunta: Se desprezais os outros, tornais-vos piores que todos.

                Nunca os santos se gloriam das suas vantagens, antes procuram fazer conhecer aos outros o que pode redundar em confusão sua. O Padre Vilanova, da Companhia de Jesus, não tinha nenhuma repugnância em dizer a toda a gente que o seu irmão era um pobre artista. O Padre Sacchini, da mesma Companhia, encontrando em público seu pai, que era um pobre almocreve, correu logo a abraçá-lo, exclamando: "Ó! eis o meu pai!" Cuidemos de ler as Vidas dos santos, e perderemos o orgulho: nelas encontramos atos heroicos, e cuja vista coraremos de tão pouco havermos feito.

3º. Manter-se na desconfiança de si mesmo

                Em terceiro lugar, é necessário que vivamos numa contínua desconfiança de nós mesmos. Se Deus nos não assistir, não poderemos conservar-nos na sua graça: Se Deus não guardar a cidade, debalde vigiará o que a guarda. Há santos que, com pouca ciência, converteram povos inteiros. Santo Inácio de Loyola fazia em Roma discursos familiares, e até cheios de expressões impróprias; apesar disso, como eram palavras que saíam dum coração humilde e abrasado do amor de Deus, produziam um tal fruto, que os ouvintes iam logo confessar-se com tantas lágrimas que mal podiam falar. Pelo contrário, há sábios que pregam e, com toda a sua ciência e eloquência, não convertem uma só alma. É sobre eles que recai esta palavra de Oséas: Dá-lhes um seio estéril e peitos sem leite. Inchados com o seu saber, tais pregadores são mães estéreis, mães apenas de nome e sem filhos.

                E, se os filhos dos outros vem pedir-lhes leite, morrerão à míngua, porque os orgulhosos só estão cheios de vento e fumo; só têm a ciência que incha. Tal a desgraça a que os sábios estão expostos. É difícil, como escrevia o cardeal Belarmino a seu sobrinho, que um sábio seja muito humilde, que não despreze os outros, que não critique as suas ações; que não se apegue ao seu próprio juízo, e se sujeite de boa vontade ao pensar dos outros e às suas correções.

                Sem dúvida, quem prega não deve falar ao acaso; é necessário que tenha meditado e estudado; mas, depois de termos preparado o nosso discurso, e depois de o pronunciarmos com clareza e facilidade, devemos dizer: Servi inutiles sumus. O fruto dele não devemos esperá-lo do nosso trabalho, mas da graça de Deus. Com efeito, que proporção pode haver entre as nossas palavras e a conversão dos pecadores? Poderá gloriar-se o machado, em detrimento de quem se serve dele? Terá direito a dizer-lhe: Fui eu que cortei esta árvore; não foste tu? Somos como bocados de ferro incapazes de nos movermos, se o próprio Deus nos não imprimir o movimento. Disse o divino Mestre: Sem mim, nada podeis; o que Santo Agostinho comenta assim: Não diz: Sem mim pouco podeis; mas diz: Nada podeis.

                E de si mesmo diz o Apóstolo: Por nós mesmos, nem um bom pensamento podemos formas.

                Se nem um bom pensamento podemos ter, quanto menos fazer uma boa obra! Nem o que planta, nem o que rega é coisa alguma, só é tudo Deus, que dá o crescimento. Não são o pregador e o confessor que por suas palavras fazem crescer as almas na virtude; é Deus quem faz tudo. Donde São João Crisóstomo conclui: Reconheçamos a nossa inutilidade, para que nos tornemos úteis. Assim, quando nos louvarem, devolvamos logo a honra para Deus, único a quem ela pertence e digamos: Só a Deus a honra e a glória! E, quando a obediência nos impuser algum cargo, ou mandar alguma ação, não nos deixemos ir à desconfiança, considerando a nossa incapacidade; confiemos em Deus que, falando-nos pela boca do superior nos diz: Eu estarei na vossa boca.

                O Apóstolo dizia: De bom grado me gloriarei nas minhas enfermidades, para que a virtude de Jesus Cristo habite em mim. É o que nós devemos também dizer: devemos gloriar-nos no conhecimento da nossa fraqueza, para adquirirmos a virtude de Jesus Cristo, a santa humildade. Ó! que grandes coisas podem levar a cabo os humildes! Nada lhes é difícil, diz São Leão. De fato, os humildes, confiando em Deus, operam com o braço de Deus e conseguem quanto querem. Os que operam no Senhor crescerão em força. São José Calasâncio dizia: "Quem quer que Deus se sirva dele para grandes coisas, deve procurar ser o mais humilde de todos". Só ao humilde pertence dizer: Posso tudo naquele que me conforta. Esse, à vista duma empresa difícil, não perde a coragem, antes diz confiado: Com o auxílio de Deus faremos grandes coisas.

                Para converter o mundo, não quis Jesus Cristo escolher homens poderosos e sábios, mas pescadores pobres e ignorantes, porque eram humildes e não confiavam nas suas próprias forças: Escolheu Deus as coisas fracas do mundo, para confundir os fortes... para que nenhuma carne se glorie na sua presença.

                Não nos deve lançar no desalento a consideração dos nossos defeitos. Por dolorosa que seja a facilidade com que recaímos nas mesmas faltas, apesar das resoluções tomadas e das promessas que fazemos a Deus, não nos abandonemos à desconfiança, como o demônio nos insinua, para nos precipitar em pecados mais graves. Então mais que nunca devemos avivar a nossa confiança em Deus, servindo-nos dos próprios defeitos para mais confiarmos na misericórdia divina, conforme a palavra do Apóstolo: Todas as coisas concorrem para o nosso bem. A Glosa acrescenta: "Até os nossos pecados". Por vezes permite o Senhor que se caia, ou se recaia em certa falta, para que se aprenda a não confiar nas próprias forças, mas sim no socorro divino. Era o que fazia dizer a Davi: Senhor, permitiste as minhas quedas para meu bem.

4º. Aceitar as humilhações

                Em quarto lugar, para adquirir a humildade, é necessário acima de tudo que aceitemos as humilhações, que nos advierem, ou de Deus ou dos homens, dizendo então com sinceridade: Tenho pecado, sou verdadeiramente culpado, e não tenho sido castigado como merecia. Pessoas há, nota São Gregório, que se dizem pecadoras e dignas de todo o desprezo, mas não se crêem tais; porque apenas são desprezadas ou repreendidas logo se irritam. São muitos os que têm as aparências da humildade, diz igualmente Santo Ambrósio, mas sem terem dela a realidade. Fala Cassiano dum certo monge que protestava em altas vozes que era um grande pecador, indigno de permanecer sobre a terra. Na mesma ocasião foi repreendido duma falta considerável pelo abade Serapion: era de andar ocioso pelas celas dos outros, em vez de estar na sua, conforme o preceito da regra. Mas logo esse monge se perturbou, dando sinais exteriores de sua agitação.

                Então lhe disse o abade: "Como é isso, meu filho! Acabaste de te declarares digno de todos os opróbrios, e dás-te por magoado com a advertência caridosa que te fiz?" O mesmo acontece a muitos que desejariam ser tidos por humildes, mas que não querem sofrer nenhuma humilhação. Homem há, diz o Sábio, que se humilha com vistas humanas, mas tem o coração cheio de malícia. Procurar ser louvado pela sua humildade, dizia São Bernardo, não é efeito, mas ruína da humildade. É isso alimentar o orgulho com a ambição de ser humilde. Quem é verdadeiramente humilde, não contente com ter de si mesmo uma baixa ideia, quer ainda que os outros a tenham também. É humilde, diz São Bernardo, quem muda a humilhação em humildade. Quer isto dizer que o homem verdadeiramente humilde, ao receber desprezos, se humilha ainda mais, dizendo que bem os mereceu.

                Pensemos enfim que, se não formos humildes, não só não faremos nenhum bem, mas nem mesmo chegaremos a salvar-nos: Se não vos converterdes, e não vos tornardes como pequeninos, não entrareis no reino dos céus. É necessário portanto, para entrarmos no Céu, fazermo-mos como criancinhas, não pela idade, mas pela humildade. Segundo São Gregório, assim como o orgulho é um sinal da reprovação, a humildade é um sinal de predestinação. E São Tiago nos dá estes aviso: Resiste Deus aos soberbos, mas dá a sua graça aos humildes. Para os orgulhosos fecha o Senhor a sua mão e retém as suas graças; mas abre-as para os humildes. - Sê humilde, diz o mesmo Eclesiástico, e espera da mão de Deus todas as graças que desejares. E o nosso Salvador diz: Na verdade, na verdade vos digo, se o grão de trigo não cair na terra e não morrer nela, permanecerá só e estéril; mas se morrer produzirá muito fruto.

                O padre que morre ao orgulho, há de fazer muito fruto; o que não morre a si mesmo, o que é sensível aos desprezos, ou confia nos seus talentos, ipsum solum manet, esse permanecerá só, e nenhum fruto produzirá, nem para si, nem para os outros.

SÉTIMA INSTRUÇÃO,

                Sobre a doçura

                Aprendei de mim que sou doce e humilde do coração. A doçura é chamada a virtude do Cordeiro, isto é, de Jesus Cristo, que sob este nome quis ser designado: Eis o Cordeiro de Deus. Enviai, ó Senhor, o Cordeiro dominador da terra. E foi predito que ele na sua paixão se comportaria como um cordeiro: Permanecerá mudo como um cordeiro diante do tosquiador, e não abrirá a boca. Sou como um cordeiro cheio de mansidão, que levam a imolar no altar. Assim a doçura foi a virtude predileta do nosso Salvador. Mostrou ele quanto era doce, beneficiando os ingratos, respondendo com bondade aos seus contraditores, e suportando sem se queixar os que o injuriavam e maltratavam: Quando o maldiziam, não amaldiçoava; quando o maltratavam, não fazia ameaças. Tendo sido flagelado, coroado de espinhos, cuspido, pregado na cruz e coberto de opróbrios, tudo esqueceu, e orou pelos que o tinham tratado tão indignamente.

                É propondo-nos um tal exemplo que nos exorta sobretudo à prática da humildade e da doçura.

                De todas as virtudes, diz São João Crisóstomo, é a doçura que nos torna mais semelhantes a Deus. Na verdade, é próprio de Deus tornar bem por mal, conforme a palavra do Redentor: Fazei bem aos que vos odeiam... para serdes verdadeiros filhos do vosso Pai que está nos céus, e faz nascer o sol sobre os bons e os maus. E é o que ainda faz dizer a São João Crisóstomo que são apenas os homens doces, que Jesus Cristo apelida imitadores de Deus.

                Aos que são doces é prometido o Paraíso. "A doçura, diz São Francisco de Sales, é a flor da caridade". E o Eclesiástico declara que um coração doce e fiel faz as delícias do Senhor. Os que são doces não sabe Deus repeli-los. Sempre lhe são extremamente agradáveis as orações dos humildes e doces.

                Ora, a virtude da doçura consiste em duas coisas: 1.ª em reprimir os movimentos de cólera contra os que os provocam; 2.ª em suportar os desprezos.

§ I
                É necessário reprimir a cólera

                Diz Santo Ambrósio que a cólera é uma paixão que se deve prevenir ou reprimir. Quem se sente inclinado a este vício deve ser diligente em fugir às ocasiões; e, se tiver de encontrar-se nelas, deve estar na firme resolução de se calar, ou de responder com doçura, e prevenir-se com a oração, pedindo ao Senhor a força para resistir e conter-se. Alguns, para se desculparem, dizem que tal pessoal é insuportável, que ninguém a satisfaz... A virtude da doçura, observa São João Crisóstomo, não consiste em usar de doçura com os doces; exige que se seja doce com os que não sabem o que é a doçura. Em especial, quando o próximo está irritado, não há melhor meio para o acalmar, do que responder-lhe com doçura: Uma resposta doce quebrando a cólera. Assim como a água apaga o fogo, assim, diz São João Crisóstomo, uma resposta doce abranda a cólera dum nosso irmão, por muito exasperado que ele esteja.

                Isto está de acordo está de acordo com o dizer do Eclesiástico: A linguagem doce concilia muitos amigos, e pacifica os inimigos. E o santo Doutor acrescenta: Nem o fogo se apaga com fogo, nem o furor com furor. Mesmo com os pecadores mais pervertidos, obstinados e insolentes, é necessário que nós, os padres, usemos da máxima doçura possível, para os atrairmos a Deus. Não estais constituídos juízes de crimes, para castigardes, diz Hugo de São Vitor, mas de enfermos para os curardes.

                Quando nos sentimos agitados por algum impulso de cólera, o único remédio é calarmo-nos e pedir ao Senhor que nos dê força para não respondermos. O melhor remédio para a cólera, diz Sêneca, é esperar. De fato, se falarmos no fogo da paixão, o que dissermos nos parecerá justo, embora seja de todo o ponto injusto e censurável; porque a paixão é como um véu diante dos olhos; impede-nos de ver o alcance das nossas palavras, conforme o pensamento de São Bernardo: O olho perturbado pela cólera vê claro.

                Por vezes nos parece justo, necessário até, reprimir a audácia dum insolvente, dum inferior, por exemplo, que nos falta ao respeito. Então, sem dúvida, rigorosamente falando, conviria entrar numa cólera moderada, como ensina o Doutor angélico, mas seria necessário que isso se fizesse sem pecar, como diz Davi: Irai-vos, mas não pequeis. Eis a dificuldade. É muito arriscado o estado de cólera: é como que montar um cavalo fogoso, que não obedece ao freio; não se sabe até onde ele nos levará. Por isso mesmo São Francisco de Sales nos assegura que é sempre conveniente reprimir os movimentos da cólera, por mais justa que nos pareça a causa dela: "Mais vale, acrescenta ele, que digam de vós que nunca vos irais, do que dizerem que vos irais com justiça".

                E, segundo Santo Agostinho, desde que se deixa entrar a cólera na alma, com dificuldade se consegue lançá-la fora; por isso nos aconselha que de todo lhe fechemos a porta, logo que ela se apresente.

                De mais, se o repreendido vir que o seu superior está irado, pouco proveito colherá da correção, olhando-a antes como efeito da cólera que da caridade. Uma repreensão feita com doçura e rosto sereno é mais útil que mil censuras, por justas que sejam, em estado de arrebatamento.

                De resto, não exige a virtude da doçura que, para usarmos de indulgência e não desagradarmos ao próximo, deixemos de repreender com severidade, quando é necessário; não seria isso virtude, antes uma falta, uma negligência indesculpável. Ali daquele, diz o profeta que reclina os pecadores em almofadas, para que adormeçam em paz num sono mortal! Esta complacência culpável, diz Santo Agostinho, não é caridade nem doçura, mas negligência. Proceder assim é ser cruel para com essas pobres almas, que se perdem à falta de quem as avise da sua desgraça. Ao tempo de ser operado, observa São Cipriano, queixa-se um doente do cirurgião; mas depois de curado dá-lhe os seus agradecimentos. Quer pois a doçura que, quando o dever nos obriga a repreender o próximo, o façamos sempre com firmeza, sim, mas também com mansidão.

                Para chegarmos a este resultado, o Apóstolo nos previne de que, antes de repreendermos os outros, consideremos os nossos próprios defeitos, para concebermos pelo próximo toda a compaixão, que temos para conosco: Meus irmãos, se algum pecar, vós que sois espirituais repreendei-o com espírito de doçura, atendendo a vós mesmos, para não serdes tentados. No dizer de Paulo de Blois, é uma coisa vergonhosa ver um superior a corrigir com ira e azedume. Tão vil é a cólera, diz Sêneca, que até os rostos mais belos torna horríveis. Necessário é pois que neste ponto nos conformemos sempre com a máxima de São Gregório: Que o amor nada tenha de mole; que o rigor não vá até exasperar o culpado; que a doçura seja indulgente, mas não ultrapasse os limites da conveniência.

                Não devem os médicos, diz São Basílio, irritar os doentes; o que devem é curar-lhes as doenças. Conta Cassiano que um jovem religioso, assaltado por tentações violentas contra a castidade, foi ter com outro religioso de avançada idade, para que lhe prestasse algum auxílio; mas este, em vez de o ajudar e reanimar, mais o afligiu, fazendo-lhe censuras. Que aconteceu porém? O Senhor permitiu que esse velho de tal modo fosse atormentado pelo espírito impuro, que andasse pelo mosteiro a correr como um louco. O abade Santo Apolônio, informado do seu procedimento indiscreto, disse-lhe então: "Fica sabendo, irmão meu, que Deus te permitiu esta prova, para que aprendas a ter compaixão dos outros".

                Quando pois virmos as fraquezas e quedas dos outros, longe de os invectivarmos com assomos de vaidade pessoal, devemos ajudá-los quanto possível e humilharmo-nos. De contrário, Deus permitirá que caiamos nas mesmas faltas que lhes censuramos. Sobre este assunto, refere ainda Cassiano que um abade chamado Macheta confessava ter caído miseravelmente em três faltas, que primeiro tinha condenado em seus irmãos. Razão por que Santo Agostinho ensina que a correção sempre deve ser precedida, não de indignação, mas de compaixão para com o próximo. E São Gregório ajunta que a consideração dos nossos próprios defeitos não deixará de nos tornar compassivos e indulgentes com as faltas dos outros.

                Nada aproveitamos pois, nem para nós nem para os outros, com a cólera; ou melhor, sempre ela nos prejudica; quando nos não cause outros danos, pelo menos tira-nos a paz. Ao saber que tinha perdido uma parte dos seus bens, o filósofo Agripino contentou-se com dizer: "Se perdi a minha propriedade, não quero perder também a paz". Como dizia Sêneca, as injúrias por si mesmo não nos podem causar tamanho mal, como a cólera em que caímos ao recebê-las. Quem se irrita com os ultrajes que o recebe, a si próprio se atormenta, segundo o pensamento de Santo Agostinho, que assim fala ao Senhor: Vós ordenastes que toda a alma que sai da ordem seja o algoz de si mesma.

                O mestre da doçura, São Francisco de Sales, ensina que devemos ser doces não só com os outros, mas conosco próprios. Pessoas há que, tendo cometido alguma falta, se irritam contra si mesmas, caiem na inquietação e depois em mil outras faltas. O demônio, dizia São Luís de Gonzaga, pesca sempre nas águas turvas. Não devemos perturbar-nos à vista dos nossos defeitos, porque a perturbação nesse caso é efeito do nosso orgulho e da alta ideia que tínhamos da nossa virtude. O que então temos a fazer é humilharmo-nos, e detestar em paz o pecado cometido, recorrendo ao mesmo tempo a Deus, e esperando dele a força para não mais recairmos.

                Em resumo: os que são verdadeiramente humildes e doces vivem sempre em paz, e sempre conservam a tranqüilidade no coração, aconteça o que acontecer. Foi o que Jesus Cristo lhes prometeu: Aprendei de mim que sou doce e humilde do coração e encontrareis a paz para as vossas almas.

                E Davi tinha dito: Os que são doces possuirão a terra, e gozarão duma paz deliciosa e profunda. Assim, São Leão nos dá esta segurança: Não há injúria, nem perda, nem desgosto, qualquer que seja, que perturbe a paz dum coração, em que reine a doçura. Se por desgraça nos acontecer cair em estado de cólera, esforcemo-nos então, conforme o conselho de São Francisco de Sales, por conter os nossos ímpetos, de pronto, sem nos demorarmos a deliberar se convirá ou não fazê-lo. E depois de termos tido qualquer contestação com alguém, não deixemos prolongar a perturbação dela resultante; pratiquemos o ensino do Apóstolo: Que o sol se não ponha sobre o vosso ressentimento; não abrais a porta ao demônio. Cuidemos primeiro de nos pormos em paz conosco, e reconciliemo-nos depois com a pessoa contra quem nos iramos, para que o demônio não possa com essa centelha acender em nós alguma chama mortal, que nos faça perecer.

§ II
                É necessário suportar os desprezos

                A segunda coisa, em que principalmente consiste a doçura, é na paciência em sofrer os desprezos. Dizia São Francisco de Assis que muitas pessoas fazem consistir a sua perfeição em recitar muitas orações, ou fazer muitas mortificasses corporais, ao passo que não podem suportar uma palavra injuriosa. Não compreendem elas, ajuntava o santo, quanto lhes é mais proveitoso suportar as afrontas. Maior mérito haverá em receber em paz uma injúria, que em jejuar dez dias a pão e água.

                Segundo São Bernardo, há três graus de virtude a que deve aspirar quem quer santificar-se: o primeiro é não querer dominar sobre os outros; o segundo querer estar sujeito a todos; o terceiro sofrer com paciência as injúrias. Vereis, por exemplo, que se concede aos outros o que a vós se recusa; que o que os outros dizem é escutado; e o que vós dizeis escarnecido; que os outros são louvados, escolhidos para empregos honrosos e negócios importantes, e que de vós se não faz caso. Tudo quanto fazeis vos atrai censuras e remoques; então, diz São Doroteu, sereis verdadeiramente humildes, se aceitardes em paz todas estas humilhações, e se recomendardes a Deus, como vossos maiores benfeitores, os que assim vos tratam, curando o vosso orgulho, - a mais perigosa moléstia, capaz de vos dar a morte.

                Sê-de pacientes na humilhação. Eis o que nessas circunstâncias é necessário fazer: não se irritar nem se queixar, mas receber esses desprezos como justos castigos dos próprios pecados. Maiores humilhações se mereciam, ofendendo a Deus: merecia-se estar sob os pés dos demônios. São Francisco de Borja, numa viagem, teve de se deitar no mesmo leito com o seu companheiro, o Padre Bustamanto, que sofria de asma, e levou a noite a tossir e a escarrar; julgava porém que escarrava para o lado da parede, e era sobre o santo que o fazia, e por vezes até sobre o seu rosto. Chegado o dia, ficou muito aflito ao ver que tinha feito, mas São Francisco disse-lhe tranquilamente: "Meu padre, não vos aflijais com isso; porque em todo este quarto não havia por certo lugar mais próprio para receber os vossos escarros que o meu rosto".

                Os orgulhosos crêem-se dignos de todas as honras, e as humilhações que recebem fazem-nos exasperar na sua soberba; os humildes, ao contrário, julgam-se dignos de todas as ignomínias, e aproveitam-nas para mais se humilharem. É-se humilde, diz São Bernardo, quando se demuda a humilhação em humildade. Nota o Padre Rodrigues que os orgulhosos, ao serem repreendidos, fazem como o ouriço cacheiro: tornam-se espinhos em todo o exterior, isto é, irritam-se, irrompem em queixas, censuras e murmurações contra os outros. Repreendei porém um homem humilde, e ele se humilhará ainda mais, confessará os seus erros e vos agradecerá sem se perturbar. Perturbar-se uma pessoa ao receber uma correção, é dar sinal de que ainda está sob o jugo do orgulho. Assim, o que em tal caso se sente perturbado, deve humilhar-se mais profundamente diante de Deus, e suplicar-lhe que o liberte do orgulho, que ainda reina no seu coração.

                O meu nardo exalou o seu odor. É o nardo uma pequena planta odorífera, mas que só derrama o seu perfume quando se aperta ou esmaga. Ó! que suave perfume derrama diante de Deus uma alma humilde, quando sofre em paz nas humilhações, folgando de se ver desprezada e maltratada pelos outros! Interrogado o monge Zacarias sobre o que era necessário fazer para adquirir a verdadeira humildade, tomou o seu capuz, lançou-o ao chão, calcou-o aos pés e disse: "Quem se compraz em ser tratado como este farrapo, é verdadeiramente humilde". Dizia o Padre Alvarez que o tempo das humilhações é o de sairmos das nossas misérias e fazermos larga colheita de merecimentos. Tanto o Senhor é avaro com os orgulhosos, diz São Tiago, como liberal com os humildes.

                As palavras lisonjeiras de quem louva, diz Santo Agostinho, podem curar uma consciência culpada, e as palavras grosseiras de quem insulta não podem ferir uma boa consciência. Tal era também o pensamento de São Francisco de Assis, quando dizia: "Só somos de fato o que somos diante de Deus". Pouco importa pois que os homens nos louvem ou nos censurem, contanto que Deus nos aprove, - e certamente aprova de bom grado os que por seu amor sofrem injúrias.

                Os que são doces são queridos de Deus e dos homens. Nada há mais edificante para o próximo, nem mais próprio para ganhar corações para Deus, do que a doçura duma pessoa que, desprezada, escarnecida e injuriada, se não irrita, antes recebe tudo com rosto calmo e sereno. Nada torna os domésticos, diz São João Crisóstomo, tão amantes do seu senhor, como veremno sempre doce e afável. Segundo Santo Ambrósio, era Moisés mais amado dos hebreus por causa da doçura, que havia mostrado no meio dos ultrajes, do que pelos prodígios que tinha operado. Quem possui a doçura, diz ainda São João Crisóstomo, é útil a si próprio e aos outros. Refere o Padre Mafei que um religioso da Cia. de Jesus, pregando no Japão, recebeu da parte dum insolente um escarro no rosto; enxugou-o com o lenço e continuou o seu discurso, como se nada lhe tivesse acontecido.

                Ao ver isto, um dos assistentes converteu-se à Fé: "Uma religião que ensina uma tal humildade, disse ele, não pode deixar de ser verdadeira e divina".

                Do mesmo modo, converteu grande número de hereges a doçura de São Francisco de Sales que, sem se perturbar, sofria todas as afrontas que lhe faziam. A doçura é uma pedra de toque: segundo São João Crisóstomo, o meio mais seguro para se conhecer se há virtude numa alma, é ver se ela conserva a doçura nas contrariedades. O Padre Crasset também conta, na sua História da Igreja do Japão, que, durante a última perseguição, um missionário agostinho, que viajava disfarçado, recebera uma bofetada sem se abalar. Ao verem isso, reconheceram que era cristão e prenderam-no, porque os idólatras julgaram que uma tal virtude só num cristão podia existir.

                Ó! como à vista de Jesus desprezado é fácil suportar todos os desprezos! A bem-aventurada Maria da Encarnação, ao contemplar um dia o seu crucifixo, disse às suas religiosas: "É possível, minhas irmãs, que nos recusemos a abraçar os desprezos, vendo Jesus Cristo tão desprezado?" Quando Santo Inácio Mártir foi levado a Roma para ser lançado as feras, ao ser maltratado pelos soldados, estava cheio de consolação: É agora, dizia ele, que começo a ser discípulo de Jesus Cristo. Pois! Que sabe fazer um cristão, se não sabe suportar alguma humilhação por amor de Jesus Cristo? Sem dúvida, ser desprezado e injuriado, sem se mostrar magoado e sem responder, é uma coisa muito dura para o nosso orgulho; mas é em nos fazermos violência que está o nosso mérito, como ensina Tomás de Kempis: "Segundo a violência que vos fizerdes assim adiantareis".

                Tinha de costume uma boa religiosa, quando lhe faziam alguma afronta, ir à presença ao Santíssimo Sacramento e dizer: "Senhor, sou demasiado pobre para ter alguma coisa preciosa a oferecer-vos, mas ofereço-vos este pequeno presente que acabo de receber". Ó! Como Jesus Cristo acolhe com amor uma alma na humilhação! Como se apressa a consolá-la e a enchê-la de graças!

                Uma alma verdadeiramente amante de Jesus Cristo sofre os ultrajes, não só com resignação, mas com prazer e alegria. Vêde os santos apóstolos: Retiravam-se da presença do Conselho, cheios de alegria por serem julgados dignos de sofrer desprezos pelo nome de Jesus Cristo. A segunda parte deste texto, dizia São José Calasâncio, tem aplicação a um grande número: "São julgados dignos de sofrer pelo nome de Jesus"; mas o mesmo não acontece com a primeira parte: "Iam cheios de alegria". No entanto, quem se quer santificar deve pelos menos aspirar a esta perfeição. Não é humilde, dizia o mesmo santo, quem não deseja os desprezos. O venerável Luís du Pont não compreendia a princípio, como pudesse um homem encontrar prazer em se ver desprezado; mas, desde que chegou a maior perfeição, compreendeu muito bem e fez a experiência disso.

                Foi o que Santo Inácio de Loyola, descendo do Céu depois da sua morte, veio ensinar a Santa Maria Madalena de Pazi, dizendo-lhe que a verdadeira humildade consiste em encontrar um prazer contínuo em tudo quanto nos possa levar ao desprezo de nós mesmos. Não gozam tanto os mundanos em serem honrados, como os santos em serem desprezados. Quando o irmão Junípero, franciscano, recebia injúrias, estendia a sua túnica, como para recolher pérolas. São Francisco Régis, na sua conversação, era por vezes objeto de riso para os seus companheiros, e não só tomava nisso prazer, mas até provocava as zombarias deles. Um dia apareceu nosso Senhor a São João da Cruz e disse-lhe: João pede-me o que desejas. E o santo respondeu: Senhor, sofrer e ser desprezado por amor de vós. Era o mesmo que dizer: Senhor, ao ver que tanto sofrestes e tão desprezado fostes por meu amor, que posso eu pedir-vos senão sofrimentos e desprezos?

                Numa palavra, para concluirmos: quem quer ser todo de Deus, e tornarse semelhante a Jesus Cristo, deve gostar de ser desconhecido e tido por nada. Este grande preceito de São Boaventura, sem cessar o repetia São Filipe de Néri aos seus filhos espirituais. Quer Jesus Cristo que nos julguemos felizes e exultemos de alegria quando por seu amor nos virmos odiados, repelidos e ridicularizados dos homens. Dá-nos a segurança duma recompensa do Céu, proporcionada aos desprezos que tivermos levado com alegria: Bem-aventurados sereis quando os homens vos aborrecerem, repelirem, carregarem de afrontas, e abominarem o vosso nome, por causa do Filho do homem. - Regozijai-vos nesse dia e exultai de alegria, porque é grande a vossa recompensa no Céu.

                Que maior alegria pode ter uma alma, do que ver-se desprezada por amor de Jesus Cristo? Então, diz São Pedro, obtém ela a maior honra a que pode aspirar, por isso que Deus a trata como tratou o seu próprio Filho: Se fordes injuriados por causa do nome de Jesus Cristo, sereis ditosos, porque então repousarão sobre vós a verdadeira honra, a verdadeira glória e a verdadeira virtude que vem de Deus, assim como o seu Espírito.

OITAVA INSTRUÇÃO,

                Sobre a mortificação, e especialmente sobre a mortificação interior

§ I
                Necessidade da mortificação em geral

                Deus criou o homem reto e justo, de modo que a carne obedecia sem repugnância ao espírito e o espírito a Deus. Sobreveio o pecado, e transtornou esta bela ordem. Desde esse momento, começou a vida do homem a ser uma guerra contínua: Porque a carne tem apetites contrários ao espírito, e o espírito tem desejos contrários à carne. Era o que arrancava gemidos ao Apóstolo: Sinto nos meus membros uma outra lei, que está em oposição com a lei do meu espírito, e me sujeita à lei do pecado.

                Donde deriva que há no homem duas vidas: a dos anjos que só aspiram a fazer a vontade de Deus, e a dos irracionais, que só tendem a satisfazer os seus apetites. Se o homem cuida de fazer a vontade de Deus, torna-se anjo; se procura lisonjear os sentidos, brutaliza-se. Por isso o Senhor incumbiu a Jeremias esta missão: Eu te estabeleci para que arranques e destruas, para que edifiques e plantes. É o que temos a praticar: devemos plantar em nós a virtudes; mas é necessário que primeiro arranquemos as ervas más. Para isso precisamos de ter sempre na mão a foice da mortificação, para cortar os apetites desordenados, que as raízes corrompidas da concupiscência, sem cessar fazem nascer em nós. Sem isso, a nossa alma se tornará um matagal de vícios.

                Devemos purificar o nosso coração, se queremos ter a luz necessária para conhecer o Bem supremo que é Deus: Felizes os de coração puro, porque eles verão a Deus. Eis por que Santo Agostinho disse: Quereis ver a Deus? Pensai primeiro em purificar o vosso coração. Isaías faz esta pergunta: A quem ensinará Deus a ciência? E responde: Aos ablatados e que já se não alimentam de leite. Não dá Deus a ciência dos santos, - que consiste em conhecê-lo e amá-lo, - senão aos que estão divorciados e desapegados dos prazeres do mundo. Quanto ao homem animal, esse não compreende as coisas do Espírito de Deus. Aquele que, à semelhança do bruto, só pensa em abarrotar-se de prazeres sensuais, esse não é capaz de compreender a excelência dos bens espirituais.

                Diz São Francisco de Sales que assim como o sal preserva a carne da corrupção, assim a mortificação preserva o homem do pecado. Na alma em que reina a mortificação, reinarão as outras virtudes. Lê-se nos Salmos: Dos vossos vestidos se exala um odor de mirra, de aloes e de âmbar. Palavras que o abade Gueric comenta assim: Se começardes por derramar um odor de mirra, mediante a mortificação das paixões, derramareis também o odor de todas as virtudes. É precisamente o que exprime a Esposa dos Cânticos: Colhi a minha mirra com os outros aromas.

                Toda a nossa santidade e a própria salvação consistem na imitação de Jesus Cristo: Os que escolheu também os predestinou para serem retratos fiéis do seu Filho. Jamais porém poderemos seguir a Jesus Cristo, se não começarmos por renunciar a nós mesmos, e não abraçarmos a mortificação, - a cruz que ele nos convida a levar: Se alguém quiser vir atrás de mim, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me. A vida do nosso Redentor foi toda cheia de dores, sofrimentos e humilhações. É o que dele diz Isaías: Um homem desprezado, o último dos homens, um homem de dores. À semelhança duma mãe que aleita o seu filho doente, e para o curar toma remédios amargos, assim o nosso Salvador, dizia Sta. Catarina de Sena, quis tomar sobre si todas estas penas para nos curar a nós, pobres doentes. Se Jesus Cristo porém tanto sofreu por nosso amor, justo é que nós soframos por amor dele.

                É pois para nós um dever fazermo-nos tais quais São Paulo nos quer: Trazendo sempre nos nossos corpos a imolação de Jesus, para que também a vida de Jesus se manifeste nos nossos corpos. E assim nós faremos, diz Santo Anselmo sobre esta passagem, se à imitação do Apóstolo mortificarmos assiduamente a nossa carne. Este dever particularmente nos incumbe a nós padres, que de contínuo celebramos os mistérios da paixão de nosso Senhor. É a reflexão de Hugo de São Vítor.

                Os meios principais para adquirir a santidade são a oração e a mortificação, representadas nas sagradas Escrituras pelo incenso e a mirra: Quem é aquela que sobe do deserto, como uma coluna de fumo odorífero de mirra e incenso? O texto ajunta: E de todos os polvilhos aromáticos; o que significa que a oração e a mortificação conduzem a todas as virtudes. Ambas portanto são necessárias para santificar uma alma, mas a mortificação deve preceder a oração. O Senhor primeiro convida as almas a segui-lo ao monte da mirra, depois à colina do incenso. Segundo São Francisco de Borja, é a oração que introduz no coração o amor divino; mas é a mortificação que prepara a morada, retirando a terra que impediria o amor de entrar lá. Se se vai à fonte colher água com um vaso cheio de terra, só se trará lama; é necessário despejar a terra antes de colher a água.

                "A oração sem a mortificação, dizia o Padre Baltasar Alvarez, é uma ilusão ou dura pouco".

                E segundo Santo Inácio de Loyola, uma alma mortificada une-se mais a Deus, num quarto de hora de oração, do que outra em muitas horas. Por isso mesmo, tendo ele ouvido louvar uma pessoa como muito adiantada em oração, disse: "É um sinal de que há de ser duma grande mortificação".

§ II
                Necessidade da mortificação interior

                Temos uma alma e um corpo. A mortificação exterior é necessária para reprimir os apetites desordenados do corpo; a mortificação interior, para refrear as afeições desordenadas da alma. Tudo isto está compreendido nestas palavras do nosso Salvador: Se alguém quer seguir-me, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz... A mortificação exterior é-nos necessária, como veremos mais tarde. Mas a principal e mais necessária é a mortificação interior, expressa nestes termos: Renuncie a si mesmo. Esta consiste em sujeitar à razão as paixões desordenadas: a ambição, a cólera, a vaidade, o apego ao interesse, à opinião própria, à própria vontade etc. Temos a levar duas cruzes, diz Santo Agostinho, uma corpórea e outra espiritual. Esta última é a mais sublime e consiste em governar os movimentos da alma.

                A mortificação tem por objeto resistir aos apetites da carne, para a submeter ao espírito; a mortificação interior tem de resistir às afeições do coração, para as sujeitar à razão e a Deus, motivo por que o Apóstolo o apelida - circuncisão do coração. Por si mesmas não são más as paixões, são indiferentes; mais ainda, quando convenientemente dirigidas pela razão, volvem-se úteis, porque aproveitam à conservação do nosso ser; quando se opõem à razão, tornam-se a ruína da alma. Desgraçada a alma que Deus abandona aos seus próprios caprichos! É o castigo mais terrível que o Senhor lhe pode infligir, como ele próprio declara: Entreguei-os aos desejos dos seus corações; seguirão os seus caprichos. Precisamos portanto de fazer incessantemente a Deus esta súplica de Salomão: Senhor, não me abandoneis à mercê das minhas paixões.

                O nosso principal cuidado deve ser o de nos vencermos a nós mesmos: Vince te ipsum. Parece que Santo Inácio de Loyola não sabia dar aos outros ensino mais importante que este: vencer o amor próprio, quebrar a própria vontade, tal era o assunto ordinário dos seus discursos familiares; porque dizia que, de cem pessoas que fazem oração, noventa permanecem presas aos seus modos particulares de sentir. Um ato de mortificação da própria vontade valia mais a seus olhos que muitas horas de oração, abundantes em consolações espirituais. Retirava-se um irmão da companhia dos outros, para se corrigir de certo defeito; o santo lhe disse que alguns atos de mortificação em tal caso lhe seriam mais proveitosos, que um ano de silêncio numa gruta. Não é coisa pequena, diz Tomás de Kempis, renunciar a si próprio em coisas pequenas. E São Pedro Damião afirma que de nada servirá ter uma pessoa deixado tudo, se não se deixar a si mesma.

                Daí a advertência de São Bernardo a quem deseja renunciar a tudo, para se dar a Deus: Vós que pensais em deixar tudo, lembrai-vos de vos deixardes a vós mesmos, no número das coisas a deixar. Jamais poderá seguir a Jesus Cristo, acrescenta ele, quem não renunciar a si próprio. O nosso Salvador lançou-se como um gigante para percorrer a sua via. Trilhar de perto as pisadas de Jesus Cristo, que corre, diz ainda São Bernardo, é impossível a quem o quer seguir, carregado com o peso das suas paixões e afeições terrenas.

                É sobretudo necessário cuidar de vencer a paixão predominante. Alguns há que se mortificam em muitas coisas, mas descuidam-se de domar a paixão a que são mais inclinados; esses não podem adiantar no caminho de Deus. Quem se deixa dominar de qualquer paixão, estão em grande perigo de se perder. Pelo contrário, quem chega a vencer a sua paixão predominante, triunfará facilmente de todas as outras. Quando o inimigo mais poderoso é derrubado, torna-se fácil a vitória sobre os outros, que dispõem de menores forças. Além disto, a honra e merecimento da vitória, medem-se pela magnanimidade, que ela demandava.

                Tal homem, por exemplo, não será apaixonado pelo dinheiro, mas será demasiado cioso da sua reputação; outro não se importará de honras, mas será idólatra das riquezas: se o primeiro não trabalhar em se mortificar, ao ver-se desprezado dos outros, de pouco lhe aproveitará desprezar o dinheiro; do mesmo modo, se o segundo não cuidar de reprimir a sua avareza, de pouco lhe servirá desprezar as honras. Numa palavra, quanto maior violência cada um se fizer para se vencer, tanto maior mérito e proveito alcançará, como diz Tomás de Kempis: Adiantareis à proporção da violência que vos fizerdes. Santo Inácio era dum caráter violento e arrebatado, mas a virtude tornou-o tão doce, que parecia dum natural brando e calmo. São Francisco de Sales era também muito propenso à ira; mas, pela violência que se fez, tornou-se, como se lê na sua Vida, um modelo de paciência e doçura, no meio das injúrias e calúnias, com que foi perseguido.

                Sem a mortificação interior, pouco aproveita a exterior. De que serve a uma pessoa extenuar-se com jejuns, e encher-se de orgulho? Que lhe aproveita abster-se de vinho, e embriagar-se de raiva? No dizer do Apóstolo, é necessário que nos despojemos do homem velho, isto é, do amor próprio, e nos revistamos do homem novo, isto é, de Jesus Cristo, que nunca teve complacência em si, como nota São Paulo. Era o que fazia gemer São Bernardo, sobre o estado desgraçado dalguns monges que, mostrando nos seus hábitos aparências de humildade, conservavam no interior as suas paixões. Estes religiosos, dizia, não se despojam dos seus vícios: o que fazem é cobrir-se com sinais postiços de penitência. Quem permanecer apegado a si mesmo e às suas coisas, pouco ou nenhum fruto colherá dos seus jejuns, vigílias, cilícios e disciplinas.

§ III
                Prática da mortificação interior

                Quem quer ser todo de Deus, diz São João Clímaco, deve desapegar-se principalmente de quatro coisas: bens, honras, parentes, e sobretudo da própria vontade.

1º. Dos bens

                Em primeiro lugar, é necessário cortar todo o apego aos bens e ao dinheiro. Diz São Bernardo que as riquezas carregam o que as possui, mancham o que as ama, e afligem o que as perde. Deve o padre lembrar-se que, desde a sua entrada para a Igreja, protestou que não queria nenhuns outros bens além de Deus, dizendo: É o Senhor a herança que me coube em partilha; sois vós que me pondes de posse da minha herança. Assim, segundo São Pedro Damião, o clérigo que primeiro escolheu a Deus para sua herança e depois se enriquece, faz uma grande injúria ao seu Criador: "Se pois Deus é a sua herança, diz ele, parece fazer uma afronta não medíocre ao seu Criador, quem, não contente com este tesouro incomparável, ainda cobiça dinheiro e bens terrenos". Com efeito, esse dá a entender que não lhe basta Deus para o contentar. Afirma São Bernardo, e é verdade, que os piores avarentos são os eclesiásticos apegados às riquezas.

                Quantos padres que nunca diriam missa, sem a miserável retribuição! E prouvera a Deus que tais padres nunca celebrassem! No dizer de Santo Agostinho não buscam esse dinheiro para servirem a Deus, antes servem a Deus para ajuntarem dinheiro. Que vergonha, exclama São Jerônimo, ver um padre ocupado a entesourar!

                Mas, ponhamos de lado esta vergonha, e falemos do grande perigo, que corre a salvação dum padre, que quer ajuntar dinheiro e bens. Sim, exclama Santo Hilário, colocam-se num grande perigo os padres que se afadigam a encher os seus cofres e a aumentar a sua fortuna. Foi o que o Apóstolo nos advertiu, dizendo que os escravos da avareza, além de serem atormentados por muitos cuidados e inquietações, que lhes impedem todo o proveito espiritual, caem em tentações e desejos que os conduzem à ruína. De fato, a que excessos não arrasta a cobiça certos padres? Roubos, injustiças, simonias, sacrilégios! Quem amontoa ouro, desperdiça a graça, diz Santo Ambrósio. São Paulo compara o avarento ao idólatra, e com razão, porque o avarento faz do dinheiro o seu Deus, isto é, o seu último fim.

                Tirai a paixão do dinheiro, diz São Crisóstomo, e tereis posto fim a todos os males. Se queremos pois possuir a Deus, despojemo-nos de todo o apego aos bens da terra, dizia São Filipe de Néri: "Quem deseja riquezas nunca será santo". Para nós padres não consistem as riquezas nos bens temporais, mas sim nas virtudes; estas farão a nossa grandeza no Céu, depois de nos terem feitos vitoriosos na terra, contra os inimigos da nossa salvação. É o pensamento de São Próspero: As nossas riquezas são a castidade, a piedade, a humildade, a doçura; nelas estão os bens que devemos ambicionar, e que farão a um tempo a nossa honra e a nossa força. Dóceis à exortação do Apóstolo, contentemo-nos com um pouco de alimento para nos sustentarmos e com um modesto vestido para nos cobrirmos. Ponhamos todos os nossos cuidados em nos santificarmos; é o que mais nos importa.

                De que servem os bens desta terra, que um dia se têm de deixar, e ao presente são incapazes de satisfazer o nosso coração! Cuidemos de adquirir os bens que havemos de levar conosco, e nos hão de fazer felizes no Paraíso, conforme a palavra do nosso Salvador: Não ajunteis tesouros na terra, onde a ferrugem e os vermes os roeriam... Amontoai tesouros no Céu. Daqui a recomendação do Concílio de Milão aos padres: Thesaurisate, non thesauros in terra, sed bonorum operum et animarum in coelis. As boas obras e as almas conquistadas para Jesus Cristo, tais devem ser os tesouros do padre.

                Por isso se a Igreja proibiu com tanto rigor, e até sob censura o comércio aos eclesiásticos, conforme o preceito do Apóstolo: O que está alistado na milícia de Deus, não se embebe nos negócios do século; só pensa em agradar ao senhor a quem serve. O padre consagrou-se a Deus; só deve pois ocupar-se dos interesses da sua glória. Não aceita o Senhor sacrifícios vazios, destituídos de substância; assim, Davi lhe dizia: Eu vos oferecerei holocaustos cheios de medula. Quando um padre se dissipa no meio dos negócios do mundo, diz São Pedro Damião, os sacrifícios que oferece a Deus, - como a missa, o ofício e os exercícios de piedade, - são sacrifícios vazios, porque lhes tira a substância, isto é, a atenção e a devoção, e só oferece a pele da vítima, a aparência exterior.

                Que tristeza ver um padre, que tem o poder de salvar almas e fazer grandes coisas para glória de Deus, ocupado a comprar e a vender animais ou grãos, empenhado em associações mercantis de lucros e perdas! Estais adidos a coisas demasiado altas para descerdes a coisas tão vis, diz Pedro de Blois.

                Entregar-se um padre a negócios terrenos, que outra coisa é que trabalhar em tecer teias de aranha? Do mesmo que a aranha se esgota a fazer a sua teia, para caçar uma mosca, assim, ó Céu!, um padre se esgota perdendo o seu tempo e o fruto das suas obras espirituais, - para quê? Para adquirir um pouco de pó! Afagida-se, diz ainda São Boaventura, e mirra-se por ninharias, podendo possuir a Deus, soberano Senhor do universo!

                Mas, dir-se-á talvez: eu faço as coisas com probidade; negocio, é verdade, mas sem faltar à minha consciência. - Respondo, em primeiro lugar, que o negócio, por justo que seja, é proibido aos eclesiásticos, como acima se viu; donde se segue que, fazendo-o, embora se não peque contra a justiça, peca-se pelo menos contra a lei da Igreja. Além disto, responde São Bernardo: Assim como um rio escava as terras que atravessa, assim o cuidado dos negócios arranha a consciência, isto é, sempre a fere em alguma coisa. Quando nisso não houvesse outro mal, ajunta São Gregório, a multidão turbulenta dos pensamentos terrenos fecha o ouvido do coração, e não lhe permite ouvir a voz de Deus. Afastai-vos do amor divino, na medida em que vos dais aos negócios temporais. É verdade que os padres algumas vezes são obrigados por caridade a tratar dos negócios da sua família, mas isso não se deve permitir, diz Gregório, senão no caso de pura necessidade.

                O que se vê é que é que alguns, sem necessidade, se ingerem nos negócios da família, e até impedem os seus parentes de assumirem essa gerência. Mas, se queriam trabalhar para a sua própria casa, para que se consagraram ao serviço da casa de Deus?

                Também é muitíssimo arriscado para os padres o servirem na corte dos grandes. Diz Pedro de Blois que assim como os justos de salvam através de muitas tribulações, também os que se fixam nas cortes se condenam por muitas tribulações. Igualmente se expõe a grande perigo o padre, quando se faz advogado de causas. Não é na praça que se encontra a Jesus Cristo, diz Santo Ambrósio. Faço apenas esta pergunta: que fundo de espiritualidade se poderá encontrar num padre que exerça a advocacia? Com que devoção poderá ele recitar o ofício divino, celebrar a santa missa, quando as dificuldades dos processos lhes absorverem o espírito, e o impedirem de pensar em Deus? As causas que o padre deve advogar são as dos pobres pecadores; são eles os clientes que deve livrar da escravidão do demônio e da morte eterna, pelos seus sermões e confissões, ou ao menos por seus bons conselhos e orações. Deve evitar os processos alheios e até quanto possível os seus.

                Todos os processos relativos a coisas temporais são uma fonte de inquietações, ódios e pecados. Por isso o divino Mestre disse: A quem quiser litigar para vos despojar da túnica, cedei-lhe também a capa. Sabe-se que isto é apenas um conselho; no entanto procuremos evitar ao menos os processos de somenos importância. Creio bem que uma miserável vantagem temporal, que alcanceis, vos fará perder muito mais do repouso da vossa alma e do vosso corpo. Resignai-vos a perder alguma coisa, diz Santo Agostinho, para poderdes pensar antes em Deus do que em processos; perdei dinheiro, para comprardes sossego. Segundo São Francisco de Sales, pleitear sem cair em loucuras, é somente privilégio dos santos; por isso São João Crisóstomo condenava os pleiteantes.

                Que diremos do jogo? É certo, à face dos Cânones, que jogar, com freqüência e por tempo considerável, jogos de azar, em que se arrisquem grossas quantias, é pelo menos, quando houver escândalo, um pecado mortal. Quanto aos outros jogos, chamados de passatempo, não me proponho a decidir aqui, se por si mesmo, são lícitos ou ilícitos: digo apenas que tais divertimentos por certo convém pouco a um ministro de Deus, que não tem tempo de sobra para se dar ao jogo, desde que queira cumprir as suas obrigações, para consigo próprio e para com o próximo. Leio Em São João Crisóstomo: Foi o demônio que dos jogos fez uma arte. E eis o pensar de Santo Ambrósio: Entendo que devemos evitar, não só o abuso do jogo, mas todo e qualquer jogo. No mesmo lugar diz que é muito lícito o recreio, mas o que não perturbar a boa ordem da vida, nem repugnar ao nosso estado.

2º. As honras

                Em segundo lugar, deve o padre afastar do seu coração o apego às honras do mundo. Diz Pedro de Blois que a ambição causa a ruína das almas. Transtorna ela com efeito toda a ordem duma vida boa, e destrói o amor para com Deus. O mesmo autor acrescenta que a ambição macaqueia a caridade, mas ao inverso: A caridade sofre tudo, mas pelos bens eternos; a ambição sofre tudo, pelos bens caducos. A caridade é cheia de doçura para com os pobres, a ambição o é também, mas para com os ricos. A caridade suporta tudo para agradar a Deus; a ambição suporta tudo para contentar a sua vaidade. A caridade crê e espera tudo o que se refere à vida eterna, e a ambição tudo quanto respeita à glória desta vida.

                Ó! que espinhos, que temores, censuras, recusas e ultrajes, não tem a sofrer o ambicioso para conseguir uma dignidade, um emprego, exclama Santo Agostinho! E que obtém afinal? Apenas um pouco de fumo, cuja posse o não satisfaz, e que a morte em breve dissipa! Vi o ímpio exaltado e erguido como os cedros do Líbano; passei além, e ele já não existia. Diz ainda a Escritura que a honra se demuda em ignomínia para quem a procura. E quanto mais alta é a honra, ajunta São Bernardo, tanto mais desprezado é dos outros o indigno que a procurou. De fato, quanto mais a dignidade é elevada, tanto mais o sujeito indigno que a ambiciona faz conhecer a sua indignidade, como nota Cassiodoro.

                A isto importa ajuntar o grande perigo, a quem os empregos vistosos expõem a salvação eterna. Visitava o Padre Vicente Carafa um seu amigo enfermo, a quem acabava de ser conferido um emprego muito rendoso, mas muito arriscado, e como o doente lhe pedia que lhe obtivesse de Deus a saúde, respondeu-lhe: "Não, meu amigo, não quero trair a amizade que vos consagro: agora chama-vos Deus para a outra vida, porque vos quer salvar; se vos prolongasse a vida na terra, não sei se com este emprego vos salvaríeis". Com efeito, o seu amigo morreu, e morreu cheio de consolação.

                São para temer sobretudo os cargos relativos à salvação das almas. Diz-nos Santo Agostinho que muitos lhe tinham inveja por ser bispo, ao passo que ele se afligia, por causa do perigo a que a sua dignidade o expunha. Quando São João Crisóstomo se viu elevado ao episcopado, ficou possuído dum terror tal, como ele próprio escreveu, que sentia a sua alma como que a arrancar-se-lhe do corpo: tanto lhe parecia duvidosa, dizia, a salvação dum pastor de almas. Ora, se os santos, erguidos mau grado seu às dignidades eclesiásticas, tremem com o pensamento das contas que hão de dar a Deus, - como não tremerá quem por ambição se ingere num cargo de almas? Deve um encargo ser proporcionado às forças de quem o tem, diz Santo Ambrósio; de contrário, o deixará cair por fraqueza e o quebrará. O homem fraco que mete os ombros a um fardo pesado, em vez de o transportar será esmagado por ele.

                Segundo Santo Anselmo, o que procura cargos eclesiásticos por todos os meios, justos e injustos, não os recebe, arrebata-os. Os que vemos que por si mesmos se intrometem na cultura da vinha do Senhor, não são obreiros, mas sim ladrões. É o que está de acordo com o que o próprio Deus outrora declarou pela boca de Oséas: Reinam eles, mas não por escolha minha. Donde resulta, como dizia São Leão, que a Igreja, governada por esses ministros ambiciosos, em vez de ser servida e honrada, é antes vilipendiada e manchada por eles.

                Observemos pois este belo preceito de Jesus Cristo: Procura sentar-te no último lugar. Quem está sentado no chão não tem medo de cair. Não somos senão pó e cinza. Ora, não convém à cinza estar em lugar alto, nota o Doutor angélico, - onde estaria exposta a ser dissipada pelo vento. Feliz o padre que pode dizer: Antes quero ocupar o último lugar na casa do meu Deus, do que habitar nos aposentos dos pecadores.

3º. Os pais

                Em terceiro lugar, é necessário que o padre se despoje do apego a seus pais. Disse Jesus Cristo: Quem não aborrece seu pai e sua mãe... não pode ser meu discípulo. Mas como havemos de aborrecer nossos progenitores? Devemos deixar de os atender todas as vezes que eles se oponham ao nosso bom espírito, conforme a explicação dum sábio autor: Se eles obstam a que o seu filho padre acomode a sua vida à disciplina da Igreja, e tentam obrigá-lo a ocupar-se dos seus negócios temporais, deve evitá-los como inimigos que o afastam dos caminhos de Deus. O mesmo diz São Gregório: Os que nos embargam de trilhar o caminho de Deus, devemos olhá-los como estranhos, e até aborrecê-los (aborrecer-lhes o procedimento) e fugir deles. E Pedro de Blois: Só é eleito para ser sacerdote na casa do Senhor o que diz a seu pai e sua mãe: Não sei quem sois. Quem quer servir a Deus, diz Santo Ambrósio, deve separar-se da sua família.

                Devem-se honrar os pais; mas é necessário antes de tudo obedecer a Deus, diz Santo Agostinho. E, segundo São Jerônimo, deixar de obedecer a Deus para testemunhar aos seus uma grande afeição, não é piedade filial; é antes impiedade para com Deus.

                Declarou o nosso Redentor que tinha vindo ao mundo para nos separar dos nossos pais. E porque? Porque no negócio da salvação os nossos pais são (podem ser) os nossos maiores inimigos: Et inimici hominis, domestici ejus. São Basílio nos adverte, por conseqüência, que evitemos como uma tentação diabólica o tomarmos encargo dos bens do nosso próximo.

                Que pena ver um padre, que podia salvar almas, ocupado a governar uma casa, a cuidar de animais e doutras coisas semelhantes! Como! exclama São Jerônimo, abandonará um padre o serviço do seu Pai celeste, para comprazer com o seu pai da terra? Quando se trata, acrescenta ele, de ir aonde o serviço de Deus chama, deve o filho saltar, se preciso for, por cima do corpo do seu pai: "Desertarei eu das bandeiras do Cristo por causa de meu pai? Que fazes tu na casa paterna, ó soldado efeminado? Porque não estás no campo e nas trincheiras? Ainda mesmo que visses o teu pai estendido sobre o limiar da porta, seria necessário que passasses por cima dele, para voares de olhos enxutos para o estandarte da Cruz. O único modo de mostrar piedade neste caso é ser cruel".

                De Santo Antônio abade refere Santo Agostinho que queimava as cartas recebidas de seus pais, dizendo: Para que me não queimeis, é que eu vos queimo. Deve desprender-se de seus pais, quem quer estar unido a Deus. De contrário, ajunta Pedro de Blois, o amor do sangue em breve sufocará o amor de Deus.

                É difícil encontrar Jesus Cristo no meio dos parentes; por isso São Boaventura dizia: Ó meu bom Jesus, se vós não pudestes ser encontrado entre os vossos parentes, poderei eu encontrar-vos entre os meus? Quando Maria tornou a encontrar Jesus no Templo e lhe disse - Meu filho, porque procedeste assim conosco? o nosso Salvador tornou-lhe como resposta: Porque me procuráreis? não sabíeis que me devo ocupar do que respeita ao serviço de meu Pai? Tal a resposta que o padre deve dar a seus pais, quando eles o quiserem encarregar dos seus negócios domésticos: Sou padre, só me posso ocupar das coisas de Deus; a vós, que sois seculares, é que vos pertence cuidar dos negócios do século.

                É precisamente este o sentido das palavras, que o Senhor dirigiu ao jovem, que convidou para seu discípulo, e lhe pediu permissão para ir fazer o enterro a seu pai: Deixa lá os mortos a sepultarem os seus mortos.

4º. A vontade própria

                Finalmente, acima de tudo, é necessário o desapego da própria vontade. Dizia São Filipe de Néri que a santidade consiste em quatro dedos de testa, isto é, na mortificação da própria vontade. Mortificar a própria vontade, dizia Luís de Blois, é fazer uma coisa mais agradável a Deus, do que ressuscitar mortos. Eis por que muitos sacerdotes, curas de almas e até bispos, não contentes com passarem uma vida exemplar e apostólica, quiseram entrar em algum instituto religioso para viverem debaixo da obediência, persuadidos e com razão de que se não pode fazer a Deus sacrifício mais agradável, que o da própria vontade. Nem todos somos chamados ao estado religioso, mas quem quiser trilhar o caminho da perfeição, além da obediência devida ao seu prelado, deve ao menos sujeitar a sua vontade à autoridade dum pai espiritual, que o dirija em todos os exercícios de piedade, e mesmo nos negócios temporais de maior importância, quando esses interessem ao bem da sua alma.

                O que se faz por gosto ou não aproveita, ou aproveita pouco: Até no vosso jejum se encontra a vossa vontade. Donde São Bernardo conclui: Grande mal é a vontade própria, que faz que as vossas boas obras não sejam boas para vós. Não há para nós inimigo maior que a vontade própria. Tirai a vontade própria, dizia ainda São Bernardo, e não haverá mais inferno. Está o inferno cheio de vontades próprias. Qual é com efeito a causa dos nossos pecados, senão a própria vontade? O próprio Santo Agostinho confessa que, quando vivia no pecado, se sentia instado pela graça a deixá-lo, mas resistia pela sua parte, retido por uma só cadeia, - a sua vontade própria. Segundo São Bernardo, tão oposta é a Deus a vontade própria, que até o destruiria, se Deus pudesse ser destruído. Escrevia além disto que fazer-se discípulo de si mesmo, é querer aprender dum louco.

                Importa-nos saber que todo o nosso bem consiste em nos unirmos à vontade de Deus: Na sua vontade está a vida.

                O Senhor, porém, ordinariamente falando, não nos faz conhecer a sua vontade senão por meio dos nossos superiores, isto é, dos prelados e diretores, a quem diz: Quem vos escuta, a mim escuta; e acrescenta: E quem vos despreza, a mim despreza. Assim, na Eucaristia se diz que é uma espécie de idolatria não obedecer aos superiores. Por outro lado, São Bernardo nos assegura que, embora as prescrições do nosso pai espiritual não impliquem um pecado manifesto, devemos recebê-las com inteira confiança, como se derivassem do próprio Deus.

                Feliz quem, no momento da morte, pudesse dizer como o abade João: Nunca fiz a minha vontade, e nunca ensinei nada aos outros, que primeiro não tivesse praticado. Cassiano, que cita este exemplo, ensina que mortificar a vontade própria, é cortar a raiz de todos os vícios. Também lemos nos Provérbios: O homem obediente será vitorioso nas suas palavras; e noutro lugar: Mais vale a obediência que os sacrifícios. Na verdade, oferecer a Deus esmolas, jejuns e penitências, é oferecer-lhe apenas uma parte da vítima; dar-lhe a própria vontade, render-lhe obediência, é dar-lhe tudo quando se possui. Então se lhe pode dizer: Senhor, depois do sacrifício da minha vontade, nada me resta a oferecer-vos. - Por esta razão São Lourenço Justiniano afirma que quem faz a Deus o sacrifício da própria vontade obterá quanto quiser.

                O mesmo Senhor promete, ao que renuncia à própria vontade para lhe agradar, elevá-lo acima da terra e torná-lo um homem todo celestial.

                Meios para se vencer a si mesmo

                Quanto aos meios a empregar para se vencer a si mesmo e domar todas as paixões desordenadas, ei-los aqui.

                I. - A oração: quem ora consegue tudo. Oratio, cum sit una, omnia potest, diz São Boaventura. E o próprio Jesus Cristo disse: Pedi tudo quanto desejardes e ser-vos-á concedido.

                II. - Fazer-se violência com uma resolução firme; uma vontade forte triunfa de tudo.

                III. - Examinar-se sobre a paixão que tem a combater, impondo-se alguma penitência cada vez que sucumbir.

                IV. - Reprimir os desejos desregrados. Dizia São Francisco de Sales: "Quero poucas coisas; e o que quero, com muita moderação o quero".

                V. - Mortificar-se nas pequenas coisas, e mesmo nas permitidas. É assim que se ganha disposição para triunfar nas ocasiões mais importantes. Convirá por exemplo: privar-se de dizer certo gracejo, reprimir certa curiosidade, não colher determinada flor, não abrir logo uma carta, renunciar a certa empresa, fazendo um sacrifício a Deus, sem se inquietar com o desaire que lhe advier. Que fruto temos colhido nós de tantos gostos que havemos procurado e de tantas empresas coroadas de bom êxito? Se em ocasiões tais nos houvéramos mortificado, quantos merecimentos teríamos ajuntado diante de Deus! Procuremos de futuro ganhar alguma coisa para a eternidade, considerando que cada dia nos aproximamos mais da morte. À proporção que nos mortificarmos, diminuiremos os sofrimentos no Purgatório, e aumentaremos a glória eterna no Paraíso. Neste mundo estamos de passagem; em breve nos encontraremos na eternidade.

                Em conclusão, dir-vos-ei com São Filipe de Néri: "Insensato, quem não se santifica".

NONA INSTRUÇÃO,

                Sobre a mortificação exterior

§ I
                Necessidade da mortificação exterior

                Ensina São Gregório de Nazianzo que ninguém é digno de ser ministro de Deus e de oferecer o sacrifício do altar, se não começar por se sacrifica a Deus por completo. Tal é também a linguagem de Santo Ambrósio: É verdadeiramente agradável a Deus o sacrifício, quando começamos por nos oferecermos como hóstias, para depois sermos dignos de apresentar as nossas oferendas. E o próprio Redentor disse: Se o grão de trigo não cair na terra e nela não morrer, permanecerá só; mas, se morrer, produzirá muito fruto. Assim, quem quer produzir frutos de vida eterna, deve morrer a si próprio, isto é, nada desejar para sua própria satisfação, e aceitar tudo quanto mortifique a carne. Quem está morto para si mesmo, diz Lansperge, deve viver neste mundo como se não visse nem ouvisse nada, como se nada lhe pudesse causar dor ou prazer, senão Deus.

                Quem quiser salvar a sua vida, perdê-la-á; mas quem a perder por mim, tornará a readquiri-la. Ó ditosa perda, exclama Santo Hilário, perder todos os bens deste mundo, e até a vida para seguir a Jesus Cristo e alcançar a vida eterna! No sentir de São Bernardo, se outra razão não tivéramos para nos darmos inteiramente a Deus, deveria bastar-nos o saber que ele se deu todo a nós. Ora, para nos darmos por completo a Deus, temos que desapegar-nos de todas as afeições terrenas. Quanto menos desejarmos os bens da terra, diz Santo Agostinho, mais amaremos a Deus; ama-o perfeitamente quem nada deseja.

                Na instrução procedente, falamos da mortificação interior; falaremos agora da exterior que consiste na mortificação dos sentidos. Também esta é necessária, porque, em conseqüência do pecado, temos conosco uma carne inimiga, que combate contra a razão. Era dessa luta que o Apóstolo se lamentava: Sinto nos meus membros outra lei contrária à lei do meu espírito; quer dizer, segundo Santo Tomás: a concupiscência da carne, que contraria a razão. Se a alma não dominar o corpo, será dominada por ele. Deu-nos Deus os sentidos para que nos sirvamos deles, não segundo os nossos caprichos, mas segundo a sua vontade. Devemos pois mortificar os nossos apetites, que são contrários à lei de Deus.

                Os que pertencem a Jesus Cristo, têm crucificado a sua carne com os seus vícios e concupiscências. Tal a razão por que os santos se têm dado com tanto ardor a macerar a sua carne. São Pedro de Alcântara tomou a resolução de jamais conceder ao seu corpo satisfação alguma, e cumpriu-a até à morte. São Bernardo de tal modo, maltratava o seu, que lhe pediu perdão ao expirar. "É um erro pensar, dizia Sta. Teresa, que Deus admita na sua amizade pessoas que procuram as suas comodidades. - As almas que amam verdadeiramente a Deus, não sabem pedir-lhe descanso". E segundo Santo Ambrósio, quem não renuncia à satisfação do seu corpo, não pode agradar a Deus. Quem sujeita o espírito à carne, diz Santo Agostinho, é um monstro que caminha com a cabeça para baixo e os pés para cima. Nascemos para coisas mais altas, do que para sermos escravos da nossa carne; era Sêneca, um pagão, que assim falava.

                Quanta mais razão temos nós para falar esta linguagem, nós que, alumiados pela fé, sabemos que fomos criados para gozar de Deus eternamente! São Gregório diz que transigir com os apetites da carne, outra coisa não é que alimentar inimigos.

                Santo Ambrósio deplora a desgraça de Salomão, que teve a glória de edificar o templo de Deus, mas melhor tinha feito se conservasse para Deus o templo do seu corpo; porque deixou perder o seu corpo, a sua alma e o seu Deus, para contentar as suas inclinações. Devemos tratar o nosso corpo como um cavalo fogoso, ao qual nunca se afrouxa o freio. De mais, segundo São Bernardo, devemos opor-nos aos apetites do nosso corpo, como o médico aos desejos do doente, quando este lhe pede o que não convém, e recusa fazer o que lhe é útil para a saúde. Não seria cruel o médico se, por condescendência com o doente, lhe permitisse arriscar a vida? Do mesmo modo, não é lisonjeando a nossa carne que temos caridade com ela; entendamos bem que nunca fomos tão cruéis para conosco próprios como quando, por um momento de prazer, dado aos sentidos, condenamos a nossa alma a um suplício eterno; é assim que fala São Bernardo.

                Numa palavra, é necessário que mudemos de gostos e pratiquemos o que Nosso Senhor dizia um dia a São Francisco de Assis: "Se me desejas, toma as coisas amargas por doces, e as doces por amargas".

                Vejamos os frutos da mortificação exterior.

                Em primeiro lugar, livra-nos das penas devidas aos nossos prazeres culposos, penas que nesta vida são muito mais leves que na outra. Conta Santo Antonino que um anjo dera a escolher a um doente ou três dias de purgatório, ou dois anos no seu leito, com a moléstia que estava sofrendo. O doente escolheu os dias de purgatório; mas, passada apenas uma hora, logo se queixou ao anjo de o ter feito sofrer tantos anos naqueles momentos, tendo-lhe anunciado somente três dias. O anjo respondeu-lhe: "Que dizeis? Ainda o vosso corpo está quente no leite mortuário, e já falais em anos!" Quereis escapar ao castigo, pergunta São João Crisóstomo? Sê-de o vosso próprio juiz: arrependei-vos e corrigi-vos.

                Em segundo lugar, a mortificação desapega a alma das afeições terrenas, e fá-la entrar nas disposições necessárias para se unir a Deus. Dizia São Francisco de Sales, que jamais a alma poderá elevar-se para Deus, se a carne não for mortificada e dominada. Foi também o que disse São Jerônimo.

                Em terceiro lugar, a penitência faz-nos adquirir os bens eternos, como São Pedro de Alcântara e revelou do alto do Céu a Sta. Teresa, por estas palavras: Ó feliz penitência que me valeu tamanha glória!

                Por isso os santos trabalharam de contínuo em macerar a sua carne, o mais possível. São Francisco de Borja dizia que morreria sem consolação, no dia em que não tivesse mortificado o seu corpo com alguma penitência. Uma vida de prazeres adocicados não pode ser a dum cristão.

§ II
                Prática da mortificação exterior

                Se não tivermos coragem para mortificar o nosso corpo com grandes austeridades, pratiquemos ao menos algumas pequenas mortificasses. Suportemos com paciência as penas que nos advierem, por exemplo: este incômodo, esta vigília, este cheio desagradável, quando assistimos aos dentes, que vamos confessar nas prisões, quando ouvimos de confissão os pobres, e outras coisas semelhantes. Ao menos privemo-nos, de tempos a tempos, de algum prazer permitido. O que se permitem tudo que é lícito, diz Clemente de Alexandria, em breve passam ao que lhes não é lícito. É difícil que permaneça por muito tempo sem abraçar as coisas más, quem se entrega a todas as satisfações permitidas por si mesmas. - Um grande servo de Deus, o Padre Vicente Carafa, da Cia. de Jesus, dizia que o Senhor nos dera as delícias deste mundo, não para gozarmos delas, mas para nos tornarmos agradáveis aos seus olhos, pela oferenda dos seus próprios dons, privando-nos deles para lhe testemunharmos o nosso amor.

                Por outro lado, como nota São Gregório, não temos dificuldade em nos abstermos dos prazeres proibidos, quando estamos habituados a privarmo-nos dos permitidos.

                Mas falemos das mortificasses particulares, que podemos impor aos nossos sentidos, principalmente à vista, ao gosto e ao tato.

1º. Da vista e de todo o exterior

                Primeiro que tudo, devemos mortificar a vista. Os primeiros dardos que ferem uma alma casta, e por vezes lhe dão a morte, entram pelos olhos, nota São Bernardo. E um profeta disse: Foi o meu olhar que assolou a minha alma. É por meio dos olhos que os pensamentos culposos são excitados no espírito. Dizia São Francisco de Sales: "O que não se vê não se deseja". Assim, o demônio move primeiro a tentação de olhar, depois de desejar, e enfim de consentir. Tal foi o processo que seguiu até com o nosso Salvador; depois de lhe ter mostrado os reinos do mundo, tentou-o dizendo-lhe: Todas estas coisas te darei, se te prostrardes diante de mim e me adorares. O que Satanás não conseguiu com Jesus Cristo, tinha-o obtido com Eva: Viu a mulher que o fruto era bom para comer, agradável aos olhos e de aspecto atraente; colheu o fruto e comeu-o.

                Diz Tertuliano que certos olhares furtivos são o princípio das maiores desordens. E São Jerônimo ajunta que os olhos são como ladrões, que quase nos arrastam à força para o pecado. Devem-se fechar pois as portas da praça se se quer que o inimigo não entre nela. O abade Pastor, por ter olhado uma mulher, foi atormentado de maus pensamentos durante quarenta anos. Do mesmo modo São Bento, por ter levantado os olhos para uma mulher, quando ainda estava no mundo, a tal ponto foi tentado que, para vencer mesmo no deserto, se arremessou entre espinhos; só por esse meio conseguiu triunfar.

                O mesmo São Jerônimo, no seu retiro de Belém, foi por longo tempo assaltado de pensamentos impuros, ao recordar-se de certas mulheres que tinha visto em Roma. Permaneceram vitoriosos os grandes santos, graças ao socorro de Deus que, por suas orações e penitências alcançaram; mas quantos outros a quem os olhos fizeram cair miseravelmente! Foram os olhos que causaram a queda de Davi e também de Salomão.

                Fica-se tomado de horror ao ler o que Santo Agostinho refere de Alípio: foi ao teatro com a resolução de não olhar: Adero absens, dizia ele; mas depois, tentado a olhar; não só pecou, como até provocou outros para o pecado.

                Sêneca pois tinha razão para dizer que o ser cego é grande auxílio para conservar a inocência. Não nos é lícito arrancar os olhos para nos privarmos da vista, mas devemos tornar-nos cegos fechando-os, para não vermos o que nos pode levar para o mal: Quem fecha os olhos para não ter maus olhares, há de habitar em lugares elevados. Assim Jó tinha feito um acordo com os seus olhos, para não olhar nenhuma mulher, com receito de que alguns maus pensamentos o não viessem atormentar. São Luís de Gonzaga não ousava erguer os olhos para sua mãe. São Pedro de Alcântara abstinha-se de olhar até os seus irmãos de religião, que conhecia pela voz e não pela vista.

                O Concílio de Tours diz que os padres se devem resguardar de tudo quanto possa ferir-lhes os olhos ou os ouvidos. Esta advertência dirige-se especialmente aos padres seculares, que muitas vezes têm de exercer as suas funções em públicas e nas casas dos leigos. Se derem a seus olhos a liberdade de olharem todos os objetos que se lhes apresentarem, dificilmente se conservarão castos. É o Espírito Santo quem nos adverte: Desvia os teus olhos da mulher enfeitada, e não procures ver os atrativos estranhos; a beleza deste sexo tem sido a ruína de muitos homens. E se por vezes os olhos se distraírem, diz Santo Agostinho, guardemo-nos ao menos de os fixar sobre objetos perigosos. Não assistamos por tanto nem a bailes, nem a comédias profanas, ou outras reuniões mundanas, em que se encontrem homens e mulheres. Se a necessidade exigir a nossa presença onde houver mulheres, devemos ter lá particular cuidado em conservar a modéstia dos olhos.

                Assistia um dia o Padre Alvarez à degradação pública dum padre; como ali estavam mulheres, tomou ele nas suas mãos uma imagem da santíssima Virgem e nela conservou fixos os olhos, durante as muitas horas que a cerimônia durou, com receito de que os olhos lhe não caíssem sobre alguma mulher. Logo de manhã ao despertarmos, digamos a nosso Senhor com Davi: Preservai os meus olhos de toda a vaidade.

                Ó! quanto é proveitoso para nós e edificante para os outros termos os olhos baixos! Vem a propósito aqui um episódio de São Francisco de Assis, muito conhecido. Disse ele um dia ao seu companheiro que queria ir pregar, e saíram do convento; deram um passeio, sempre com os olhos baixos, e voltaram. - 'E quando fazeis o vosso sermão, lhe perguntou o companheiro?" - o santo respondeu: "O nosso sermão está feito: consistiu na modéstia dos olhos, de que demos exemplo a este povo". Conforme nota um autor, dizem os evangelistas, em muitos lugares, que o nosso Salvador, em certas ocasiões ergueu os olhos para olhar: Levantou os olhos para os seus discípulos. Tendo Jesus elevado os olhos.... Dá-se a entender que de ordinário os conservava baixos. Assim São Paulo punha em relevo a modéstia do seu divino Mestre, quando escrevia: Eu vos conjuro pela doçura e modéstia de Jesus Cristo.

                Diz São Basílio que é necessário ter os olhos voltados para a terra e a alma elevada ara o céu. Segundo São Jerônimo, é o rosto o espelho da alma, e os olhares têm uma linguagem silenciosa, que deixa escapar os segredos do coração. E no dizer de Santo Agostinho, olhos que não sabem conservar-se baixos revelam uma coração impuro. Santo Ambrósio ajunta que bastam os movimentos do corpo para denunciarem o bom ou mau estado da alma. Conta a este propósito que ajuizara mal de dois homens, só por ver a imodéstia do seu andar, e que o seu juízo se confirmara: veio a saber que um era ímpio e o outro herege.

                Falando em particular dos homens consagrados a Deus, diz São Jerônimo que todas as suas ações, discursos, exterior e andar, são um ensinamento para os fiéis. Daí esta recomendação do Concílio de Trento: De tal modo devem os eclesiásticos ordenar a sua vida e costumes, que no seu modo de vestir, nos seus gestos e no seu andar, só revelem gravidade e espírito religioso. O mesmo pensamento exprime São João Crisóstomo, dizendo: É preciso que a alma do padre seja toda resplandecente, para que alumie os que nele põem os olhos. A todos e em tudo deve o padre dar exemplo de modéstia: nos olhares, no andar, nas palavras, nomeadamente falando pouco e como convém.

                O padre deve falar pouco. Quem fala muito com os homens, mostra que fala pouco com Deus. As almas de oração são avaras de palavras; quando se abre a boca do forno, escapa-se o calor. Tomás de Kempis diz: É no silêncio que a alma faz progressos. E São Pedro Damião: O silêncio é o guarda da justiça. O mesmo nos ensina o Espírito Santo: No silêncio e na esperança estará a vossa força. Está no silêncio a nossa força, porque nunca se fala muito sem algum pecado.

                Deve o padre falar dum modo conveniente. A vossa boca, diz Santo Ambrósio, é a boca de Jesus Cristo; guardai-vos de a abrir, não digo só à maledicência e à mentira, mas até às palavras ociosas. Quando se ama uma pessoa, parece que não se sabe falar senão dela; assim, quem ama a Deus, está sempre disposto a falar de Deus. Lembrai-vos, exclama o abade Gilberto, que a vossa boca está consagrada aos oráculos celestes; olhai como um sacrilégio proferir palavra, que não se refira a Deus. Santo Ambrósio nos adverte que se falta à modéstia, até falando em tom demasiado alto: Seja a modéstia o regulador da vossa voz, para que não ofendais os ouvidos com um tom demasiado estridente. Ainda mais, exige a modéstia que nos abstenhamos não só de dizer, mas de escutar qualquer palavra imodesta: Resguardai os vossos ouvidos com uma sebe de espinhos, não escuteis palavras más.

                A par disto, é necessário que o padre seja modesto no vestir. Vêem-se alguns, diz Santo Agostinho, que para se mostrarem bem vestidos no exterior, se despojam da modéstia interior. Um vestido de luxo, um casaco curto, botões de ouro nos punhos... e outras coisas semelhantes indicam falta de virtude na alma. Ouçamos São Bernardo: Os que andam quase nus erguem a sua voz e vos gritam: os bens que desperdiçais pertencem-nos; o que tomais para enfeitardes a vossa vaidade, é às nossas necessidades que o arrebatais. Sobre este ponto ordenou o II. Concílio de Nicéia: Deve o padre contentarse com um vestuário modesto de pouco valor; tudo quanto é inútil e só visa à ostentação, expõe-no à murmuração e à crítica.

                Deve-se observar a modéstia no cabelo. O papa Martinho proibiu aos clérigos o exercício das suas funções na igreja, desde que não tivessem o cabelo cortado a ponto de conservarem as orelhas descobertas. À vista disto, que pensaremos daqueles a quem Clemente de Alexandria acusa de serem avaros do seu cabelo, a ponto de o não deixarem cortar senão com reserva? Que vergonha, diz São Cipriano, ver eclesiásticos que trazem uma cabeleira anafada como a das mulheres? O próprio Apóstolo censurou este abuso, dizendo que o cuidado do cabelo assim como é uma glória para as mulheres, é uma ignomínia para um homem. E falava assim de qualquer homem, mesmo secular. Que ideia se há de fazer pois dum eclesiástico, que ostenta uma cabeleira artisticamente cuidada, que frisa o cabelo e porventura até o pulvilha?

                Dizia Minúcio Felis que nós, os eclesiásticos, nos devemos dar a conhecer como tais, não pelos adornos do corpo, mas pelos exemplos de modéstia. Santo Ambrósio diz também que o exterior do sacerdote deve ser tal, que à sua vista o povo se sinta penetrado de respeito para com Deus, de quem ele é ministro.

2º. Do gosto

                Falemos em segundo lugar da mortificação do gosto, isto é, da boca. O Padre Rogacci ensina, no seu Único Necessário, que a máxima parte da mortificação exterior consiste na mortificação da boca. Por isso Santo André Avelino dizia, que quem aspira à perfeição, deve começar por mortificar a sua boca. Segundo o testemunho de São Leão, tal há sido a prática dos santos: "Os seus primeiros combates na milícia cristã consistiram em santos jejuns". Dizia São Filipe de Néri a um seu penitente, que era pouco mortificado neste ponto: "Se te não corrigires deste defeito, jamais chegarás à vida espiritual". Assim, todos os santos têm sido muito atentos em se mortificarem na comida. São Francisco Xavier não comia senão um pouco de arroz tostado, e São Francisco Regis um pouco de faria cozida em água. São Francisco de Borja, sendo ainda secular e vice-rei da Catalunha, só se alimentava de pão e ervas. São Pedro de Alcântara contentava-se com uma tigela de sopa.

                "É necessário comer para viver, dizia São Francisco de Sales, e não viver para comer". Pessoas há que parecem viver para comer, fazendo como diz São Paulo, da sua barriga o seu deus. Segundo Tertuliano, o vício da gula ou dá a morte, ou pelos menos, obscurece muito todas as virtudes. Foi a gula que causou a ruína do mundo: pelo prazer de saborear um fruto, Adão se deu à morte a si próprio, e arrastou na sua queda todo o gênero humano.

                Dum modo particular, por causa do seu voto de castidade, devem os sacerdotes mortificar o gosto. São Boaventura diz que a intemperança na comida alimenta a impudicícia. E Santo Agostinho: Se a alma for como que sufocada pelo excesso da comida, a inteligência se embotará, e a terra do nosso corpo se cobrirá com os espinhos da luxuria. Daí esta prescrição dos Cânones apostólicos: Os padres que comem demais devem ser depostos. Quem habitua o seu escravo a viver delicadamente, diz o Sábio, há-de encontrá-lo depois rebelde às suas ordens. Conforme o aviso de Santo Agostinho, guardemo-nos de dar à carne forças contra o espírito. Refere Paládio que São Macário de Alexandria praticava duras penitências e, como lhe perguntassem porque tratava tão cruelmente o seu corpo, deu esta sábia resposta: Atormento quem me atormenta.

                A mesma coisa fazia e dizia São Paulo: Castigo o meu corpo e o reduzo à escravidão. Quando a carne não é mortificada, dificilmente obedece à razão.

                E Santo Tomás diz que o demônio, quando é vencido nas tentações da gula, cessa de tentar pela impureza: Diabolus, victus de gula, non tentat de libidine. O Padre Cornélio acrescenta que, vencida a gula, é fácil triunfar de todos os outros vícios. De ordinário porém, nota Luís de Blois, o grande número vence mais facilmente os outros vícios que a gula.

                Mas objeta-se: Deus criou os alimentos para que gozássemos deles. - Respondo: Criou-os Deus para que sirvam à conservação da nossa vida, segundo as necessidades, e não para que abusemos deles pela intemperança. E quanto a certas iguarias delicadas, que não são necessárias à sustentação da vida, também o Senhor as criou, para que nos mortifiquemos algumas vezes pela privação delas. O fruto que Deus proibiu a Adão, tinha sido criado para que Adão se abstivesse dele. Preservemo-nos da intemperança ao menos.

                Para observarmos a temperança, diz São Boaventura, temos quatro coisas a evitar: I. - comer fora do tempo; II. - comer com demasiada sofreguidão; III. - comer em excesso; IV. - comer iguarias delicadas. Que vergonha ver um padre habituado a procurar tais ou tais comidas, preparadas de tal ou tal modo, e quando não as encontra ao gosto da sua sensualidade, incomodar criados e parentes, pôr a casa toda em revolução! Os padres virtuosos contentam-se com o que lhes servem.

                Notemos ainda o que diz São Jerônimo: Um eclesiástico torna-se desprezível, desde que aceite com freqüência convites para jantar. Os padres exemplares evitam os grandes jantares, em que de ordinário se não observa nem a modéstia nem a temperança. É necessário, ajunta o mesmo santo, que os leigos encontrem em nós antes consoladores nas suas penas, que convivas nos dias de prosperidade.

3º. Do tato

                Em terceiro lugar, quanto ao sentido do tato, é necessário, primeiro que tudo, que evitemos toda a familiaridade com pessoas do outro sexo, embora parentas. - São minhas irmãs, minhas sobrinhas. - Sim, mas são mulheres. Os confessores prudentes têm razão em proibir às suas penitentes que lhes beijem mesmo a mão.

                Com respeito a este sentido, importa ainda notar que o sacerdote corre maior perigo, se não usar consigo de toda a cautela e modéstia. Eis o que o Apóstolo nos recomenda: Saiba cada um de vós guardar o vaso da sua carne na santidade a sua honra, e abster-se de satisfazer aos apelidos desordenados.

                Costumam também os padres fervorosos impor-se algumas penitências, como tomar a disciplina ou trazer algum cilício. Alguns há que desprezam estes meios, sob o pretexto de que a santidade consiste na mortificação da vontade. O que eu vejo é que todos os santos têm sido ávidos de penitências, e atentos quanto possível a mortificar a sua carne. São Pedro de Alcântara trazia aos seus ombros uma grande placa de ferro esfuracado que lhe dilacerava a carne. São João da Cruz usava uma camisola, armada de pontas de ferro, com uma cadeia de ferro, que no momento da morte lhe não puderam tirar, e lhe arrancava bocados de carne. E dizia: "Se alguém ensinar uma doutrina, que leve ao relaxamento na mortificação da carne, não se lhe deve dar crédito, ainda mesmo que a confirme com milagres".

                Verdade é que a mortificação interior é a mais necessária, mas a exterior também o é. Quando tentavam dissuadir São Luís Gonzaga das suas austeridades, dizendo-lhe que a santidade consiste em vencer a própria vontade, deu uma sábia resposta, servindo-se das palavras do Evangelho: É necessário praticar uma sem desprezar a outra. À teresiana Maria de Jesus disse o Senhor: "Foi pelos prazeres que o mundo se perdeu, e não pelas penitências".

                Mortificai o vosso corpo, escrevia Santo Agostinho, e vencereis o demônio. É sobretudo contra as tentações impura que os santos têm empregado como remédio as macerações da carne. São Bento e São Francisco, assaltados por essas tentações, rolaram-se em espinhos. Eis uma comparação que nos oferece o Padre Rodriguez: "Imaginai um homem que se encontrasse envolvido nas roscas duma serpente, que procurasse sem cessar dar-lhe a morte, com as suas mordeduras envenenadas; se ele não pudesse tirar a vida a esse réptil, forcejaria ao menos por lhe fazer perder sangue e enfraquecê-la, para a tornar incapaz de grandes malefícios".

                Diz Jó que a sabedoria não se encontra no meio dos prazeres terrenos: Não lhe conhece o homem o valor, nem ela se encontra nas regiões dos que vivem nas delícias. Num lugar diz o Esposo dos Cânticos que habita no monte da mirra, e noutro que vive no meio dos lírios. O abade Gilberto concilia estas duas passagens, dizendo que o monte da mirra, onde se mortifica a carne, é precisamente o lugar em que nascem e se conservam os lírios da pureza. E, se alguma vez se ofendeu a castidade, a razão exige que depois se castigue a carne: Assim como pusestes os vossos membros a serviço das inclinações impuras, para praticardes a iniqüidade, assim agora ponde os vossos membros ao serviço da justiça, para fazerdes obras de santidade.

4º. Das penas que sobrevêm naturalmente

                Se não temos coragem para nos impormos mortificasses voluntárias, cuidemos ao menos de receber com resignação as que Deus nos enviar, como as moléstias, o calor e o frio.

                Tendo chegado muito tarde a um colégio da Companhia, foi obrigado São Francisco de Borja a permanecer ao ar livre, durante a noite, exposto a um frio intenso e à neve que caía. Chegada a manhã, ficaram aflitos os Padres do colégio, mas o santo lhes disse que toda a noite tinha gozado duma grande consolação, por se lembrar que era Deus que se comprazia em lhe enviar aquele vento gelado e aqueles flocos de neve.

                "Correi, Senhor, correi, exclama São Boaventura, correi e feri os vossos servos com feridas sagradas, para os pordes ao abrigo das feridas da morte". A seu exemplo, nas nossas doenças e aflições, devemos igualmente dizer: Feri-nos, Senhor, com golpes salutares, para que, escapemos aos golpes mortais da carne. - Ou também com São Bernardo: "Seja torturado este corpo, que desprezou a Deus! Se sois discreto, deveis exclamar: Ele mereceu a morte, que seja crucificado!" Sim, meu Deus, é justo que seja afligido quem vos afligiu! Mereço a morte eterna; quero pois ser crucificado nesta vida, para não ser atormentado eternamente na outra!

                Suportemos assim ao menos as penas que Deus nos enviar. Com razão porém nota um autor que dificilmente se sofrem com perfeita resignação as penas inevitáveis, quando nenhumas se tomam voluntárias. Por outro lado, diz Santo Anselmo que Deus deixará de castigar o pecador, que a si próprio se castiga, em expiação dos pecados.

§ III
                Vantagens duma vida mortificada

                Há quem imagine que uma vida mortificada é uma vida infeliz; mas não, a vida infeliz; mas não, a vida infeliz não é a dos que se mortificam; é antes a dos que cedem aos seus apetites, ofendendo a Deus. Quem houve já que tivesse paz resistindo-lhe? Uma alma em pecado é um mar tempestuoso. Quem não está em paz com Deus, diz Santo Agostinho, é inimigo de si mesmo e a si próprio se faz guerra. O que nos põe em guerra conosco mesmos e nos torna desgraçados são as satisfações que damos ao nosso corpo: Donde nascem as vossas guerras e discórdias? Não está a origem delas nas paixões que se debatem na vossa carne.

                Escutemos ao contrário esta promessa do Senhor: Hei de dar ao vencedor um maná escondido. Aos amantes da mortificação faz Deus saborear as doçuras duma paz, desconhecida dos sensuais, e que excede todos os prazeres dos sentidos. Por isso são proclamados felizes os que estão mortos para os gozos terrenos. Olham os mundanos como desditosos os que vivem estranhos aos prazeres sensuais, mas, no dizer de São Bernardo, esses apenas fixam os olhos nas mortificasses deles, e não atingem as consolações interiores com que Deus os favorece já nesta vida. As promessas de Deus são infalíveis: Tomai o meu jugo sobre os vossos ombros... e encontrareis a paz para as vossas almas.

                Ó! não, para uma alma que ama a Deus, diz Santo Agostinho, mortificar-se não é uma pena. Nada acha difícil quem ama, ajunta São Lourenço Justiniano; esse coraria de falar em dificuldades. O amor é forte como a morte: assim como nada resiste à morte, nada resiste ao amor.

                Se queremos gozar das delícias da eternidade, temos que privar-nos dos prazeres do tempo: Quem quiser salvar a sua vida, perdê-la-á; o que faz dizer a Santo Agostinho: Guardai-vos de vos amardes a vós mesmos nesta vida, com receio de vos perderdes na vida eterna. São João viu todos os bem-aventurados com palmas na mão. Para nos salvarmos, precisamos de ser todos mártires, ou ao ferro dos tiranos, ou pelas mortificasses que nos infligirmos. Persuadamo-nos bem de que tudo o que sofrermos não é nada em comparação da glória eterna que nos espera. As penas dum momento hão de valer-nos uma felicidade eterna: Porque estas tribulações momentâneas e leves do presente nos alcançam um galardão eterno de ventura, sem medida. Tal o fundamento Tal o fundamento da reflexão do Judeu Filon, que as satisfações que damos ao nosso corpo, em prejuízo da nossa alma, são outros tantos roubos que a nós mesmos fazemos quanto à felicidade do Paraíso.

                Por sua vez diz São João Crisóstomo que, quando Deus nos dá ocasião para sofrermos, dispensa-nos uma graça maior do que se nos concedesse poder para ressuscitar mortos: "Fazendo um milagre contraio uma dívida para com Deus; sofrendo com paciência, torno a Jesus Cristo meu devedor". São os santos as pedras vivas de que é construída a celeste Jerusalém. Ora, antes de serem colocadas no seu lugar, devem essas pedras ser polidas com o cinzel da mortificação, como a Igreja o exprime nos seus cânticos:
Scalpri salubris ictibus,
Et tunsione plurima
Fabri polita malleo,
Hanc saxa molem construunt.

                Todo o ato de mortificação é pois uma obra para o Paraíso; deve este pensamento tornar-nos doce tudo quanto na mortificação encontramos de amargo. Para bem vivermos e nos salvarmos, precisamos de viver da fé, isto é, com os olhos na eternidade que nos espera. Pensemos, diz Santo Agostinho, que o Senhor ao mesmo tempo que nos exorta a combater as tentações, dá-nos o seu socorro e nos prepara a coroa. Ora, conforme nota o Apóstolo, se os atletas se abstinham de tudo quanto podia estorvá-los de alcançar uma miserável coroa temporal, com quanta mais razão não devemos nós morrer a tudo para adquirirmos uma coroa imensa e eterna?

DÉCIMA INSTRUÇÃO,

                Sobre o amor para com Deus

§ I
                O padre deve ser todo de Deus

                Sem amardes a Deus, diz Pedro de Blois, bem podereis dizer-vos padre, mas não o sois. Desde o dia da sua ordenação, o padre não é mais seu, mas de Deus, diz Santo Ambrósio. É o que o próprio Senhor declara na antiga Lei: Oferecerão o incenso do Senhor e o pão do seu Deus, e por isso mesmo serão santos. Assim o padre é chamado por Orígenes, "Um espírito consagrado a Deus". Ao pôr o pé no santuário, o padre protestou que não queria outra herança senão Deus, dizendo: Domius pars hereditatis meae. Se pois o padre tem a Deus por sua herança, ajunta Santo Ambrósio, não deve viver senão para Deus. Por isso disse o Apóstolo que o que se devotou ao serviço da Majestade divina, não deve ingerir-se nos negócios do mundo, mas aplicar-se por completo a fazer o beneplácito do Senhor, a quem se consagrou.

                Respondendo a um jovem que o queria seguir, Jesus Cristo nem ao menos lhe permitiu que voltasse a sua casa, para dar sepultura a seu pai: Segue-me e deixa aos mortos o cuidado de enterrarem os seus mortos.

                Segundo a reflexão de Santo Ambrósio foi uma lição dada a todos os eclesiásticos: mostrava-lhes assim que também eles devem antepor os interesses da glória de Deus a todas as coisas humanas, que os possam impedir de se darem a ele por inteiro.

                Já na antiga Lei, dizia Deus aos sacerdotes que os tinha escolhido dentre todos, para que fossem dele por completo. Nesse sentido lhes declarou que não teriam entre os seculares nem bens nem patrimônio: que ele próprio era sua propriedade e herança. Oleastro faz esta reflexão: Ó padre, grande é esse benefício, se o o compreendes: Deus quer fazer-te herança sua! Que te poderá faltar, se possuíres a Deus? Deve pois o padre dizer com Santo Agostinho: Que os outros escolham entre os bens terrenos os que mais lhes aprazem, a partilha dos santos é o Senhor, que é eterno; que os outros bebam da taça dos prazeres envenenados; a fonte em que quero saciar-me é o Senhor.

                Que queremos nós amar, se não amamos a Deus? Assim fala Santo Anselmo, dirigindo-se ao Senhor. Fez o imperador Dioclesiano apresentar diante de Clemente de Ancira ouro, prata e pedras preciosas, para o mover a abjurar a fé; mas o santo soltou um gemido de dor, ao ver que os homens punham o seu Deus em confronto com um pouco de barro. Ter tudo sem Deus é nada ter; mas ter Deus é ter tudo, embora nenhuma coisa se tenha. Assim pensava com razão São Francisco, que passou uma noite inteira a repetir estas palavras: Deus meus, et omnia! Ditoso pois o que pode dizer com Davi: Meu Deus, só a vós vejo no Céu e na terra; sois e sempre sereis o único Senhor do meu coração e o meu único tesouro.

                Por isso mesmo merece Deus ser amado, - porque é objeto digno dum amor infinito; mas nós devemos amá-lo, ao menos por motivo de reconhecimento, em razão do amor imenso que nos testemunhou no benefício da redenção. Que mais poderia fazer um Deus do que fazer-se homem e morrer por nós? Ninguém pode mostrar mais amor do que dando a vida pelos seus amigos. Antes da redenção, podia o homem duvidar se Deus o amava com ternura; mas poderá restar-lhe alguma dúvida, depois de o ter visto numa cruz, morto por seu amor? Conforme a expressão de Moisés e Elias no Tabor, foi isso um excesso de amor, que nem os anjos todos poderão compreender por toda a eternidade. Quem dentre os homens, pergunta Santo Anselmo, podia merecer que um Deus morresse por ele? E contudo é certo que o Filho de Deus morreu por cada um de nós. O Apóstolo no-lo assegura, e ajunta que a morte do nosso Salvador, pregada aos Gentios, lhes parecia uma loucura.

                E por certo não era nem uma loucura nem uma mentira: era uma verdade de fé, verdade tal que, no dizer de São Lourenço Justiniano, nos faz ver Deus - que é a própria Sabedoria - tornado como que louco por amor do homem. Ai! Se Jesus Cristo tivesse querido testemunhar o seu amor a seu eterno Pai, teria podido dar-lhe uma prova mais certa do que morrer crucificado, como morreu por cada um de nós? Vou mais longe: se um dos nossos servos tivesse morrido por nós, poderíamos não o amar? Apesar de tudo, onde está o nosso amor e reconhecimento para com Jesus Cristo?

                Se ao menos recordássemos muitas vezes o que o nosso divino Redentor fez e sofreu por nós! Dá-se muito gosto a Jesus Cristo, quando se pensa com freqüência na sua paixão. Se uma pessoa tivesse sofrido ultrajes, blasfêmias, cadeias por um amigo, quanto não gostaria que esse amigo se lembrasse dele e pensasse muitas vezes em tais sacrifícios! Desde que uma alma pense muitas vezes na paixão de Jesus Cristo, e no amor que este Deus tão bom nos há testemunhado, é impossível que não se sinta impelida por uma força irresistível a amá-lo: O amor de Jesus Cristo, insta conosco, exclama o Apóstolo. Mas, se todos os homens devem arder em amor por Jesus Cristo, dum modo mais especial nós os padres, porque ele morreu especialmente para nos fazer sacerdotes. De fato, como ponderamos no princípio, sem a morte de Jesus Cristo, não teríamos a Vítima santa e sem mancha, que agora oferecemos a Deus.

                É o que nota com razão Santo Ambrósio e ajunta: Quem mais recebe, mais deve; demos-lhe portanto o nosso amor em troca do seu sangue.

                Cuidemos de compreender o amor que Jesus Cristo nos mostrou na sua paixão, e desse modo por certo se extinguirá no nosso coração o amor das criaturas. Ó! si scires mysterium crucis! exclamava o apóstolo Santo André, dirigindo-se ao tirano, que tentava forçá-lo a renegar a Jesus Cristo! Queria dizer: Ó tirano! Se soubesses até onde chegou o amor do teu Deus para te salvar, é certo que, longe de me quereres tentar, te devotarias a amá-lo, para lhe testemunhares o teu reconhecimento, por um tal extremo de amor.

                Ditosos pois os que sempre têm presentes a seus olhos as chagas de Jesus Cristo! Caminhareis radiantes de alegria, a colher água nas fontes do Salvador. Ó! que preciosa abundância de luzes e sentimentos de devoção colhem os santos nesses mananciais salutares! Dizia o Padre Alvarez que a desgraça dos cristãos está em ignorarem os tesouros que temos em Jesus Cristo. Gloriam-se os sábios da sua ciência; o Apóstolo só se gloriava de saber Jesus crucificado. De que servem todas as ciências quando se não sabe amar a Jesus Cristo? Ainda que eu possuísse todas as ciências, dizia o Apóstolo, se não tivesse caridade, não seria nada. Noutro lugar escreveu que, para ganhar a Jesus Cristo, olharia como nada todos os outros bens. E gloriava-se de estar na prisão por amor de Jesus Cristo.

                Ó! feliz o padre que, ligado por tão doces cadeias, se dá todo a Jesus Cristo! Mais vale para Deus uma só alma, que se lhe dá por completo, do que cem outras que permanecem imperfeitas. Se um príncipe tivesse cem criados, dos quais noventa e nove o servissem com pouca dedicação e sempre lhe causassem alguns desgostos, ao passo que um só o servisse unicamente por amor, atento em lhe fazer sempre e em tudo a vontade, por certo esse príncipe amaria mais este único servo fiel, do que a todos os outros juntos. São inumeráveis as donzelas; a minha pomba, a minha perfeita é uma só.

                A tal ponto ama o Senhor uma alma que o serve perfeitamente, que não a amaria mais, ainda mesmo que não tivesse nenhum outro objeto a amar. Daí este aviso de São Bernardo: Aprendei de Jesus como deveis amar a Jesus. Jesus Cristo deu-se todo a nós desde o seu nascimento: Nasceu para nós um menino, foi-nos dado um filho. Ele próprio se nos deu por amor: Amou-nos a ponto de se entregar por nós. É portanto justo que também por amor nos demos inteiramente a Jesus Cristo. Deu-se-nos sem reserva este divino Salvador, diz São João Crisóstomo: Totum tibi dedit, nihil sibi reliquit. Deu-vos o seu sangue, a sua vida, os seus merecimentos; exige a justiça que também vos entregueis a ele sem reserva. Dai-lhe tudo quanto sois, diz São Bernardo, visto que ele se entregou todo para vos salvar.

                Se esta obrigação porém incumbe a todos os homens, com melhoria de razão aos padres. Por isso São Francisco de Assis, reconhecendo o dever especial que tem um padre de ser todo de Jesus Cristo, escrevia aos sacerdotes da sua Ordem: Nada retenhais para vós do que é vosso; que Jesus Cristo vos receba por inteiro, como inteiro se deu a vós. Por todos morreu o Redentor, para que todos vivam, não para si mesmos, mas unicamente para aquele Deus, que por eles deu a sua vida. Ó! Como não teremos sempre com Deus a mesma linguagem de Santo Agostinho: Morra eu a mim, para que só vos vivais em mim! Mas, para sermos de Deus por inteiro, é necessário que lhe demos o nosso coração, sem o repartirmos. Ama-vos pouco, dizia ainda Santo Agostinho, quem ama algum outro objeto e não o ama por vós.

                Não se pode ser todo de Deus, quando se ama alguma coisa que não é Deus, e não se ama por Deus. Anima, exclama São Bernardo, sola esto, ut soli te serves. Ó alma resgatada por Jesus Cristo! Não repartas o teu coração pelas criaturas; conserva-te só, desprendida de tudo, para seres toda desse Deus, que é o único que merece todo o amor. - Tal é também o sentido do bem-aventurado Gilles: Una uni. Esta alma única que temos devemos dá-la, não em parte, mas por inteiro, a esse Deus que nos ama mais ele só, e merece ser mais amado, que todas as criaturas juntas.

§ II
                Meios a empregar para ser todo de Deus

1º. Desejo da perfeição

                O padre que aspira a dar-se todo a Deus, deve começar a conceber um grande desejo da santidade. Os santos desejos são como asas, que alevantam as almas para Deus; Porque o começo da sabedoria é um desejo muito sincero de a possuir. Conforme o Sábio, o progresso dos justos é como a luz do sol, que desde a manhã vai subindo mais e mais à medida que avança. A luz dos pecadores, ao contrário, é esse crepúsculo da tarde, que vai decrescendo até de todo se desvanecer, de modo que os desgraçados não vêem mais para onde caminham: É tenebrosa a via dos ímpios, que não sabem onde irão parar.

                Desgraçado pois o que está satisfeito com a sua vida e não procura torná-la melhor! Não adiantar é recuar, diz Santo Agostinho. Quem se encontra no meio dum rio, ajunta São Gregório, e não se esforça por vencer a corrente, infalivelmente será levado por ela. Daqui a censura que São Bernardo dirige ao tíbio: Se não queres adiantar, queres então retroceder. - Não, responde o tíbio: quero permanecer tal qual estou, nem melhor nem pior. Mas isso é impossível, replica o santo. Não pode dar-se esse caso, porque o homem nunca permanece no mesmo estado. Para ganhar o prêmio, isto é, a coroa eterna, é necessário, diz o Apóstolo, não afrouxar o passo até que se consiga atingi-la. O que cessa de correr perde a coroa e tudo quanto tinha feito.

                Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça. Com efeito, como a divina Mãe disse no seu Cântico, cumula Deus de graças os que desejam santificar-se: Esurientes implevit bonis. Note-se porém esta expressão: Esuriunt, esurientes; significa ela que para nos santificarmos não basta um simples desejo; requere-se um grande desejo, uma certa fome de santidade. Aquele que tem esta fome ditosa, não caminha, corre na estrada da virtude, diz o Salmista, como a chama da lenha seca. Quem se santificará pois? Quem quiser santificar-se: Se queres ser perfeito, vai... Mas é necessário querer com uma vontade resoluta: o tíbio, no dizer do Sábio, também quer, mas não com uma vontade eficaz; deseja, deseja sempre, e os seus desejos o perdem, porque se contenta com eles, e vai caminhando de mal a pior: O preguiçoso quer e não quer... Os seus próprios desejos o matam.

                A sabedoria, ou a santidade, facilmente se deixa encontrar por quem a procura. Mas não basta desejá-la para a encontrar; é preciso desejá-la com uma resolução firme de a adquirir: Se a procurais, procurai-a. Quem deseja a santidade com a resolução de chegar a ela, há-de possuí-la. Diz São Bernardo que não é com os pés, mas com os desejos do coração que se procura a Deus. E Sta. Teresa escreveu: "Sejam grandes os nossos pensamentos, que deles nos advirá o bem". - "Não devemos pôr limites aos nossos desejos; devemos ao contrário esperar que, apoiando-nos em Deus, poderemos com a sua graça chegar pouco a pouco aonde muitos santos chegaram".

                Abre a boca, nos diz o Salvador, e eu a encherei. Não pode a mãe alimentar o seu filho, se ele não abrir os lábios para lhe sugar o leite. Abre a boca, isto é, segundo a expressão de Santo Atanásio: dá largas aos teus desejos. Assim, mediante os bons desejos, alguns santos chegaram em pouco tempo à perfeição: Consumado em pouco tempo, efetuou uma longa carreira. Em São Luís de Gonzaga encontramos um exemplo a propósito: em poucos anos chegou a uma santidade tal, que Sta. Maria Madalena de Pazi, tendo-o visto na glória, lhe parecia, dizia ela, que não havia no Céu nenhum santo, que se avantajasse a Luís em felicidade. Soube ela que esse alto grau de glória lhe fôra devido pelo desejo ardente, que tinha alimentado durante a sua vida, de chegar a amar a Deus tanto quanto ele o merece ser.

                O desejo, diz São Lourenço Justiniano, dá forças e adoça a pena. Por isso acrescentava que desejar vencer é quase ter já vencido. E Santo Agostinho exprime assim o mesmo pensamento: Quem ama pouco a santidade, acha o caminho apertado, e não o trilha senão a muito custo; quem ama verdadeiramente, encontra-o largo e percorre-o sem dificuldade. A largura do caminho pois não está no próprio caminho, mas no coração, isto é, na vontade firme de agradar a Deus: Desde que me dilatastes o coração, caminhei a passos largos na via dos vossos mandamentos. E Luís de Blois afirma que os santos desejos não são menos agradáveis ao Senhor, que um amor ardente.

                O que não tem desejo de se santificar, peça-o ao menos a Deus, e Deus lho dará. Persuadamo-nos bem de que a santificação não é obra difícil para quem a quer. No mundo é difícil a um súdito conseguir a amizade do seu príncipe, quando a deseja; mas - dizia um cortesão dum imperador, de quem fala Santo Agostinho - se eu quero a amizade de Deus, esta vontade me basta para me tornar amigo seu. E São Bernardo assegura que se não pode ter nenhuma prova mais certa da amizade de Deus e da sua graça, que o desejo duma graça maior, para mais lhe agradar. E acrescenta que pouco importa o caso de no passado se ter sido pecador; porque Deus não examina o que o homem foi no passado, mas o que quer ser de futuro.



2º. Intenção de agradar a Deus em tudo

                Em segundo lugar, o padre que se quer santificar, deve fazer todas as suas ações no intuito de agradar a Deus. Todas as suas palavras, todos os seus pensamentos, todos os seus desejos, todos os seus atos, devem ser apenas um exercício de amor para com Deus. A Esposa dos Cânticos umas vezes se fazia caçadora ou guerreira; outras se aplicava à cultura da vinha ou dos jardins; mas sempre, nesses diversos exercícios, se mostrava amante fiel, porque tudo fazia por amor do seu Esposo. Tal é o modelo do padre: quanto diz, quanto pensa, quanto sofre e opera, ou celebre, ou confesse ou pregue, se assiste aos enfermos, faz oração e se mortifica, faça o que fizer, tudo deve derivar do mesmo princípio, porque deve fazer tudo para agradar a Deus.

                Jesus Cristo disse: Se o vosso olhar for simples, todo o vosso corpo será alumiado. Por olhar, entendem os santos Padres a intenção. Assim, diz Santo Agostinho, é a intenção que torna boa a obra. A Samuel fez o Senhor ouvir esta palavra: Vê o homem as coisas quanto ao exterior, mas o Senhor penetra o coração. Contentam-se os homens, com as obras exteriores que vêm; mas Deus, que vê o coração, não se contenta com a obra, se ela não for praticada com a reta intenção de lhe agradar. Eu vos oferecerei holocaustos cheios de medula, dizia Davi. As ações feitas, sem uma intenção reta, são vítimas sem substância, que Deus rejeita. Nas oferendas que se lhe apresentam, diz Salviano, não é o valor da coisa que ele aprecia, mas a afeição do coração. Com razão está escrito do nosso Salvador: Ele fez bem todas as coisas. De fato, em tudo quanto fez, só procurou o beneplácito de seu eterno Pai, como ele próprio declarou.

                Mas, ai! Poucas obras são plenamente agradáveis a Deus, porque poucas há que nós façamos sem algum desejo da nossa própria glória! No dia do juízo, quantos padres dirão a Jesus Cristo: Senhor, não é verdade que em vosso nome profetizamos, em vosso nome expulsamos os demônios, e em vosso nome fizemos muitas coisas prodigiosas! Senhor, nós pregamos, celebramos missas, ouvimos confissões, convertemos almas, assistimos a moribundos! - Mas o Senhor lhes dirá: Retirai-vos; nunca vos conheci como ministros meus, porque não foi por mim que trabalhastes; foi antes pela vossa glória, pelo vosso interesse!

                Tal a razão por que Jesus Cristo nos adverte que conservemos em segredo as boas obras que fizermos. Segundo Santo Agostinho, é para que a vaidade não venha destruir o que temos feito por Deus. Tem Deus horror ao roubo no holocausto. Roubo quer aqui dizer a procura da própria glória, ou do interesse nas obras de Deus. Quem ama a Deus verdadeiramente, diz São Bernardo, merece bem a recompensa, mas não a procura; a recompensa única que ambiciona é agradar a Deus, a quem ama. Numa palavra, ajunta ele, o amor verdadeiro contenta-se com ser amor, com amar, e nada quer. Por que sinais se poderá reconhecer se um padre obra com intenção reta? - Ei-los:

                I. - Se ama as obras que mais lhe custam e menos brilho têm.

                II. - Se fica em paz, quando os seus projetos fracassam; porque o que trabalha por Deus consegue sempre o seu fim, que é agradar a Deus. Se não se perturba, quando se vê mal sucedido, mostra que só trabalha com os olhos em Deus.

                III. - Se se alegra com o bem que os outros fazem, como se fosse ele mesmo, e vê sem inveja que outros abracem empresas como a sua, desejando que todas sejam para glória de Deus e dizendo com Moisés: Prouvera a Deus que todo o povo fosse composto de profetas.

                O padre que faz tudo por Deus tem dias cheios. Não acontece o mesmo com os que trabalham por interesse pessoa; desses se diz que nem chegam a meio nos seus dias. Nesse sentido, segundo Santo Euquério de Lion, devemos dizer que não temos vivido senão os dias, em que temos renunciado à nossa própria vontade. Uma pequena lembrança que nos é dada por amizade, dizia Sêneca, penhora-nos mais do que ricos presentes dados por interesse. Certamente fica o Senhor mais satisfeito com uma pequena obra feita em seu beneplácito, que com todas as ações mais brilhantes efetuadas por gosto próprio. Da pobre viúva que no gazofilácio do templo lançara apenas duas pequenas moedas, disse o Senhor que tinha dado mais que todos os outros; o que São Cipriano comenta assim: Considerava o Senhor, não o valor da moeda, mas o amor com que era oferecida.

                Ao ver passar uma dama luxuosamente vestida, começou o abade Pambon a derramar lágrimas; e, perguntado porque chorava, respondeu: "Ai! Quanto mais faz esta mulher para agradar aos homens, do que eu para agradar a Deus!" Lê-se na Vida do Rei São Luís que em certa ocasião se vira uma mulher, que numa mão levava uma tocha acesa e na outra um vaso cheio de água. Um padre dominicano, que exercia o seu ministério na corte do piedoso monarca, aproximou-se dela e perguntou-lhe o que queria fazer; ela respondeu: "Com o fogo quero queimar o Paraíso, e com a água apagar o inferno, para que Deus seja amado só porque o merece". Ó! Feliz padre que não procura em tudo senão agradar a Deus! É imitar as almas santas do Paraíso, que, como diz o Doutor angélico, sentem mais alegria da felicidade de Deus, que da sua própria, porque amam mais a Deus do que se amam a si mesmos.

3º. Paciência nas dores e humilhações

                Em terceiro lugar, o padre que se quer santificar, deve estar pronto a sofrer em paz por Deus todos os males desta vida: pobreza, humilhações, doenças e morte. O Apóstolo diz: Glorificai e trazei a Deus no vosso corpo. Gilberto comenta assim estas palavras: Quer São Paulo que tragamos Jesus Cristo de bom grado e com alegria; quem o traz descontente ou com lamentações, não o traz, antes o arrasta como que à força. - Não é a receber consolações que uma alma prova a Deus o seu amor; é abraçando os desprezos e as penas. Foi o nosso próprio Salvador que o disse, quando caminhou ao encontro dos soldados, que vinham prendê-lo para o conduzirem à morte: Para que o mundo saiba que amo meu Pai... levantai-vos, vamo-nos daqui. Também, a exemplo de Jesus Cristo, iam os santos com alegria ao encontro dos tormentos e da morte.

                Tendo São José de Leonissa de sofrer certo dia uma operação muito dolorosa, queriam ligá-lo com cordas, mas ele tomando o seu crucifixo exclamou: "Como! Cordas, cordas!...À! eis os meus laços: o meu Senhor, atravessado de cravos por meu amor, me prende e obriga a suportar todas as penas por seu amor". Sofreu assim a operação sem se lamentar. Quem poderia, dizia Santa Teresa, considerar o Salvador coberto de chagas, aflito e perseguido, sem aceitar como ele os sofrimentos, ou até desejá-los?" E São Bernardo: Para quem ama a Jesus crucificado, nada há mais caro que os desprezos e as penas.

                O Apóstolo diz - dum modo especial para nós padres - que é pela paciência que devemos fazer-nos reconhecer como verdadeiros ministros de Jesus Cristo: Mostremos que somos ministros de Deus pela nossa paciência nas tribulações, nas necessidades, nas angústias... nos trabalhos. E Tomás de Kempis faz esta reflexão: No dia do juízo, não teremos que prestar contas do que lemos, mas do que fizemos. Muitas coisas sabem os homens de ciência, mas não sabem ver quanto a sua falta de paciência os prejudica. Que aproveita a ciência sem a caridade. Ainda que eu conhecesse todos os mistérios e toda a ciência, diz São Paulo, sem a caridade nada sou. E ajunta: a caridade sofre tudo. Todo aquele que se quer santificar, deve ser perseguido. Foi o que o nosso Salvador declarou: Perseguiram-me a mim, também vos perseguirão a vós.

                A vida dos santos, escreveu Santo Hilário, não podia ser tranqüila; é necessário que seja enredada de contradições e provada pela paciência.

                Aflige o Senhor os que admite no número dos seus filhos. - Aqueles a quem amo, repreendo-os e castigo-os. E porquê? Porque a prova do amor e da perfeita fidelidade duma alma é a paciência. A Tobias disse o arcanjo Rafael: Era necessário que fosses provado pela tentação, porque eras agradável a Deus.

                Que importa, diz Santo Agostinho, que por vezes soframos o castigo por uma falta que não cometemos? Devemos aceitar essa mortificação, ao menos para expiarmos outras culpas de que somos réus. Estejamos persuadidos do aviso que nos dá Judite: que se Deus nos castiga neste mundo, não é para nos perder, mas para nos corrigir e preservar do castigo eterno. Desde que, pelos nossos pecados passados, somos devedores à Justiça divina, importa-nos suportar com paciência as tribulações que nos advierem, e dizer até ao Senhor, com Santo Agostinho: Queimai, cortai, não me poupeis neste mundo, para me poupardes na eternidade.

                Jó dizia: Se temos recebido das mãos de Deus os bens, porque não havemos de receber os males? Falava assim, porque sabia bem que, nos males, isto é, nas tribulações desta vida, levadas com paciência, há muito mais a ganhar, que nas vantagens temporais. Demais, as penas da vida presente, têm de se sofrer ou por vontade ou por força: sofrendo-as com paciência, adquirem-se merecimentos para o Céu; levando-as contra vontade, não se sofre menos e trabalha-se para o inferno. Os mesmos golpes, diz Santo Agostinho, que servem para fazer bons vasos de glória, reduzem os maus a cinza. Falando do bom e do mau ladrão, diz o santo Doutor: Unidos no mesmo suplício, estavam separados pelo modo de sofrer. Ambos sofriam a morte, mas um, aceitando-a com resignação, salvou-se; o outro ao sofrê-la blasfemou e condenou-se.

                Na visão que o apóstolo São João teve da felicidade dos eleitos, viu ele que os que gozavam assim da vista de Deus não vinham do meio das delícias da terra, mas do seio das tribulações: Vieram de grande tribulação... por isso estão diante do trono de Deus.

4º. Conformidade com a vontade de Deus

                Enfim, quem deseja santificar-se, só deve querer o que Deus quiser. Todo o nosso bem consiste em nos unirmos à vontade de Deus. Dizia Sta. Teresa: "O que é preciso procurar no exercício da oração, é conformar a própria vontade com a de Deus; e deve-se estar bem persuadido de que é nisso que consiste a mais alta perfeição". Tudo quanto o Senhor pede de nós é que lhe entreguemos o nosso coração, ou a nossa vontade. E no dizer de Santo Anselmo, é como que mendigando que Deus nos pede o nosso coração; ainda que repelido, não desiste, redobra de instâncias: "Não sois vós, Deus meu, que tantas vezes bateis à nossa porta, mendigando e dizendo: Meu filho, dá-me o teu coração; e ainda que muitas vezes vo-lo recusemos, sempre voltais de novo!"

                Nenhuma coisa, pois, podemos oferecer a Deus, que lhe seja mais agradável que a nossa vontade, dizendo-lhe com o Apóstolo: Senhor, que quereis que eu faça? Daqui este pensamento de Santo Agostinho: Nada podemos fazer mais agradável a Deus do que dizer-lhe: Tomai posse de nós. Falando de Davi, disse o Senhor, que tinha encontrado um homem segundo o seu coração. E porquê? Porque Davi estava disposto a fazer por inteiro as divinas vontades. Cuidemos pois de dizer sempre com Davi: Ensinai-me, Senhor, a fazer em tudo a vossa vontade. Neste intuito nos devemos oferecer muitas vezes a Deus, repetindo com o Rei-Profeta: O meu coração está preparado, ó Deus, o meu coração está preparado.

                Importa porém observar que o mérito para nós consiste em nos conformarmos com a vontade de Deus, não nas coisas que nos agradam, mas nas que repugnam ao nosso amor próprio; é esta a pedra de toque do nosso amor para com Deus. O venerável João de Ávila dizia: "Um Deus seja louvado! nas contrariedades, vale mais que mil ações de graças, quando as coisas nos sorriem". Estejamos bem persuadidos, diz Santo Agostinho, de que tudo quanto cá nos acontecer contra a nossa vontade, nos acontece por vontade de Deus. Tal é o sentido das palavras do Eclesiástico: Os bens e os males, a vida e a morte, a pobreza e a riqueza vem de Deus. Assim, quando recebemos uma injúria, não quer Deus o pecado de quem no-la faz, mas quer que soframos essa ofensa.

                Quando pois nos despojam da nossa reputação ou dos nossos bens, devemos dizer com Jó: O Senhor me deu, o Senhor me tirou; fez-se como aprouve ao Senhor; seja bendito o nome do Senhor!

                Quem ama a vontade de Deus, goza duma paz constante, mesmo neste mundo. Ponde a vossa alegria no Senhor, nos diz Davi, e ele satisfará os desejos do vosso coração. Como o nosso coração foi criado para um bem infinito, nem todas as criaturas juntas, por isso que são finitas e limitadas, poderiam satisfazê-lo. Podemos possuir muitos bens, se não possuirmos a Deus, o nosso coração não se aquietará e sempre desejará mais. Desde que encontra a Deus, encontra tudo, e Deus satisfaz todos os seus desejos. É a palavra do Salvador à Samaritana: Quem beber da água que eu lhe der, não terá mais sede. E ainda noutro lugar: Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque eles serão saciados. Por isso quem ama a Deus, nunca se deixa cair no desalento, aconteça o que acontecer. É que o justo sabe que tudo quando acontece é efeito da vontade de Deus.

                Quando os santos são humilhados, diz Salviano, têm o que desejam: se sofrem a pobreza, alegram-se por serem pobres; só querem o que Deus quer, e assim gozam duma paz inalterável. É-nos permitido, nas angústias, pedir ao Senhor que nos livre delas, como o fez Jesus Cristo no jardim das Oliveiras: Meu Pai, se é possível, afaste-se de mim este cálice; mas é necessário ajuntar logo com o divino Mestre: Contudo, não se faça a minha vontade, mas sim a vossa.

                É certo que Deus quer, é o que há de melhor para nós. A um padre enfermo escrevia o venerável João de Ávila: "Meu amigo, não vos detenhais a pensar no que faríeis em estado de saúde; contentai-vos com estar doente o tempo que aprouver a Deus. Se quereis fazer a vontade de Deus, que vos importa estar de saúde ou doente?". É preciso que nos resignemos a tudo, até a ser assaltados de tentações, que nos excitem a ofender a Deus. Pedia o Apóstolo ao Senhor que o livrasse duma multidão de tentações impuras que o atormentavam: Tenho estado entregue aos insultos do demônio da minha carne... em razão disso, por três vezes pedi ao Senhor que me livrasse dele. E que lhe respondeu Deus? A minha graça te basta. Estejamos certos de que Deus, não só deseja, mas toma cuidado do nosso bem. Visto pois que tanto se interessa por nós, entreguemo-nos nas suas mãos.

                E na morte, ó! que felicidade para uma alma encontrar-se então em perfeita conformidade com a vontade de Deus! Quem deseja porém morrer neste ditoso estado, deve primeiro durante a sua vida conformar-se em tudo com a vontade divina. Procuremos pois acostumar-nos à resignação em tudo quanto nos contrariar, e a repetir sempre esta grande palavra dos santos, que Jesus Cristo nos ensinou: Seja feita a vossa vontade! ou a dizer como o nosso Salvador: Seja assim, Pai, visto que assim vos aprouve. Ofereçamo-nos também continuamente a Deus, dizendo-lhe com a divina Mãe: Senhor! eis aqui o vosso servo: disponde de mim e de tudo quanto me pertence como vos aprouver; sou todo vosso. - Santa Teresa oferecia-se a Deus cinqüenta vezes por dia.

                Digamos-lhe ainda com o Apóstolo: Senhor, que quereis que eu faça? Meu Deus, fazei-me conhecer o que quereis de mim: estou pronto para tudo.

                Grandes coisas fizeram os santos, para cumprirem a vontade de Deus: uns refugiaram-se nos desertos, outros encerram-se nos claustros; outros sacrificaram a sua vida no meio dos tormentos. Nós que somos padres e temos maior obrigação de nos sacrificarmos, unamo-nos também à vontade de Deus, para chegarmos à santidade. Não nos desanimemos com as nossas faltas passadas; recordemos as palavras de São Bernardo acima citadas: "Não examina Deus o que o homem fez no passado, mas o que quer ser de futuro". Uma vontade firme, com o auxílio de Deus, triunfa de tudo.

                Oremos sempre: quem pede recebe. Conseguiremos quando pedirmos pela oração. Amemos dum modo particular e não cessemos de repetir a oração de Santo Inácio: Senhor! dai-me o vosso amor e a vossa graça; nada mais desejo. Mas, este dom do amor divino é necessário que o peçamos continuamente e com instância, como o pedia Santo Agostinho nesta oração: Ouvi-me, ouvi-me, meu Deus, meu Rei, meu Pai, vós que sois a minha honra, a minha salvação, a minha luz, a minha vida! ouvi-me, ouvi-me, ouvi-me. Ao presente só a vós amo, só a vós procuro. Curai e abri os meus olhos. Recebei um escravo que tinha fugido da vossa casa; já bastante servi aos vossos inimigos. Fazei que me torne um puro e perfeito amante da vossa sabedoria.

                E quanto pedirmos graças - ajuntarei com São Bernardo - peçamo-las sempre por intercessão de Maria, que obtém para os seus servos tudo quanto pede a Deus. Procuremos a graça, e procuremo-la por Maria; porque ela encontra o que procura, e não pode sofrer nenhuma recusa.

DÉCIMA PRIMEIRA INSTRUÇÃO,

                Sobre a devoção à Virgem Santíssima

                Pode este assunto ser tratado nos sermões ou nas instruções, conforme se julgar preferível. Em todo o caso, quem dá os exercícios a sacerdotes, não deve passar em silêncio este ponto; porque este discurso é talvez mais útil que todos os outros. Sem a devoção a Maria, é moralmente impossível ser-se um bom padre.

                Vamos considerar, em primeiro lugar, que a intercessão da santíssima Virgem é moralmente necessária aos padres; veremos depois a confiança que eles devem ter na intercessão desta divina Mãe.

§ I
                Necessidade moral da intercessão da santíssima Virgem

                Quanto à necessidade da intercessão da Mãe de Deus, é verdade que o Concílio de Trento, declarou solenemente que a intercessão dos santos é útil, sem dizer que seja necessária. No entanto, a esta pergunta: "Somos nós obrigados a pedir aos santos que intercedam por nós?" Santo Tomás responde afirmativamente, porque a ordem da lei divina exige que, na condição de viadores, nos salvemos por meio dos santos, obtendo por sua mediação as graças necessárias à salvação. Eis as suas palavras: "Segundo São Dionísio, a ordem dos seres exige que os últimos regressem a Deus por intermédio dos que estão mais próximos dele. E, como os santos que estão na pátria se acham muito próximos de Deus, exige a ordem da lei divina que nós, retidos longe do Senhor pelos laços do corpo, regressemos a ele por meio dos santos".

                Depois ajunta: "Assim como os benefícios de Deus nos advém por meio dos sufrágios dos santos, assim também é necessário que por meio dos santos nos voltemos para Deus, para recebermos dele novos benefícios".

                O mesmo pensamento se encontra expresso noutros autores e especialmente no continuador de Tournely, que diz com Sílvio: Somos obrigados pela lei natural a observar a ordem estabelecida por Deus; ora Deus estabeleceu que os inferiores cheguem à salvação implorando o socorro dos superiores.

                Mas, se isso é verdade de intercessão dos santos, muito mais da intercessão de Maria, cujas preces diante de Deus são mais poderosas que as de todos os santos. Diz o Doutor angélico que os santos, em razão da graça abundante que Deus lhes dá, podem salvar um número mais ou menos considerável de outras almas, mas a Virgem bendita mereceu uma graça tal, que pode salvar todos os homens. E, segundo São Bernardo, assim como temos acesso a Deus por meio do seu Filho, Jesus Cristo, assim temos acesso ao Filho por meio da Mãe: "Que por vós tenhamos acesso junto do vosso Filho, ó Mãe da Salvação, ó vós que encontrastes a graça, para que por vós nos receba o que por vós nos foi dado.

                Donde conclui que todas as graças de Deus nos advém por meio de Maria: "Deus constituiu Maria depositária de todos os bens, de modo que, se alguma esperança de graça e de salvação existe para nós, devemos reconhecer que é como uma emanação da superabundância daquela, que se eleva cumulada de delícias, para difundir por toda a parte os perfumes da graça".

                Dá o santo a razão desta disposição: "Tal é, diz ele, a vontade daquele que dispôs que todo o bem nos adviesse por Maria. É o que também significam todos os textos da Escritura que a Igreja aplica a Maria: Quem me encontrar, encontrará a vida e salvar-se-á no Senhor. Em mim está toda a graça da vida e da verdade; em mim toda a esperança da vida e da virtude... Os que trabalham para mim não pecarão. Os que me fazem conhecer terão a vida eterna.

                Mas o que a Igreja nos faz dizer na Salve Regina, basta para nos confirmar a todos neste sentimento: ensina-nos a invocar a santíssima Virgem, chamando-lhe a vossa Vida e a nossa Esperança.

                São Bernardo nos exorta a recorrer a Maria com uma confiança segura de obtermos as graças que lhe pedirmos, porque o Filho de Deus nada sabe recusar a sua Mãe. E acrescenta que era ela o fundamento da sua esperança. Conclui por dizer: todas as graças que desejarmos, devemos pedi-las pela intercessão de Maria, que obtém tudo quanto quer, e não pode encontrar recusa nas suas súplicas. Antes de São Bernardo, já Santo Efrém tinha dito igualmente: Toda a nossa confiança está em vós, ó Virgem puríssima. E Santo Ildefonso: Todos os bens que a divina Majestade resolveu conceder-nos, quis depositá-los nas vossas mãos; sim, confiou-vos todos os seus tesouros e todas as jóias das suas graças. São Pedro Damião tem a mesma linguagem: Nas vossas mãos estão os tesouros das misericórdias do Senhor. E São Bernardino de Sena: Sois vós a dispensadora de todas as graças; em vossas mãos está a nossa salvação.

                Tal foi também o sentir de São João Damasceno, São Germano, Santo Anselmo, Santo Antonino, Idiota, e muitos outros autores graves, como Segneri, Paciucchelli, Crasset, Vega, Mendozza etc., com o sábio Padre Natal Alexandre, que se exprime assim: Quer Deus que esperemos dele todos os bens pela intercessão poderosíssima da Virgem Maria, contanto que a invoquemos como convém. O mesmo escreveu o Padre Contenson, ao explicar as palavras que Jesus Cristo dirigiu no alto da cruz a São João: Ecce Mater tua. Eis como ele comenta este texto: É como se dissera: Ninguém terá parte nos merecimentos do meu sangue, senão por intercessão da minha Mãe. São as minhas chagas as fontes das graças, mas elas não correm sobre ninguém, senão pelo canal de Maria. João, meu discípulo, tu serás amado de mim na medida em que a amares.

                Se todos devem ser devotos da Mãe de Deus, em razão da necessidade moral da sua intercessão, mais instante é esse dever para os padres que, tendo de cumprir grandes obrigações, carecem de graças mais abundantes para se salvarem. Nós padres deveríamos permanecer continuamente aos pés de Maria, a implorar o seu socorro. São Francisco de Borja temia muito pela perseverança e salvação das pessoas, que não consagravam uma devoção especial à santíssima Virgem; porque, segundo a expressão de Santo Antonino, quem pretende obter as graças, sem a intercessão de Maria, tenta voar sem asas. E Santo Anselmo chega a dizer, dirigindo-se a ela: Todo aquele que vos abandona, perecerá necessariamente. São Boaventura assegura a mesma coisa: Quem negligenciar honrá-la, morrerá nos seus pecados. O bem-aventurado Alberto Magno: Quem vos não servir perecerá.

                Finalmente, Ricardo de São Lourenço diz também, falando de Maria: O mar do mundo engolirá todos aqueles que não se refugiarem nesta arca.

                Ao contrário, o servo fiel da santíssima Virgem certamente se salvará. "Sim, ó Mãe de Deus! exclamava São João Damasceno, se eu puser a minha confiança em vós, serei salvo; desde que esteja sob a vossa proteção, nada terei a temer; porque os vossos servos têm armas que asseguram a vitória, armas que Deus só concede aos que quer salvar".

§ II
                Confiança que se deve ter na intercessão da mãe de Deus

                Vejamos agora a confiança que devemos ter na intercessão de Maria, considerando o seu poder e a sua bondade misericordiosa.

I.

                Quanto ao seu poder, Cosme de Jerusalém chamava à intercessão da nossa Rainha, não só poderosa, mas onipotente. E Ricardo de São Lourenço diz: O Filho onipotente comunicou a sua onipotência a sua Mãe. O Filho é onipotente por natureza, e a Mãe por graça; porque ela obtém de Deus tudo quanto pede, e isto por duas razões: a primeira é que ela excede todas as criaturas em fidelidade e amor para com Deus; o que faz, como diz o Padre Soares, que o Senhor ame mais a Maria, que a todos os bem-aventurados juntos. Um dia Sta. Brígida ouviu Jesus dizer a sua Mãe: Minha Mãe, pedi-me o que quiserdes, porque nenhuma das vossas súplicas pode ficar sem efeito. Depois ajunta: Assim como nada me recusastes na terra, também eu nada vos recusarei no Céu. A segunda razão é que ela é Mãe. Diz Santo Antonino que as súplicas de Maria têm o caráter dum mandamento, porque são as orações duma Mãe, e assim é impossível que ela não seja ouvida.

                Daí estas palavras que lhe endereça São Germano: "Ó minha Soberana! Vós sois onipotente para salvardes os pecadores, não necessitais de nenhuma recomendação junto de Deus, porque sois a sua Mãe". São Jorge de Nicomédia acrescenta que é de certo modo em desempenho das suas obrigações para com Maria, de quem recebeu a vida humana, que Jesus Cristo lhe concede tudo quanto ela pede. Eis por que São Pedro Damião, admirando igualmente a autoridade desta augusta Rainha, quando quer obter de meu Filho alguma graça para seus piedosos servos, não teme dizer-lhe: Aproximais-vos desse Altar, em que se opera a reconciliação dos homens, não só pedindo, mas mandando na qualidade de Rainha e não de serva, porque o vosso Filho vos honra, nada vos recusando.

                Ainda Maria estava na terra e já gozava do privilégio de ver todas as suas súplicas ouvidas pelo seu divino Filho. Nas bodas de Caná, desejando que ele provesse à falta de vinho, contentou-se com lhe dizer: Não têm vinho. Mas Jesus Cristo respondeu-lhe: Quid mihi et tibi est, mulier? nondum venit hora mea. Podia parecer que, respondendo assim, lhe recusava a graça desejada, não deixou contudo de se render à súplica da sua Mãe, como observa São João Crisóstomo.

                As preces de Maria, diz São Germano, obtém graças insignes, até aos maiores pecadores, porque as sustenta a autoridade materna. Numa palavra, não há homem, por ímpio que seja, que Maria não salve por sua intercessão, quando lhe apraz. É a razão da linguagem de São Jorge de Nicomédia: Tendes um poder inexcedível: por numerosos que sejam os pecados, não vencem a vossa clemência. Nada resiste ao vosso poder, porque o Criador olha como própria a vossa glória. Nada vos é impossível, ó minha Rainha, exclama São Pedro Damião, pois até os desesperados podeis socorrer e salvar.

II.

                Tanto Maria é poderosa para nos salvar pela sua intercessão, como é misericordiosa para conosco e interessada na nossa salvação. É o que nota São Bernardo. É chamada Mãe de misericórdia, porque a sua terna bondade para conosco faz que nos ame e socorra, como uma mãe ama e socorre seu filho doente. Segundo o Padre Nieremberg, o amor de todas as mães reunidas não iguala o de Maria, por um só de seus servos que a ela se recomenda.

                Por isso é comparada à bela oliveira na amplidão dos campos. Dos campos, comenta o cardeal Hugues, para que todos venham e se refugiem junto dela. E assim como a oliveira, dá o azeite, símbolo da misericórdia, a quem a preme, assim Maria derrama as suas misericórdias sobre quem recorre a ela.

                O bem-aventurado Amadeu e São Beda afirmam que a nossa Rainha, no Céu, está sempre ocupada a orar por nós. Ai! exclama São Bernardo, o que é que poderia brotar duma fonte de misericórdia senão misericórdia? Um dia ouviu Sta. Brígida que o nosso Salvador dizia a sua Mãe: Mater, pete quod vis a me. E Maria respondeu: Misericordiam pelo miseriss. É como se tivesse dito: Meu Filho, visto que me constituístes Mãe de Misericórdia, - que posso eu pedir-vos senão que useis de misericórdia com os miseráveis pecadores? - A caridade imensa de que está abrasado o coração de Maria para com todos os homens, diz São Bernardo, como que a obriga a difundir por todos a sua misericórdia.

                Dizia São Boaventura que, em presença de Maria, lhe parecia perder de vista a terrível justiça de Deus, e ver apenas a misericórdia divina, que o Senhor deposita nas mãos desta boa Mãe, para socorrer os miseráveis.

                E, segundo São Leão, tão cheia de misericórdia é ela, que deve ser chamada a própria misericórdia. De fato, ó Mãe de misericórdia, exclama São Germano, - quem, depois de Jesus Cristo, tem como vós tanto cuidado da nossa felicidade? Quem como vós nos socorre das nossas aflições? Quem se interessa assim pelos pecadores? Não nos é dado compreender em toda a sua extensão a vossa solicitude para conosco. Ao falar também de Maria, Santo Agostinho exprime-se assim: Sabemos, ó Maria, que o vosso interesse pelo bem da santa Igreja excede ao de todos os santos juntos.

                É como se dissera: Ó Mãe de Deus! É bem verdade que os santos desejam a nossa salvação, mas o zelo que pondes em nos assistirdes do alto dos céus, o amor que nos mostrais em nos obterdes sem cessar tantas graças que sobre nós espalhais a mãos cheias, - obriga-nos a confessar que só vós amais verdadeiramente, e só vós sois em verdade cheia de solicitude pelo nosso bem.

                E São Germano ajunta: Maria intercede sempre por nós, reiterando de contínuo as suas instâncias, de modo que jamais se sacia de tomar a nossa defesa.

                Segundo Bernardino de Bustis, com mais ardor deseja Maria dispensar-nos as graças, do que nós recebê-las. O mesmo autor ajunta esta reflexão: Assim como o demônio procura sempre dar a morte a quantos pode, como São Pedro nos adverte, assim Maria procura sempre salvar quantos desgraçados possa. Agora pergunto: Quem é que recebe os benefícios de Maria? - e respondo: Quem os quer. - Basta pedir as graças a Maria, dizia uma santa alma, para as receber Guilherme de Paris contentava-se com suplicar à bem-aventurada Virgem que orasse por ele, tendo confiança que ela lhe obteria graças mais abundantes, do que as que ele tivesse ousado pedir-lhe. Porque razão há tantas pessoas que não recebem graças de Maria? Porque não as querem.

                Quem se acha escravizado por alguma paixão, - de interesse, ambição, ou impureza - não deseja ser libertado, e por conseqüência não faz oração; se pedisse a sua salvação a Maria, havia de obtê-la.

                Mas, desgraçado - disse a mesma ditosa Virgem a Sta. Brígida desgraçado aquele que, podendo recorrer a mim nesta vida, permanece por sua culpa sepultado no abismo do pecado. Tempo virá em que queira e não possa.

                Ai! Não nos exponhamos a um tal perigo; recorramos sempre a esta divina Mãe, que a ninguém despede descontente, conforme as palavras que o devoto Lansperge põe na boca de Nosso Senhor: Eu a fiz tão terna, que ela não pode deixar ninguém sem consolação. Quem a invoca sempre a encontra disposta a prestar-lhe auxílio, diz Ricardo de São Lourenço. Ainda mais, segundo Ricardo de São Vítor, a terna bondade de Maria previne as nossas súplicas, e assiste-nos ainda antes de termos implorado o seu auxílio. E isso provém, ajunta o mesmo autor, de Maria ser tão misericordiosa, que não pode ver as nossas misérias sem nos socorrer.

                Quem houve já, exclama Inocêncio III, que recorresse a Maria e não fosse ouvido? Quem implorou já a sua assistência, diz também o beato Eutiquiano, e foi dela abandonado? Ó Virgem, ajunta São Bernardo, se alguém se lembrar de vos ter invocado, sem ser socorrido, consinto que esse deixe de louvar a vossa misericórdia. Ó! por certo nunca tal se viu nem se verá; porque Maria, diz São Boaventura, assim como não ignora as penas dos desgraçados e se compadece deles, também não pode deixar de os socorrer. E o mesmo santo Doutor conclui daí que esta Mãe de misericórdia, que tanto deseja socorrer-nos e ver-nos salvos - se dá por ofendida, não só quando lhe fazemos alguma injúria positiva, mas até quando nos descuidamos de lhe pedir as graças.

                Recorramos pois a Maria e confiemos na sua misericórdia, por mais indignos que nos reconheçamos de ser ouvidos, em razão dos nossos pecados. A Sta. Brígida revelou o Senhor que o próprio Lúcifer se teria salvado por Maria, se esse espírito soberbo pudesse humilhar-se e implorar o seu socorro. Ouviu a santa que o nosso Salvador falava assim a sua Mãe: Etiam diabolo exhiberes misericordiam, si humiliter peteret. E a própria Virgem disse a Sta. Brígida que, quando um pecador vem a seus pés, não considera ela já os pecados de que está manchado, mas a intenção que os anima; se vem com a resolução de mudar de vida, cura-o e salva-o. Também São Boaventura chamava a Maria a salvação dos que a invocam. Basta recorrer a Maria para ser salvo.

§ III
                Prática de devoção à santíssima Virgem

                Repito pois, recorramos sempre a esta augusta Mãe de Deus, rogandolhe que nos proteja; mas, para melhor merecermos a sua proteção, tenhamos o cuidado de a honrar quanto possível. Um grande servo de Maria, o irmão João Berchmans, da Cia. de Jesus, estava em artigo de morte, quando os seus irmãos lhe perguntaram o que tinha a fazer para cativarem as boas graças desta poderosa Rainha. Ele respondeu: Quidquid minimum, dummodo sit constans. Uma leve homenagem basta, para assegurar a proteção da Mãe de Deus; contenta-se com o mínimo dos nossos esforços, contanto que seja perseverante; porque é tão generosa, diz Santo André de Creta, que recompensa habitualmente com graças abundantes as mais pequenas coisas que se façam em sua honra.

                Quanto a nós, não nos devemos limitar a isso; ofereçamos-lhe ao menos todas as homenagens, que de ordinário lhe rendem os seus devotos servos: rezar o terço todos os dias, fazer as suas novenas, jejuar aos sábados, trazer o seu escapulário, (ou a respectiva medalha) visitar diariamente alguma das suas imagens, pedindo-lhe qualquer graça especial, ler cada dia um pouco nalgum livro que trate dos seus louvores, saudá-la ao sair de casa e ao regressar, pôr-se na sua presença; de manhã ao levantar e à noite ao deitar, rezar três A, M. em honra da sua pureza.

                Estas devoções sabem praticá-las os próprios leigos; mas nós, que somos padres, devemos levar mais longe as nossas homenagens à Mãe de Deus, pregando as suas glórias e levando os outros a honrá-la. A quem procurar neste mundo fazê-la conhecer a amar, promete ela a vida eterna. O bem-aventurado bispo Heming começava todos os seus sermões pelos louvores de Maria; assim mereceu que ela dissesse um dia a Sta. Brígida: "Participai a esse prelado que eu quero servir-lhe de mãe, e à sua alma". Ó! quanto agradaria à santíssima Virgem o padre que todos os sábados, numa igreja ou capela, fizesse ao povo uma curta instrução sobre as prerrogativas desta terna Mãe, falando-lhe especialmente da sua misericórdia, e do desejo que tem de socorrer os que a invocam! Como diz São Bernardo, a misericórdia de Maria é o mais poderoso atrativo para afeiçoar os povos ao seu culto.

                Ao menos, que o pregador tenha cuidado em todas as suas instruções, antes de terminar, de mover os fiéis a recorrer à bem-aventurada Virgem, pedindo-lhe alguma graça.

                Em suma, quem honra a Maria, diz Ricardo de São Lourenço, ajunta tesouros para a vida eterna. Foi com este fim que há anos publiquei o meu livro - As Glórias de Maria. Dei-me a enriquecê-lo com passagens da Escritura e dos santos padres, exemplos e práticas de devoção, não só para oferecer a todos os fiéis assuntos de leitura, mas até para dum modo particular servirem aos padres, fornecendo-lhes matéria abundante para pregarem os louvores da Mãe de Deus, e inspirarem ao povo uma fervorosa devoção para com ela.

                NOTA DO TRADUTOR PORTUGUÊS.

                Temos presente uma edição francesa das Glória de Maria, em cujo prefácio encontramos o seguinte:


                "O próprio Santo Afonso, sem o querer, fez a um tempo o elogio da sua obra e da sua virtude, numa ocasião tocante, que o Padre Panzuti refere. Quando já contava quase noventa anos, fazia-lhe a leitura espiritual o irmão que o servia. Um dia, arrebatado pelo que ouvia, e tendo a memória enfraquecida, perguntou-lhe por fim: 'Meu irmão, quem foi que compôs esse belo livro, que está tão bem escrito? Que suavidade! Dizei-me: quem é o seu autor?' O irmão, em resposta, leulhe o título: 'Glórias de Maria, por Afonso de Ligório'. A estas palavras, o venerando ancião ficou confuso e guardou silêncio. A sua humildade fora colhida de surpresa".