domingo, 15 de outubro de 2017

Audiolivro: A Imitação de Cristo - Livro I Avisos úteis para a vida espiritual


A Imitação de Cristo

Livro I Avisos úteis para a vida espiritual
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Livro I -
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Livro IV - gloria.tv

Capítulo, 1 Da imitação de Cristo e desprezo de todas as vaidades do mundo


                Quem me segue não anda nas trevas, diz o Senhor. São João, 8,12. São estas as palavras de Cristo, pelas quais somos advertidos que imitemos sua vida e seus costumes, se verdadeiramente queremos ser iluminados e livres de toda cegueira de coração. Seja, pois, o nosso principal empenho meditar sobre a vida de Jesus Cristo.

                A doutrina de Cristo é mais excelente que a de todos os santos, e quem tiver seu espírito encontrará nela um maná escondido. Sucede, porém, que muitos, embora ouçam frequentemente o Evangelho, sentem nele pouco enlevo: é que não possuem o Espírito de Cristo. Quem quiser compreender e saborear plenamente as palavras de Cristo, é-lhe preciso que procure conformar à dele toda a sua vida.

                Que te aproveita discutires sabiamente sobre a Santíssima Trindade, se não és humilde, desagradando, assim, a essa mesma Trindade? Na verdade, não são palavras elevadas que fazem o homem justo; mas é a vida virtuosa que o torna agradável a Deus. Prefiro sentir a contrição dentro de minha alma, a saber defini-la. Se soubesses de cor toda a Bíblia e as sentenças de todos os filósofos, de que te serviria tudo isso sem a caridade e a graça de Deus? Vaidade das vaidades, e tudo é vaidade, Eclesiastes, 1,2. senão amar a Deus e só a ele servir. A suprema sabedoria é esta: pelo desprezo do mundo tender ao reino dos céus.

                Vaidade é, pois, buscar riquezas perecedoras e confiar nelas. Vaidade é também ambicionar honras e desejar posição elevada. Vaidade, seguir os apetites da carne e desejar aquilo pelo que, depois, serás gravemente castigado.

 Vaidade, desejar longa vida e, entretanto, descuidar-se de que seja boa. Vaidade, só atender à vida presente sem providenciar para a futura. Vaidade, amar o que passa tão rapidamente, e não buscar, pressuroso, a felicidade que sempre dura.

                Lembra-te a miúdo do provérbio: Os olhos não se fartam de ver, nem os ouvidos de ouvir. Eclesiastes, 1,8. Portanto, procura desapegar teu coração do amor às coisas visíveis e afeiçoá-lo às invisíveis: pois aqueles que satisfazem seus apetites sensuais mancham a consciência e perdem a graça de Deus.

Reflexões:
                Contemplando muitas vezes Nosso Senhor pela meditação, toda a tua alma se encherá dele, aprenderás suas atitudes e conformarás tuas ações ao modelo das suas. Ele é a luz do mundo: portanto é nele, por ele e para ele que devemos ser esclarecidos e iluminados. Ele é a árvore do desejo, à sombra da qual devemos refrescar-nos; é a fonte viva de Jacó para lavar todas as nossas manchas.

                Enfim, as crianças, de tanto ouvir suas mães falar e balbuciar com elas, aprendem a falar sua linguagem, e nós, permanecendo perto do Salvador pela meditação, e observando suas palavras, suas ações e seus afetos, aprendemos, por meio de sua graça, a falar, fazer e querer como ele... Não é por nada que o Salvador se chama o pão descido do céu; porque, como o pão deve ser comido com todo tipo de alimentos, também o Salvador deve ser meditado, considerado e buscado em todas as nossas orações e ações.

Oração:
                Meu Senhor Jesus Cristo, amabilíssimo pai de minha alma, eu vos peço perdão, de todo o meu coração, pelo pouco amor, temor, reverência e obediência que tenho tido por vós até o presente. Eu vos peço a graça de amar-vos e temer-vos no futuro, com um amor e temor filial e reverencial, com perfeita obediência aos vossos mandamentos e inspirações interiores, e a tudo o que meu estado me obriga; e de imitar-vos virilmente em vossas santas virtudes; e ainda de ser perfeitamente resignado em todas as coisas à vossa divina vontade e bel-prazer eterno.

Capítulo, 2 Do humilde pensar de si mesmo


                Todo homem tem desejo natural de saber; mas que aproveitará a ciência, sem o temor de Deus? Melhor é, por certo, o humilde camponês que serve a Deus, do que o filósofo soberbo que observa o curso dos astros, mas se descuida de si mesmo. Aquele que se conhece bem despreza-se e não se compraz em humanos louvores. Se eu soubesse quanto há no mundo, porém me faltasse a caridade, de que me serviria isso perante Deus, que me há de julgar segundo minhas obras?

                Renuncia ao desordenado desejo de saber, porque nele há muita distração e ilusão. Os letrados gostam de ser vistos e tidos por sábios. Muitas coisas há cujo conhecimento pouco ou nada aproveita à alma. E mui insensato é quem de outras coisas se ocupa e não das que tocam à sua salvação. As muitas palavras não satisfazem à alma, mas uma palavra boa refrigera o espírito e uma consciência pura inspira grande confiança em Deus.

                Quanto mais e melhor souberes, tanto mais rigorosamente serás julgado, se com isso não viveres mais santamente. Não te desvaneças, pois, com qualquer arte ou conhecimento que recebeste. Se te parece que sabes e entendes bem muitas coisas, lembra-te que é muito mais o que ignoras. Não presumas de alta sabedoria, Romanos, 11,20. antes confessa a tua ignorância. Como tu queres a alguém preferir-te, quando se acham muitos mais doutos do que tu e mais versados na lei? Se queres saber e aprender coisa útil, deseja ser desconhecido e tido por nada.

                Não há melhor e mais útil estudo que conhecer-se perfeitamente e desprezar-se a si mesmo. Ter-se por nada e pensar sempre bem e favoravelmente dos outros prova é de grande sabedoria e perfeição. Ainda quando vejas alguém pecar publicamente ou cometer faltas graves, nem por isso te deves julgar melhor, pois não sabes quanto tempo poderás perseverar no bem. Nós todos somos fracos, mas a ninguém deves considerar mais fraco que a ti mesmo.

Reflexões:
                O devoto Frei Rufino, naquela visão que teve da glória à qual chegaria o grande São Francisco por sua humildade, fez-lhe esta pergunta: "Meu caro pai, eu vos suplico dizer-me na verdade que opinião tendes de vós mesmo". E o santo lhe disse: "Na verdade eu me considero o maior pecador do mundo e aquele que menos serve a Nosso Senhor". "Mas, replicou Frei Rufino, como podeis dizer isto de verdade e em consciência, uma vez que muitos outros, como se pode ver claramente, cometem muitos pecados graves, dos quais, graças a Deus, estais isento?"

                Ao que São Francisco respondeu: "Se Deus tivesse favorecido esses outros, dos quais falas, com tanta misericórdia como me favoreceu, estou certo de que, por maus que sejam agora, eles teriam sido muito mais reconhecidos pelos dons de Deus do que eu, e o serviriam muito melhor do que eu. E se meu Deus me abandonasse, eu cometeria mais maldades do que nenhum outro..."

                Ora, tenho por oráculo o sentimento desse grande doutor na ciência dos santos que, nutrido na escola do crucifixo, só respirava as divinas inspirações.

Oração:
                Pai Eterno, ofereço à vossa honra e glória, e pela minha salvação e de todo o gênero humano, o mistério da apresentação de vosso Filho no templo e da Purificação de sua imaculada mãe..., agradeço-vos por isso, amo-vos e vos bendigo infinitamente, pedindo-vos, pelos méritos desta grande humildade e obediência, a verdadeira humildade e pouca estima de mim mesmo, e uma perfeita obediência aos vossos divinos mandamentos e santas inspirações.

Capítulo, 3 Dos ensinamentos da verdade


                Bem-aventurado aquele a quem a verdade por si mesma ensina, não por figuras e vozes que passam, mas como em si é. Nossa opinião e nossos juízos muitas vezes nos enganam e pouco alcançam. De que serve a sutil especulação sobre questões misteriosas e obscuras, de cuja ignorância não seremos julgados?

                Grande loucura é descurarmos as coisas úteis e necessárias, entregando-nos, com avidez, às curiosas e nocivas. Temos olhos para não ver. Salmo, 113,13.

                Que se nos dá dos gêneros e das espécies dos filósofos? Aquele a quem fala o Verbo eterno se desembaraça de muitas questões. Desse Verbo único procedem todas as coisas e todas o proclamam e esse é o princípio que também nos fala. São João, 8,25. Sem ele não há entendimento nem reto juízo. Quem acha tudo neste Único, e tudo a ele refere e nele tudo vê, poderá ter o coração firme e permanecer em paz com Deus. Ó Deus de verdade, fazei-me um convosco na eterna caridade! Enfastia-me, muita vez, ler e ouvir tantas coisas; pois em vós acho tudo quanto quero e desejo. Calem-se todos os doutores, emudeçam todas as criaturas em vossa presença; falai-me vós só.

                Quanto mais recolhido for cada um e mais simples de coração, tanto mais sublimes coisas entenderá sem esforço, porque do alto recebe a luz da inteligência. O espírito puro, singelo e constante não se distrai no meio de múltiplas ocupações porque faz tudo para honra de Deus, sem buscar em coisa alguma o seu próprio interesse. Que mais te impede e perturba do que os afetos imortificados do teu coração? O homem bom e piedoso ordena primeiro no seu interior as obras exteriores; nem estas o arrasam aos impulsos de alguma inclinação viciosa, senão que as submete ao arbítrio da reta razão. Que mais rude combate haverá do que procurar vencer-se a si mesmo? E este deveria ser nosso empenho: vencermo-nos a nós mesmos, tornarmo-nos cada dia mais fortes e progredirmos no bem.

                Toda a perfeição, nesta vida, é mesclada de alguma imperfeição, e todas as nossas luzes são misturadas de sombras. O humilde conhecimento de ti mesmo é caminho mais certo para Deus que as profundas pesquisas da ciência.

                Não é reprovável a ciência ou qualquer outro conhecimento das coisas, pois é boa em si e ordenada por Deus; sempre, porém, devemos preferir-lhe a boa consciência e a vida virtuosa. Muitos, porém, estudam mais para saber, que para bem viver; por isso erram a miúdo e pouco ou nenhum fruto colhem.

                Ah! se se empregasse tanta diligência em extirpar vícios e implantar virtudes como em ventilar questões, não haveria tantos males e escândalos no povo, nem tanta relaxação nos claustros. De certo, no dia do juízo não se nos perguntará o que lemos, mas o que fizemos; nem quão bem temos falado, mas quão honestamente temos vivido. Dize-me: onde estão agora todos aqueles senhores e mestres que bem conheceste, quando viviam e floresciam nas escolas? Já outros possuem suas prebendas, e nem sei se porventura deles se lembram. Em vida pareciam valer alguma coisa, e hoje ninguém deles fala.

                Oh! como passa depressa a glória do mundo! Oxalá a sua vida tenha correspondido à sua ciência; porque, destarte, terão lido e estudado com fruto.

                Quantos, neste mundo, descuidados do serviço de Deus, se perdem por uma ciência vã! E porque antes querem ser grandes que humildes, se esvaecem em seus pensamentos. Romanos, 1,21. Verdadeiramente grande é aquele que tem grande caridade. Verdadeiramente grande aquele que a seus olhos é pequeno e avalia em nada as maiores honras. Verdadeiramente prudente é quem considera como lodo tudo o que é terreno, para ganhar a Cristo. Filipenses, 3,8. E verdadeiramente sábio aquele que faz a vontade de Deus e renuncia à própria vontade.

Reflexões:
                Santo Agostinho diz que os filósofos falaram magnificamente das virtudes, mas para desprezá-las, e dos vícios, para praticá-los, porque eram cegos; pois não há absolutamente verdadeira ciência, senão a do Espírito Santo, que ele só distribui às almas humildes. Não vimos também nós muitos grandes teólogos que disseram maravilhas das virtudes, mas não para praticá-las; ao contrário, houve tantas santas mulheres que não sabiam falar das virtudes, mas que sabiam muito bem exercitar-se nelas; porque umas, como se viu, tinham um cuidado extremo em conservar sua virgindade, outras em ter um coração puro e limpo em sua viuvez, e outras ainda em viver na castidade conjugal. E quem lhes havia dado este dom da ciência para discernir o bem do mal, o vício da virtude, senão o Espírito Santo?

                Mas, dirás, eu não sei como se deve praticar as virtudes. Coloca-te na presença do Espírito Santo, humilha-te, e ele te ensinará e te tornará sábio.

                Sem dúvida já vimos santas admiravelmente sábias em sua ignorância, e admiravelmente ignorantes em sua ciência. O mal da ciência é a presunção que torna os espíritos inflados e hidrópicos, como são de ordinário os sábios do mundo. Oh! que ignorância nesta ciência! Santa Catarina, mártir, foi muito sábia, mas sua ciência era humilde ao pé da cruz. Outras santas foram ignorantes, mas em sua ignorância elas foram admiravelmente sábias, como Santa Catarina de Gênova. Era o Santo Espírito que as tornava sábias, e, porque elas tinham o temor de Deus, a piedade e a humildade, Deus lhes fez este rico presente do dom da ciência, que Eva tanto desejou, mas, por orgulho, para ser semelhante a Deus.

Capítulo, 4 Da prudência nas ações


                Não se há de dar crédito a toda palavra nem a qualquer impressão, mas cautelosa e naturalmente se deve, diante de Deus, ponderar as coisas. Mas, ai! que mais facilmente acreditamos e dizemos dos outros o mal que o bem, tal é a nossa fraqueza. As almas perfeitas, porém, não creem levianamente em qualquer coisa que se lhes conta, pois conhecem a fraqueza humana inclinada ao mal e fácil de pecar por palavras.

                Grande sabedoria é não ser precipitado nas ações, nem aferrado obstinadamente à sua própria opinião; sabedoria é também não acreditar em tudo que nos dizem, nem comunicar logo a outros o que ouvimos ou suspeitamos. Toma conselho com um varão sábio e consciencioso, e procura antes ser instruído por outrem, melhor que tu, que seguir teu próprio parecer. A vida virtuosa faz o homem sábio diante de Deus e entendido em muitas coisas.

                Quanto mais humilde for cada um em si e mais sujeito a Deus, tanto mais prudente será e calmo em tudo.

Reflexões:
                Queres, com plena consciência, encaminhar-te à devoção? Busca algum homem de bem que te guie e te conduza... Ele deve ser cheio de caridade, de ciência e de prudência... Trata com ele de coração aberto, com toda sinceridade e fidelidade, manifestando-lhe claramente teu bem e teu mal, sem fingimento nem dissimulação; e por este meio teu bem será examinado e mais assegurado, e teu mal será corrigido e remediado. Com isso serás aliviado e fortificado em tuas aflições, moderado e regulado em tuas consolações.

Oração:
                Meu Senhor Jesus Cristo, que quisestes ser despojado de vossas vestes e cruelmente açoitado por minha salvação, concedei-me a graça de descarregar-me dos pecados por uma boa confissão, a fim de não aparecer diante de vossos olhos despojado das virtudes cristãs. Amém.

Capítulo, 5 Da leitura das Sagradas Escrituras


                Nas Sagradas Escrituras devemos buscar a verdade, e não a eloquência.

                Todo livro sagrado deve ser lido com o mesmo espírito que o ditou. Nas Escrituras devemos antes buscar nosso proveito que a sutileza da linguagem.

                Tão grata nos deve ser a leitura dos livros simples e piedosos, como a dos sublimes e profundos. Não te mova a autoridade do escritor, se é ou não de grandes conhecimentos literários; ao contrário, lê com puro amor a verdade.

                Não procures saber quem o disse, mas considera o que se diz.

                Os homens passam, mas a verdade do Senhor permanece eternamente. Salmo, 116,2. De vários modos nos fala Deus, sem acepção de pessoas. A nossa curiosidade nos embaraça, muitas vezes, na leitura das Escrituras; porque queremos compreender e discutir o que se devia passar singelamente. Se queres tirar proveito, lê com humildade, simplicidade e fé, sem cuidar jamais do renome de letrado. Pergunta de boa vontade e ouve calado as palavras dos santos; nem te desagradem as sentenças dos velhos, porque eles não falam sem razão.

Reflexões:
                Foi o Espírito de Deus que nos deu a Escritura e é o mesmo Espírito que nos dá seu verdadeiro sentido, e só o dá em sua Igreja, coluna e apoio da verdade.

                Igreja pelo ministério da qual este Divino Espírito guarda e mantém sua verdade, isto é, o verdadeiro sentido de sua palavra; e Igreja que só ela tem a infalível assistência do Espírito da verdade, para encontrar devida e infalivelmente a verdade na Palavra de Deus. Quem busca a verdade desta palavra celeste fora da Igreja, que é sua guardiã, não a encontra jamais; e quem a quer conhecer de outra maneira que não seja por seu ministério, em vez da verdade, só desposará a vaidade; e em vez da evidente clareza da palavra sagrada, seguirá as ilusões desse falso anjo que se transfigura em anjo de luz.

Oração:
                Meu Senhor Jesus Cristo, que, depois de vossa ressurreição, vos dignastes conviver durante quarenta dias com vossos discípulos, e lhes ensinastes os mistérios da fé, ressuscitai em mim e consolidai-me na crença de vossas divinas verdades. Amém.

Capítulo, 6 Das afeições desordenadas


                Todas as vezes que o homem deseja alguma coisa desordenadamente, torna-se logo inquieto. O soberbo e o avarento nunca sossegam; entretanto, o pobre e o humilde de espírito vivem em muita paz. O homem que não é perfeitamente mortificado facilmente é tentado e vencido, até em coisas pequenas e insignificantes. O homem espiritual, ainda um tanto carnal e propenso à sensualidade, só a muito custo poderá desprender-se de todos os desejos terrenos. Daí a sua frequente tristeza, quando deles se abstém, e fácil irritação, quando alguém o contraria.

                Se, porém, alcança o que desejava, sente logo o remorso da consciência, porque obedeceu à sua paixão, que nada vale para alcançar a paz que almejava. Em resistir, pois, às paixões, se acha a verdadeira paz do coração, e não em segui-las. Não há, portanto, paz no coração do homem carnal, nem no do homem entregue às coisas exteriores, mas somente no daquele que é fervoroso e espiritual.

Reflexões:
                Examina mais de uma vez por dia, mais ou menos de noite e de manhã, se tens tua alma em tuas mãos, ou se ela não foi arrebatada por alguma paixão ou inquietação. Considera se tens sob teu comando teu coração, ou se ele não escapou totalmente de tuas mãos para engajar-se em alguma afeição desregrada de amor, de ódio, de inveja, de cobiça, de medo, de aborrecimento ou de alegria.

                Quando ele se extraviou, antes de mais nada procura trazê-lo de volta à presença de Deus, reconduzindo teus afetos e desejos à obediência e conduta de sua divina vontade.

Oração:
                Meu Senhor Jesus Cristo, que por mim quisestes ser elevado na cruz e exaltado, libertai-me dos afetos terrestres e elevai meu espírito à consideração das coisas celestes. Amém.

Capítulo, 7 Como devemos fugir à vã esperança e presunção


                Insensato é quem põe sua esperança nos homens ou nas criaturas. Não te envergonhes de servir a outrem por Jesus Cristo, e ser tido como pobre neste mundo. Não confies em ti mesmo, mas põe em Deus tua esperança. Faze de tua parte o que puderes, e Deus ajudará tua boa vontade. Não confies em tua ciência, nem na sagacidade de qualquer vivente, mas antes na graça de Deus, que ajuda os humildes e abate os presunçosos.

                Se tens riquezas, não te glories delas, nem dos amigos, por serem poderosos, senão em Deus, que dá tudo, além de tudo, deseja dar-se a si mesmo.

                Não te desvaneças com a elegância ou formosura de teu corpo, que com pequena enfermidade se quebranta e desfigura. Não te orgulhes de tua habilidade ou de teu talento, para que não desagrades a Deus, de quem é todo bem natural que tiveres.

                Não te reputes melhor que os outros, para não seres considerado pior por Deus, que conhece tudo que há no homem. Não te ensoberbeças pelas boas obras, porque os juízos dos homens são muito diferentes dos de Deus, a quem não raro desagrada o que aos homens apraz. Se em ti houver algum bem, pensa que ainda melhores são os outros, para assim te conservares na humildade. Nenhum mal te fará se te julgares inferior a todos; muito, porém, se a qualquer pessoa te preferires. De contínua paz goza o humilde; no coração do soberbo, porém, reinam inveja e iras sem conta.

Reflexões:
                Há em nós dois tipos de bens: uns que estão em nós e são nossos, e os outros que estão em nós, mas não são nossos. Quando digo que temos bens que são nossos, não quero dizer que eles não vêm de Deus, e que nós os temos por nós mesmos; porque, na verdade, por nós mesmos não temos mais do que miséria e o nada; mas quero dizer que são bens que Deus colocou de tal forma em nós que parecem ser nossos. Esses bens são a saúde, as riquezas, as ciências e outros semelhantes. Mas a humildade nos impede de gloriar-nos e estimar-nos por causa desses bens, tanto mais que ela não faz mais caso deles do que de um nada e de uma insignificância; e, com razão, pois não são absolutamente bens estáveis e que nos tornam mais agradáveis a Deus; mas instáveis e sujeitos à sorte.

                E mesmo se não fosse assim, há algo de menos seguro do que as riquezas que dependem do tempo e das estações, do que a beleza que perde seu esplendor por menos que nada? Não é preciso mais do que uma dermatose no rosto para tirar-lhe o brilho; e no que diz respeito às ciências, um pequeno distúrbio do cérebro nos faz perder e esquecer tudo o que sabíamos.

Oração:
                Meu Senhor Jesus Cristo, que por mim quisestes ser ridicularizado em presença dos judeus, trazendo as marcas de seus escárnios, fazei que eu não me deixe levar pelo estímulo da vanglória, e possa comparecer ao julgamento sob a insígnia dessas marcas místicas.

Capítulo, 8 Como se deve evitar a excessiva familiaridade


                Não abras teu coração a qualquer homem, Eclesiástico, 8,22. mas trata de teus negócios com o sábio e temente a Deus. Com moços e estranhos conversa pouco. Não lisonjeies os ricos, nem busques aparecer muito na presença dos potentados. Busca a companhia dos humildes e simples, dos devotos e morigerados, e trata com eles de assuntos edificantes. Não tenhas familiaridade com mulher alguma; mas, em geral, encomenda a Deus todas as que são virtuosas. Procura intimidade com Deus apenas, e seus anjos, e foge de seres conhecido dos homens.

                Caridade se deve ter para com todos; mas não convém ter com todos familiaridade. Sucede, frequentemente, gozar de boa reputação pessoa desconhecida que, na sua presença, desagrada aos olhos dos que a veem.

 Julgamos, às vezes, agradar aos outros com a nossa intimidade, mas antes os aborrecemos com os defeitos que em nós vão descobrindo.

Reflexões:
                Vou falar pouco e bem, a fim de que nos separemos antes com o desejo de novo encontro do que com aborrecimento... Minha conversa será para poucos, bons e honrados, mesmo porque é difícil sair-se bem com muitos, não aprender a corromper-se com os maus e ser honrado, a não ser com pessoas honradas; especialmente vou guardar... este preceito: amigo de todos, mas familiar de poucos...

                No entanto, é preciso abrir-se mais ou menos, conforme as companhias...

                Aos superiores ou mais velhos, ou de profissão, ou autoridade, devemos mostrar apenas o que é excelente; aos semelhantes, só o que é bom; aos inferiores, apenas o que é indiferente... Pode-se, conversando com os superiores, os iguais e os inferiores, temperar às vezes a conversa do que é excelente, bom e indiferente, contanto que o todo se faça discretamente... É preciso estar com os grandes como com o fogo, ou seja, é muito bom às vezes aproximar-se deles, mas também não deve ser de muito perto. Esta passagem foi tirada das resoluções que São Francisco de Sales tomou no tempo de seus estudos.

Oração:
                Meu Senhor Jesus Cristo, que permitistes ser negado três vezes na casa de Caifás, pelo príncipe dos apóstolos, preservai-me das más companhias, a fim de que o pecado jamais me separe de vós. Amém.

Capítulo, 9 Da obediência e sujeição


                Grande coisa é viver na obediência, sob a direção de um superior, e não dispor da própria vontade. Muito mais seguro é obedecer que mandar. Muitos obedecem mais por necessidade que por amor: por isso sofrem e facilmente murmuram. Esses não alcançarão a liberdade de espírito, enquanto não se sujeitarem de todo o coração, por amor de Deus. Anda por onde quiseres: não acharás descanso senão na humilde sujeição e obediência ao superior. A imaginação dos lugares e mudanças a muitos tem iludido.

                Verdade é que cada um gosta de seguir seu próprio parecer e mais se inclina àqueles que participam da sua opinião. Entretanto, se Deus está conosco, cumpre-nos, às vezes, renunciar ao nosso parecer por amor da paz. Quem é tão sábio que possa saber tudo completamente? Não confies, pois, demasiadamente em teu próprio juízo; mas atende também, de boa mente, ao dos demais. Se o teu parecer for bom e o deixares, por amor de Deus, para seguires o de outrem, muito lucrarás com isso.

                Com efeito, muitas vezes ouvi falar que é mais seguro ouvir e tomar conselho que dá-lo. É bem possível que seja acertado o parecer de cada um: mas não querer ceder aos outros, quando a razão ou as circunstâncias o pedem, é sinal de soberba e obstinação.

Reflexões:
                O verdadeiro obediente gozará em sua alma de uma tranquilidade contínua e da santíssima paz de Nosso Senhor, que ultrapassa todo sentimento... O verdadeiro obediente viverá doce e pacificamente, como uma criança nos braços de sua querida mãe, que não precisa preocupar-se com o que poderá acontecer-lhe... Posso assegurar-lhe da parte de Deus a Vida Eterna.

                Para aprender facilmente a obedecer a teus superiores, trata de condescender espontaneamente com a vontade de teus semelhantes, cedendo a suas opiniões no que não é mau, sem ser contencioso nem áspero; acomoda-te de boa vontade aos desejos de teus inferiores, na medida em que a razão o permitir, sem exercer nenhuma autoridade imperiosa sobre eles, enquanto são bons.

Oração:
                Ofereço-vos, Senhor, a obediência e humilde sujeição de vosso Filho à sua Santíssima Mãe e a São José, seu pai adotivo; e as fadigas corporais que suportou trabalhando com São José pelo ganha-pão. Agradeço-vos por tudo isto, amo-vos e vos bendigo infinitamente, pedindo-vos, pelos méritos deste mistério, perdão por todas as minhas desobediências e irreverências para com meus pais e superiores, e a graça de humilhar-me e sujeitar-me a todos de bom coração por amor de vós.

Capítulo, 10 Como se devem evitar as conversas supérfluas


                Evita, quanto puderes, o bulício dos homens, porque muito nos perturbam os negócios mundanos ainda quando tratados com reta intenção; pois bem depressa somos manchados e cativos da vaidade. Quisera eu ter calado muitas vezes e não ter conversado com os homens. Por que razão, porém, nos atraem falas e conversas, se raras vezes voltamos ao silêncio sem dano da consciência?

                Gostamos tanto de falar, porque pretendemos, com essas conversações, ser consolados uns pelos outros e desejamos aliviar o coração fatigado por preocupações diversas. E ordinariamente sentimos prazer em falar e pensar, ora nas coisas que muito amamos e desejamos, ora nas que nos contrariam.

                Mas, ai! muitas vezes é em vão e sem proveito, pois essa consolação exterior é muito prejudicial à consolação interior e divina. Cumpre, portanto, vigiar e orar, para que não passe o tempo ociosamente. Se for lícito e oportuno falar, seja de coisas edificantes. O mau costume e o descuido do nosso progresso espiritual concorrem muito para a dissolução de costumes de nossa língua. Ajudam muito, porém, ao aproveitamento espiritual os devotos colóquios sobre coisas espirituais, mormente quando se associam em Deus pessoas que pensam e sentem do mesmo modo.

Reflexões:
                O falar pouco, tão recomendado pelos antigos sábios, não deve ser entendido como dizer poucas palavras, mas como não dizer tantas palavras inúteis; pois, em matéria de falar, o que conta não é a quantidade, mas a qualidade. E me parece que se deve fugir destes dois extremos, porque de tanto mostrar-se entendedor e rígido, recusando contribuir nos assuntos e resoluções familiares que são tratados em conversas, parece que há falta de confiança ou alguma espécie de desdém; também tagarelar e adular sempre, sem dar oportunidade nem comodidade aos outros, falar à medida de seus desejos, isto denuncia uma pessoa leviana e superficial.

Oração:
                Meu Senhor Jesus Cristo, que, estando na presença de Herodes, sofrestes as falsas acusações sem responder uma só palavra, dai-me força para suportar corajosamente as injúrias dos caluniadores.

Capítulo, 11 Da paz e do zelo em aproveitar


                Muita paz podíamos gozar, se não nos quiséssemos ocupar com os ditos e fatos alheios que não pertencem ao nosso cuidado. Como pode ficar em paz por muito tempo aquele que se intromete em negócios alheios, que busca relações exteriores, que raras vezes e mal se recolhe interiormente? Bem-aventurados os simples, porque hão de ter muita paz!

                Por que muitos santos foram tão perfeitos e contemplativos? É que eles procuraram mortificar-se inteiramente em todos os desejos terrenos e assim puderam, no íntimo de seu coração, unir-se a Deus e atender livremente a si mesmos. Nós, porém, nos ocupamos demasiadamente das próprias paixões e cuidados com excesso das coisas transitórias. Raro é vencermos sequer um vício perfeitamente; não nos inflamamos no desejo de progredir cada dia; daí a frieza e tibieza em que ficamos.

                Se estivéssemos perfeitamente mortos a nós mesmos e interiormente desimpedidos, poderíamos criar gosto pelas coisas divinas e algo experimentar das doçuras da celeste contemplação. O que principalmente e mais nos impede é o não estarmos ainda livres das nossas paixões e concupiscências, nem nos esforçarmos por trilhar o caminho perfeito dos santos. Basta pequeno contratempo para desalentarmos completamente e voltarmos a procurar consolações humanas.

                Se nos esforçássemos por ficar firmes no combate, como soldados valentes, por certo veríamos descer sobre nós o socorro de Deus. Pois ele está sempre pronto a auxiliar os combatentes confiados em sua graça: Aquele que nos proporciona ocasiões de peleja para que logremos a vitória. Se fizermos consistir nosso aproveitamento espiritual tão somente nas observâncias exteriores, nossa devoção será de curta duração. Metamos, pois, o machado à raiz, para que, livre das paixões, goze paz nossa alma.

                Se cada ano extirpássemos um só vício, em breve seríamos perfeitos. Mas agora, pelo contrário, muitas vezes experimentamos que éramos melhores, e nossa vida mais pura, no princípio da nossa conversão que depois de muitos anos de profissão. O nosso fervor e aproveitamento deveriam crescer, cada dia; mas, agora, considera-se grande coisa poder alguém conservar parte do primitivo fervor. Se no princípio fizéramos algum esforço, tudo poderíamos, em seguida, fazer com facilidade e gosto.

                Custoso é deixar nossos costumes; mais custoso, porém, contrariar a própria vontade. Mas, se não vences obstáculos pequenos e leves, como triunfarás dos maiores? Resiste no princípio à tua inclinação e rompe com o mau costume, para que te não metas pouco a pouco em maiores dificuldades.

                Oh! se bem considerasses quanta paz gozarias e quanto prazer darias aos outros, se vivesses bem, de certo cuidarias mais do teu adiantamento espiritual.

Reflexões:
                Todos os pensamentos que nos trazem inquietação e agitação de espírito não vêm absolutamente de Deus, que é o príncipe da paz: são portanto tentações do inimigo; por isso é preciso rejeitá-los e não levá-los em conta.

                É preciso em tudo e em toda parte viver pacificamente. Quando nos sobrevém um sofrimento, interior ou exterior, é preciso recebê-lo pacificamente. Quando é a alegria que nos vem visitar, também devemos recebê-la pacificamente, sem sobressaltar-nos. Devemos fugir do mal, mas deve ser pacificamente, sem perturbar-nos, pois de outra forma, fugindo, poderíamos cair e dar oportunidade ao inimigo de nos extenuar. Se devemos fazer o bem, é preciso fazê-lo pacificamente; de outra forma cometeríamos muitas faltas apressando-nos; até mesmo tratando-se da penitência, é preciso fazê-la pacificamente. Como dizia o penitente: Eis que minha amargura tão amarga se transformou em paz. Isaías. 38,17.

                Julguei que seria extremamente útil fazeres o possível para manter tua alma em paz e em tranquilidade; para isto é preciso que de manhã, ao levantar, comeces este exercício, fazendo tuas ações com calma, pensando no que tens a fazer no decorrer da manhã, tomando cuidado para não deixar distrair teu espírito ao longo do dia: observa sempre se estás neste estado de tranquilidade; e, logo que estiveres fora dele, toma um grande cuidado de voltar a ele, e isto sem discurso nem esforço.

                No entanto, não quero dizer que deves fazer um esforço contínuo do espírito para manter-te nesta paz; porque é preciso que tudo isto se faça com uma simplicidade de coração amoroso, mantendo-te junto de Nosso Senhor, como uma criancinha junto de seu pai; e quando cometeres faltas, sejam quais forem, pede tranquilamente perdão a Nosso Senhor, dizendo-lhe que estás bem certo de que ele te ama muito e que te perdoará; e isto sempre com simplicidade e doçura.

Oração:
                Senhor Jesus, enchei, cumulai e fazei superabundar em graça, paz, consolação e bênção este fraco e miserável coração que, em vosso nome, quer mais fielmente do que nunca trabalhar para a vossa glória. Amém.

Capítulo, 12 Da utilidade das adversidades


                Bom é passarmos algumas vezes por aflições e contrariedades, porque frequentemente fazem o homem refletir, lembrando-lhe que vive no desterro e, portanto, não deve pôr sua esperança em coisa alguma do mundo. Bom é encontrarmos às vezes contradições, e que de nós façam conceito mau ou pouco favorável, ainda quando nossas obras e intenções sejam boas. Isto ordinariamente nos conduz à humildade e nos preserva da vanglória. Porque, então, mais depressa recorremos ao testemunho interior de Deus, quando de fora somos vilipendiados e desacreditados pelos homens.

                Por isso, devia o homem firmar-se de tal modo em Deus, que lhe não fosse mais necessário mendigar consolações às criaturas. Assim que o homem de boa vontade está atribulado ou tentado, ou molestado por maus pensamentos, sente logo melhor a necessidade que tem de Deus, sem o qual não pode fazer bem algum. Então se entristece, geme e chora pelas misérias que padece. Então causa-lhe tédio viver mais tempo, e deseja que venha a morte livrá-lo do corpo e uni-lo a Cristo. Então compreende também que neste mundo não pode haver perfeita segurança nem paz completa.

Reflexões:
                Acho que, entre todas as vantagens da tribulação, que não são poucas, uma das mais excelentes é que ela nos faz voltar a Nosso Senhor. Quando estamos vivendo na prosperidade, frequentemente o esquecemos, mas na adversidade recorremos a ele como ao nosso único refúgio.

                Como o suco da uva, se o deixarmos no cacho durante muito tempo, deteriora e apodrece, assim a alma, se a deixarmos em seus prazeres e volúpias, em seus desejos e aspirações, ela se corrompe; mas se for oprimida pela tribulação, dela sai o doce licor de penitência e de amor.

Oração:
                Eu sou vosso, ó meu Deus, salvai-me, tende misericórdia de mim, pois minha alma confia em vós; salvai-me, Senhor, porque as águas submergem meu coração; fazei de mim um de vossos mercenários, Senhor; sede propício a mim, pobre pecador.


Capítulo, 13 Como se há de resistir às tentações


                Enquanto vivemos neste mundo, não podemos estar sem trabalhos e tentações. Por isso lemos no livro de Jó: Jó 7,1. É um combate a vida do homem sobre a terra. Cada qual, pois, deve estar acautelado contra as tentações, mediante a vigilância e a oração, para não dar azo às ilusões do demônio, que nunca dorme, mas anda por toda parte em busca de quem possa devorar. 1, Pedro. 5,8. Ninguém há tão perfeito e santo, que não tenha, às vezes, tentações, e não podemos ser delas totalmente isentos.

                São, todavia, utilíssimas ao homem as tentações, posto que sejam molestas e graves, porque nos humilham, purificam e instruem. Todos os santos passaram por muitas tribulações e tentações, e com elas aproveitaram; aqueles, porém, que não as puderam suportar foram reprovados e pereceram. Não há ordem tão santa nem lugar tão retirado em que não haja tentações e adversidades.

                Nenhum homem está totalmente livre de tentações, enquanto vive, porque em nós mesmos está a causa donde procedem: a concupiscência em que nascemos. Mal acaba uma tentação ou tribulação, outra sobrevém, e sempre teremos que sofrer, porque perdemos o dom da primitiva felicidade. Muitos procuram fugir às tentações, e outras piores encontram. Não basta a fuga para vencê-las; é pela paciência e verdadeira humildade que nos tornamos mais fortes que todos os nossos inimigos.

                Pouco adianta quem somente evita as ocasiões exteriores, sem arrancar as raízes; antes lhe voltarão mais depressa as tentações, e se achará pior. Vencê-las-á melhor com o auxílio de Deus, a pouco e pouco com paciência e resignação, que com importuna violência e esforço próprio. Toma a miúdo conselho na tentação e não sejas desabrido e áspero para o que é tentado, trata antes de o consolar, como desejas ser consolado.

                O princípio de todas as más tentações é a inconstância do espírito e a pouca confiança em Deus; pois, assim como as ondas lançam de uma parte a outra o navio sem leme, assim as tentações combatem o homem descuidado e inconstante em seus propósitos. O ferro é provado pelo fogo, e o justo pela tentação. Ignoramos muitas vezes o que podemos, mas a tentação manifesta o que somos. Todavia, devemos vigiar, principalmente no princípio da tentação; porque mais fácil nos será vencer o inimigo, quando não o deixarmos entrar na alma, enfrentando-o logo que bater no limiar. Por isso disse alguém: Resiste desde o princípio, que vem tarde o remédio, quando cresceu o mal com a muita demora. Ovídio. Porque primeiro ocorre à mente um simples pensamento, donde nasce a importuna imaginação, depois o deleite, o movimento; e assim, pouco a pouco, entra de todo na alma o malvado inimigo, porque se lhe não resistiu a princípio.

                E quanto mais alguém for indolente em lhe resistir, tanto mais fraco se tomará cada dia, e mais forte o seu adversário.

                Uns padecem maiores tentações no começo de sua conversão, outros, no fim; outros por quase toda a vida são molestados por elas. Alguns são tentados levemente, segundo a sabedoria da Divina Providência, que pondera as circunstâncias e o merecimento dos homens, e tudo predispõe para a salvação de seus eleitos.

                Por isso não devemos desesperar, quando somos tentados; mas até, com maior fervor, pedir a Deus que se digne ajudar-nos em toda provação, pois que, no dizer de São Paulo, nos dará graça suficiente na tentação para que a possamos vencer. 1, Coríntios. 10,13. Humilhemos, portanto, nossas almas, debaixo da mão de Deus, em qualquer tentação e tribulação porque ele há de salvar e engrandecer os que são humildes de coração.

                Nas tentações e adversidades se vê quanto cada um tem aproveitado; nelas consiste o maior merecimento e se patenteia melhor a virtude. Não é lá grande coisa ser o homem devoto e fervoroso quando tudo lhe corre bem; mas, se no tempo da adversidade conserva a paciência, pode-se esperar grande progresso. Alguns há que vencem as grandes tentações e, nas pequenas, caem frequentemente, para que, humilhados, não presumam de si grandes coisas, visto que com tão pequenas sucumbem.

Reflexões:
                Minha Filoteia, esses grandes assaltos e essas tentações tão fortes jamais são permitidas por Deus, a não ser para aquelas almas que ele quer elevar a seu puro e maior amor; mas daí não se segue que, depois disto, elas possam estar certas de ter chegado a este estado, porque acontece muitas vezes que aqueles que têm sido constantes nesses ataques violentos, não correspondendo depois fielmente ao favor divino, encontram-se vencidos em tentações bem pequenas.

                Quem sente o inimigo atacar do lado da luxúria, deve fugir das ocasiões e das companhias, e ao mínimo pensamento deve dar alarme à guarnição, recorrendo às disciplinas, jejuns e cilícios, etc. Quem sente a tentação da avareza, deve recorrer à esmola, à consideração da vaidade dos bens deste mundo, etc. Quem se sente levado à vingança, é preciso que recorra à amizade, à doçura. Enfim é preciso fazer a ronda cem vezes por dia nesta pequena cidadela e reforçá-la, ora aqui, ora acolá, colocar sentinelas nos olhos, na boca, nos ouvidos, no olfato e nas mãos, para não deixar entrar ninguém que não saiba pronunciar corretamente Xibolet. Quer dizer, provar por sua maneira de falar que não é um inimigo. Ver o cap. 12 do Livro dos Juízes

Oração:
                Pai Eterno, ofereço à vossa honra e glória, e para a minha salvação e a salvação de todo o mundo, aqueles quarenta dias e quarenta noites que vosso Filho jejuou no deserto; aquela fome e sede que lá ele sofreu; seu desconforto de dormir sobre a terra nua na companhia dos animais selvagens; aqueles suspiros que ele lançou do fundou do coração, e aquelas lágrimas que seus olhos puros derramaram; aquelas fervorosíssimas orações que ele vos fez pela salvação do mundo e principalmente de vossos amados eleitos, e aquelas importunas e deploráveis tentações do demônio que ele teve de suportar. Por tudo isto eu vos agradeço, amo e bendigo infinitamente, pedindo-vos por seus méritos o amor à penitência e à mortificação de minhas paixões, e que me aplique à oração e tenha a força de vencer as tentações.

Capítulo, 14 Como se deve evitar o juízo temerário


                Relanceia sobre ti o olhar e guarda-te de julgar as ações alheias. Quem julga os demais perde o trabalho, quase sempre se engana e facilmente peca; mas, examinando-se e julgando-se a si mesmo, trabalha sempre com proveito.

                De ordinário, julgamos as coisas segundo a inclinação do nosso coração, pois o amor-próprio facilmente nos altera a retidão do juízo. Se Deus fora sempre o único objetivo dos nossos desejos, não nos perturbaria tão facilmente qualquer oposição ao nosso parecer.

                Muitas vezes existe, dentro ou fora de nós, alguma coisa que nos atrai e em nós influi. Muitos buscam secretamente a si mesmos em suas ações, e não o percebem. Parecem até gozar de boa paz, enquanto as coisas correm à medida de seus desejos; mas, se de outra sorte sucede, logo se inquietam e entristecem.

                Da discrepância de pareceres e opiniões frequentemente nascem discórdias entre amigos e vizinhos, entre religiosos e pessoas piedosas.

                É custoso perder um costume inveterado, e ninguém renuncia, de boa mente, a seu modo de ver. Se mais confias em tua razão e talento que na graça de Jesus Cristo, só raras vezes e tarde serás iluminado; pois Deus quer que nos sujeitemos perfeitamente a ele e que nos elevemos acima de toda razão humana, inflamados do seu amor.

Reflexões:
                Não julgueis e não sereis julgados, diz o Salvador de nossas almas; não condeneis e não sereis condenados. São Lucas. 6,37. Não, diz o apóstolo, não julgueis nada antes do tempo, enquanto não vier o Senhor que iluminará o que está escondido no escuro e tornará manifestos os propósitos dos corações. 1, Coríntios. 4,5.

                Oh! como são desagradáveis a Deus os julgamentos temerários! Os julgamentos dos filhos dos homens são temerários porque eles não são juízes uns dos outros, e julgando eles usurpam o ofício de Nosso Senhor; são temerários porque a principal malícia do pecado depende da intenção e conselho do coração que é o segredo das trevas para nós; e são temerários porque cada um já tem bastante a fazer em julgar-se a si mesmo, sem precisar julgar seu próximo. Para não ser julgado, é igualmente necessário não julgar absolutamente os outros e julgar-se a si mesmo; porque como Nosso Senhor defende o não julgar os outros, o Apóstolo ordena o julgar-se a si mesmo: Se nos julgássemos a nós mesmos, não seríamos julgados. 1, Coríntios. 11,31.

                Mas, oh Deus! fazemos exatamente o contrário; porque o que nos é proibido, não cessamos de fazê-lo, julgando a cada instante o próximo; e o que nos é recomendado, que é julgar-nos a nós mesmos, não o fazemos jamais.

Oração:
                Meu Senhor Jesus Cristo, que quisestes, embora inocente, ser condenado ao suplício da cruz por mim, dai-me a força de suportar a sentença de uma morte cruel por vosso amor, de não temer os falsos julgamentos que vêm dos outros, e de não julgar ninguém injustamente. Amém.

Capítulo, 15 Das obras feitas com caridade


                Por nenhuma coisa do mundo, nem por amor de pessoa alguma, se deve praticar qualquer mal; mas, em prol de algum necessitado, pode-se, às vezes, omitir uma boa obra, ou trocá-la por outra melhor. Desta sorte, a boa obra não se perde, mas se converte em outra melhor. Sem a caridade, nada vale a obra exterior; tudo, porém, que da caridade procede, por insignificante e desprezível que seja, produz abundantes frutos, porque Deus não atende tanto à obra, como à intenção com que a fazemos.

                Muito faz aquele que muito ama. Muito faz quem bem faz o que faz. Bem faz quem serve mais ao bem comum que à sua própria vontade. Muitas vezes parece caridade o que é mero amor-próprio, porque raras vezes nos deixam a inclinação natural, a própria vontade, a esperança da recompensa, o nosso interesse.

                Aquele que tem verdadeira e perfeita caridade em nada se busca a si mesmo, mas deseja que tudo se faça para a glória de Deus. De ninguém tem inveja, porque não deseja proveito algum pessoal, nem busca sua felicidade em si, mas procura sobre todas as coisas ter alegria e felicidade em Deus. Não atribui bem algum à criatura, mas refere tudo a Deus, como à fonte de que tudo procede, e em que, como em fim último, acham todos os santos o deleitoso repousar. Oh! quem tivera só uma centelha de verdadeira caridade logo compreenderia a vaidade de todas as coisas terrenas!

Reflexões:
                Deus não colocou nossa perfeição na multiplicidade das coisas que fazemos para agradar-lhe, mas somente no modo de fazê-las, modo que é simplesmente fazer o pouco que fazemos, cada um segundo sua vocação, puramente no amor, por amor e para o amor.

                Teótimo, observa este copo de água ou este pequeno pedaço de pão que uma alma santa dá ao pobre por Deus: na verdade é pouco, e coisa quase indigna de consideração segundo o julgamento humano; Deus no entanto o recompensa e dá imediatamente por este gesto um acréscimo de caridade... Como na Arábia Feliz, não somente as plantas de natureza aromática, mas todas as outras são odoríferas, participando da felicidade deste solo, assim, na alma caridosa, não só as grandes obras de sua natureza, mas também as pequenas obras são estimuladas com a virtude do santo amor, e estão em bom odor diante da majestade de Deus que, em consideração a elas, aumenta a santa caridade.

Oração:
                Ó meu Deus, vós sois meu Deus, Deus do meu coração, Deus de minha alma, Deus do meu espírito; assim eu vos reconheço e adoro, agora e por toda a eternidade. Viva Jesus!.

Capítulo, 16 Do sofrer os defeitos dos outros


                Aquilo que o homem não pode emendar em si mesmo ou nos demais, deve ele tolerar com paciência, até que Deus disponha de outro modo. Considera que talvez seja melhor assim, para provar tua paciência, sem a qual não têm grande valor nossos méritos. Todavia, convém, nesses embaraços, pedir a Deus que te auxilie, para que os possas levar com seriedade.

                Se alguém, com uma ou duas advertências, não se emendar, não contendas com ele; mas encomenda tudo a Deus para que seja feita a sua vontade, e seja ele honrado em todos os seus servos, pois sabe tirar bem do mal.

                Procura sofrer com paciência os defeitos e quaisquer imperfeições dos outros, pois tens também muitas que os outros têm de aturar. Se não te podes modificar como desejas, como pretendes ajeitar os outros à medida de teus desejos? Muito desejamos que os outros sejam perfeitos, e nem por isso emendamos as nossas faltas.

                Queremos que os outros sejam corrigidos com rigor, e nós não queremos ser repreendidos. Estranhamos a larga liberdade dos outros, e não queremos sofrer recusa alguma. Queremos que os outros sejam apertados por estatutos e não toleramos nenhum constrangimento que nos coíba. Donde claramente se vê quão raras vezes tratamos o próximo como a nós mesmos. Se todos fossem perfeitos, que teríamos então de sofrer nós mesmos por amor de Deus?

                Ora, Deus assim o dispôs para que aprendamos a carregar uns o fardo dos outros; porque ninguém há sem defeito; ninguém sem carga; ninguém com força e juízo bastante para si; mas cumpre que uns aos outros nos suportemos, consolemos, auxiliemos, instruamos e aconselhemos. Quanta virtude cada um possui, melhor se manifesta na ocasião da adversidade; pois as ocasiões não fazem o homem fraco, mas revelam o que ele é.

Reflexões:
                Por pouco acusamos o próximo, e por muito nos escusamos; queremos vender muito caro e comprar bem barato; queremos que se faça justiça na casa do outro, e misericórdia e conivência na nossa casa; queremos que nossas palavras sejam tomadas em bom sentido, e somos melindrosos e exageradamente sensíveis às palavras do outro... Queremos nossos direitos cumpridos à risca, e que os outros sejam corteses na exação dos deles; guardamos rigorosamente nossa posição, e queremos que os outros sejam humildes e condescendentes; nós nos queixamos facilmente do próximo, e não queremos que ninguém se queixe de nós; o que fazemos pelo outro sempre nos parece muito, e o que ele faz por nós nos parece ser nada.

                Resumindo, nós somos como as perdizes da Paflagônia Paflagônia ou Paflagónia era o nome da antiga região da costa do Mar Negro no norte da Anatólia que têm dois corações, pois temos um coração doce, afável e cortês para conosco e um coração duro, severo e rigoroso para com o próximo.

                Temos dois pesos: um para pesar nossas comodidades com a maior vantagem que podemos, e o outro para pesar as do próximo com a maior desvantagem possível. Mas, como diz a Escritura: Falam com lábios lisonjeiros, mas com duplicidade no coração, Salmo, 12,3. isto é, eles têm dois corações, e por ter dois pesos, um forte para receber, o outro fraco para dar, é coisa abominável diante de Deus.

                Filoteia, sê igual e justa em tuas ações. Coloca-te sempre no lugar do próximo, e coloca-o em teu lugar, e assim julgarás bem; torna-te vendedora ao comprar e compradora ao vender, assim venderás e comprarás justamente.

Oração:
                Doravante, ó minha alma, quero que sejamos paciente, doce e afável, e que jamais a água da contradição possa extinguir o fogo sagrado da caridade que devemos ao próximo... Ó Senhor, tende piedade de mim!.

Capítulo, 17 Da vida monástica


                Aprende a abnegar-te em muitas coisas, se queres ter paz e concórdia com os outros. Não é pouco habitar em mosteiros ou congregações religiosas, viver ali sem queixas e perseverar fielmente até à morte. Bem-aventurado é aquele que aí vive bem e termina a vida com um fim abençoado! Se queres permanecer firme e fazer progressos, considera-te como desterrado e peregrino sobre a terra. Convém fazer-te louco por amor de Cristo, se queres seguir a vida religiosa.

                De pouca monta são o hábito e a tonsura: são a mudança dos costumes e a perfeita mortificação das paixões que fazem o verdadeiro religioso. Quem outra coisa procura senão a Deus só e a salvação de sua alma, só achará tribulações e angústias. Não pode ficar por muito tempo em paz quem não procura ser o menor e o mais submisso de todos.

                Para servir vieste, não para mandar; lembra-te que foste chamado para trabalhar e sofrer, e não para folgar e conversar. Aqui, pois, se provam os homens, à semelhança do ouro da fornalha. Aqui, ninguém perseverará, se não quiser humilhar-se, de todo o coração, por amor de Deus.

Reflexões:
                Nossa única pretensão na vida religiosa. deve ser unir-nos a Deus, como Jesus Cristo se uniu a Deus, seu Pai, morrendo na cruz; porque não se trata absolutamente de falar desta união geral que se faz pelo batismo, onde os cristãos se unem a Deus recebendo este divino sacramento e o caráter do cristianismo, obrigando-se a guardar seus mandamentos e os da santa Igreja, exercitar-se nas boas obras, praticar as virtudes da fé, esperança e caridade, e por conseguinte sua união é válida e podem justamente pretender ao paraíso.

                Unindo-se por este meio a Deus como a seu Deus, eles não são absolutamente obrigados a mais, pois atingiram seu objetivo pela via geral e ampla dos mandamentos. Mas, quanto a vós, minhas caras filhas, não é assim, pois além desta obrigação comum que tendes com todos os cristãos, Deus, por um amor todo especial, vos escolheu para serem suas queridas esposas.

                É preciso saber como, e o que é ser religiosas: é estar ligadas a Deus pela contínua mortificação de nós mesmos, e não viver senão para Deus; nosso próprio coração servindo sempre à sua divina majestade; nossos olhos, nossa língua, nossas mãos e todo o resto servindo-o continuamente... E porque nós não poderíamos chegar a isto a não ser por uma contínua prática de mortificação de todas as nossas paixões, inclinações, humores e aversões, somos obrigados a velar continuamente sobre nós mesmos, a fim de fazer morrer tudo isto.

Oração:
                Sim, Senhor Jesus, fazei de nosso coração tudo o que for do vosso agrado, pois não queremos parte nem porção nele; mas vo-lo damos, consagramos e sacrificamos para sempre.

Capítulo, 18 Dos exemplos dos Santos Padres


                Contempla os salutares exemplos dos Santos Padres, nos quais brilhou a verdadeira perfeição religiosa, e verás quão pouco ou quase nada é o que fazemos. Ah! que é a nossa vida em comparação com a deles? Os santos e amigos de Cristo serviram ao Senhor em fome e sede, em frio e nudez, em trabalho e fadiga, em vigílias e jejuns, em orações e santas meditações, em perseguições e muitos opróbrios.

                Oh! quantas e quão graves tribulações sofreram os apóstolos, os mártires, os confessores, as virgens e todos quantos quiseram seguir as pisadas de Cristo!

                Odiaram suas almas neste mundo, para possuí-las eternamente no outro. Oh! que vida austera e mortificada levaram os Santos Padres no deserto! Que contínuas e graves tentações suportaram! Quantas vezes foram atormentados pelo inimigo! Quantas orações fervorosas ofereceram a Deus! Que rigorosas abstinências praticaram! Que zelo e fervor tiveram em seu adiantamento espiritual! Que guerra fizeram para subjugar os vícios! Com que pura e reta intenção buscaram a Deus! Durante o dia trabalhavam e passavam as noites em orações ainda que trabalhando não interrompessem um momento a oração mental.

                Todo o tempo empregavam utilmente; toda hora lhes parecia breve convivida com Deus; e pela grande doçura das contemplações se esqueciam até da necessária refeição do corpo. Renunciavam a todas as riquezas, dignidades, honras, amigos e parentes; nada queriam do mundo; apenas tomavam o indispensável para a vida e só com pesar satisfaziam as exigências da natureza.

                Assim eram pobres nos bens terrenos, mas muito ricos de graças e virtudes.

                Exteriormente lhes faltava tudo; interiormente, porém, se deliciavam com graças e consolações divinas.

                Ao mundo eram estranhos, mas íntimos e familiares amigos de Deus. A si mesmos tinham em conta de nada, e o mundo os desprezava; mas eram preciosos e queridos aos olhos de Deus. Mantinham-se na verdadeira humildade, viviam em singela obediência, andavam em caridade e paciência; assim cada dia faziam progresso na vida espiritual e mais a Deus agradavam. Esses foram dados por modelos a todos os religiosos, e mais nos devem estimular ao progresso espiritual, do que a multidão dos tíbios ao esmorecimento.

                Oh! quanto foi o fervor de todos os religiosos, nos primeiros tempos de seus santos institutos! Quanta piedade na oração! Que emulação nas virtudes!

                Que austera disciplina vigorava então! Que respeito e obediência aos preceitos do superior reluzia em todos! Os vestígios que deixaram ainda atestam que foram verdadeiramente varões santos e perfeitos os que em tão renhidos combates venceram o mundo. Hoje já se considera grande quem não é transgressor da regra e com paciência suporta o jugo que se impôs.

                Ó tibieza e desleixo do nosso estado, que tão depressa declinamos do fervor primitivo, e já nos causa tédio o viver por tanta negligência e frouxidão! Oxalá em ti não entorpeça de todo o desejo de progredir nas virtudes, já que tantos modelos viste de perfeição!

Reflexões:
                Considera o exemplo dos santos de todo tipo: o que fizeram eles para amar a Deus e ser devotos? Observa esses mártires invencíveis em suas resoluções: que tormentos não sofreram para mantê-las? Mas sobretudo essas belas e jovens damas, mais brancas do que os lírios em pureza, mais vermelhas do que a rosa em caridade: umas aos doze, outras aos treze, quinze, vinte e vinte e cinco anos, sofreram mil tipos de martírios para não renunciar à sua resolução, não somente quanto à profissão da fé, mas quanto ao protesto da devoção; umas morrendo para não perder a virgindade, outras para não deixar de servir os aflitos, consolar os atormentados e enterrar os mortos. Ó Deus, que constância mostrou esse sexo frágil em semelhantes ocorrências!

                Vê quantos santos confessores: com que força eles desprezaram o mundo!

                Como se tornaram invencíveis em suas resoluções! Nada pôde fazê-los desistir delas. Sem reserva abraçaram essas resoluções e as mantiveram sem exceção.

                Meu Deus, o que diz Santo Agostinho de sua mãe, Santa Mônica! Com que firmeza ela perseguiu sua meta de servir a Deus em seu casamento, em sua viuvez! E São Jerônimo, de sua querida filha Paula: entre quantos obstáculos, entre quantas variedades de acidentes! Mas o que faremos nós a exemplo desses tão insignes padroeiros? Eles eram o que nós somos e o faziam pelo mesmo Deus e pelas mesmas virtudes: por que não fazemos nós o mesmo em nossa condição, e segundo nossa vocação, para manter nossa resolução e santo protesto?.

Oração:
                Ó santos e santas de Deus, ó bem-aventurados espíritos angélicos, que gozais sem cessar da doçura e inefável presença de Deus, orai por mim. Eu vos saúdo e vos honro, dou graças ao Senhor que vos escolheu e preveniu com suas bênçãos.

                Obtende-me, eu vos conjuro, o perdão de minhas faltas, a graça de Deus e a perfeita união com ele. Amém.

Capítulo, 19 Dos exercícios do bom religioso


                A vida do bom religioso deve ser ornada de todas as virtudes, para que corresponda o interior ao que por fora veem os homens; e com razão, ainda mais perfeito deve ser no interior do que por fora parece, pois lá penetra o olhar perscrutador de Deus, a quem devemos suma reverência, em qualquer lugar onde estivermos, e em cuja presença devemos andar com pureza angélica.

                Cada dia devemos renovar nosso propósito e exercitar-nos a maior fervor, como se esse fosse o primeiro dia de nossa conversão, dizendo: Confortai-me, Senhor, meu Deus, no bom propósito e em vosso santo serviço; concedei-me começar hoje deveras, pois nada é o que até aqui tenho feito.

                A medida da nossa resolução será nosso progresso, e grande solicitude exige o sério aproveitamento. Se aquele que toma enérgicas resoluções tantas vezes cai, que será daquele que as toma raramente ou menos firmemente propõe? Sucede, porém, de vários modos deixarmos o nosso propósito; e raras vezes passa sem dano qualquer leve omissão de nossos exercícios. O propósito dos justos mais se firma na graça de Deus, que em sua própria sabedoria; nela confiam sempre, em qualquer empreendimento. Porque o homem propõe, mas Deus dispõe, e não está na mão do homem o seu caminho. Jr 10,23.

                Quando, por motivo de piedade ou proveito do próximo, se deixa alguma vez o costumado exercício, fácil é reparar depois essa falta; omiti-lo, porém, facilmente, por enfado ou negligência, já é bastante culpável, e sentir-se-á o prejuízo. Esforcemo-nos quanto pudermos, ainda assim cairemos em muitas faltas; contudo, devemos sempre fazer um propósito determinado, mormente contra os principais obstáculos do nosso progresso espiritual. Devemos examinar e ordenar tanto o interior como o exterior, porque ambos importam ao nosso aproveitamento.

                Se não podes continuamente estar recolhido, recolhe-te de vez em quando, ao menos uma vez por dia, pela manhã ou à noite. De manhã toma resoluções, e à noite examina tuas ações: como te houveste hoje em palavras, obras e pensamentos, porque nisso, talvez não raro, tenhas ofendido a Deus e ao próximo. Arma-te energicamente contra as maldades do demônio; refreia a gula, e facilmente refrearás todo apetite carnal. Nunca estejas de todo desocupado, mas lê ou escreve ou reza ou medita ou faz alguma coisa de proveito comum.

                Nos exercícios corporais, porém, haja toda discrição, porque não convém igualmente a todos.

                Os exercícios pessoais não se devem fazer publicamente; mais seguro é praticá-los secretamente. Guarda-te de ser negligente nos exercícios da regra, e mais diligente nos particulares; mas, satisfeitas inteira e fielmente as coisas de obrigação e preceito, se tempo sobrar, ocupa-te em exercícios, conforme te inspirar a tua devoção. Nem todos podem ter o mesmo exercício; um convém mais a este, outro àquele. Até do tempo depende a conveniência e o atrativo das práticas; porque umas são mais apropriadas para os dias festivos, outras para os dias comuns; dumas precisamos para o tempo da tentação, de outras no tempo de paz e sossego. Numas coisas gostamos de meditar quando estamos tristes, e noutras quando estamos alegres no Senhor.

                À volta das festas principais devemos renovar os nossos bons exercícios e com mais fervor implorar a intercessão dos santos. De uma para outra festividade devemos preparar-nos, como se então houvéssemos de sair deste mundo e chegar à festividade eterna. Por isso, devemos aparelhar-nos diligentemente, nos tempos de devoção, com vida mais piedosa e observância mais fiel de todas as regras, como se houvéssemos de receber em breve o galardão do nosso trabalho.

                E, se for adiada essa hora, tenhamos por certo que não estamos ainda bem preparados nem dignos de tamanha glória que, a seu tempo, se revelará em nós, e tratemos de nos preparar para a morte. Bem-aventurado o servo, diz o evangelista São Lucas, a quem o Senhor, quando vier, achar vigiando. Em verdade vos digo que o constituirá sobre todos os seus bens. São Lucas. 12,37-43.

Reflexões:
                Uma irmã conversa do mosteiro de Annecy, chamada Claude-Simplicienne Fardel, verdadeiramente digna, por sua angélica simplicidade, de seu nome, perguntou um dia a São Francisco de Sales, com sua ingenuidade de sempre: "Reverendo padre, se fôsseis religiosa entre nós, o que faríeis para se tornar perfeita? E ele lhe respondeu com um doce sorriso: Minha cara filha, parece-me que, com a graça de Deus, eu me tornaria tão atento para praticar as pequenas e mínimas observâncias que são introduzidas aqui nesta casa e, por este meio, eu tentaria conquistar o coração de Deus. Eu guardaria bem o silêncio e falaria também algumas vezes, mesmo no tempo de silêncio, isto é, sempre que a caridade o exigisse, mas nunca por um motivo qualquer. Eu falaria com muita doçura e daria uma atenção particular à pessoa, porque a Constituição o ordena.

                Fecharia e abriria com todo o cuidado as portas, porque nossa mãe o quer, e nós queremos fazer tudo o que sabemos que ela quer que façamos. Traria os olhos sempre bem baixos e andaria sem fazer barulho; porque, minha cara filha, Deus e seus anjos nos olham sempre e gostam muito daqueles que agem bem. Se me utilizassem para alguma coisa e me dessem um encargo, eu gostaria muito e trataria de fazer tudo a contento. Se não me utilizassem para nada e me deixassem de lado, eu também não me intrometeria onde não fui chamado, mas procuraria só obedecer e amar muito a Nosso Senhor. Oh! parece-me que eu o amaria de todo o meu coração, esse bom Deus, e que aplicaria bem meu espírito para observar exatamente as regras e Constituições... Suponho ainda que eu seria muito feliz e jamais me apressaria...

                Eu me manteria bem baixo e pequeno, me humilharia e faria as práticas segundo os encontros; e se não me tivesse humilhado, me humilharia pelo menos por não ter-me humilhado.

                Procuraria fazer o melhor que me fosse possível para manter-me na presença de Deus e fazer todas as minhas ações por seu amor".

Capítulo, 20 Do amor à solidão e ao silêncio


                Procura tempo oportuno para cuidar de ti e relembra a miúdo os benefícios de Deus. Renuncia às curiosidades e escolhe leituras tais, que mais sirvam para te compungir, que para te distrair. Se te abstiveres de conversações supérfluas e passeios ociosos, como também de ouvir novidades e boatos, acharás tempo suficiente e adequado para te entregares a santas meditações.

                Os maiores santos evitavam, quanto podiam, a companhia dos homens, preferindo viver com Deus, em retiro.

                Disse alguém: "Sempre que estive entre os homens, menos homem voltei". SÊNECA, Epístola, 7. Isso experimentamos muitas vezes, quando falamos muito.

                Mais fácil é calar de todo, do que não tropeçar em alguma palavra. Mais fácil é ficar oculto em casa, que fora dela ter a necessária cautela. Quem, pois, pretende chegar à vida interior e espiritual, importa-lhe que se afaste da turba, com Jesus. Ninguém, sem perigo, se mostra em público, senão quem gosta de esconder-se. Ninguém seguramente fala, senão quem gosta de calar. Ninguém seguramente manda, senão o que perfeitamente aprendeu a obedecer.

                Não pode haver alegria segura sem o testemunho de boa consciência.

                Contudo, a segurança dos santos estava sempre misturada com o temor de Deus; nem eram menos cuidadosos e humildes em si mesmos, porque resplandeciam em grandes virtudes e graças. A segurança dos maus, porém, nasce da soberba e presunção, e acaba por enganar-se a si mesma. Nunca te dês por seguro nesta vida, ainda que pareças bom religioso ou devoto ermitão.

                Muitas vezes os melhores no conceito dos homens correram graves perigos, por sua demasiada confiança. Por isso, para muitos é melhor não serem de todo livres de tentações, mas que sejam frequentemente combatidos, para que não confiem demasiadamente em si, nem se exaltem com soberba, nem tampouco busquem com ânsia as consolações exteriores. Oh! quem nunca buscasse alegria transitória, nem deste mundo cuidasse, que consciência pura teria! Oh! quem arredasse todo vão cuidado, para só cuidar das coisas salutares e divinas, pondo toda a sua confiança em Deus, de que grande paz e sossego gozaria!

                Ninguém é digno da consolação celestial, senão quem se exercitar, com diligência, na santa compunção. Se queres compungir-te de coração, entra em teu quarto, despede todo o bulício do mundo, conforme está escrito: Compungi-vos em vossos cubículos. Salmo, 4,5. Na cela acharás o que fora dela muitas vezes perdes. A cela bem guardada causa doçura, e pouco frequentada gera enfado.

                Se bem a guardares e habitares no princípio de tua conversão, ser-te-á depois querida companheira e suavíssimo consolo.

                No silêncio e sossego faz progressos uma alma devota e aprende os segredos das Escrituras. Ali ela acha a fonte de lágrimas, com que todas as noites se lava e purifica, para tanto mais de perto unir-se ao Criador quanto mais retirada viver do tumulto do mundo. Aquele, pois, que se aparta de seus amigos e conhecidos verá aproximar-se Deus com seus santos anjos. Melhor é estar solitário e tratar de sua alma, que, descurando-a, fazer milagres. Merece louvor o religioso que raro sai, que foge de ser visto pelos homens e nem procura vê-los.

                Para que queres ver o que não te é lícito possuir? Passa o mundo e a sua concupiscência. 1Jo 2,17. A inclinação sensual convida a passeios; passada, porém, aquela hora, que nos fica senão consciência pesada e coração distraído?

                À saída alegre, muitas vezes sucede um regresso triste, e à véspera deleitosa uma triste manhã. Assim, todo gosto carnal entra suavemente; no fim, porém, remorde e mata. Que poderás ver alhures que aqui não vejas? Eis: aqui tens o céu, a terra e todos os elementos; e deles são feitas todas as coisas.

                Que poderás ver, em parte alguma, estável debaixo do sol por muito tempo? Pensas talvez satisfazer-te completamente? Pois não o conseguirás. Se visses diante de ti todas as coisas, que seria senão vã fantasia? Levanta os olhos a Deus nas alturas e pede perdão de teus pecados e negligências. Deixa as vaidades para os fúteis; tu, porém, atende ao que Deus te manda. Fecha atrás de ti a porta e chama a teu Jesus amado. Fica-te com Ele em tua cela, porque tanta paz em outra parte não acharás. Se não tivesses saído, e escutado os rumores do mundo, melhor terias conservado a santa paz; enquanto folgares de ouvir novidades, terás que sofrer desassossego do coração.

Reflexões:
                Como o pai e a mãe de Santa Catarina de Sena lhe tiraram toda comodidade de lugar e de tempo para rezar e meditar, Nosso Senhor inspirou-lhe que fizesse um pequeno oratório em seu espírito, dentro do qual, retirando-se mentalmente, ela pudesse, entre os afazeres exteriores, entregar-se a esta santa solidão do coração. E quando o mundo a atacasse, ela não sofreria nenhum incômodo, porque se refugiaria em seu gabinete interior, onde se consolava com seu celeste esposo. Ela também aconselhava seus filhos espirituais a fazer um quarto no coração para nele permanecer.

                Retira, pois, algumas vezes teu espírito para dentro do teu coração, onde, isolado de todos os humanos, possas tratar coração a coração com teu Deus, para dizer com Davi: Fiquei velando e tornei-me como o pelicano do deserto, como o corujão ou o mocho nos pardieiros; tornei-me qual pássaro solitário no telhado. Salmo, 102,7-8.

Oração:
                Ó Deus, por que não vos olhei sempre, como sempre me olhais? Por que pensais tantas vezes em mim, meu Senhor, e por que pensei tão poucas vezes em vós? Onde estamos nós, ó minha alma? Nosso verdadeiro lugar é Deus; e onde é que nos encontramos?... Vós sois minha casa de refúgio, meu baluarte seguro, meu teto contra a chuva e minha sombra contra o calor.

Capítulo, 21 Da compunção do coração


                Se queres fazer algum progresso, conserva-te no temor de Deus e não busques demasiada liberdade; refreia, antes, todos os teus sentidos com a disciplina e não te entregues à vã alegria. Procura a compunção do coração e acharás a devoção. A compunção descobre tesouros, que a dissipação bem depressa costuma desperdiçar. É de estranhar que o homem jamais possa, nesta vida, gozar perfeita alegria, se considera seu exílio e pondera os muitos perigos de sua alma.

                Pela leviandade do coração e pelo descuido dos nossos defeitos não percebemos os males de nossa alma; e, muitas vezes, rimo-nos frivolamente, quando, com razão, devíamos chorar. Não há verdadeira liberdade nem perfeita alegria, sem o temor de Deus e boa consciência. Ditoso aquele que pode apartar de si todo estorvo das distrações e recolher-se com santa compunção. Ditoso aquele que rejeita tudo que lhe possa manchar ou agravar a consciência. Peleja energicamente: um costume com outro se vence.

                Se souberes deixar os homens, eles te deixarão fazer tuas boas obras. Não te metas em coisas alheias, nem te impliques nos negócios dos grandes. Olha sempre primeiro para ti e admoesta-te com mais particularidade que a todos os teus amigos. Não te entristeça a falta dos humanos favores, mas penalize-te o não viveres com tanta cautela e prudência como convém a um servo de Deus e devoto religioso. Mais útil e mais seguro é para o homem não ter nesta vida muitas consolações, mormente sensíveis. Todavia, se não temos, ou raramente sentimos o consolo divino, a culpa é nossa, porque não procuramos a compunção do coração, nem rejeitamos de todo as vãs consolações exteriores.

                Reconhece que és indigno da consolação divina, mas antes merecedor de muitas aflições. Quando um homem está perfeitamente compungido, logo se lhe torna enfadonho e amargo o mundo todo. O homem justo sempre acha bastante matéria para afligir-se e chorar. Pois, quer olhe para si, quer para o próximo, sabe que ninguém passa esta vida sem tribulações. E quanto mais atentamente se considera, tanto mais profunda é a sua dor. Matéria de justa mágoa e profundo pesar são nossos pecados e vícios, aos quais de tal sorte estamos presos, que raras vezes podemos contemplar as coisas do céu.

                Se mais a miúdo pensasses na morte que numa vida de muitos anos, não há dúvida que tua emenda seria mais fervorosa. Se também meditasses seriamente nas penas futuras do inferno ou do purgatório, creio que sofrerias de bom grado trabalhos e dores, sem recear nenhuma austeridade. Mas, como estas coisas não nos penetram o coração e amamos ainda os regalos, ficamos frios e muito tíbios.

                É muitas vezes pela fraqueza do espírito que este miserável corpo se queixa tão facilmente. Pede, pois, humildemente ao Senhor que te dê o espírito de compunção, e diz, com o profeta: Sustenta-me, Senhor, com o pão das lágrimas e a bebida copiosa do pranto. Salmo, 79,6.

Reflexões:
                Há uma tristeza segundo Deus que é própria dos pecadores na penitência, ou dos bons na compaixão pelas misérias temporais do próximo, ou dos perfeitos na deploração, lamentação e condolência pelas calamidades espirituais das almas...

                É claro que a tristeza da verdadeira penitência não deve tanto ser chamada tristeza, mas desprazer ou sentimento e detestação do mal; tristeza que jamais é enfadonha nem desgostosa; tristeza que não entorpece o espírito, mas o torna ativo, pronto e diligente; tristeza que não abate o coração, mas o levanta pela oração e esperança, e o faz chegar aos ímpetos do fervor de devoção; tristeza que, no auge de suas amarguras, traz sempre a doçura de uma incomparável consolação, segundo o preceito do grande Santo Agostinho: Que o penitente se entristeça sempre, mas que sempre também se alegre na sua tristeza.

                A tristeza, diz Cassiano, que gera a sólida penitência e o agradável arrependimento, da qual a pessoa jamais se arrepende, ela é obediente, afável, humilde, complacente, suave, paciente, como tendo saído e descendido da caridade: tanto que, estendendo-se a toda dor de corpo e contrição de espírito, ela é, de certa maneira, feliz, animada e revigorada pela esperança de seu benefício.

Oração:
                Meu Senhor Jesus Cristo, que no caminho que vos levou ao suplício da cruz, dissestes às mulheres que choravam, por amor a vós, que deviam chorar por elas mesmas, dai-me a graça de chorar muito meus pecados, dai-me as lágrimas de uma santa compaixão e de um santo amor que me tornem agradável à vossa santa Majestade.

Capítulo, 22 Da consideração da miséria humana


                Miserável serás, onde quer que estejas e para onde quer que te voltes, se não te voltares para Deus. Por que te afliges, quando não te correm as coisas a teu gosto e vontade? Quem é que tem tudo à medida de seu desejo? Nem eu, nem tu, nem homem algum sobre a terra. Ninguém há no mundo sem nenhuma tribulação ou angústia, quer seja rei quer papa. Quem é que vive mais feliz?

                Aquele, de certo, que sabe sofrer alguma coisa por Deus.

                Dizem muitos mesquinhos e tíbios: Olhai que boa vida tem este homem: quão rico é, quão grande e poderoso, de que alta posição! Olha tu para os bens do céu, e verás que nada são os bens temporais, mas muito incertos e onerosos, pois nunca vive sem temor e cuidado quem os possui. Não consiste a felicidade do homem na abundância dos bens temporais; basta-lhe a mediania. O viver na terra é verdadeira miséria. Quanto mais espiritual quer ser o homem, mais amarga lhe será a vida presente, porque conhece melhor e mais claramente vê os defeitos da humana corrupção. Porque o comer, beber, velar, dormir, descansar, trabalhar e estar sujeito a todas as demais necessidades da natureza é tudo, na verdade, grande miséria e aflição para o homem espiritual que deseja estar isento disto e livre de todo pecado.

                Sim, muito oprimido se sente o homem interior com as necessidades corporais neste mundo. Por isto roga o profeta a Deus, devotamente, que o livre delas, dizendo: Livrai-me, Senhor, das minhas necessidades. Salmo, 24,17. Mas, ai daqueles que não conhecem a sua miséria, e, outra vez, ai daqueles que amam esta miserável e corruptível vida! Porque há alguns tão apegados a ela -- posto que mal arranjem o necessário com o trabalho ou com a esmola -- que, se pudessem viver aqui sempre, nada se lhes daria do Reino de Deus.

                Ó insensatos e duros de coração, que tão profundamente jazem apegados à terra, que não gostam senão das coisas carnais. Infelizes! Lá virá o tempo em que hão de sentir, muito a seu custo, como era vil e nulo aquilo que amaram. Os santos de Deus, e todos os fiéis amigos de Cristo, não tinham em conta o que agradava à carne nem o que neste mundo brilhava, mas toda a sua esperança e intenção se fixavam nos bens eternos. Todo o seu desejo se elevava para as coisas invisíveis e perenes, para que o amor do visível não os arrastasse a desejar as coisas inferiores. Não percas, irmão meu, a confiança de fazer progressos na vida espiritual; ainda tens tempo e ocasião.

                Por que queres adiar tua resolução? Levanta-te, começa já e diz: Agora é tempo de agir, agora é tempo de pelejar, agora é tempo próprio para me emendar. Quando estás atribulado e aflito, é tempo de merecer. Importa que passes por fogo e água, antes que chegues ao refrigério. Salmo, 65,12. Se não te fizeres violência, não vencerás os vícios. Enquanto estamos neste frágil corpo não podemos estar sem pecado, nem viver sem enfado e dor. Bem quiséramos descanso de toda miséria; mas como pelo pecado perdemos a inocência, perdemos também a verdadeira felicidade. Por isso devemos ter paciência, e confiar na divina misericórdia, até que passe a iniquidade, Salmo, 52,6. e a vida absorva esta mortalidade. 2, Coríntios. 5,4.

                Como é grande a fragilidade humana, inclinada sempre ao mal! Hoje confessas os teus pecados, e amanhã cometes outra vez os mesmos que confessaste. Resolves agora acautelar-te, e daqui a uma hora te portas como quem nada se propôs. Com muita razão nos devemos humilhar e não nos ter em grande conta, já que tão frágeis somos e tão inconstantes. Assim, facilmente se pode perder pela negligência o que tanto nos custou a adquirir com a divina graça.

                Que será de nós no fim, se já tão cedo somos tíbios? Ai de nós, se assim procuramos repouso, como se já estivéssemos em paz e segurança, quando nem sinal aparece em nossa vida de verdadeira santidade. Bem necessário nos fora que nos instruíssemos de novo, como bons noviços, nos bons costumes; talvez que assim houvesse esperança de alguma emenda futura e maior progresso espiritual.

Reflexões:
                Se o vinho estiver bem depurado e separado de sua borra, pode-se facilmente garantir que não vai turvar nem fermentar, mas se estiver em sua borra quase sempre estará sujeito a isto. E quanto a nós, enquanto estamos neste mundo, nossos espíritos estão na borra e no tártaro de mil humores e misérias, e, por conseguinte, fáceis de mudar e turvar em seu amor; mas estando no céu, onde, como neste grande banquete descrito por Isaías, Isaías. 25,6. nós teremos o vinho purificado de toda borra, não estaremos mais sujeitos à mudança, mas permaneceremos inseparavelmente unidos por amor ao nosso soberano bem.

                Aqui, entre os crepúsculos da aurora do dia, tememos que, em vez do esposo, poderíamos encontrar algum outro objeto que nos distraia e decepcione; mas quando o encontrarmos lá em cima onde ele apascenta e repousa no meio-dia, isto é, no pleno esplendor de sua glória, não haverá mais meio de sermos enganados, porque sua luz será tão clara e sua doçura nos ligará tão fortemente à sua bondade que não poderemos mais querer desligar-nos dele.

Oração:
                Eu vos vejo, ó soberana bondade, como ser infinito, e me vejo como um nada diante de vós; e ainda que sois infinito e eu nada, sempre permaneço cheio de confiança em vós: meu nada espera em vossa afável infinidade com tanto mais segurança porque sois infinito. Espero em vós, diante de quem sou um verdadeiro nada... Eu sou vosso, ó Senhor, salvai-me. Salmo, 119,94.

Capítulo, 23 Da meditação da morte


                Mui depressa chegará teu fim neste mundo; vê, pois, como te preparas: hoje está vivo o homem, e amanhã já não existe. Entretanto, logo que se perdeu de vista, também se perderá da memória. Ó cegueira e dureza do coração humano, que só cuida do presente, sem olhar para o futuro! De tal modo te deves haver em todas as tuas obras e pensamentos, como se fosse já a hora da morte. Se tivesses boa consciência não temerias muito a morte. Melhor fora evitar o pecado que fugir da morte. Se não estás preparado hoje, como o estarás amanhã? O dia de amanhã é incerto, e quem sabe se te será concedido?

                Que nos aproveita vivermos muito tempo, quando tão pouco nos emendamos? Oh! nem sempre traz emenda a longa vida, senão que aumenta, muitas vezes, a culpa. Oxalá tivéssemos, um dia sequer, vivido bem neste mundo! Muitos contam os anos decorridos desde a sua conversão; frequentemente, porém, é pouco o fruto da emenda. Se é tanto para temer o morrer, talvez seja ainda mais perigoso o viver muito. Bem-aventurado aquele que medita sempre sobre a hora da morte, e para ela se dispõe cada dia. Se já viste alguém morrer, reflete que também tu passarás pelo mesmo caminho.

                Pela manhã, pensa que não chegarás à noite, e à noite não te prometes o dia seguinte. Por isso anda sempre preparado e vive de tal modo que te não encontre a morte desprevenido. Muitos morrem repentina e inesperadamente; pois na hora em que menos se pensa, virá o Filho do Homem. São Lucas. 12,40. Quando vier aquela hora derradeira, começarás a julgar mui diferentemente toda a tua vida passada, e doer-te-á muito teres sido tão negligente e remisso.

                Quão feliz e prudente é aquele que procura ser em vida como deseja que o ache a morte. Pois o que dará grande confiança de morte abençoada é o perfeito desprezo do mundo, o desejo ardente do progresso na virtude, o amor à disciplina, o rigor na penitência, a prontidão na obediência, a renúncia de si mesmo e a paciência em sofrer, por amor de Cristo, qualquer adversidade. Mui fácil é praticar o bem enquanto estás são; mas, quando enfermo, não sei o que poderás. Poucos melhoram com a enfermidade; raro também se santificam os que andam em muitas peregrinações.

                Não confies em parentes e amigos, nem proteles para mais tarde o negócio de tua salvação, porque mais depressa do que pensas te esquecerão os homens. Melhor é providenciar agora e fazer algo de bem, do que esperar pelo socorro dos outros. Se não cuidas de ti no presente, quem cuidará de ti no futuro? Mui precioso é o tempo presente: agora são os dias de salvação, agora é o tempo favorável. 2, Coríntios. 6,2. Mas, ai! que melhor não aproveitas o meio pelo qual podes merecer viver eternamente! Tempo virá de desejares, um dia, uma hora sequer, para a tua emenda, e não sei se a alcançarás.

                Olha, meu caro irmão, de quantos perigos te poderias livrar e de quantos terrores fugir, se sempre andasses temeroso e desconfiado da morte. Procura agora de tal modo viver, que na hora da morte te possas antes alegrar que temer. Aprende agora a desprezar tudo, para então poderes voar livremente a Cristo. Castiga agora teu corpo pela penitência, para que possas então ter legítima confiança.

                Ó louco, que pensas viver muito tempo, quando não tens seguro nem um só dia! Quantos têm sido logrados e, de improviso, arrancados ao corpo! Quantas vezes ouviste contar: morreu este a espada; afogou-se aquele; este outro, caindo do alto, quebrou a cabeça; um morreu comendo, outro expirou jogando. Estes se terminaram pelo fogo, aqueles pelo ferro, uns pela peste, outros pelas mãos dos ladrões, e de todos é o fim a morte, e, depressa, qual sombra, acaba a vida do homem. Salmo, 143,4.

                Quem se lembrará de ti depois da morte? E quem rogará por ti? Faze já, irmão caríssimo, quanto puderes; pois não sabes quando morrerás nem o que te sucederá depois da morte. Enquanto tens tempo, ajunta riquezas imortais. Só cuida em tua salvação, ocupa-te só nas coisas de Deus. Granjeia agora amigos, venerando os santos de Deus e imitando suas obras, para que, ao saíres desta vida, te recebam nas eternas moradas. São Lucas. 16,9.

                Considera-te como hóspede e peregrino neste mundo, como se nada tivesses com os negócios da terra. Conserva livre teu coração, e erguido a Deus, porque não tens aqui morada permanente. Para lá dirige tuas preces e gemidos, cada dia, com lágrimas, a fim de que mereça tua alma, depois da morte, passar venturosamente ao Senhor. Amém.

Reflexões:
                Como seríamos felizes, minhas queridas almas, se, desocupados de qualquer outro afazer, pensássemos seriamente em preparar as contas de nossa consciência, a fim de estarem em ordem para serem prestadas no dia que nos está marcado! Pois a morte tem pés de algodão, isto é, ela vem tão de mansinho que nem se percebe e nos pega de surpresa. Por isso devemos estar de sobreaviso, a fim de que, quando ela vier, nos encontre preparados: Estai preparados, porque na hora em que menos pensais, virá o Filho do Homem.

                Vigiai, pois, porque não sabeis o dia nem a hora. São Mateus, 24,44; 25,13. Pensemos, portanto, muitas vezes na morte, mas que não seja com um medo e temor excessivos. Tomemos a resolução de morrer com um coração pacífico e tranquilo, e como é uma coisa que vai acontecer com toda certeza, devemos manter-nos sempre no mesmo estado que queremos estar na hora da morte.

                Este é o verdadeiro meio de preparar-se para morrer bem, e podemos estar certos de que, se fizermos isto cuidadosamente, chegaremos à eternidade bem-aventurada e, deixando esses dias dos mortos, chegaremos aos dias da vida, para lá louvar e bendizer eternamente a divina Majestade.

                Exercitai-vos muitas vezes em pensamentos da grande doçura e misericórdia com a qual Deus, nosso Salvador, recebe as almas em seu desenlace, quando elas confiaram nele durante sua vida, e procuraram servi-lo e amá-lo cada qual em sua vocação. Como sois bom, Senhor, para os que têm o coração puro!. Salmo, 73,1. Elevai muitas vezes vosso coração por uma santa confiança, impregnada de uma profunda humildade para com nosso Redentor, como que dizendo: Sou miserável, Senhor, e vós recebeis minha miséria no seio de vossa misericórdia, e me levareis com vossa mão paterna para o gozo de vossa herança: sou mesquinha e abjeta, mas vós me amareis, naquele dia, porque esperei em vós e desejei ser vossa.

Oração:
                Senhor, recebei-me sob vossa proteção nesse dia espantoso. Tornai-me esta hora feliz e favorável, mesmo que todas as outras de minha vida sejam tristes e de aflição.

Capítulo, 24 Do juízo e das penas dos pecadores


                Em todas as coisas olha o fim, e de que sorte estarás diante do severo Juiz a quem nada é oculto, que não se deixa aplacar com dádivas, nem aceita desculpas, mas que julgará segundo a justiça. Ó misérrimo e insensato pecador! Que responderás a Deus, que conhece todos os teus crimes, se, às vezes, te amedronta até o olhar dum homem irado? Por que não te acautelas para o dia do juízo, quando ninguém poderá ser desculpado ou defendido por outrem, mas cada um terá assaz que fazer por si? Agora o teu trabalho é frutuoso, o teu pranto aceito, o teu gemer ouvido, satisfatória a tua contrição.

                Grande e salutar purgatório tem nesta vida o homem paciente: se, injuriado, mais se dói da maldade alheia, que da ofensa própria; se, de boa vontade, roga por seus adversários, e de todo o coração perdoa os agravos; se não tarda em pedir perdão aos outros; se mais facilmente se compadece do que se irrita; se constantemente faz violência a si mesmo, e se esforça por submeter de todo a carne ao espírito. Melhor é expiar já os pecados e extirpar os vícios, que adiar a expiação para mais tarde. Com efeito, nós enganamos a nós mesmos pelo amor desordenado que temos à carne.

                Que outra coisa há de devorar aquele fogo senão os teus pecados? Quanto mais te poupas agora e segues a carne, tanto mais cruel será depois o tormento e tanto mais lenha ajuntas para a fogueira. Naquilo em que o homem mais pecou, será mais gravemente castigado. Ali os preguiçosos serão incitados por aguilhões ardentes, e os gulosos serão atormentados por violenta fome e sede.

                Os impudicos e voluptuosos serão banhados em pez ardente e fétido enxofre, e os invejosos uivarão de dor, à semelhança de cães furiosos.

                Não há vício que não tenha o seu tormento especial. Ali, os soberbos serão acabrunhados de profunda confusão, e os avarentos oprimidos com extrema penúria. Ali será mais cruel uma hora de suplício do que cem anos aqui da mais rigorosa penitência. Ali não há descanso nem consolação para os condenados, enquanto aqui, às vezes, cessa o trabalho e nos consolam os amigos. Relembra agora e chora teus pecados, para que no dia do juízo estejas seguro entre os escolhidos. Pois erguer-se-ão, naquele dia, os justos com grande força contra aqueles que os oprimiram e desprezaram. Sabedoria, 5,1. Então se levantará, para julgar, aquele que agora se curvou humildemente ao juízo dos homens. Então terá muita confiança o pobre e o humilde, mas o soberbo estremecerá de pavor.

                Então se verá que foi sábio, neste mundo, quem aprendeu a ser louco e desprezado, por amor de Cristo. Então dará prazer toda tribulação, sofrida com paciência, e a iniquidade não abrirá a sua boca. Salmo, 106,42. Então se alegrarão todos os piedosos e se entristecerão todos os ímpios. Então mais exultará a carne mortificada, que se fora sempre nutrida em delícias. Então brilhará o hábito grosseiro e desbotarão as vestimentas preciosas. Então terá mais apreço o pobre tugúrio que o dourado palácio. Mais valerá a paciente constância que todo o poderio do mundo. Mais será engrandecida a singela obediência que toda a sagacidade do século.

                Mais satisfação dará a pura e boa consciência que a douta filosofia. Mais valerá o desprezo das riquezas que todos os tesouros da terra. Mais te consolará a lembrança duma devota oração que a de inúmeros banquetes. Mais folgarás de ter guardado silêncio, do que de ter falado muito. Mais valor terão as boas obras que as lindas palavras. Mais agradará a vida austera e árdua penitência que todos os gozos terrenos. Aprende agora a padecer um pouco, para poupar-te mais graves sofrimentos no futuro. Experimenta agora o que podes sofrer mais tarde. Se não podes agora sofrer tão pouca coisa, como suportarás os eternos suplícios? Se tanto te repugna o menor incômodo, que te fará então o inferno? Certo é que não podes fruir dois gozos: deleitar-te neste mundo, e depois reinar com Cristo.

                Se até hoje tivesses vivido sempre em honras e delícias, que te aproveitaria isso se tivesses que morrer neste instante? Logo, tudo é vaidade, exceto amar a Deus e só a Ele servir. Pois quem ama a Deus, de todo o coração, não teme nem a morte, nem o castigo, nem o juízo, nem o inferno, porque o perfeito amor dá seguro acesso a Deus. Mas quem ainda se delicia no pecado, não é de estranhar que tema a morte e o juízo. Todavia, é bom que, se do mal não te aparta o amor, te refreie ao menos o temor do inferno. Aquele, porém, que despreza o temor de Deus, não poderá por muito tempo perseverar no bem, e depressa cairá nos laços do demônio.

Reflexões:
                Os condenados estão dentro do abismo infernal como dentro de uma cidade desgraçada, na qual sofrem tormentos indizíveis em todos os seus sentidos e em todos os seus membros porque, como eles empregaram todos os seus sentidos e seus membros para pecar, assim sofrerão em todos os seus membros e em todos os seus sentidos as penas devidas ao pecado: os olhos, por seus falsos e maus olhares, sofrerão a horrível visão dos diabos e do inferno; os ouvidos, pelo prazer que sentiram nas conversas maliciosas, jamais ouvirão outra coisa senão choro, lamentações e desesperos, e assim com os outros sentidos e membros.

                Além de todos esses tormentos, há um ainda maior, que é a privação e perda da glória de Deus, da qual são excluídos e jamais poderão vê-la.

                Se Absalão achou que a privação da face amável de seu pai Davi era mais dura de suportar do que seu exílio, então, ó Deus, como deve ser grande o remorso daquele que é privado para sempre de ver vosso rosto tão doce e suave!

                Considerai, sobretudo, a eternidade dessas penas: só ela já torna o inferno insuportável. Ai de mim!... se o calor de uma baixa febre já nos torna tão longa e tão aborrecida uma breve noite, como será espantosa a noite da eternidade com tantos tormentos! Dessa eternidade nascem o desespero eterno, as blasfêmias e ódios infinitos.

Oração:
                Meu Senhor Jesus Cristo, justíssimo juiz, eu vos peço a graça de me julgar a mim mesmo e todas as minhas ações na vida presente, sem paliar e escusar meus pecados e defeitos, mas que eu os reconheça com verdadeira contrição, confissão e satisfação, a fim de que na minha morte eu não seja julgado por vós e condenado.

                Eu vos suplico ainda que castigueis meus pecados nesta vida para não reservar a punição deles para a outra vida.

Capítulo, 25 Da diligente emenda de toda a nossa vida


                Sê vigilante e diligente no serviço de Deus, e pergunta-te a miúdo: a que vieste, para que deixaste o mundo? Não será para viver por Deus e tornar-te homem espiritual? Trilha, pois, com fervor o caminho da perfeição, porque em breve receberás o prêmio dos teus trabalhos; nem te afligirão, daí por diante, temores nem dores. Agora, terás algum trabalho; mas depois acharás grande repouso e perpétua alegria. Se tu permaneceres fiel e diligente no seu serviço, Deus, sem dúvida, será fiel e generoso no prêmio. Conserva a firme esperança de alcançar a palma; não cries porém segurança, para não caíres em tibieza ou presunção.

                Certo homem que vacilava muitas vezes, ansioso, entre o temor e a esperança, estando um dia acabrunhado pela tristeza, entrou numa igreja, e diante dum altar, prostrado em oração, dizia consigo mesmo: Oh! se eu soubesse que havia de perseverar! E logo ouviu em si a divina resposta: Se tal soubesses, que farias? Faze já o que então fizeras, e estarás bem seguro. Consolado imediatamente, e confortado, abandonou-se à divina vontade, e cessou a ansiosa perplexidade. Desistiu da curiosa indagação acerca do seu futuro, aplicando-se antes em conhecer qual fosse a vontade e o perfeito agrado de Deus para começar e acabar qualquer boa obra.

                Espera no Senhor e faz boas obras, diz o profeta, habita na terra e serás apascentado com suas riquezas. Salmo, 36,3. Há uma coisa que esfria em muitos o fervor do progresso e zelo da emenda: o horror da dificuldade ou o trabalho da peleja. Certo é que, mais que os outros, aproveitam nas virtudes aqueles que com maior empenho se esmeram em vencer a si mesmos naquilo que lhes é mais penoso e contrariam mais suas inclinações. Porque tanto mais aproveita o homem, e mais copiosa graça merece, quanto mais se vence a si mesmo e se mortifica no espírito.

                Não custa igualmente a todos vencer-se e mortificar-se. Todavia, o homem diligente e porfio-o fará mais progressos, ainda que seja combatido por muitas paixões, que outro de melhor índole, porém menos fervoroso em adquirir as virtudes. Dois meios, principalmente, ajudam muito a nossa emenda, e vêm a ser: apartar-se valorosamente das coisas às quais viciosamente se inclina a natureza, e porfiar em adquirir a virtude de que mais se há mister. Aplica-te também a evitar e vencer o que mais te desagrada nos outros.

                Procura tirar proveito de tudo: se vês ou ouves relatar bons exemplos, anima-te logo a imitá-los; mas, se reparares em alguma coisa repreensível, guarda-te de fazê-la, e, se em igual falta caíste, procura emendar-te logo dela.

                Assim como tu observas os outros, também eles te observam a ti. Que alegria e gosto ver irmãos cheios de fervor e piedade, bem acostumados e morigerados!

                Que tristeza, porém, e aflição, vê-los andar desnorteados e descuidados dos exercícios de sua vocação! Que prejuízo descurar os deveres do estado e aplicar-se ao que Deus não exige!

                Lembra-te da resolução que tomaste, e põe diante de ti a imagem de Jesus crucificado. Com razão te envergonharás, considerando a vida de Jesus Cristo, pois até agora tão pouco procuraste conformar-te com ela, estando há tanto tempo no caminho de Deus. O religioso que, com solicitude e fervor, se exercita na santíssima vida e paixão do Senhor, achará nela com abundância tudo quanto lhe é útil e necessário, e escusará buscar coisa melhor fora de Jesus.

                Oh! se entrasse em nosso coração Jesus crucificado, quão depressa e perfeitamente seríamos instruídos!

                O religioso cheio de fervor tudo suporta de boa vontade e executa o que lhe mandam. O relaxado e tíbio, porém, encontra tribulação sobre tribulação, sofrendo de toda parte angústias: é que ele carece da consolação interior e lhe é vedado buscar a exterior. O religioso que transgrede a regra anda exposto a grande ruína. Quem busca a vida cômoda e menos austera sempre estará em angústias, porque uma ou outra coisa sempre lhe desagrada.

                Que fazem tantos outros religiosos que guardam a austera disciplina do claustro? Raro saem, vivem retirados, sua comida é parca, seu hábito grosseiro, trabalham muito, falam pouco, vigiam até tarde, levantam-se cedo, rezam muito, leem com frequência e conservam-se em toda a observância. Olha como os cartuxos, os cistercienses e os monges e monjas das diversas ordens se levantam todas as noites para louvar o Senhor. Vergonha, pois, seria, se tu fosses preguiçoso em obra tão santa, quando tamanha multidão de religiosos entoam a divina salmodia.

                Oh! se nada mais tivesses que fazer senão louvar a Deus Nosso Senhor de coração e boca! Oh! se nunca precisares comer, nem beber, nem dormir, mas sempre pudesses atender aos louvores de Deus e aos exercícios espirituais! Então serias muito mais ditoso do que agora, sujeito a tantas exigências do corpo! Oxalá não existissem tais necessidades, mas houvesse só aquelas refeições que -- ai! -- tão raro gozamos!

                Quando o homem chega ao ponto de não buscar sua consolação em nenhuma criatura, só então começa a gostar perfeitamente de Deus, e anda contente, aconteça o que acontecer. Então não se alegra pela abundância, nem se entristece pela penúria, mas confia inteira e fielmente em Deus, que lhe é tudo em todas as coisas, para quem nada perece nem morre, mas por quem vivem todas as coisas e a cujo aceno, com prontidão, obedecem.

                Lembra-te sempre do fim, e que o tempo perdido não volta. Sem empenho e diligência, jamais alcançarás as virtudes. Se começares a ser tíbio, logo te inquietarás. Se, porém, procurares afervorar-se, acharás grande paz e sentirás mais leve o trabalho com a graça de Deus e o amor da virtude. O homem fervoroso e diligente está preparado para tudo. Mais penoso é resistir aos vícios e às paixões que afadigar-se em trabalhos corporais. Quem não evita os pequenos defeitos pouco a pouco cai nos grandes. Alegrar-te-ás sempre à noite, se tiveres empregado bem o dia. Vigia sobre ti, anima-te e admoesta-te e, vivam os outros como vivem, não te descuides de ti mesmo. Tanto mais aproveitarás quanto maior for a violência que te fizeres. Amém.

 Reflexões

                Nós esquecemos a máxima dos santos que nos advertiram que todos os dias devemos recomeçar nosso avanço na perfeição; e se pensássemos bem nisto, não ficaríamos surpresos ao encontrar miséria em nós, nem do que devemos proibir-nos. Mas nunca fazemos isto. É preciso recomeçar e recomeçar sempre de boa vontade. Quando alguém tiver acabado, diz a Escritura, é então que começará. Eclesiástico, 18,6. O que fizemos até o presente é bom, mas o que vamos começar será melhor; e quando tivermos acabado isto, recomeçaremos uma outra coisa que será ainda melhor e depois uma outra, até que vamos partir deste mundo para começar uma outra vida que não terá fim, porque nada de melhor poderá acontecer-nos.

                Portanto, minha cara Madre, considera se é preciso chorar quando se encontra necessidade em tua alma, e se é preciso ter coragem para ir sempre em frente, pois jamais se deve parar, e se for preciso decidir-se para cortar algo, pois a navalha deve penetrar até a divisão da alma e do espírito, os nervos e os tendões.

                Demos sempre nosso pequeno passo; e como temos uma boa e bem decidida disposição, só podemos ir bem. Não, minha caríssima filha, para o exercício das virtudes, não é preciso manter-te atualmente atenta a todas. Isto na verdade confundiria e fixaria por demais teus pensamentos e afetos. A humildade e a caridade são as cordas-mestras, todas as outras estão ligadas a elas. É preciso somente fixar-te bem nessas duas; uma é a mais baixa, a outra a mais alta; a conservação de todo edifício depende do fundamento e do teto; tendo o coração aplicado ao exercício destas virtudes, não se tem grande dificuldade para chegar às outras.

Oração:


                Ó Deus, pai tão compassivo e cheio de bondade, como é pela inspiração de vossa divina graça que meu coração recebeu de novo o desejo e tomou a resolução de vos servir, recebei-o, este fraco e mísero coração, em sacrifício de bom odor e de suavidade: de novo, tudo vos dedico, consagro, sacrifico e imolo à vossa divina Majestade, para seguir em tudo e em toda parte, mais fielmente do que nunca, vossas soberanas ordens. Que este coração seja, pois, totalmente renovado, ó meu Deus, por esta consagração e promessa; fortificai-o com a vossa santa graça para que eu seja fiel ao que prometi.