"Sempre que participardes dos Mistérios Sagrados, anunciareis a Morte do Senhor." (1Cor 11,26.)
Para assistir devotamente à Santa Missa, meditai nos diversos passos da Paixão do Salvador, renovados ali de maneira tão admirável.
Preparação: Considerai o Templo como o lugar mais santo e respeitável do mundo, como um novo Calvário. O Altar, de pedra, contém os ossos dos Mártires. Os círios, que ardem e se consomem, são o símbolo da fé, esperança e caridade. As toalhas brancas, que cobrem o Altar, lembram-nos as mortalhas em que foi envolvido o Corpo de Jesus Cristo. O Crucifixo no-lo representa morrendo por nós.
No sacerdote, vede Jesus Cristo com as vestes de sua Paixão; no amito, o pedaço de fazenda com que os carrascos velaram a Face do Salvador; na alva, a túnica branca de escárnio com que o vestiu o impudico Herodes; no cordão, os laços com que os Judeus o ataram no Jardim das Oliveiras, a fim de levá-lo aos tribunais; no manipulo, as cadeias com que foi preso à coluna de flagelação; na estola, as cordas com que o puxaram pelas ruas de Jerusalém com a Cruz às costas; na casula, o manto púrpura que lhe lançaram no pretório, ou a Cruz que lhe impuseram.
Numa palavra, o ministro, trazendo as vestes sacerdotais, representa-nos o próprio Jesus Cristo, caminhando para o suplício do Calvário. E, alem disso, ensina-nos quais as disposições com que nos devemos apresentar ao Santo Sacrifício.
O amito, colocado primeiro na cabeça e logo depois nos ombros, é símbolo da modéstia e do recolhimento; a alva branca e o cordão, da pureza; o manipulo, da contrição; a estola, da veste de inocência; a casula, do amor da cruz e dojugo do Senhor.
O sacerdote entra e se aproxima do altar levando o cálice. Vede Jesus dirigindo-se ao Jardim de Getsêmani para ali começar sua Paixão de Amor. Com os Apóstolos, acompanhai-o, mas ficai a velar e rogar com Ele. Afastai toda distração, todo pensamento alheio a tão tremendo Mistério.
O sacerdote, aos pés do Altar, inciína-se, ora e humilha-se profundamente, à vista dos seus pecados. Jesus, no Jardim, prostra-se, a face contra a terra; humilha-se pelos pecadores; um suor de Sangue, fruto de sua imensa dor, corre-lhe pelo Corpo, ensangüentando-lhe as vestes, manchando a terra. É que Ele tomou a si nossos pecados, com toda a amargura inerente.
A vós, então, cabe confessar com o sacerdote vossas faltas; com ele pedir humildemente perdão e receber a absolvição, para que, purificado, possais assistir ao Santo Sacrifício. Se esta só consideração vos ocupar durante todo o Sacrifício; se vos for dado participar dos sentimentos e da agonia de Jesus; se a graça vos retiver ao seu lado, está bem. De outra forma, acompanhai-o no percurso da Paixão.
O sacerdote, subindo o Altar, beija-o. Judas, chegando ao Jardim das Oliveiras, dá - a Jesus um beijo pérfido. Ah! quantos não tem ele recebido dos seus filhos e ministros infiéis!
Ai de mim! nunca o traí eu?... Nunca o entreguei aos seus inimigos ou às minhas paixões?... E, no entanto, Ele muito me amou!
Podeis também contemplar a Jesus preso, tornando a Jerusalém, a fim de comparecer perante seus inimigos e deixando-se levar com a doçura do Cordeiro. Pedi-lhe a paciência e a mansidão nas provações por parte do próximo.
O sacerdote começa o intróito e benze-se. Jesus é conduzido à presença do sumo Pontífice Caifás, onde Pedro o renega. Ah! quantas vezes não o reneguei eu, à sua verdade, à sua lei, às minhas promessas! E não foi nem o temor, nem a surpresa que me levaram a renegar meu Salvador. Ai de mim! Sou, por conseguinte, mais culpado do que Pedro, cujas lágrimas correram sem demora, uma vez cometida a culpa. E ele chorou-a toda a vida, enquanto meu coração permanece duro e insensível.
O sacerdote recita o Kyrie. Jesus clama ao Pai por nós. Aceitai, com Ele, todos os sacrifícios que Deus vos pedir.
O sacerdote recita as Orações - e a Epístola. Jesus, em presença de Caifás, confessa sua Divindade, ciente de que a sentença de morte lhe virá punir semelhante declaração.
Meu Deus, fortificai, aumentai minha fé nessa mesma Divindade, para que, mesmo em perigo de vida, eu a adore, a ame e a confesse, feliz em poder dar meu sangue para defendê-la.
O sacerdote lê o Evangelho. Jesus, em presença de Pilatos, dá testemunho de sua realeza. Sede sempre, ó Jesus, rei de meu espírito pela vossa Verdade, rei de meu coração pelo vosso Amor, rei de meu corpo pela vossa Pureza, rei de toda a minha vida pela vontade que tenho de consagrá-la à vossa maior Glória.
Recitai em seguida o Credo, com fé e piedade, lembrando-vos de que o Salvador morreu em defesa da Verdade.
O sacerdote oferece o pão e o vinho do sacrifício, á hóstia a Deus Pai. Pilatos apresenta Jesus ao povo exclamando: Ecce Homo! (eis o Homem!), Seu estado excita compaixão. A flagelação feriu-o até o Sangue, e a coroa de espinhos lhe ensangüentou a Face. Um manto de púrpura, já gasto, junto à vara que leva na mão, fazem dele um rei de comédia. Pilatos propõe ao povo que lhe conceda a graça, Mas este não quer e responde: Seja crucificado! Crucifigatur! E nesse momento Jesus se oferecia ao Pai pela salvação do mundo todo - e do seu povo em particular, e o Pai aceitava sua oblação.
Ofereço-vos, com o sacerdote, ó Padre Santo, á Hóstia pura e imaculada de minha salvação e da salvação de todos os homens. Ofereço-vos, em união com essa oblação divina, minha alma, meu corpo e minha vida. Quero continuar a fazer reviver em mim a santidade, as virtudes e a penitência de vosso divino Filho. O Domine, regna supernos.
O sacerdote lava as mãos. Pilatos também lavou as mãos para protestar a inocência de Jesus. Ah! meu Salvador, lavai-me no vosso Sangue puríssimo e purifícai-me dos muitos pecados e imperfeições que maculam minha vida,
O sacerdote convida os fiéis, no Prefácio, a louvar a Deus. Jesus, Homem de Dores, há pouco aclamado por aqueles que hoje o coroam de espinhos e o atam num poste, recebe ali as homenagens derrisórias e sacrílegas de seus carrascos, que o atormentam com ultrajes indignos, lhe cospem na Face, e dele zombam. Ai de nós! Tais são as homenagens que nosso orgulho, nossa sensualidade, nosso respeito humano rendem a Jesus Cristo!
No Cânon, o sacerdote inclina-se, ora e santifica as ofertas por numerosos Sinais da Cruz. Jesus curva os ombros sob o fardo da Cruz. Toma-a com amor, beija-a, leva-a com carinho, encaminhando-se para o Calvário, dobrado sob esse peso de amor. Ah! Ele carrega meus pecados a fim de expiá-los, e minhas cruzes a fím de santificá-las. Sigamos Jesus Cristo, levando a Cruz e subindo penosamente o monte Calvário. Acompanhemo-lo com Maria, as santas mulheres e Simão, o Cireneu.
O sacerdote impõe as mãos sobre o cálice e a hóstia. Os carrascos, apoderando-se de Jesus Cristo, despem-no violentamente, e estendem-no sobre a Cruz, onde o crucificam,
Consagração e Elevação. O sacerdote consagra o pão e vinho no Corpo, Sangue, Alma e Divindade de Nosso Senhor Jesus Cristo. Adora, de joelhos, seu Salvador e seu Deus, real e verdadeiramente presente em suas mãos. Eleva-o, em seguida, apresentando-o - à adoração dos fiéis. E Jesus erguido na Cruz, entre o céu e a terra, qual Vítima e Mediador entre Deus irritado e nós, míseros pecadores.
Adorai e oferecei esta Vítima Divina em expiação, não somente pelos vossos próprios pecados, mas também pelos pecados dos homens em geral e dos vossos pais, parentes e amigos em particular. Prostrados a seus pés, seja o grito de vosso coração: Meu Senhor e meu Deus!
Considerai a Jesus estendido no Altar, como outrora na Cruz, adorando ao Pai, no profundo aniquilamento de sua própria Glória, rendendo-lhe graças por todos os bens concedidos aos homens seus irmãos e irmãos redimidos mostrando-lhe as Chagas, ainda abertas, que pedem graça e misericórdia pelos pecadores; rezando por nós de tal forma, que o Pai nada lhe pode recusar, a Ele, seu Filho, e Filho que se imolou por amor à sua Glória.
Prestai ao próprio Jesus o culto que Ele presta ao Pai. Adoro-vos, ó meu Salvador presente realmente sobre o Altar para renovar em meu benefício o Sacrifício do Calvário. A vós que sois o Cordeiro, ainda e diariamente imolado, bênção, glória e poder nos séculos dos séculos! Rendo-vos, agora, e por toda a eternidade vos renderei ações de graças pelo grande Amor que me manifestastes,
O sacerdote invoca, profundamente inclinado, a Clemência Divina para si e para todos. E Jesus quem diz: Pai, perdoai-lhes, que não sabem o que fazem. Adorai tamanha Bondade que, desculpando sempre os criminosos, não lhes quer chamar nem inimigos, nem carrascos.
Perdoai-me, ó meu Salvador, que minha culpa excede a deles, porquanto eu vos ofendi, embora soubesse que éreis o Messias, meu Salvador e meu Deus. Perdoai-me. Vossa Misericórdia será maior e, por conseguinte, mais digna ainda do vosso Coração, Se sou pródigo, sou todavia, filho. Eis-me aos vossos pés,
O sacerdote ora pelos mortos. Jesus na Cruz reza pelos mortos espirituais, pelos pecadores. Sua prece converte um dos dois celerados que primeiro o haviam insultado, blasfemando contra Ele. "Lembrai-vos de mim, Senhor, quando estiverdes no vosso Reino", diz-lhe o bom ladrão. E Jesus responde-lhe: "Hoje mesmo estarás comigo no Paraíso".
Ó meu Deus, pudesse eu, na hora da morte, fazer-vos o mesmo pedido e ouvir a mesma resposta! Lembrai-vos de mim nesse momento terrível, como vos lembrastes do ladrão penitente.
No "Pater", o sacerdote invoca o Pai Celeste. Jesus na Cruz recomenda sua Alma ao Pai. Pedi a graça da perseverança final.
No "Libera-nos o sacerdote roga para ser preservado dos males desta vida. Jesus, no grande Amor que nos tem, tem sede de novos sofrimentos e bebe, para expiar nossas gulodices, o fel misturado com vinagre.
O sacerdote divide a Hóstia santa. Jesus inclina a cabeça, a fim de lançar sobre nós um último olhar todo de amor - e expira, exclamando: Tudo está consumado.
É a Alma que se separa do Corpo! Adora, ó minha alma, a Jesus morrendo, e já que Ele morreu por ti, saibas tu também viver e morrer por Ele, Implorai a graça de uma morte boa e santa, nos braços de Jesus, Maria e José.
O sacerdote, no "Agnus Dei", bate três vezes no peito. Enquanto Jesus expira, o sol se eclipsa de dor, a terra estremece apavorada, os túmulos se abrem. Então, carrascos e espectadores, batendo no peito, confessam publicamente seu erro, em presença de Jesus na Cruz, proclama-no Filho de Deus e afastam-se contritos e perdoados. Uni-vos à sua contrição e merecereis o mesmo perdão.
O sacerdote bate no peito e comunga. Jesus é descido da Cruz, e colocado nos braços de sua Mãe dolorosa. É embalsamado, amortalhado num lençol branco e colocado num sepulcro novo.
Ó Jesus, ao receber-vos no meu corpo e na minha alma, desejo que meu coração seja não um túmulo, mas sim um templo alvo e puro, ornado de belas virtudes, onde só - Vós reinareis.
Ofereço-vos minha alma para morada. Vinde nela habitar, qual Senhor supremo. Não seja eu um túmulo de morte, mas um tabernáculo vivo. Ah! aproximai-vos de mim, pois longe de vós, desfaleço.
Acompanhai a Alma de Jesus enquanto desce ao limbo a levar às almas dos justos a sua libertação. Uni-vos à sua alegria, ao seu reconhecimento e daivos para sempre ao vosso Salvador e vosso Deus.
O sacerdote purifica o cálice e cobre-o com o véu. Jesus ergue-se do túmulo, glorioso e triunfante, encobrindo, todavia, por amor aos homens, o esplendor de sua Glória.
O sacerdote, em ação de graças, recita as orações. Jesus convida aos seus a se regozijarem pela sua vitória sobre a morte e sobre o inferno. Uni-vos ao júbilo dos discípulos e das santas mulheres em presença de Jesus ressuscitado.
O sacerdote abençoa o povo. Jesus abençoa seus discípulos. Inclinai-vos, confiante de receber uma Bênção que há de realizar tudo quanto promete.
O sacerdote lê o último Evangelho. É quase sempre o de São João, onde está descrita a Geração Eterna, temporal e espiritual do Verbo Encarnado.
Adorai a Jesus que subiu ao Céu para ali vos preparar um lugar. Contemplai-o reinando num trono de glória e enviando aos Apóstolos seu Espírito de Verdade e de Amor.
Pedi que esse Espírito divino habite em vós e vos dirija em tudo o que fizerdes no correr do dia, e que este, pela graça do Santo Sacrifício, seja todo santificado e tornado fecundo em obras de graça e de salvação.
terça-feira, 16 de janeiro de 2018
sexta-feira, 12 de janeiro de 2018
A Tibieza - Audiobook
MONS. ASCANIO
BRANDAO
A Tibieza
Seus Sinais,
Consequências, Remédios.
DUAS PALAVRAS
Ao
anunciar a ruína do templo e os últimos dias do mundo, Nosso Senhor predisse: E
porque abundou a iniquidade se há de resfriar a caridade de muitos. (São Mateus
24,12.)
Parecemos
chegados a estes dias sombrios. Resfria-se a caridade, o fervor de tantas
almas, enquanto a iniquidade cresce assustadoramente. A tibieza, é o grande
flagelo. É o espinho mais doloroso do Coração de Jesus. Sobretudo a tibieza das
almas consagradas a Deus, das almas outrora fiéis à graça.
Não se
presta bastante atenção à tibieza, esta mediocridade perigosa e funesta na vida
espíritual. Daí tanta falsa piedade, e esta ausência do verdadeiro espírito
evangélico, do sentido cristão na vida de muitos devotos e devotas. O espírito
de sacrifício, o senso da responsabilidade, a seriedade, a tremenda seriedade
da vida cristã de que fala Bossuet, tudo isto, anda ai tão esquecido, tão mal
compreendido. Só almas fervorosas poderão salvar este mundo paganizado. Almas
de elite. Almas de neve e corações de fogo no dizer do Padre Mateus. Mas elas
são tão raras, tão raras, meu Deus!
Que
este livrinho seja uma centelha e provoque incêndios e ilumine algumas almas.
Eu o
consagro ao Divino Coração de Jesus, forna-lha ardentíssima de Amor.
Coração
de Jesus, todo abrasado de amor por nós, inflamai nosso coração nas chamas de
vosso amor!. - Junho de 1937. - Monsenhor Ascãnio Brandão.
Capítulo I.
QUE É A TIBIEZA?
A
tibieza é uma doença espiritual e das mais graves e perigosas. É o verme roedor
da piedade. Micróbio terrível! Infiltra no organismo espiritual, sem que o
enfermo o perceba. Enfraquece a pobre alma. Amortece as energias da vontade.
Inspira horror ao esforço. Afrouxa a vida cristã. Espécie de cansaço ou
preguiça, diz Tanquerey, que não é ainda a morte, mas que a ela conduz sem se
dar por isso, enfraquecendo gradualmente as nossas forças morais. Pode-se
compará-la a estas doenças que definham, como a tuberculose, e consomem pouco a
pouco algum dos órgãos vitais.
É uma
sonolência, um sistema de acomodações na vida espiritual.
O tibio
não quer lutar. Tem horror ao combate da vida cristã. Não compreende a palavra
de Nosso Senhor no Evangelho: Eu não vim trazer a paz, mas a guerra!
Guerra
ao pecado, guerra às paixões, guerra à indiferença.
Quem
não é por mim, é contra mim!
O tíbio
não compreende este radicalismo sublime do Evangelho e da cruz. Numa palavra o
define bem o Espírito Santo: é morno. Nem frio, nem quente.
Nem o
ardor da caridade, o fogo do amor, nem o gelo da descrença e da impiedade e da
morte da alma.
A
tibieza é uma inércia espiritual. Um estado lamentável da alma.
É a
mediocridade que se contenta com não ofender a Deus pelo pecado mortal, mas não
quer evitar o pecado leve, fugir do relaxamento na vida espiritual.
Enfim,
para defini-la com precisão e distingui-la do que a ela apenas se assemelha,
como a aridez e outras provações da vida espiritual, vamos dar a sua definição.
“Definição”
A
tíbieza define-a o Santo Afonso pelo que a caracteriza: o pecado venial.
A
tibieza, diz o Santo Doutor, é o hábito do pecado venial plenamente voluntário.
Guardemos
bem esta definição.
Para a
tibieza essencial, são necessárias três condições:
1. O
pecado venial plenamente voluntário;
2. O
hábito do pecado venial voluntário;
3. A
paz com este hábito e a ausência de esforços para se corrigir.
Desde
que falte uma destas condições, já não há tibieza propriamente dita.
Uma
alma talvez caia de vez em quando nalguma falta venial. Cai por fragilidade,
por miséria. Emenda-se logo. Toma boas resoluções, corrige-se. Todavia é tão
grande a fraqueza humana! Uma vez ou outra chora uma falta venial.
Não é
tibieza.
Houve o
pecado venial, mas não o hábito do pecado venial e muito menos ainda a paz com
o pecado venial.
Há
esforço, generosidade, boa vontade, arrependimento sincero.
O Padre
Desurmont define a tibieza, comentando admiravelmente Santo Afonso: "A
tibieza é o hábito não combatido do pecado venial, ainda que seja um só. É um
hábito fundado num cálculo implícito: - Esta falta não ofenderá a Nosso Senhor
gravemente, não me há de condenar. Pois vou cometê-la.
É um
ato dificílimo de se tirar completamente da alma. É um hábito muito espalhado
sobretudo entre as pessoas que fazem profissão de piedade e entre as almas
consagradas a Deus.
“Espécies de tibieza”
A
tibieza propriamente dita é a que definimos - o hábito do pecado venial
voluntário e a paz com este hábito. Há, entretanto, outras espécies de tibieza.
1. - A tíbieza de fragilidade sem reflexão. Até os Santos
experimentaram.
Só a
Virgem Imaculada não a teve. Nosso Senhor permite nos Santos algumas
fragilidades e misérias, para conservar neles as virtudes fundamentais da
humildade, a desconfiança de si, a compaixão para com as misérias alheias, o
desapego da terra e o desejo do céu.
Oh! os
santos tiveram as suas pequenas fragilidades e misérias.
Como se
humilhavam!
Um dia
São Vicente de Paulo, num ato irrefletido de amor próprio, envergonha-se de um
parente pobre!
Como se
humilhou perante seus irmãos por esta falta!
Santa
Teresinha, no leito de morte, sente-se pobrezinha e imperfeita com uma
fragilidade: "Como sou feliz, diz ela, vendo-me tão imperfeita e com tanta
necessidade da misericórdia do Bom Deus no momento da morte".
Bernadette,
o anjo de Lourdes, lamenta as suas imperfeições, a teimosia que a humilhava
tanto.
Santa
Catarina Labouré - lamenta igual defeito.
Guido
de Fontgalland expia no leito de dores o que ele chamava as suas preguiças.
Poderia
multiplicar os exemplos.
São as
misérias inerentes a esta pobre natureza humana.
A
perfeição inteira e absoluta não se encontra neste mundo. O Concílio de Viena
condenou o erro dos que afirmavam que o homem, nesta vida mesmo, pode adquirir
um tal grau de perfeição, que se torna impecável e incapaz de progredir na
virtude. Tal foi também o erro dos Iluminados.
O
Concílio de Trento é mais claro ainda. Condena quem disser que o homem pode,
durante esta vida, evitar as mais pequeninas faltas, a não ser por um
privilégio especial de Deus. E este privilégio só o teve Maria Santíssima. (Sessão
6, cânon 23.)
A
tibieza de fragilidade é inevitável. Não nos perturbemos com ela. Recorramos à
oração, aos sacramentos e sobretudo à Santa Eucaristia, e nos purificaremos
sempre destas fragilidades e misérias. Depois temos a Tibieza da vontade.
2. Tibieza da vontade. É, mais grave que a de fragilidade.
É a
vontade enfraquecida. Deus a permite para confusão de nosso orgulho e melhor
nos convencer de nossa miséria. Um firme propósito, um gesto de arrependimento
sincero, com a resolução de se vigiar com mais cuidado, e tudo está reparado.
A
tibieza de vontade é fàcilmente remediável.
Finalmente
a Tibieza do pecado venial.
3. Tibieza do pecado venial voluntário e habitual e é desta
que aqui vimos tratando.
“Sinais da tibieza”
Os
sinais da tibieza em geral são os oito seguintes:
1.
Omissão fácil das práticas de piedade. A alma fervorosa tem a sua vida de
piedade toda dirigida por um regulamento particular fácil de ser observado e
bem criterioso.
Não
omite facilmente qualquer prática de piedade. É de uma fidelidade extrema,
sobretudo à meditação. Se graves ocupações ou verdadeira necessidade a impedem,
procura, logo que seja possível, suprir a falta. A alma tíbia sob qualquer
pretexto omite os exercícios de piedade, passa dias sem meditação, e até mesmo
sem práticas de piedade de qualquer espécie.
Ora,
isto é exatamente o contrário do fervor. "Não digo que isto prove tudo,
diz o Padre Faher, mas prova muito. Seja como for, sempre que existir tibieza,
existirá este sintoma".
2.
Fazer os exercícios de piedade com negligência. Na tibieza também há oração,
missas, confissões, comunhões, terços, etc., mas a rotina vai inutilizando
tudo. A rotina e a má vontade. Confissões e comunhões mal preparadas, orações
com inúmeras distrações voluntárias. E o pior ainda a falta de generosidade e
de todo esforço para se corrigir.
3.
Outro sinal de tibieza é a alma sentir-se aborrecida com o pensamento de que
tudo vai mal na sua vida espiritual. Não se sente inteiramente à vontade com
Deus. Não sabe exatamente onde está o mal, mas tem certeza de que tudo não está
em ordem. É um mau estar, um aborrecimento interior. E, sem paz, o tíbio se
agita inutilmente e vai deixando enraizar no coração o hábito do pecado venial.
Este
sinal anda sempre com os dois primeiros. Desde que faltou generosidade numa
alma para ser fiel aos seus deveres de piedade, estas omissões e negligências
acabam deixando-a num estado lamentável de aborrecimento das coisas santas e
até de Nosso Senhor.
4. O
quarto sinal é agir sem pureza de intenção, sem ordem nem método. A pureza de
intenção consiste em fazermos com um fim honesto e sobrenatural todas as ações
de nossa vida: práticas de piedade, deveres de estado, trabalhos de cada dia ou
qualquer coisa por mínima que seja. É aquele olhar interior sempre fixo em Deus
e desviado das criaturas.
Tudo
fazer para a glória de Deus, e se submeter com espírito de fé e resignação.
Eis a
mais pura intenção que se pode imaginar, o mais elevado princípio e o mais
perfeito ideal de uma alma fervorosa.
Os
santos não tinham outro motivo nem visavam outro fim na terra.
Santa
Madalena de Pazzi sentia-se arrebatada em êxtase, ouvindo esta palavra: - A
vontade de Deus!
Santo
Inácio legou à Companhia de Jesus, como rica herança, o seu lema: - Tudo para a
maior glória de Deus!
A
pureza de intenção é a alquimia celeste que transforma em ouro de méritos para
o céu todas as nossas boas obras. Sem ela, perdemos cada dia riquezas
incomensuráveis.
A alma
tíbia faz tudo por amor próprio e capricho, seguindo em tudo a natureza.
É a
leviandade, a preocupação da vontade própria, os cálculos muito humanos, a
vaidade quando faz o bem, o desejo de agradar às criaturas e de aparecer.
Anda à
cata de louva minhas e aborrece o sacrifício oculto, a abnegação e outras
virtudes que não brilham aos olhos das criaturas e constituem o segredo do Rei!
E Deus
recompensa as nossas ações, diz Santa Madalena de Pazzi, a peso de pureza de
intenção.
Oh! como
a tibieza rouba e despoja a pobre alma, quando lhe arrebata a pureza de
intenção!
5.
Contentar-se com a mediocridade e negligência em formar hábitos de virtude. Se
a mediocridade já é desastrada na ciência, na literatura e na arte, o é em
proporção verdadeiramente calamitosa quando se trata da prática da virtude.
O
medíocre não gosta da palavra: Santidade. Não compreende o heroísmo das almas
generosas, a abnegação, o sacrifício. Para ele, a virtude heróica é o exagero!
A
santidade é um misticismo! E que entende por misticismo? Algo de loucura e de
anormal.
Contenta-se
com o meio termo. E assim não se esforça por adquirir hábitos de uma virtude
sólida.
6. O
desprezo das pequenas coisas. Os santos fugiam das menores imperfeições, e se
purificavam cada dia das pequeninas faltas. O tíbio, não. Ri-se do que ele
chama escrúpulo das almas fervorosas: - a fidelidade nas pequenas coisas.
E não
nos esqueçamos destas grandes verdades: primeira - os santos se tornaram santos
pela repetição contínua duma multidão de ações insignificantes, pelo cuidado
infatigável das pequeninas coisas. E segunda: - só fizeram eles grandes coisas
quando chegaram à santidade.
Os
pequeninos sacrifícios ocultos, as pequeninas cruzes, as pequeninas virtudes,
as pequeninas mortificações, tudo isto a cada dia, a cada minuto, aceito com
generosidade, como santifica uma alma! É o caminho batido de Santa Teresinha, a
pequenina via da Infância espiritual.
Que
fonte riquíssima de graças!
A
tibieza, porém, seca esta fonte, esteriliza a vida espiritual, sonha com
êxtases e comete cada dia o pecado quase sem remorso. E os pecados veniais, sob
o disfarce de pequeninas faltas inevitáveis à fraqueza humana, vão se multiplicando
assustadoramente na alma e alimentando a tibieza até ao pecado mortal e, sabe
Deus, até ao endurecimento do coração!
É muito
grave desprezar habitualmente as pequeninas coisas. São Gregório chega a dizer
que se deve ter mais receio das pequenas faltas que das grandes. Porque estas
provocam logo o arrependimento e causam horror; aquelas não assustam, e vão
preparando surdamente a ruína espiritual. E, o que é pior, sem remorso da
consciência, e até sob a capa da virtude.
7. É
pensar mais no bem já feito do que no bem que ainda resta a fazer.
E. uma
presunção que leva a descansar e afrouxar no caminho do sacrifício e da
virtude, porque julga ter feito alguma coisa no passado para a salvação. Nada
de esforço e generosidade. Nosso Senhor dizia no seu Evangelho que, depois de
termos feito muito, deveríamos dizer: - somos servos inúteis.
E
prosseguir na luta, porque o ideal da perfeição é o Infinito: "Sede
perfeitos como vosso Pai Celeste é perfeito".
A
tibieza, como já dissemos, contenta-se com a mediocridade. Julga ter feito
muito a alma tibia, porque no passado foi bem fervorosa e trabalhou pela sua
santificação, lutou, praticou boas obras de zelo e de caridade, sacrificou-se
na luta do bem. Agora, quer repouso. Descansa, não luta mais, deixa-se ficar na
indolência e faz de seu coração o campo do preguiçoso.
São
Paulo pensava justamente o contrário: "Irmãos meus, não considero que
alcancei o prêmio, mas uma coisa eu faço: esquecendo o que está atrás de mim,
esforçando-me por alcançar o que está na minha frente, prossigo até ao alvo,
para alcançar o prêmio para o qual me chamou do Alto por Cristo Jesus. Sejamos
nós, quantos queremos ser perfeitos, do mesmo espírito". (Filipenses 3,13.)
O tíbio
não se compara aos mais santos e fervorosos, mas sempre se julga melhor do que
tantos outros piores do que ele.
E é
assim que adormece tranquilamente. Não quer progredir na virtude.
São
Gregório compara a vida cristã a uma barca em que se navega contra a corrente.
Quem sobe, há de remar sempre, ou é arrastado pela correnteza.
Santo
Agostinho, no seu estilo incisivo e claro, assim fala: - "se dizes: basta,
estás perdido!"
Sim, no
dia em que se cruzam os braços na luta pela santificação da alma, tudo está
perdido! Adeus, santificação, e talvez: Adeus, salvação eterna!
São
Bernardo pergunta: - Não quereis adiantar? Dizeis: - quero ficar e viver onde
cheguei? Quereis o impossível!
O
demônio, diz Santa Teresa, conserva muitas almas no pecado ou na tibieza,
fazendo-as crer que é orgulho aspirar à santidade.
Que
perigosa ilusão! Lembrem-se os tíbios, sobretudo se já receberam graças de
Nosso Senhor, como por exemplo sacerdotes, religiosos e almas consagradas a
Deus, oh! lembrem-se de que é terrível abusar da graça e muitas almas chamadas
ti santidade, diz o Padre Desurmont, baseado em Santo Afonso, ou se salvam como
santos ou arriscam a sua eterna salvação.
Escreveu
o Santo Doutor: Se alguém na vida religiosa (e poderíamos acrescentar: na vida
de piedade) quer se salvar. mas não como santo, corre o risco de se perder.
Todos
estes sinais de tibieza andam em geral com este último e infalfvel:
8.
Pecado venial voluntário e habitual. Os outros sinais podem ser atenuados ou
alguns falham, mas este é infalível. Onde existe o hábito do pecado venial,
existe a tibieza com todo o cortejo de males e desgraças que ela acarreta à
vida espiritual.
“O pecado venial”
Embora
em grau inferior, o pecado venial oferece, todavia, os mesmos caracteres de
malícia que o pecado mortal.
A
rainha Maria Teresa de França, esposa de Luís 14, chorava uma falta venial. A
delicada consciência da Princesa a deixava inconsolável.
-
Como?! - disseram-lhe - tanta lágrima, por uma falta leve, um pecado venial?!
- Sim,
pode ser venial, mas é mortal para o meu coração! Tudo quanto ofende a Nosso
Senhor nunca é leve ou coisa de somenos importância para uma alma fervorosa.
E o
pecado venial é uma ofensa a Deus. Há nele três circunstâncias agravantes:
1 - Uma
injúria à Majestade Divina;
2 -
Revolta contra a Autoridade de Deus;
3 -
Ingratidão à Bondade Eterna.
Deus,
em cuja presença estamos, é ofendido e por uma bagatela, um ato de preguiça,
uma vaidade, uma desobediência!
Não
desprezemos o que fere tanto ao Sagrado Coração de Jesus!
O
pecado venial ofende a Deus. E não basta para que o aborreçamos?
Seja
venial, embora, mas sempre é mortal para nosso coração e para a delicadeza de
nossa consciência.
É uma
injúria à Majestade Divina.
Num dos
pratos da balança colocamos a vontade de Deus e a sua glória, e no outro, o
nosso capricho e nosso prazer, e ousamos preferi-los a Deus!
Que
ultraje! Diz Santa Teresa: É como se se dissesse: Senhor, apesar de esta oração
Vos desagradar, não deixarei de a fazer. Não ignoro que a vedes, sei perfeitamente
que a não quereis; mas prefiro a minha fantasia e a minha inclinação à vossa
Vontade.
E seria
coisa sem importância proceder desta forma?
"Quanto
a mim, acrescentava a Santa, por mais leve que seja a falta em si mesma; acho
pelo contrário que é grave e muito grave".
Não
cometamos o pecado venial deliberado sob o pretexto de que não ofende a Deus
gravemente. É pecado, e basta isto, para ser objeto de nosso ódio.
O
pecado venial é uma revolta contra a Autoridade Divina.
É como
se disséssemos a Nosso Senhor: "Quero vos obedecer, Senhor, más quando
esta obediência não me aborrecer e quando me agradar e quando eu bem
quiser".
Isto é
obediência?
Não é
uma injúria e um desrespeito à Autoridade Divina?
Mas, o
que é mais triste no pecado venial é a ingratidão sem nome que ele encerra.
Desta ingratidão queixou-se Nosso Senhor a Santa Margarida Maria, mostrando-lhe
o seu Divino Coração rasgado pela lança e cercado de uma coroa de espinhos.
Estes
espinhos eram a imagem das almas ingratas, sobretudo almas consagradas a Deus
que vivem na tibieza. São as que mais ferem o Sagrado Coração do Bom Jesus.
Uma
injúria à Majestade Divina. Uma revolta contra a Autoridade Divina. Uma
ingratidão à Divina Bondade! Meu Deus! Meu Deus! Isto é leve?
Oh! combatamos
o pecado venial deliberado.
"Eu
me lançaria num oceano de chamas se fosse preciso, dizia Santa Catarina de
Sena, para evitar um só pecado venial, e preferiria permanecer neste fogo a
dele sair por um só pecado venial".
Exagero?
Não. Os Santos sabem melhor avaliar o que é uma alma, o que é um Deus ofendido
e o que é uma eternidade que se arrisca!
Estejamos
prontos, se for preciso, a padecer e morrer, mas não cometer um só pecado
venial! Oh! quem nos dera tão bela disposição!
“Castigos do pecado
venial”
O
pecado venial é punido severamente pela Justiça Divina e tis vezes com
terríveis castigos!
A
mulher de Lot se transforma em estátua de sal por um pecado venial de
curiosidade. Moisés é privado da consolação de ver a terra prometida por um
pecado venial de desconfiança. Quarenta e dois meninos, porque zombaram do
profeta Eliseu, são punidos e mortos pelas feras. Ananias e Safira, fulminados
por um pecado venial de mentira!
E
pode-se dizer ainda que o pecado venial é de pouca importância?
Deus o
castigaria assim com tanta severidade?
São
castigos temporais.
Mais
terríveis, porém, sãos os castigos espirituais.
O
pecado venial leva ao abuso da graça. E quando se abusa da graça, a fonte das
graças vai secando!
Ai! em
que abismos se precipita quem abusa da misericórdia e esbanja o tesouro da
graça!
Cuidado!
Tremei! Nada tão grave e de maior responsabilidade como o emprego da multidão
de graças que Nosso Senhor nos prodigaliza cada dia!
"As
contas das graças, diz Santo Afonso, são mais severas quem dos próprios
pecados!"
E o
pecado venial, sobretudo o hábito do pecado venial, eis ai também o estado de
contínuo abuso da graça!
E Deus
ofendido, por castigo, retira a sua graça ou vai dá-la a outros.
Haverá
mais tremendo castigo?
Capítulo II.
CONSEQUÊNCIAS E MALES
DA TIBIEZA
A
tibieza tem consequências funestas na vida espiritual e acarreta para alma os
males do pecado venial.
1 -
Aborrece Deus Nosso Senhor e o obriga a nos abandonar.
Que terrível sentença
aquela do Apocalipse! O Bispo de Laodiceia caíra na tibieza. E São João, em
nome de Deus, lhe manda dizer: Eu conheço as tuas obras: porque não és frio nem
quente. (Ap 3,15.)
Conheço
as tuas obras! Havia, pois, algum trabalho, alguma virtude naquele homem. Não
era de todo mau. Mas... não era frio nem quente. Era tíbio, morno, frouxo, algo
indiferente na obra da sua santificação.
Faltava-lhe
o fogo da caridade.
E como
o Senhor castiga, e com ele, a toda alma no lamentável estado de tibieza?
"Antes
fosses frio ou quente!"
Como? Deus prefere também o gelo
do pecado e da morte da alma à vida enlanguescida e agonizante da alma
tíbia?...
Sim! Antes
fosses frio ou quente!
E aí
vem o castigo: Mas porque não és frio nem quente, eu começo a te vomitar de
minha boca.
Que
castigo tremendo! Deus rejeita a alma tíbia como nosso estômago vomita a água
morna ou um alimento que provoca náuseas.
A
tibieza aborrece a Nosso Senhor e o obriga a nos abandonar à nossa própria
sorte, ao nosso capricho e orgulho, à nossa grosseira sensualidade.
Não há
maior castigo. É a mais funesta das consequências da tibieza e a origem de
todos os males.
Meditar
o texto de S. João no Apocalipse e trazê-lo sempre na memória e gravá-lo no
coração!
2 - A
tibieza enfraquece a alma.
E a
enfraquece de três maneiras. Afasta-nos a graça, fortifica os inimigos da alma
e abre o coração para aquele mau uso das criaturas de que nos fala Santo Inácio
nos seus Exercidos espirituais.
Na
tibieza, a pobre alma contrai uma enfermidade perigosa que a vai depauperando
dia a dia, e fazendo perder as energias.
Quando
São Tomás e Santo Afonso comparam a tibieza à tuberculose, dão bem uma ideia da
gravidade daquele doente espiritual.
O
tuberculoso sente-se enfraquecer dia a dia, minado por uma febrezinha
impertinente que o vai consumindo. A tibieza produz a febre do orgulho e do
amor próprio, febre da vaidade, febre da sensualidade e de mil pequenas faltas
e infidelidades. E a pobre alma vai caminhando para o túmulo do pecado mortal e
do hábito do pecado.
A
estátua de Nabucodonosor era bela e gigantesca. Cabeça de ouro, peito de prata,
ventre de bronze, pernas de ferro e pés de ferro, argila e barro.
Rola
uma pedrinha da montanha, e bate violentamente nos pés de barro. Toda a mole
imensa da estátua veio a baixo.
Bela
estátua é a da alma no estado de graça!
Mais
rica e preciosa que a estátua de Nabucodonosor. Entretanto, às vezes, ai! tem o
pedestal de uma matéria frágil: - o barro do pecado venial, o barro da tibieza.
Aí vem uma pedrinha de uma ocasião perigosa, de uma tentação grave, e... rola
toda uma vida de espiritual e se destrói todo um passado de virtudes até
heróicas. O inferno bateu no ponto fraco, e venceu.
3 - A
tibieza é o caminho do pecado mortal.
Diz São
Gregório: Ordinariamente não nos tornamos maus de repente. Não passamos
subitamente do fervor ao pecado mortal. É mister uma escada, é a tibieza; um
ponto de apoio: a tibieza. Se não desceis um degrau desta escada e dela fugis,
estais salvos.
A
experiência demonstra que dificilmente se ficará muito tempo no hábito do
pecado venial deliberado, sem se chegar ao pecado mortal. Não quer dizer isto
que uma multidão de pecados veniais faça um pecado mortal; mas, a facilidade em
cometer o pecado venial prepara a alma e a dispõe a cair facilmente no pecado
mortal.
Quem
despreza as pequenas coisas, cairá pouco a pouco, diz o Espírito Santo. (Eclesiaste
19,1.)
Aplicando
este texto às almas tibias, diz um intérprete que as almas perdem em primeiro
lugar a devoção. Depois vão passando das faltas leves, que consideram sem
importância, às faltas graves, aos pecados mortais, e do estado de graça passam
ao estado de pecado.
Quem
comete facilmente o pecado venial, dificilmente escapará dos pecados mortais,
afirmam experimentados mestres da vida espiritual.
"Por
um justo castigo de Deus, diz Santo Isidoro, os que fazem pouco caso dos
pecados veniais, das faltas leves, vêm a cair um dia nos maiores pecados".
Santo
Agostinho tem uma frase que deve merecer de nós sérias reflexões. O pecado
mortal é, segundo ele, uma montanha que esmaga, que mata, e os pecados veniais,
grãos de areia. Acontece, porém, que o desprezo das faltas leves faz com que a
alma venha a perecer como estes infelizes, que morrem sufocados sob um montão
de areia. É verdade que só o pecado mortal dá morte à alma, e os pecados
veniais, por mais numerosos que sejam, não nos podem tirar a graça
santificante.
Mas,
diz São Gregório, o hábito dos pecados veniais tira aos nossos olhos a malícia
do pecado grave, e em breve não receamos mais passar das faltas mais leves aos
maiores pecados.
O mal
da tibieza é tirar a sensibilidade, a delicadeza de consciência. E haverá um
estado mais lastimável de alma que essa cegueira de coração?
As
crônicas do Carmelo contam que a Venerável Sórar Ana da Encarnação viu um dia
no inferno uma alma que na terra foi tida como pessoa de certa virtude. Ora, a
infeliz, no suplício eterno, tinha o rosto coberto de insetos que representavam
as inumeráveis faltas veniais de que estava culpada. E destas, umas lhe diziam:
Por nós começaste! E outras enfim: por nós te perdeste!
Não é
esta, porventura, a sorte de tantas almas? Numa visão terrível foi revelado a
Santa Teresa o lugar que lhe seria reservado no inferno, se, desprezando a
graça, se deixasse levar por uma falta leve, que depois, multiplicada, a
levaria ao abuso da graça, ao pecado e à condenação final. Oh! e diz-se que o
pecado venial é de pouca ou nenhuma importância! E vive-se e dorme-se
tranquilamente no estado de tibieza! Que cegueira!
4 - A
tibieza leva à cegueira espiritual.
As
moléstias corporais costumam ser imagem das moléstias da pobre alma.
Se
procurarmos uma imagem feliz da tibieza, encontrá-la-emos na cegueira. A
tibieza é uma cegueira, escreve o piedoso oratoriano Padre Faber, cegueira que
não conhece a si mesma, não suspeita o seu estado, nem admite que outros tenham
melhor vista. É uma cegueira judicial, porque um dia houve em que viu melhor e
agora não se lembra mais do que viu nem mesmo que tinha olhos.
Esta
cegueira vem de três causas: os pecados veniais frequentes, a dissipação do
espírito e a paixão dominante. Sobretudo a paixão dominante. Esta é uma
violência externa, que nos leva a fechar os olhos e conservá-los assim para nos
lançar no abismo. E a consciência neste estado de cegueira se falsifica, não
tem mais equilíbrio, não tem firmeza. Daí as trevas e que trevas espessas!
E nesta
escuridão, os maus instintos do espírito humano, diz ainda o Padre Faber, como
corujas noturnas, se tornam mais animados e ativos. É um despertar de maus
pensamentos, de paixões que já se julgavam mortas. Já não há mais aquele horror
ao pecado. A moleza dos costumes, o comodismo, a vida sensual, leviandades
repetidas, certa amargura secreta do próximo, faltas de caridade, mentiras,
maledicências, enfim o orgulho e a sensualidade, aves noturnas agourentas,
anunciam a morte próxima da infeliz alma tíbia.
Finalmente,
vejamos o pior dos males, a mais tremenda consequência da tibieza.
5 - A
tibieza prepara a impenitência final.
Será
possível? dirá alguém.
Sim, a
experiência o tem provado mil vezes. Tibieza é o abuso da graça, e o abuso da
graça teve quase sempre, como consequência última, a impenitência final.
Com
Deus não se brinca!
Conheceis
a palavra de São Paulo?
A terra
que bebe muitas vezes as águas da chuva e que só produz cardos e espinhos, está
reprovada e próxima da maldição. Será entregue ao fogo e reduzida a cinzas. (Hb
6,7.) Deus nos chama, bate, bate mil vezes à porta do coração. É desprezado.
Ai! um
dia o candelabro da graça com todas as suas luzes será transportado para outro
lugar: Eu mudarei teu candelabro. (Ap 2,5.) E ai! meu Deus! Pobre alma! O
abismo da impenitência final a espera. E ela sorri presunçosa, dorme tranquila
na inconsciência, na cegueira do seu lamentável estado!
Conheceis
a história dolorosa de Tertuliano? Um apologista famoso, um batalhador pela
causa da Igreja! Uma obstinação, uma falta de docilidade à Igreja, e ei-lo na
heresia e na heresia morre... Lamennais fulgurava com todo o seu talento na
Igreja de França. Em torno deste homem, a flor do pensamento católico se
congrega para ouvi-lo como a um oráculo. Que gênio! Diretor de almas como
raramente se viu outro! Entretanto, um orgulho secreto de sábio o vai minando.
A vaidade talvez de se sentir grande, admirado, um oráculo da Igreja de França.
Havia
nele uma tristeza que impressionava o Padre Lacordaire, seu amigo. Veio a
provação, a hora da luta, a prova de fogo. Ei-lo revoltado, inimigo da Igreja,
blasfemador, herege e apóstata.
Até à
hora da morte renega tudo quanto amou e pregou e defendeu com ardor. A
sobrinha, toda aflita, lhe pergunta quase à hora da morte: - Meu tio, meu tio,
queres um padre, não é? Um padre, meu tio... Lamennais, obstinado, responde com
aspereza: - Não.
Insiste
a sobrinha.
Não! não
e não! deixem-me em paz! No dia seguinte, 27 de Fevereiro de 1854, às 9 horas
da manhã, expirou o desgraçado na impenitência final.
O que
preparou tamanha ruína?
Oh! sem
dúvida a tibieza. Uma alma fervorosa não tocaria jamais assim o fundo do
abismo.
A
história de muitas apostasias e escândalos que amarguram a Igreja, não teve
muita vez a sua origem na tibieza! Ninguém cai de repente. Ninguém chega à
impenitência final sem uma vida tíbia no começo.
Eis as
lamentáveis e muitas vezes irremediáveis consequências da tibieza.
Despertemo-nos
por amor de Deus, por amor da nossa pobre alma, despertemo-nos deste sono
perigoso!
Desanimar?
Seria pior. Confiança! A confiança faz milagres. A enfermidade é gravíssima e
parece mesmo incurável.
Entretanto,
um bom regime, um bom médico, um bom clima, a podem curar. O bom médico: um
confessor zeloso e experimentado, bem santo e bem enérgico. O bom clima: um
meio fervoroso, a companhia de almas piedosas e santas, uma atmosfera onde se
respire o sobrenatural.
E um
bom regime: a volta decidida, enérgica, constante, às práticas de piedade.
Custe o que custar. E a mortificação. Sobretudo o regime eficaz da oração. A
oração mental. Principalmente a oração mental. E esta parece mesmo o remédio
específico.
Capítulo III.
REM DIOS DA TIBIEZA
A
tibieza parece um mal incurável e o é realmente, não porque haja na vida espiritual
doenças incuráveis, mas porque afeta a vontade, tornando-a fraca e rebelde,
surda à voz da graça. E, geralmente, o tíbio não se considera como tal. Ignora
o mal que o vai perdendo. E esta ignorância, esta obstinação, esta cegueira que
acompanham a tibieza, a fazem um mal incurável. Entretanto a graça tudo pode.
A cura
da tibieza é um milagre, mas no mundo espiritual a graça opera milagres
cotidianos. Alguns remédios apontam os autores para a salvação de uma alma
tíbia.
1. O remédio:
Descobrir a tibieza.
Esta
descoberta se faz pela meditação e o exame de consciência. Descobrir que somos
tíbios é uma graça e das maiores e o presságio de uma cura miraculosa.
Estaremos, porém, perdidos se não agirmos logo com vigor, com prontidão e
energia ao fazermos esta assustadora descoberta. Ao perceber este estado de
alma, logo sem demora recorrer à oração e mãos à obra.
2. O Remédio: Fazer o
que foi omitido e fazê-lo bem.
A
omissão das práticas de piedade foi a causa da tibieza. Pois bem. É preciso
fazer sem demora, com energia, tudo o que se omitiu, custe o que custar.
É
difícil! Sim, mas não é impossível. Experimentar pelo menos um dia, de
fidelidade absoluta e intransigente a todas as práticas piedosas abandonadas.
Há de se ver a dificuldade diminuir. Depois, entrar na luta contra a preguiça,
a rotina, o mau hábito. Não obstante as muitas omissões, não desanimar. Nada
tão dificil como voltar à prática dos exercícios da vida espiritual, sobretudo
se de há muito vêm sendo omitidos. A custa de esforço, de luta e de oração se
consegue alguma coisa. Oh! que ao menos não falte a boa vontade. Já é alguma
coisa. Faça-se um pouco hoje, depois mais um pouco...
Quem
sabe? Coragem! Confiança!
3. O Remédio: Fazer
tudo com método e com pureza de intenção.
Para o
método, nada melhor que um bom e criterioso regulamento particular, e neste
marcar a hora da meditação e fazê-la custe o que custar. Com isto, é certo, se
há de salvar o tibio. Tibieza e meditação não podem anda; juntas. Uma ou outra
há de perecer. Diz o profeta David. Na meditação se abrasa o fogo da caridade,
que é o fervor. Da pureza de intenção já falámos. Resta praticá-la, a Meditação
cotidiana.
4. Remédio: Meditação
cotidiana.
Todos
os outros exercícios de piedade, que o tíbio recomeça quando se esforça por
sair do seu lastimoso estado, têm a sua eficácia. Nenhum, porém, como a
meditação. Meia hora de meditação cotidiana, bem preparada, e bem feita, eis o
remédio soberano e específico da tibieza. A meditação é o alimento substancial•
do regime a que se deve submeter a alma enfraquecida pela tibieza. Disse,
meditação bem feita. Sim, porque a tibieza é companheira inseparável da
meditação sem preparação alguma, feita às pressas, sem método, com preguiça,
sonolência e má vontade.
O
remédio há de ser bem preparado, bem dosado e bem tomado, para que seja eficaz.
Se a receita não foi observada, o remédio poderá curar?
Insisto:
Meditação bem feita!
Seja
por que método: Sulpiciano, Inaciano ou Afonsiano, mas... torno a repetir: - Meditação
bem feita!
5. O Remédio: Uma
penitência depois de cada falta.
Examinar
qual o pecado venial que me retém escravo da tibieza e castigá-lo toda vez
depois de cometido.
Uma
penitência para cada pecado. Não perdoá-lo. A natureza é um cão.
Ladra,
ameaça quando corremos medrosos. Um gesto de energia, um grito, uma bordoada, e
ei-lo abatido, humilhado, a correr de nós. Sem penitência não se sai da
tibieza. A mortificação e a meditação andam juntas e constituem aquele espírito
de oração e de penitência de que nos fala o profeta.
6. O Remédio: A
mortificação.
Custa
muito, é verdade. A tibieza caracteriza-se também pelo horror ao espírito de
mortificação.
Mortificai
vossos membros, diz o Apóstolo São Paulo, trazei a mortificação de Jesus Cristo
em nosso corpo. (Colossense 3,5.)
A mortificação
é a vida do Evangelho em ação e a imitação da vida de Jesus Cristo. Querer
sacrificar-se sem mortificação é querer o impossível. "Se alguém desaprova
a penitência, diz São João da Cruz, não lhe deis crédito, ainda que faça
milagres".
As
pequenas mortificações cotidianas são remédio também para as pequenas faltas
cotidianas. Contraria, contrarieis. Espírito de sacrifício no cumprimento do
dever. Custa a meditação? Fazei-a por mortificação. Custa a oração um dever
penoso? custa deixar alguma sensualidade? Mortificai-vos um pouco. E vereis a
transformação que em breve se fará em vossa alma. A mortificação com a oração,
eis o remédio soberano da tibieza.
7. O Remédio: Confissões
e Comunhões bem preparadas.
Rigoroso
exame de consciência antes da confissão. A confissão do tíbio é rotineira e mal
feita. Procura sempre um confessor muito brando e suave. Não gosta de uma
palavra enérgica e severa no tribunal da penitência. Disfarça os seus pecados.
Não procura uma sólida direção espiritual. Não costuma ter um confessor fixo.
Confessar-se não é para o tíbio uma mudança de vida, um firme propósito de não
mais pecar: é arranjar uma absolvição para poder comungar.
Daí
almas que no mundo e na vida religiosa se confessam durante anos e anos, quase
toda semana, e vivem, entretanto, no mais lamentável estado de tibieza. Ai! O
Sangue de Jesus Cristo no Tribunal sagrado não é aproveitado!
Depois,
as Comunhões sem devida preparação, sem fé, sem amor. Comunhões por rotina.
Ações de graças lidas às carreiras em manuais de devoção. Nem sequer um
pensamento sério, bem meditado. da Presença real de Nosso Senhor na hóstia
consagrada! Pobre Jesus! Que sepulcros gelados não acha Ele todo dia no coração
de tantas almas tíbias!
Para
sair da tibieza, a Santa Comunhão, que, no dizer do Concílio de Trento, é o
antídoto da faltas cotidianas, é um remédio eficaz. Mas há de ser bem
preparada. A leitura espiritual, as jaculatórias, um pensamento eucarístico à
noite, ao deitar, e sobretudo uma vida isenta de pecado e em luta contra o
pecado, eis aí uma excelente preparação para as nossas Comunhões. Tirar da
rotina a confissão e a Comunhão é um passo decisivo para sair da tibieza.
8. O Remédio: A
devoção ao Sagrado Coração de Jesus.
"As
almas tíbias tornar-se-ão fervorosas", prometeu Nosso Senhor a Santa
Margarida. É o grande milagre, o perene milagre desta devoção. O Sagrado
Coração é uma fornalha de amor, é fogo, e fogo puro da Divina Caridade.
Jaculatórias ao Divino Coração. A sua imagem diante de nós, conosco em toda
parte. Falar desta devoção, propagâ-la, estudâ-la. Oh! não encontro meio tão
eficaz e poderoso para arrancar uma alma da tibieza. Leituras sobre o Coração
de Jesus, o Exercício da Hora-Santa, a entronização. Oh! como tudo isto abrasa
o coração ainda mais gelado e faz milagres de conversões.
Tomar a
peito fazer uma novena ao Sagrado Coração de Jesus, para sair da tibieza.
Fazê-la custe o que custar com uma leitura apropriada, por exemplo: a história
das Aparições a Santa Margarida Maria ou a vida desta discípula predileta do
Coração de Jesus. Ler este livro de fogo do Padre Mateu Crawley que eu desejava
ver em muitas mãos: "Jesus, Rei de Amor".
E
sobretudo, mais do que tudo, ler e reler o Evangelho, as cenas tocantes do
Evangelho, onde aparece, onde brilha a misericórdia do Coração de Jesus. Oh! o
nosso coração é matéria inflamável. Não resistirâ muito tempo às chamas do Amor
sem nelas se abrasar. E o Coração de Jesus nos põe junto ao braseiro da •
caridade. Quando os judeus foram levados ao cativeiro de Babilônia, os
sacerdotes esconderam o fogo sagrado num poço. De volta, Neemias só encontrou
lama. Com esta, regou a lenha e as vítimas do sacrifício; e as expôs ao sol.
E o sol
as acendeu e queimou. Estava aceso de novo o fogo sagrado. A nossa vida
espiritual talvez era o fogo sagrado do amor no templo vivo do Divino Espírito
Santo, que somos todos nós, os cristãos batizados. Lançamos este fogo no poço
da tibieza e ele se fez lama.
E
agora? O remédio? Vamos ao sacerdote, o Neemias da Lei do Amor. Uma boa e
sincera confissão. Depois, expor a lama de nossa pobre vida aos raios do sol do
Coração de Jesus e pedir, rogar, bradar que ele consuma tudo e acenda de novo o
fogo da caridade, o fogo sagrado sem o qual não pode viver nossa alma, templo
do Espírito Santo. O sol do Coração de Jesus fará este milagre.
9. O Remédio: O
Rosário de Nossa Senhora.
Pois já
não falamos das práticas de piedade como remédio da tibieza? Porventura o
rosário não é uma delas? Sim, mas é uma especialissima devoção e vejo nela um
remédio à parte, além dos mais.
Ao
Bem-aventurado Alano da Rocha, como antes a São Domingos, prometeu a Virgem
Santíssima muitas graças a quem rezasse o seu saltério. Entre as quinze
promessas tão conhecidas para os devotos do Rosário, estão estas: "O
Rosário, disse Nossa Senhora, fará reflorescer as virtudes, fará conseguir
misericórdia para as almas. Atrairá os corações dos homens para o céu e os
levará do amor do mundo ao amor de Deus e os elevará aos desejos das coisas
eternas".
Não é
fervor o que nestas palavras Nossa Senhora promete aos devotos do Rosário?
Recitai
bem o terço, e, se possível, o Rosário todos os dias. Recitai-o como for
possível, pedindo o fervor. Nossa Senhora vos concederá esta graça.
E a
devoção ao Rosário é um grande sinal de predestinação, diz Nossa Senhora, na
última promessa feita ao Beato Alano da Rocha. A verdadeira devoção do Rosário,
tal como ela deve ser praticada, isto é, com a meditação dos mistérios, é um
remédio eficacíssimo na cura da tibieza. E o é justamente porque tem um duplo
caráter de oração mental e vocal. O Rosário salva os pecadores e faz o milagre
de converter os tíbios.
Rezai-o
bem, com atenção e perseverança. Vereis que maravilhas ele realizará em vossas
almas, piedosos leitores. Eis aí a terapêutica espiritual a ser empregada na
gravíssima enfermidade da tibieza. Coragem, vamos aos remédios.
A
enfermidade é grave, e quase incurável, sim; mas a Divina Misericórdia pôs em
nossas mãos recursos para tratá-la. Diz-se que é incurável a tibieza. E é
verdade, mas só quando não se empregam energicamente os meios de combatê-la.
segunda-feira, 8 de janeiro de 2018
ENTRE FÁTIMA E O ABISMO
A. DANIELE
ENTRE FÁTIMA E O ABISMO
CONSIDERAÇÕES E FATOS SOBRE O SEGREDO QUE DESAFIA O
PONTIFICADO E ASSOMBRA A CRISTANDADE - AUDIOBOOK
Capa: reprodução de “A parábola dos cegos” (Bruegel),
retratando um mundo em que os cegos são guiados por outros cegos
Edições
EXCELSIOR
São Paulo
© A. Daniele
ISBN 85-85005-71-1
EDIÇÕES EXCELSIOR
Divisão da
T.A. QUEIROZ, EDITOR, LTDA.
Rua Joaquim Floriano, 733 – 9º
04534 São Paulo, SP
1988
Impresso no Brasil
“Isto não diz respeito ao meu tempo.” (João XXIII, ao
arquivar o segredo em 1959).
“A Igreja se sente interpelada por essa mensagem.” (João
Paulo II, na homilia de 13 de maio de 1982)
“Fátima é o grito lancinante de uma Mãe que vê seus
filhos à beira de um abismo insondável.”
(Cardeal Cerejeira, no Congresso Mariano de Madri,
em maio de 1948)
E o quinto anjo tocou a trombeta;
E vi uma estrela cair do céu sobre a Terra.
E foi-lhe dada a chave do poço do abismo.
E abriu o poço do abismo...
(Apocalipse 9,1)
“... nada há oculto que não se venha a descobrir,
nem segredo que não se venha a saber.”
(Nosso Senhor, em Mt., 10, 26; Mc, 4,22; Lc, 12,2)
“Removidos os limites que contêm no caminho da verdade os
homens, que pela sua natureza propensa ao mal já estão atraídos ao precipício,
podemos dizer que em verdade foi aberto o poço do abismo, do qual São João viu
sair um tal fumo que obscureceu o sol, saindo dele incontáveis gafanhotos para
devastar a terra.”
Da encíclica Mirari Vos do papa Gregório XVI, contra: “O
delírio do indiferentismo religioso ... pelo qual em qualquer profissão de fé
pode a alma conseguir a salvação eterna, conformando-se ao que é justo e
honesto”; “O erro venenosíssimo de que se deva admitir e garantir a cada um a
liberdade de opinar, a liberdade de consciência, diante da religião...”
Trata-se do conceito moderno de liberdade religiosa e direitos humanos,
sancionado pelo Concílio Vaticano II e apregoado na Igreja desde então.
Agradecimentos póstumos a
Dom Francesco Putti, Pe. Alessio U. Floridi S.J., Hamish
Fraser.
Aos preclaros amigos, pela preciosa colaboração:
Prof. José Benedito Pacheco Salles,
Prof. Hélio Drago Romano,
Prof. Daniel Brilhante de Brito,
Editor José G.M. Orsini.
edições EXCELSIOR
Outro livro para lembrar o extraordinário evento de Fátima?
Isto já seria bastante oportuno neste 71.º aniversário da
aparição cuja mensagem de 1917 profetizou a revolução russa e as guerras,
perseguições e males que se sucederiam neste século. Mas o alcance dessa
mensagem confiada à Igreja e declarada por João Paulo II “sempre mais atual e
urgente”, justamente no que tange aos perigos crescentes e aos males extremos
da hora presente, continua ignorado e secreto.
O livro focaliza essa oposição velada à mensagem de Fátima
que, embora reconhecida pela Igreja como sinal divino e confirmada em suas
profecias históricas, é marginalizada. Isto marca uma transformação eclesial
sem precedentes.
Que novo espírito pastoral pode opor-se à doutrina católica
que sempre ensinou que na origem de toda discórdia, revolução e guerra estão os
pecados dos homens e sua volúpia de poder, de posse e de prazer? Que
religiosidade autêntica nega que o antídoto dessas insanas e destruidoras
seduções é o espírito de modéstia, renúncia e sacrifício, temperados pela
devoção e amor a Deus e ao próximo? Este é o cerne da mensagem de Fátima, que
para a salvação e a paz pede orações e penitências, identificando-se com a
mensagem evangélica. Opor-se a uma é opor-se a outra. Por isso Fátima é agora
sinal de contradição, pedra de tropeço no interior da própria Igreja e, assim,
espelho de ocultas mutações religiosas. O autor demonstra que planos velados de
aggiornamenti e aberturas para o mundo transparecem do ocultamento da mensagem
que deveria deixar de ser secreta para tornar-se pública já em 1960.
Um mundo cada vez mais irreligioso e imerso em ideologias
materialistas rejeita profecias. Se eclesiásticos também as rejeitam é porque
eles estão imersos nesses mesmos erros.
As análises, críticas, denúncias e relatos abalizados
contidos nesta obra demonstram cabalmente essa poluição doutrinal: a decadência
moral e devastação litúrgica da Igreja conciliar que parece indiferente à geral
apostasia e degeneração dos povos.
Essa débâcle religiosa que atinge o próprio âmago da Igreja
imobiliza sua ação salvadora e tudo parece comprometer. A mensagem de Fátima é
a profecia destes tempos tenebrosos. Mesmo escondida deixa um lume de
esperança. Esperança no triunfo do bem, da verdade e do amor, triunfo do
materno e imaculado Coração de Maria que, acolhido pelas almas, afugentará as
trevas de morte e desespero estabelecendo por fim a paz.
Fecho histórico impossível para o espírito moderno?
A continuidade, dimensão e alcance histórico da infidelidade
terrestre e da misericórdia celeste aqui relatados, são convite bastante para
aprofundar a leitura da profecia de Fátima, chave do maior evento espiritual
desde os tempos apostólicos.
Uma palavra sobre o AUTOR
A singularidade do autor deste trabalho está no fato de não
ser, A. Daniele, nem estudioso diplomado nem escritor tarimbado, mas comandante
de aviação.
Nascido em São Paulo em 13 de maio de 1934, ao meio-dia de
um domingo de sol, como quando se deu a aparição de Fátima, estudou no
tradicional Colégio São Luís dos Jesuítas. Entre os estudos de física e a
aviação civil acabou optando, por motivos contingentes, por esta carreira que o
conduziu desde muito jovem pelos céus do Brasil e do mundo. Mas o piloto,
absorvido pelo progresso tecnológico que sua profissão exigia e os contactos
mundanos que o vagar pelo mundo propicia, foi-se distanciando das questões
espirituais de sempre.
No embate com a dura realidade da vida e da morte, já pai de
família, sentiu-se chamado de volta à Igreja da sua juventude. Nela, porém,
encontrou um porto assolado, como a vinha devastada de que falam os profetas.
Diante das dificuldades de uma aproximação segura, vislumbrou, apesar das
nuvens escuras dos enganos e dos impetuosos ventos contrários, o luminoso
espaço de Fátima.
Eis a rota que vem percorrendo desde então, perscrutando e
divulgando o conhecimento dessa inestimável mensagem de paz e salvação que tem
sido misteriosamente ocultada. Isto ele tem feito multiplicando escritos e
palestras, nova missão de seus vôos pelo mundo.
SUMÁRIO
Apresentação (dom Antônio de Castro Mayer)................................................
XI
Introdução: a profecia de Maria nos últimos tempos; a
profecia
para o nosso
século...........................................................................................
XIII
índice cronológico essencial dos eventos de
Fátima........................................ XXXVII
PARTE I
O SINAL DE CONTRADIÇÃO DO SÉCULO XX (1917-1958)
Quando o papa pediu, Nossa Senhora atendeu.............. 3
Os avisos e as promessas da mensagem de Fátima.......... 5
Bento XV e a resposta de Fátima......................... 8
O aggiornamento de Bento XV............................ 12
Os pedidos da mensagem de Fátima....................... 18
Cristo Rei no reinado de Pio XI........................ 21
A luta de Pio XI contra os erros da Rússia............. 25
“O papa fará a consagração, mas será tarde”............ 29
A devoção católica na França antiga.................... 32
Luis XIV perante a história e um pedido................ 33
“Homem de pouca fé, por que duvidaste?”................ 34
Papas e reis diante de sinais celestes................. 36
Pio XII, chamado o papa de Fátima...................... 40
A Áustria católica recorre a Fátima.................... 43
O discurso cristão sobre a história, de Bossuet........ 45
Projeto para um mundo melhor.......................... 47
“Um acordo entre Montini e Stalin”.................... 51
A tristeza de Nossa Senhora........................... 56
PARTE II
O ESPÍRITO DA IGREJA CONCILIAR (1958-1978)
As duas cidades: de Deus e dos homens (Santo Agostinho). 64
João XXIII e o segredo de Fátima........................ 64
Censura a um segredo apocalíptico?...................... 68
Segredo do papa ou mistério do pontificado?............. 70
A inspiração de João XXIII.............................. 73
O concílio inspirado ao papa João....................... 75
O modernismo antimariano do concílio.................... 78
O esquema especial de Maria Santíssima reprovado........ 80
O ato de consagração eludido............................ 82
O inferno esquecido pela pastoral conciliar............. 83
O espírito conciliar estende a mão ao comunismo......... 84
Paulo VI proclama na ONU sua liberdade religiosa........ 87
Cardeais denunciam a nova missa......................... 89
Queixa ao santo padre de 1972........................... 91
Fátima profanada........................................ 93
Carta de d. Antônio de Castro Mayer a Paulo VI (jan. 74) 98
Três estudos — Três previsões verificadas............... 102
Declaração de Monsenhor Marcel Lefebvre (nov .74)....... 106
A continuidade na autodemolição da Igreja............... 107
A morte de Paulo VI..................................... 109
O sucessor dos papas João e Paulo....................... 110
Foi João Paulo I envenenado?............................ 111
PARTE III
CUIDAI QUE NINGUÉM VOS SEDUZA (O tempo está próximo)
Carta ao papa João Paulo II (nov. 78)................... 120
Fátima, 62 anos depois: carta a Sua Santidade (maio 79). 122
O resumo apócrifo do “terceiro segredo”................. 123
Segredo de La Salette ou de Fátima?..................... 125
Fatos acerca do segredo de La Salette................... 127
Carta a Sua Santidade (nov. 80)......................... 131
João Paulo II diante do aborto.......................... 134
A resistência católica ao aborto legalizado............. 135
Treze de maio - 1917 e 1981............................. 138
João Paulo II fala do terceiro segredo.................. 140
João Paulo II responde sobre Fátima..................... 143
A visão conciliar de João Paulo II...................... 145
Foi o pedido de consagração satisfeito?................. 147
O papa tem deveres para com Fátima?..................... 151
Conversão ou reconciliação entre homens?................ 154
O sínodo conciliar de 1983.............................. 158
É possível reparar um erro sem denunciá-lo?............. 160
Novos cristãos e novas doutrinas........................ 163
Carta aberta ao papa — Manifesto episcopal (nov. 83).... 165
A consagração do dia 25 de março de 1984................ 168
Quanta vergonha! ....................................... 171
Nova etapa ecumênica irreversível....................... 174
As perseguições à Igreja e ao santo padre............... 176
Conservar sempre o “dogma da fé”........................ 178
A infalibilidade na fé lembrada por Gustavo Corção...... 182
O cardeal Ratzinger fala sobre o terceiro segredo....... 185
Não há segredo que não seja descoberto.................. 188
O impasse de tempos finais.............................. 191
O sínodo de 1985 recicla o concílio..................... 194
Carta dos dois bispos ao papa para o sínodo............. 198
A ruptura abissal de Assis.............................. 201
“Por fim, o Meu Imaculado Coração triunfará”............ 201
Obras citadas........................................... 213
APRESENTAÇÃO
Pio XII foi chamado papa de Fátima porque foi sagrado bispo
precisamente no dia 13 de maio de 1917, data em que a Virgem Santíssima visitou
seus filhos da Terra, aparecendo a três pastorzinhos em Fátima, Portugal, e
consignando-lhes salutar mensagem de paz.
O título atribuído a Pio XII está a indicar que Fátima e sua
mensagem não são um fato particular, que visaria apenas os três videntes da
Cova da Iria. Fátima alcança todos os homens. Pertence à história da Igreja. É
elemento que interessa à salvação de todos os homens.
Não é uma revelação pública. A revelação pública, com
efeito, impõe o ato de fé, sob pena de pecado grave; e terminou com a morte do
último apóstolo.
No entanto, com o encerramento da revelação pública, não
ficaram os fiéis privados da graça de revelações que os auxiliassem a viver
sempre mais fielmente como cristãos e a melhor cuidarem de sua salvação eterna.
Tais revelações são ditas privadas, embora sujeitas ao controle da Santa
Igreja.
Entre elas há muitas que interessam, de modo geral, a toda a
Igreja, a todos os fiéis. Exemplo palpitante são as revelações de Jesus Cristo
a Santa Margarida Maria Alacoque, às quais está vinculada a difusão, altamente
santificante, da devoção ao Sagrado Coração de Jesus.
Revelações como esta a Santa Margarida Maria não são
públicas no sentido clássico. Mas também não podem ser chamadas meramente
privadas, como se colimassem o bem tão-só da pessoa, ou das pessoas que a
receberam. Elas têm caráter universal, como atesta o exemplo citado das
revelações a Santa Margaria Maria.
Entre estas estão, sem dúvida, as aparições e mensagem de
Fátima. Poderíamos, mesmo, dizer que a mensagem de Fátima é a revelação ou
profecia universal da nossa época, para indicar a amplitude de seu alcance.
Marginalizando Fátima, afasta-se o fator da paz legado aos filhos pela
Medianeira de todas as graças.
Eis que, sobre ela, há toda uma literatura e não poucos
documentos papais. Não é só. Pois, à medida que correm os anos e se agravam no
mundo as desordens de toda espécie, o silêncio, que acoberta a revelação do
Terceiro Segredo confiado aos três videntes de Fátima, e que, de si, já deveria
ter sido rompido, sublinha sempre mais o alcance e valor inestimável dessa
graça que, com as aparições e mensagem de Fátima, a misericórdia de Deus concedeu
à Igreja e aos homens.
Com o fim de auxiliar a apreciação dos eventos de Fátima, o
sr. Daniele, apreciado colaborador de revistas altamente qualificadas, torna
públicos os seus estudos sobre as vicissitudes que vêm acompanhando 1 a
revelação e o significado do último segredo de Fátima. Trabalho sério,
altamente recomendável por si mesmo e mais ainda pelo assunto que versa.
+ ANTÔNIO DE CASTRO MAYER BISPO
INTRODUÇÃO
A PROFECIA DE MARIA NOS ÚLTIMOS TEMPOS
Em todas as épocas e lugares os homens receberam sinais
sobrenaturais para serem guiados pelos labirintos da vida. A Sagrada Escritura
é a história destes sinais que foram dados a todos, aos judeus como aos
ninivitas, aos reis como aos escravos, numa seqüência secular que, de monte em
monte e de profeta em profeta, conduziu até o sinal supremo: o Verbo Encarnado.
O sinal de Belém foi visto pelos sábios reis de países
remotos como pelos pastores simplórios das cercanias. Os sinais do Céu são
dados para serem entendidos e guiar todo homem de boa vontade. Se antes do
Advento serviram para anunciar o Salvador, depois continuaram para confirmá-Lo
nos séculos como o Senhor da História. Para este testemunho perene Jesus Cristo
instituiu Sua Igreja, a fim que os falsos sinais e profetas do mundo não prevalecessem.
Deter-se, pois, a perscrutar os sinais dos tempos em que
vivemos não é passatempo ocioso nem curiosidade gratuita, mas cuidado
inalienável para a vida espiritural e social de cada um. É vigilância sobre o
que pode ameaçar nosso tempo terreno, momento em que fica decidido nosso
destino eterno. “Sabeis distinguir o aspecto do céu e não reconheceis os sinais
dos tempos?” (Mt. 16,4)
Devemos, pois, perscrutar esses sinais, mas como
reconhecê-los?
Antes de tudo porque vêm na linguagem do Evangelho, não do
mundo. Depois, porque são um claro reforço para a nossa débil fé, esperança e
caridade, não para nossas ilusões e emoções mundanas. Mas sobretudo porque são
dirigidos à Igreja que os reconhece, justamente pela oposição às tramóias
terrenas e, portanto, pelo reflexo dos desígnios divinos para extirpar estas.
São sinais de contradição que antepõem o sobrenatural ao
naturalismo mundano, a palavra divina aos projetos humanos, a intervenção da
Providência às táticas e compromissos dos potentes. Aqui veremos como tudo isto
resplende no grande sinal de Fátima.
Um católico não pode ter outra referência para entender um
sinal sobrenatural senão a Igreja e o papa. Deus, que dá os sinais, antes deu
Sua Palavra e instituiu Sua Igreja. Tudo foi dado para a fé. Esta é a
referência de tudo que vem de Deus, e para a qual existem também a Igreja e o
papa.
Um sinal extraordinário de fé justifica-se para confirmá-la
nos fiéis, ou reforçá-la nos tíbios, solicitá-la nos incrédulos, ou, então,
interpelar sobre a fé os seus guardiães negligentes. Assim como é certo que um
sinal autêntico do Céu é submetido à Igreja e ao seu chefe terreno, também é
certo que um sinal de fé tem por objetivo amparar a fé dos homens e também do
papa.
Essa graça a Igreja conheceu no extraordinário evento de
Fátima. Nas aparições de Nossa Senhora a três pastorzinhos em 1917, Deus deu
aos homens e às sociedades um claro e eficaz sinal da Sua Vontade e desígnios
de graça e misericórdia para o nosso século convulso. Também os fatos
transcorridos desde então e profetizados na mensagem registrada pela pastora
Lúcia, confirmam a origem deste evento portentoso e as razões por que foi
necessário: a crise da Fé na Igreja.
A Sabedoria dá sinais proporcionais à gravidade do perigo.
Para aprofundar estas razões seguirei neste trabalho as
seguintes considerações lógicas inerentes ao próprio evento e relativa
mensagem, que se confirmam e completam como um sinal único:
— O evento apresentou-se, desde o início, como um grande
aviso cujos termos da mensagem dada aos pastorzinhos eram válidos desde 1917,
salvo a parte reservada para ser conhecida em 1960. Os fatos históricos
confirmaram isto, no que tange aos “erros espalhados pela Rússia” e suas
implicações fora e dentro da Igreja.
— Pela natureza mesma da intervenção sobrenatural e pelas
palavras da mensagem, fica claro que atender o pedido-ajuda de Nossa Senhora de
Fátima não só é necessário como consiste na única saída para os problemas de
nossa época: “Se atenderem a Meus pedidos a Rússia se converterá e terão paz;
se não espalhará seus erros pelo mundo, promovendo guerras e perseguições à
Igreja...” Não há alternativa.
— Palavras tão graves demandavam para a fé tremulante dos
homens atuais um aval proporcional à entidade dos perigos profetizados. Este
sinal no sinal foi previamente anunciado desde a terceira aparição e
seguidamente até o majestoso, mas também terrificante, Milagre do Sol, de 13 de
outubro de 1917, “para que todos pudessem acreditar”.
Em síntese: em 1917 a Igreja militante recebeu um sinal
visível de dimensões incomparáveis e únicas na História, para ser avisada do
grande perigo que pendia sobre os povos da Terra e dispor dos meios eficazes
para enfrentá-lo com a força da fé. Não há dificuldade em identificar o perigo
objetivo na revolução bolchevique russa, pela data, 1917, em que se impôs esse
programa de ateísmo militante. Para enfrentar esse mal, convertendo a Rússia e
salvando muitas almas, não eram propostos meios impossíveis ou insuportáveis,
mas devoções normais para a Igreja. Todavia, o evento de Fátima foi hostilizado
e sua mensagem censurada, desprezada e reduzida, até hoje. Por quê? Esse fato
não pode revelar uma situação de declínio da fé na Igreja? Não pode ser um
aviso implícito no aviso explícito? Não ensinou Jesus que sem Ele nada podemos?
E que quem não recolhe com Ele, dispersa? A Igreja reconheceu a autenticidade
do sinal que representa claramente os desígnios de Deus em favor dos homens.
Por que não foram atendidos?
Às considerações lógicas inerentes ao evento de Fátima,
acima expostas, será preciso acrescentar o fato implícito das graves e
crescentes dificuldades na fé da Igreja, a espantosa crise da Igreja no século
XX.
Neste trabalho isto será visto cronologicamente conforme as
datas que, representando a Vontade divina, não podem ser casuais. Deve-se,
pois, começar pela causa próxima das aparições de 1917, o pedido de intercessão
feito universalmente pelo papa Bento XV à Rainha da Paz, cuja resposta não foi
reconhecida na época e permanece esquecida.
Segue a desconfiança misturada à indiferença em procurar
reconhecer um sinal de autenticidade previsto para 13 de outubro de 1917, já
desde a terceira aparição, de 13 de julho: “farei um milagre que todos hão de
ver para acreditar”. Os fiéis e especialmente os padres podem não aceitar
sinais sobrenaturais não comprovados, mas recusar as provas do que possa vir de
Deus é mau indício.
O interesse pelo conteúdo da mensagem contida nas aparições
que culminaram com o “milagre do sol” é mais que natural para quem tem fé. A
prudência na aceitação desta pela Igreja é certamente necessária, mas ordenada
ao reconhecimento da verdade, não ao seu ocultamente
O aval histórico ao conteúdo da mensagem foi dado nestes
quase 70 anos de guerras, revoluções, fornes e perseguições à Igreja e ao santo
padre, conseqüências de erros espalhados pela Rússia, como já dizia a mensagem
em 1917. O aval implícito do declínio e desvio da fé dentro da Igreja é o que
acho urgente considerar.
Na verdade, o fato de que desde 1917 na Igreja militante se
tenha evitado reconhecer e atender devidamente um sinal da divina Vontade é,
mais que um indício da moderna crise de fé, uma razão fundamental para explicar
por que o sinal foi dado e por que não foi bem aceito. Mais: para explicar que
passou a predominar na Igreja uma vontade diversa representada pelo “espírito
do Concílio”, que não pode tolerar que se anunciem crises quando se proclamam
novos Pentecostes.
Hoje, pretende-se negar na Igreja que o segredo fale da sua
crise. Essa negação de uma evidência já é uma assustadora confirmação da crise,
senão pela incapacidade de reconhecer a realidade atual da Igreja, pelo descaso
em defendê-la, ou pior, pela intenção de mudá-la. Nisto o evento de Fátima
coloca-se como uma “pedra de tropeço”.
Para considerar essa crise de maneira sintética, aqui
dirigiremos a atenção para quem ocupa a cátedra de São Pedro. Veremos as
atitudes, as palavras e as ações do papa, de 1917 até hoje, em relação a
Fátima, que é um sinal de referência oferecido pelo Céu para iluminar os
homens, como foi reconhecido pelos próprios papas.
Vivemos hoje impregnados de naturalismo e por isto,
juntamente com a visão da fé, perde-se o senso cristão da História e os
católicos chegam a esquecer que sua religião é a história mesma da intervenção
de Deus no mundo pela encarnação do Seu Verbo. Esquecer este fato central da
História pode afetar também a vida pessoal e social, que se esvazia de sentido.
E isto especialmente na vida da Igreja.
Se for obliterada na Igreja a prioridade do reino de Deus e
sua justiça e abalada a idéia de Cristo, Rei da História, que detém todo o
poder no Céu e na Terra (Mt. 28,18), tudo na Igreja perde sentido a começar da
suprema reverência ao papa, Seu vigário, e aos bispos, Seus apóstolos. A
majestade que reveste a cátedra papal não representa decerto um primado
fraternal, uma cidadania honorária, mas a realeza de Cristo, Senhor da
História.
O evento de Fátima veio iluminar o sentido cristão da
História. Como explica dom Guéranger: “O destino humano é sobrenatural; disto
se deduz que uma história que não se inspira nas fontes sobrenaturais não é
história verídica, por mais cristãs que possam ser as convicções de quem a
escreve.”
Pela mensagem de Fátima fomos lembrados de que as múltiplas
guerras do mundo são conseqüência de uma causa essencial: a rebelião e as
ofensas à lei de Deus. Eis que a única verdadeira guerra é feita pelos homens e
pelos povos contra Cristo e Sua Igreja. Sendo Ele a via, a verdade e a vida, e
Sua Igreja a vitória sobre o mundo, também a única verdadeira derrota dos
homens e povos consiste em perdê-Lo. Que desgraça, se os próprios cristãos se
esquecerem disto!
Infelizmente, estas verdades tornaram-se hoje
incompreensíveis porque foram obscurecidas na própria Igreja. O comportamento
de seus chefes diante do sinal de Fátima está a demonstrá-lo. Este, lembrando o
ensinamento de sempre, os interpela tacitamente. O reino de Cristo não é
imposto, mas deve ser invocado antes de todos pelo papa. Nele todas as vitórias
são possíveis. Sem ele, domina o que se lhe opõe, porque visto que as idéias
regem a vida social, o recuo da idéia cristã permite o avanço de todos os
erros.
Vejamos então as contraposições de nossa época, para
localizarmos melhor a de nossos dias. Ao sobrenatural opôs-se o naturalismo do
mundo com os seus racionalismos, materialismos e, dentro da Igreja, modernismos
e progressismos. Estes levam às indiferenças e compromissos que se opõem à
Providência, privilegiando projetos humanos em detrimento dos sinais da Vontade
divina de que é intérprete a Igreja,
Disto deduzimos que a contraposição mais insidiosa e nefasta
estaria dentro da própria Igreja, quando um modernismo ativo imporia um projeto
de aspecto eclesial aberto a todas as indiferenças religiosas, ecumenismos
doutrinais e compromissos libertários. Isto aconteceu no Concílio Vaticano II
que, como veremos, opõe-se — não, certamente, de modo frontal, mas
entranhadamente — a Fátima. Isto eu irei mostrar.
O cardeal patriarca de Lisboa, Antônio Ribeiro, na Assembléia
do Episcopado português realizado em Fátima, em maio de 1972, disse: “Pelos
silêncios, negações, pelas hostilidades levadas a cabo contra Fátima, a nossa
peregrinação de hoje deseja ser também um ato de desagravo.” Nessa mesma
homília para apontar a razão do “furor anti-mariano” que seguiu o Concílio
Vaticano II, é citada a frase de K. Rahner: “As ideologias não precisam de
mãe”.
Ora, como toda verdade cristã é sinal de contradição com o
mundo, diante da hostilidade à mensagem de Fátima e dos aplausos festivos ao
Vaticano II por parte dos inimigos declarados da Igreja, podemos aquilatar o
alcance dessa contraposição. Assim foi com Jesus. Poderia ser Nossa Senhora
melhor recebida, hoje, pelos grandes da Terra do que o foi seu Filho na Judéia pelos
sumos sacerdotes?
A chave de leitura do evento de Fátima está sempre na
Igreja, mas como depois de tanto tempo ainda não foi revelada toda a sua
mensagem nem atendidos seus pedidos, para o bem das almas e da Igreja, é
necessário ver a razão disto, que não é devida à oposição externa. Diante disto
não é possível continuar mencionando vagamente Fátima sem enfrentar as
conclusões a que inevitavelmente leva.
Afinal, por que foi necessário um sinal extraordinário para
lembrar o que deveria ser ensinamento ordinário da Igreja sobre a paz? Estava
este esquecido ou em vias de ser alterado pelos pastores? É claro que assim
sendo a hostilidade a Fátima é a mesma que existe de modo velado contra a
própria Doutrina. Esta é bastante clara para sustentar-se por si mesma na mente
de qualquer fiel. Igualmente, a mensagem de Fátima, enquanto a repete. Eis,
então, que a oposição a esta vai refletir o lastimável estado de fé de muitos
pastores.
Por exemplo: contestar a mensagem dada depois da visão do
inferno pelos pastorzinhos. Como o castigo eterno é uma verdade doutrinal, o
problema do contestador é antes descrer no Inferno do que em Fátima.
Para aduzir outro exemplo: a mensagem de 1917, vésperas da
revolução soviética, fala dos erros que a Rússia espalhará pelo mundo, isto é,
o comunismo e o ateísmo militantes. Este enorme perigo já fora advertido pela
Igreja antes de 17. Portanto, quando emergiram, virulentos, os hierarcas da
Igreja poderiam ignorar a mensagem de Fátima, mas não o imenso perigo. Sobre
este deveriam pronunciar-se de modo veemente mas ordinário, como em Fátima
aconteceu de modo extraordinário para lembrá-los. O sinal era uma ajuda para
que operassem na defesa dos valores do cristianismo, como era dever de seus
cargos.
A vigilância dos eclesiásticos sobre os perigos do mundo e
em defesa de verdades doutrinais estava abalada nos contestadores de Fátima.
Não lhes valeu nem mesmo uma mensagem celeste, da qual se julgaram mais juizes
que beneficiários. A situação da Igreja dirigida por essa mentalidade só podia
degenerar, permanecendo a mensagem como testemunho de uma atitude de abdicação,
senão apostasia.
A Igreja sempre ensinou que é o espiritual que determina o
material, e pôs isto em prática na oração impetrante das rogações públicas, das
peregrinações, dos rosários e principalmente das santas missas. Mas, seria
temerário dizer que hoje bem poucos crêem na eficácia desses atos de fé? E em
1917? Quantos prelados e sacerdotes acreditavam ao pé da letra que Maria
Santíssima poderia interceder diretamente pela paz do mundo? Que as aparições
de Fátima pudessem ser uma resposta ao apelo de Bento XV?
Parece lógico que se não acreditavam nessa possibilidade
também não acreditariam nas promessas da mensagem, isto é, que se a Igreja
adotasse a devoção pedida ao Imaculado Coração de Maria e a Rússia lhe fosse
consagrada pelo papa junto a todos os bispos, esta seria convertida e o mundo
teria paz. Menos ainda poderiam acreditar, então, que se isto não fosse feito
adviriam guerras, fornes, perseguições.
Todavia, diante da magnitude do benefício prometido pelo
atendimento desse pedido, diante das promessas de paz neste mundo e salvação de
muitas almas pelo cumprimento de algo que não comportava riscos ou sacrifícios
de cruzadas militares ou flagelações sangrentas, diante da disparidade enorme
entre o dar e o haver, por que não fazê-lo? Bastaria um pouco de fé no poder de
intervenção do Onipotente neste mundo para, no mínimo, tentar obter esses
benefícios, senão a glória de Deus, como um ato politicamente pacífico e conforme
as devoções e consagrações que a Igreja sempre promoveu.
Consideremos agora as ações dos papas desde 1917 a esse
respeito. Bento XV pediu a intervenção de Maria Santíssima pela paz universal.
Não cogitou, porém, que em Fátima veio a resposta; Pio XI, citado na mensagem,
apoiou o culto de Fátima e instituiu a festa de Cristo Rei, mas não fez a
consagração pedida; Pio XII, chamado o papa de Fátima, atendeu pessoalmente à
solicitação, mas sem ordená-la aos bispos. Cabe concluir que a esperança posta
no cumprimento da promessa de intervenção do Céu era insuficiente. Como seria
em seguida?
João XXIII mandou arquivar a parte ainda secreta da mensagem
e Paulo VI, embora indo a Fátima em 1967, evitou mencioná-la. Na véspera da
viagem leu a exortação apostólica Signum Magnum, com a qual reconhecia em Nossa
Senhora a mulher vestida de sol do Apocalipse, mas deu seu pedido por atendido.
Não escondeu que punha sua última esperança de paz na ONU. Foi o papa que
adaptou a Santa Missa aos protestantes, transferiu a liberdade da Igreja aos
cidadãos e a tiara, símbolo da soberania de Cristo Rei, aos pobres. Seus
sucessores houveram por bem continuá-lo e ao seu Concílio.
Ficava assim instaurada uma Igreja Conciliar onde o projeto
de paz passou a depender de iniciativas humanas sem vínculos espirituais. Além
do quê, seria a liberdade de consciência e de religião a constituir o
fundamento da dignidade dos homens, e como desta destoa prostrar-se contrito
diante de Deus para elevar-lhe súplicas de misericórdia, a oração transformou-se
em simples e vulgar diálogo. Aos homens livres competiria mais julgar que
acatar mistérios.
Essa liberdade de “julgar” o que deve ser verdade é a
premissa da grande apostasia, desde o início insuflada pelo iníquo sedutor:
“Sereis como deuses, conhecendo o bem e o mal” (Gn. 3,5). São Paulo (Ts.II, 2)
fala desse mistério de iniqüidade presente também na Igreja desde o início, mas
retido até que alguém com o poder das chaves lhe franqueasse a saída do abismo
de onde se erguerá para impor na Igreja o culto e o domínio do homem.
Podemos ainda considerar essa liberdade quanto à verdade uma
insídia remota e hermética nos nossos dias? É claro que pôr em dúvida a verdade
única e os sinais da vontade de Deus é manifestação de apostasia e adesão a
poder que, “com sinais e prodígios enganosos, com todas as seduções da
iniqüidade para aqueles que se perdem porque não abraçaram o amor da verdade
para serem salvos. Por isso Deus lhes enviará o artifício do erro de tal modo
que creiam na mentira” (Ts. II, 9-10). Qual artifício do erro maior que o culto
do homem, o homem que se faz deus na Igreja de Deus que se fez Homem?
Jesus deu-nos o sinal do momento culminante dessa
iniqüidade: “Quando pois virdes a abominação da desolação, que foi predita pelo
profeta Daniel, posta no lugar santo...” (Mt. 24,15). Daniel fala do Templo
onde cessou o sacrifício e a oferta (9,27), do santuário da fortaleza onde
cessou o sacrifício perpétuo (11,31).
É sempre à Igreja do Sacrifício que somos chamados a dirigir
os olhos. Esta é a Nova Jerusalém, o lugar santo, o templo e o santuário, a
fortaleza da fé. Dela vêm os chamados à vigilância e à oração, mas nela veremos
o assédio, a invasão, a abominação da desolação no altar, o iníquo que “se
sentará no Templo de Deus, apresentando-se como se fosse Deus” (Ts. II 2,4).
Naturalmente, quando o engano atingir tal ponto tudo será
possível e os católicos seduzidos defenderão e respeitarão tal invasor. A quem
apelar, então?
Certamente Deus não abandonará Sua Igreja nesse momento de
paixão e apostasia. O mesmo profeta Daniel fala da “pedrinha que se desprende
dum monte sem intervenção humana”, que derrubará o colosso. Para o nosso tempo
temos também a profecia de São Luís Maria Grignion de Montfort, que mostraremos
em seguida, para melhor entendermos qual intervenção sobrenatural devemos
esperar.
Estamos diante de fatos abissais. Mas animados pela fé com
que pastorzinhos derrubaram gigantes, guiaram reis e advertiram papas, devemos
perscrutar desassombradamente os sinais de nossos tempos: presenciamos a
tentativa de transformação religiosa pela abertura da Igreja às liberdades do
mundo, que constituem repúdio à verdade divina. Procura-se adaptar as
escrituras, os catecismos e a liturgia, além do mesmo magistério eclesiástico,
para uso de uma revolução conciliar dessacralizante e inimiga da tradição.
Quanto ao sacrifício perpétuo, se não é certo dizer que cessou em muitas
missas, certamente foi reduzido e alterado para agradar aos protestantes e ao
mundo.
Eis o colosso revolucionário que ocupou a Igreja de Deus e
pontifica o erro por toda a Terra, seduzindo com uma união religiosa pela felicidade
e pela paz que é ofensiva à religião única revelada por Deus e lembrada pelo
portento sobrenatural de Fátima. Este colocou a pedrinha que destruirá o
leviatã infernal para glória de Deus e triunfo de Maria, Mãe da Misericórdia
que não deixaria de avisar seus filhos na abertura do abismo de perdição.
Aqui serão colocados os fatos relativos ao evento de Fátima
em ordem cronológica e entremeados por textos clássicos que lembram a visão
cristã da História e a transcendental oposição entre a Cidade dos Homens e a
Cidade de Deus, entre os projetos humanos e os desígnios divinos. Se
soubéssemos ler o apocalipse imbuídos de seu espírito, ali encontraríamos tudo
o que deve acontecer, à luz dos fatos já acontecidos. Mas precisamos de ajuda
para fazê-lo.
Para melhor reconhecer então a Profecia para o nosso tempo
vamos recorrer a São Luís Maria Grignion de Montfort, que viveu entre os
séculos XVII e XVIII e escreveu obras proféticas como o Tratado da verdadeira
devoção à Maria e Carta aos amigos da Cruz. Com estas, e sua pregação e
exemplo, preparou os católicos franceses para enfrentarem a onda de libertações
mundanas que culminariam com a Revolução Francesa, antepondo-lhe justamente a
escravidão de amor mariano e a submissão à Cruz, única libertação na vontade de
Deus.
Essa visão profética, porém, era sinal de escândalo e
contradição na França do Rei Sol, que mandou demolir em 1710 o grande Calvário
que o Santo havia construído com os camponeses em Pontchâteau. Do mesmo modo
suas obras escritas e seus discípulos foram durante o século XVIII alvo dos
ataques jansenistas. O precioso manuscrito do Tratado, escondido para escapar à
Revolução, só foi encontrado em 1832 num caixote de livros velhos. Mas nessa
ocasião o autógrafo mandado a Roma a fim de ser examinado no processo de
canonização, foi declarado isento de erros (Decreto de 12 de maio de 1853).
Realizara-se assim uma predição escrita em sua mesma obra:
“Vejo no futuro feras frementes precipitarem-se furiosas para dilacerar com
seus dentes diabólicos este pequeno manuscrito e aquele de quem o Espírito
Santo se serviu para escrevê-lo, ou ao menos para que fique envolto nas trevas
e no silêncio de uma arca a fim de desaparecer. Atacarão e perseguirão até
aqueles e aquelas que o lerem e o puserem em prática. Mas não importa! Tanto
melhor! Esta visão me encoraja e me dá a esperança de um grande sucesso, isto
é, um esquadrão de bravos e destemidos soldados de Jesus e de Maria, de ambos
os sexos, para combater o mundo, o demônio e a natureza corrompida nos tempos
perigosos que virão e como ainda não houve igual. “Quipotest capere, capiat”
(Mt. 24,15 e 19,12).
O famoso teólogo ascético inglês, padre Faber, apresentando
essa obra na metade do século passado, diz que poucos homens no século XVIII
traziam tão fortemente gravados em si os sinais de homem da Providência, como
esse novo Elias, missionário do Espírito Santo e de Maria Santíssima, novo São
Simão Salus, São Filipe Neri, São Vicente Ferrer, precursores do juízo final e
portadores de uma mensagem divina que pede maior conhecimento, honra e amor
ardente à Virgem Maria, intimamente ligada ao segundo Advento de Seu divino
Filho.
São Luís Maria foi de fato um profeta de Maria Precursora e
Mãe. Somente mais de um século depois de sua morte (em 1716) começaram as grandes
aparições de Nossa Senhora, que se multiplicaram como luminosos sinais dos
tempos para convocar os homens à oração e à penitência preparando-os para
enfrentar os anos da grande apostasia que precederá o dia do Senhor. Nos livros
do Santo já se falava dessa ação poderosa da Mãe SANTÍSSIMA para converter os
filhos e fortificar os fiéis, diante das insídias e seduções dos tempos finais.
Vejamos o Tratado:
— Foi por intermédio da Santíssima Virgem Maria que Jesus
Cristo veio ao mundo, e é também por meio dela que Ele reinará no mundo.
— Se Moisés pela força de sua oração conseguiu sustar a
cólera de Deus contra os israelitas, e de tal modo que o Altíssimo e
infinitamente misericordioso Senhor, não podendo resistir-lhe, lhe disse que o
deixasse encolerizar-se e punir aquele povo rebelde, que deveremos pensar e com
muito mais razão da prece da humilde Maria, a digna Mãe de Deus que tem mais
poder junto da Majestade divina que as preces e intercessões de todos os anjos
e santos do Céu e da Terra? (Santo Agostinho, serm. 208 in Assumpt. n. 12).
— O sinal mais infalível e indubitável para distinguir um
herege, um cismático, um réprobo, de um predestinado, é que o herege e o
réprobo ostentam o desprezo e indiferença pela Santíssima Virgem e buscam, por
suas palavras e exemplos, abertamente ou às escondidas, às vezes sob belos
pretextos, diminuir e amesquinhar o culto e o amor a Maria. Ah! Não foi nestes
réprobos que Deus Pai disse a Maria que fizesse Sua Morada, pois são filhos de
Esaú.
— A Maria somente Deus confiou as chaves dos celeiros do
divino amor, e o poder de entrar nas vias mais sublimes e mais secretas da
perfeição para nestes caminhos fazer entrar os outros.
— “Ser vosso devoto, ó Virgem Santíssima, é uma arma de
salvação que Deus dá àqueles que quer salvar.” (São João Damasceno)
— Por meio de Maria começou a salvação do mundo e é por
Maria que deve ser consumada. Na primeira vinda de Jesus Cristo, Maria quase
não apareceu, para que os homens, ainda insuficientemente instruídos e
esclarecidos sobre a pessoa de Seu Filho, não se lhe apegassem demais e
grosseiramente, afastando-se assim da verdade. E isto teria acontecido devido
aos encantos admiráveis com que o próprio Deus lhe havia ornado a aparência
exterior. São Dionísio o Areopagita o confirma numa página que nos deixou e em
que diz que, quando a viu, a teria tomado por uma divindade, tal o encanto que
emanava da beleza incomparável de sua pessoa, se a fé em que estava bem confirmado
não lhe ensinasse o contrário. Mas, na segunda vinda de Jesus Cristo, Maria
deverá ser conhecida e revelada pelo Espírito Santo, a fim de que por Ela seja
Jesus Cristo conhecido, amado e servido, pois já não subsistem razões que
levaram o Espírito Santo a ocultar sua esposa durante a vida e a revelá-la só
depois da pregação do Evangelho.
— Deus quer, portanto, nestes últimos tempos, revelar-nos e
manifestar Maria, a obra-prima de suas mãos, entre outras razões porque, visto
ser ela a aurora que precede e anuncia o sol da justiça, Jesus Cristo, deve ser
conhecida e notada para que Jesus Cristo o seja.
— Maria gerou com o Espírito Santo a maior maravilha que
existiu e existirá — o Homem-Deus, e ela realizará, por conseguinte, as coisas
mais admiráveis que hão de existir nos últimos tempos. A formação e educação
dos grandes santos que aparecerão no fim do mundo lhe está reservada, pois só
esta Virgem singular e milagrosa pode produzir, em união com o Espírito Santo,
as obras singulares e extraordinárias.
Maria deve ser, enfim, terrível para o Demônio e seus
sequazes como um exército em linha de batalha, principalmente nesses últimos
tempos, pois o Demônio, bem sabendo que lhe resta pouco tempo para perder as
almas, redobra cada dia seus esforços e ataques. Suscitará em breve
perseguições cruéis e terríveis emboscadas aos servidores fiéis e aos
verdadeiros filhos de Maria, que mais trabalho lhe dão para vencer.
— É principalmente a estas últimas e cruéis perseguições do
Demônio, que se multiplicarão todos os dias até ao reino do anticristo, que se
refere aquela primeira e célebre predição e maldição que Deus lançou contra a
serpente no Paraíso terrestre. Vem a propósito explicá-la aqui, para glória da
Santíssima Virgem, salvação de seus filhos e confusão do Demônio.
— Mas o poder de Maria sobre todos os demônios há de
patentear-se com mais intensidade nos últimos tempos, quando Satanás começar a
armar insídias ao Seu calcanhar, isto é, aos Seus humildes servos, aos Seus
pobres filhos que ela suscitará para combater o príncipe das trevas. Eles serão
pequenos e pobres aos olhos do mundo e rebaixados diante de todos como o
calcanhar, calcados e perseguidos como o calcanhar em comparação com outras
partes do corpo. Mas em troca eles serão ricos em graças de Deus, graças que
Maria lhes distribuirá abundantemente. Serão grandes e notáveis em santidade
diante de Deus, superiores a toda criatura, por seu zelo ativo, e tão
fortemente amparados pelo poder divino que, com a humildade de seu calcanhar e
em união com Maria, esmagarão a cabeça do Demônio e promoverão o triunfo de
Jesus Cristo. — Serão os apóstolos dos últimos tempos.
— Quando meu amável Jesus vier em Sua glória uma segunda vez
à terra (como é certo), o caminho que escolherá será Maria Santíssima, o mesmo
pelo qual Ele veio com segurança e perfeitamente na primeira vez. A diferença entre
a primeira e segunda vinda é que a primeira foi secreta e oculta, e a segunda será
gloriosa e retumbante.
— Maria sozinha esmagou e exterminou as heresias como diz a
Igreja com o Espírito Santo que a conduz.
Guiados por São Luis Maria Grignion de Montfort vemos que a
força da Igreja está em glorificar a Deus conforme Sua divina vontade, e esta
passa pelo louvor, honra e amor a Maria Santíssima De Maria nunquam satis, já
era dito antes de suas extraordinárias aparições. Como deve ser então depois
que a Medianeira de todas as graças visitou seus pobres filhos na Terra?
A profecia para o nosso século
A história humana é a história de uma rebelião que cresceu e
multiplicou-se. Este constante conflito, entre a volúvel concupiscência dos
homens e a imutável lei de Deus que trazemos em nosso íntimo, aumentou no
decorrer da história com o poder humano. As rebeliões somaram-se,
fortificaram-se e aliaram-se, gerando guerras e revoluções até formar o leviatã
moderno: a revolução por excelência. Ela está para a humanidade assim como a
rebelião está para cada homem.
Há, portanto, uma revolução original que condiciona toda a
história e cujas dimensões devemos sempre medir para conhecermos a situação do
mundo em que vivemos. Sabemos que seu produto final será o devastador
anticristo, o mais poderoso inimigo da Igreja de Deus e de Seus filhos.
Para reconhecer esse mal crescente, em todas as épocas e
lugares, os homens receberam sinais sobrenaturais a fim de serem guiados nos
labirintos da vida e da história. O Sinal supremo veio pelo Verbo Encarnado que
nos legou para sempre a Revelação salvadora e instituiu a Igreja para ensiná-la
e preservá-la, ministrando os sacramentos; sinais sensíveis e eficientes da
graça.
Se antes do Advento os sinais sobrenaturais de que a Sagrada
Escritura relata a história, anunciam o Salvador, depois, continuam para
confirmá-lo nos séculos como o Senhor da história.
Os sinais divinos são dados de modo extraordinário, através
de santos, de milagres, de mensagens ou de aparições, reconhecidos pela Igreja
porque vêm na linguagem do Evangelho, não do mundo, para reforçar a fé, a
esperança e a caridade católicas, não as ilusões e emoções humanas. Por estes
sinais poderemos conhecer o estado atual da rebelião humana, a fim de que os
falsos sinais e profetas do mundo não prevaleçam.
“Sabeis distinguir o aspecto do céu e não reconheceis os
sinais dos tempos?” (Mt. 16,4) Devemos, pois, perscrutar com atenção os sinais
dos tempos em que vivemos. Isto não é passatempo ocioso nem curiosidade
gratuita, mas cuidado inalienável para a vida espiritual e social de cada um. É
vigilância sobre o que pode ameaçar o nosso tempo terreno, momento em que fica
decidido nosso destino eterno.
Atenção, porém: os sinais divinos são sinais de contradição
para o homem rebelde, antepõem o sobrenatural ao naturalismo mundano, a palavra
divina aos projetos humanos, a intervenção da Providência às táticas e
compromissos dos potentes. Aqui veremos como tudo isto resplende no grande
sinal de Fátima, que foi por essa razão hostilizado como Jesus pelos fariseus.
Um sinal extraordinário de fé justifica-se para confirmá-la
nos fiéis, ou reforçá-la nos tíbios, solicitá-la nos incrédulos, ou então
interpelar sobre a fé seus guardiães negligentes. Assim como é certo que um
católico não pode ter outra referência para entender um sinal autêntico do Céu
senão a Igreja e o papa, também é certo que um sinal de fé tem por objetivo
amparar a fé de todos, sem exclusão do papa. Deus, que dá os sinais, antes deu
Sua palavra e instituiu Sua Igreja para a fé. Esta é a referência de tudo que
vem de Deus: a fé íntegra e pura, para a qual existem a Igreja e o papa.
Consideremos então o grande sinal de Fátima, que trouxe a
profecia para o nosso tempo com o selo sem precedentes em grandiosidade da
vontade de Deus que foi o milagre do sol do dia 13 de outubro de 1917,
ponderando que a sabedoria divina dá sinais proporcionais à gravidade do perigo
sobre o qual quer avisar os homens. É o convite a receber este aviso, que pela
sua importância indica um momento crucial da história, reconhecendo a natureza
e entidade dos males que convergem desastrosamente neste século. E este
reconhecimento não depende, por sua vez, de um senso cristão da história, e da
fé católica que é justamente o alvo da revolução?
Eis porque nestas considerações sobre o evento de Fátima
começamos por falar neste processo de rebelião social contra Deus: porque o
momento culminante da revolução mundial será o da maior cegueira espiritual dos
homens, vítimas de uma espantosa crise de fé, mas imersos na indiferença e na
apostasia geral que impede reconhecê-la.
A história da revolução
Para compreender a história humana e a mensagem de Fátima
que profetizou a história deste século, devemos começar, portanto,
recapitulando a natureza e a evolução do processo revolucionário em perene
conflito com a religião revelada.
Logo no início do primeiro livro das Sagradas Escrituras, o
Gênesis (3,15), temos o episódio do pecado original, suas conseqüências e seu
desenlace pela indicação de quem vencerá a insídia satânica: “Porei inimizades
entre ti e a mulher e entre a tua posteridade e a posteridade dela. Ela te
pisará a cabeça, e tu armarás traições ao seu calcanhar.” Quem, senão Maria
Virgem e sua posteridade? E quem o primeiro inimigo e primeiro revolucionário
senão Satanás? Desde os albores da história o homem separado do Criador viveu
em conflito entre as próprias preferências e os ditames profundos da lei divina
gravada na sua consciência. Assim, a história do homem decadente foi logo
marcada pela idolatria e pelo paganismo.
Mas os sinais divinos nunca faltaram. Eram dirigidos então
ao povo eleito que recebeu a Revelação divina para crer. A fé no Deus
verdadeiro foi, porém, inúmeras vezes infeccionada pelas palavras de falsos
profetas e pela tentação de falsos cultos. E foi assim que na vinda do Messias
anunciado, este mesmo povo eleito e sua classe sacerdotal preparada para
reconhecê-Lo, negou-O e O crucificou.
Transformava-se deste modo a Sinagoga em centro da revolução
talmúdica e judaizante, poder anticristo que iria inspirar as perseguições
iniciais ao cristianismo, que continuariam depois indiretamente inspirando
outras formas revolucionárias. Entre estas está, de certo modo, também a
revolução islâmica, feita essencialmente contra a fé na Trindade de Deus.
A Revelação completada por Jesus havia sido negada pelos
judeus e entregue aos gentios, iniciando assim o tempo das nações. Não cessavam
por isso as perseguições e insídias que as revoluções anticristãs tramavam
contra a Igreja e a Fé. Mas, passado o tempo da prova e da semeadura veio o da
colheita.
Um grande sinal apareceu então ao imperador Constantino
antes do combate decisivo que devia travar em Roma: “In hoc signo vinces”.
Depois da sua vitória (312 a.D.) o maior império da Terra tornava-se cristão.
Durante mil anos, entre altos e baixos, floresceu e frutificou a civilização
cristã sem par entre as outras deste mundo, apesar de muitos erros e divisões
dos homens.
Aconteceu então o grande cisma do oriente (1054 a.D.),
divisão revolucionária do mundo antigo justamente pela rebelião ao princípio da
unidade e da autoridade católica: o papa. Foi uma enorme perda para a Igreja,
mas não suficiente para o espírito revolucionário que voltou a soprar sobre o
fausto da renascença européia, que no fundo era pagã e produziria por reação a
grande revolução protestante de Lutero.
A revolução protestante
Este processo revolucionário contra a autoridade, a doutrina
e a liturgia da Igreja, manifestou-se em 1517 sob a forma de um retorno à
verdade e de uma libertação do presente. Mas essa “verdade” pretendia
justificar na fé a decadência humana pela negação do livre arbítrio e
contraditoriamente arvorar a consciência humana em árbitro da interpretação
bíblica.
Sua conseqüência foi terrível para a Igreja, seja do ponto
de vista da poluição religiosa e filosófica do mundo ou da divisão política da
Europa e interna das nações. Ouçamos o papa Leão XIII na sua Encíclica
Diuturnum de 29 de junho de 1881: “Foi da Reforma que nasceram, no século
passado, a falsa filosofia e aquilo a que se chama o direito moderno, assim
como a soberania do povo e essa licenciosidade desenfreada, sem a qual muitos
já não sabem ver a verdadeira liberdade.”
Doutrinariamente, portanto, a reforma protestante contribuiu
para o processo revolucionário, completando sua obra com uma colaboração
política de seus chefes, razão pela qual a revolução (francesa) não foi mais
que uma vingança da Reforma, conforme escreveu o cônego Roul, citado por Jean
Ousset, que continua: “Os Reformados contribuíram indiretamente para isso por
intermédio dos filósofos e das sociedades de pensadores que tinham previamente
pervertido e que, por sua vez, se encarregaram de espalhar por toda parte a
confusão. Que se pense apenas em Rousseau e na influência que exerceu sobre a
revolução e os revolucionários. Ora, em todos os sentidos da expressão,
‘Rousseau vinha de Genebra’ (protestante).”
Quanto ao processo político, deu-se pelo democratismo,
elevado por muitos protestantes a instituição religiosa. “Os iniciadores da
democracia no século XVII, na Inglaterra, foram os anabatistas, os
independentes e, finalmente, os quakers. E isto não só em função do fato de se
terem apegado mais literalmente e concedido mais importância à doutrina do
sacerdócio de todos os crentes, mas também por terem insistido no princípio de
que as suas congregações deveriam autogovernar-se.” (A. D. Lindsay, The
Churches and Democracy)
Completemos este quadro com uma frase de Lutero: “Empregai o
vosso poder para sustentar e fazer triunfar a minha revolta contra a Igreja e
entregar-vos-ei a autoridade religiosa.” O mesmo que representou para o
catolicismo a subida ao poder de Constantino seria realizado pela reforma
protestante em benefício da insubmissão... E houve príncipes e reis que não
deixaram de ouvir este apelo de Lutero contra o papa.
Depois do que foi dito, não deve mais surpreender esta
aparente contradição: a revolução, que é anti-religiosa em países católicos, costuma
não sê-lo em países protestantes. Antimonárquica onde há reis católicos,
costuma deixar reinar em paz os monarcas protestantes ou até católicos de nome
que hostilizarem a Igreja e o papa. Enfim, a revolução se alimenta de heresia,
de cismas e de tudo que é contra a Igreja.
Vimos, assim, que a revolução protestante de 1517 gerou ou
promoveu, por sua vez, direta ou indiretamente, outros processos
revolucionários acalentados pela revolução talmúdica, ou seja, a maçonaria e o
enciclopedismo, e todos unidos fariam a revolução total.
O triunfo do enciclopedismo maçônico
Com a ameaça de tantos e graves perigos para a Igreja no
século XVII, não teria Deus mandado algum sinal sobrenatural para ajudá-la?
Veremos aqui que estes não faltaram e foram dados no momento ideal para
evitá-los, porque Luís XIV, o mais poderoso dos reis da família Bourbon,
reinaria na França com poderes absolutos. Recebeu uma mensagem do Sagrado
Coração que, acolhida, teria evitado a revolução francesa cem anos após. Mas a
cegueira espiritual infelizmente prevaleceu. Isto nos convida a uma comparação
com o que sucede nos nossos dias no âmbito da Igreja beneficiada pela mensagem
de Fátima. Isto será considerado adiante. Aqui nos interessa saber o processo
revolucionário que precedeu a eclosão da revolução de 1789 em França, que, no
campo civil como no religioso, ainda condiciona depois de duzentos anos nossa
época.
Nos fins do reinado de Luís XIV, entre 1680 e 1715, o
escritor Paul Hazard situou o fluxo sintomático de mais ou menos todas as
atitudes mentais cujo conjunto conduziria à revolução... “a crise da
consciência européia”.
Depois da morte do rei, o movimento subversivo
desenvolveu-se com grande virulência e não há historiador objetivo que negue a
ação das sociedades secretas, que então surgiram por toda parte, no assalto
contra a ordem cristã. A conivência entre os huguenotes, os jansenistas e os
filósofos refugiados na Holanda dava seus frutos. O galicanismo, por seu turno,
não tardou a reforçar a conjura e a desempenhar um papel tanto mais decisivo
quanto se baseava no mais odioso dos equívocos.
Em poucos anos, as seitas e sociedades anticristãs iriam se
difundir e tudo invadir. Introduzida na França de forma quase oficial desde
1721, com a instituição em Dunquerque, em 13 de outubro, da loja “Amizade e
Fraternidade”, a franco-maçonaria se desenvolveria com grande força.
Voltaire foi recebido na franco-maçonaria quando da sua
primeira viagem à Inglaterra (1725-1728) e, de regresso a Paris, não fez
mistério do seu projeto de aniquilar o cristianismo. A publicação da
Enciclopédia foi o primeiro meio para atingir este fim. Os conjurados fizeram
dela um depósito de todos os erros, sofismas e calúnias inventados contra a
religião. Mas estava convencionado que ela ministraria o veneno de maneira
insensível. A Enciclopédia era uma obra internacional.
Bertin, encarregado da administração real, compreendeu o
perigo dessa propaganda que chegava até as classes mais humildes da sociedade.
Interrogando os vendedores dos livros, soube que estes não custavam nada e eram
entregues em pacotes de procedência ignorada para serem vendidos em barracas a
preços módicos.
Voltaire encarregou-se dos ministros, príncipes e reis.
Quando não podia aproximar-se destes, trabalhava-os indiretamente. Por exemplo,
colocou junto de Luís XV um médico, Quesnay, por cuja direção ideológica o rei
o chamava de seu pensador.
A revolta contra Deus
Joseph de Maistre diria: “Embora sempre tenham existido
ímpios, nunca se verificou antes do século XVIII e no seio do cristianismo uma
insurreição contra Deus, sobretudo nunca se tinha visto uma conjura sacrílega
de todos os talentos contra o seu autor; ora, foi a isto que então assistimos.”
Contudo, já em 1738, a Igreja, pela boca do soberano
pontífice, tinha avisado sobre o perigo e desmascarado a conspiração! Em 28 de
abril, Clemente XII condenou pela primeira vez a franco-maçonaria. Em 1751,
confirmou esta condenação Bento XIV, e assim por diante.
Mas, se o papado soube ver o perigo e condená-lo, os
príncipes preferiam deixar correr e mesmo auxiliá-lo.
Que terrível ironia se desprende de documentos como esta
carta de Maria Antonieta para sua irmã, rainha Maria Cristina (26-2-1781);
“Julgo que vos preocupais demasiado com a maçonaria. Aqui toda gente o é ...
Recentemente, a princesa de Lamballe foi nomeada grão-mestre duma Loja e
contou-me todas as belas coisas que lhe foram ditas.” De fato, a começar pelo
primo do rei, o futuro regicida Filipe “Égalité”, que seria por sua vez
guilhotinado; esse mesmo aplicava-se a “maçonizar” o exército e sobretudo as
“guardas francesas”. Ora, sabe-se que a revolução só foi possível graças à
súbita dissolução do exército real...
O que acontecia na França se repetia em toda a Europa.
Influentes em Versalhes e em Paris, os jansenistas e enciclopedistas uniam-se e
exerciam influência também em Viena. O exemplo de José II, imperador da
Áustria, era contagioso. A revolução que os sofistas arrastavam foi acelerada
tanto pelos reis como pelos seus ministros. Existiam marqueses de Pombal em
todas as cortes.
Em 1789, mais da metade dos deputados franceses eram
franco-maçons. Eis porque o padre Baruel escreveu: “Na revolução francesa,
tudo, incluindo os crimes mais espantosos, tudo foi previsto, meditado,
combinado, resolvido, estabelecido. Luís XVI, no seu regresso de Varennes,
confessaria: 'Por que não acreditei há onze anos? Tudo quanto atualmente vejo
tinha-me sido anunciado'.” E sobreviria a morte desde rei que fora, sem dúvida,
decidida pela seita ainda muito antes da revolução.
O papa Bento XV escreveu: “Desde os três primeiros séculos,
durante os quais a terra ficou empapada com o sangue dos cristãos, pode-se
dizer que nunca a Igreja atravessou uma crise tão grave como aquela em que
entrou no fim do século XVIII.” E também: “É sob os efeitos da louca filosofia
resultante da heresia dos Inovadores e da sua traição que os espíritos saíram
em massa dos caminhos da razão e que explodiu a Revolução, cuja extensão foi
tal que abalou as bases cristãs da sociedade, não só em França, mas
paulatinamente em todas as nações.” (A.A.S. 7/3/1917)
De fato, só a revolução, que estava para realizar-se no
pontificado, ultrapassaria tudo isto.
O império revolucionário de Napoleão
O imperador Napoleão I repetiria à saciedade que tinha sido
o defensor das idéias de 1789. Autoproclamava-se o “Messias” da revolução:
“Consagrei a Revolução, insuflei-a nas leis.” Vejamos então qual o legado desta
num escrito do bispo de Angers (monsenhor Freppel):
“Lede a Declaração dos Direitos do Homem, quer a de 1789,
quer a de 1793, vede qual a idéia que então se formou dos poderes públicos, da
família, do casamento, do ensino, da justiça e das leis: lendo-se todos esses
documentos, vendo-se todas essas instituições novas, dir-se-ia que, para essa
nação cristã desde há quatorze séculos, o cristianismo nunca existira e que não
havia lugar para ser tido em conta... Era o reinado social de Jesus Cristo que
se tratava de destruir e de apagar até o menor vestígio. A revolução é a
sociedade descristianizada; é Cristo repelido para o fundo da consciência
individual, banido de tudo quanto seja público, de tudo quanto seja social;
banido do Estado, que já não procura na Sua autoridade a consagração da sua
própria; banido das leis, das quais a Sua lei não é soberana; banido da
família, constituída fora da Sua bênção; banido da escola, onde o Seu ensino já
não é a alma da educação; banido da ciência, onde não obtém melhor homenagem do
que uma espécie de neutralidade não menos injuriosa do que a negação; banido de
toda parte, a não ser talvez de um recôndito da alma, onde consentem deixar-lhe
um resto de domicílio.”
Esta era a intenção real. Mas, perguntar-se-á, por que razão
teria Napoleão restabelecido o culto católico na França? Por que fez uma
concordata com o papa Pio VII? Por que convidou este para a sua coroação? Algo
se esclarece a esse respeito no seu Memorial de Santa Helena: “Quando
restabelecer os altares, quando proteger os ministros da religião, como eles
merecem ser tratados em todo o país, o papa fará o que lhe pedir: acalmará os
espíritos, reuni-los-á na sua mão e colocá-los-á na minha... Além disso, o
catolicismo conservar-me-á o papa, e, com sua influência e as minhas forças na
Itália, não desistirei de, cedo ou tarde, por um meio ou por outro, acabar por
ter nas minhas mãos a direção desse papa, e, desde logo, dominar essa
influência e essa alavanca de opinião sobre o mundo...” Para quê?
“De fato”, escreveu monsenhor Delassus, “onde quer que
Napoleão levou seus exércitos, fazia o que tinha sido feito em França,
estabelecendo a igualdade entre os cultos, expulsando os religiosos, impondo a
partilha forçada, vendendo os bens eclesiásticos, abolindo as corporações,
destruindo as liberdades locais, derrubando as dinastias nacionais,
aniquilando, numa palavra, a antiga ordem das coisas e esforçando-se para
substituir a civilização cristã por uma civilização cujo princípio e fundamento
seriam constituídos pelos dogmas revolucionários.”
A restauração aparente
Depois da queda de Napoleão os revolucionários não
conseguiram impedir a volta de um rei católico na pessoa de Luís XVIII, da
família Bourbon. Mas conseguiram colocar junto ao soberano um certo número de
homens que pouco tinham de promotores da restauração da ordem cristã.
Tratava-se de uma equipe de prelados e padres que haviam abandonado o seu
ministério sob a revolução: Talleyrand, de Pradt, Louis, de Montesquieu. Foi a
esses quatro eclesiásticos que Luís XVIII confiou o governo da primeira restauração.
No da segunda havia o regicida Fouché. Com a polícia dominada por ele a
maçonaria pôde reorganizar-se livremente. E assim a restauração favoreceu o
catolicismo, mas também os maçons e o parlamentarismo, de modo que “a
constituição de 1814 saiu das próprias entranhas da revolução”, como diria
Thieres em 1873. O papa Pio VII manifestava ao rei, através do bispo de Tours,
sua dor e os perigos dessa constituição revolucionária. Em 1818 o cardeal
Consalvi escreveria ao príncipe de Metternich-Winneburg, da Áustria: “Julgo que
a revolução mudou de marcha e de tática. Já não ataca a mão armada tronos e
altares: limita-se a miná-los...” Mas os avisos de Roma de nada serviriam aos
monarcas de então.
Luís XVIII estava longe de ser um católico de tempera. Havia
recusado à contra-revolução da Vandéia de tomar o poder para vencer a subversão
revolucionária e o terror dos anos que se seguiram a 1793. Seu irmão e sucessor
Carlos X, embora bastante devoto, não tinha uma formação católica sólida para
enfrentar tantas insídias e acabou sucumbindo. Pelo golpe de estado de 30 de
julho de 1830 foi levado ao poder Luís Filipe Égalité, filho do regicida
Orléans.
Era o retorno da revolução com todas as suas insídias, mas
com a salvaguarda de estar sob a continuidade e respeitabilidade monárquica.
Rodeado desde o início pelos pontífices da maçonaria — Decazes, La Fayette,
Talleyrand, Teste, etc. — começou por colocar o judaísmo no mesmo nível das
confissões cristãs, reforçando o interconfessionalismo e o clima de indiferença
e liberalismo religioso. Assim, reconciliada na França a revolução com o trono,
em toda a Europa os revolucionários ficaram livres para difundir e intensificar
a guerra contra a Igreja, como se verá na Espanha e em Portugal, mas
especialmente em Roma, onde o papa foi praticamente forçado a aceitar um
projeto de anistia permanente para os revolucionários dos estados pontifícios.
Em 1832 a França orleanista chegou a apoderar-se ameaçadoramente da cidade de
Ancona, mas sem abalar a firme prudência de Gregório XVI.
As aparições de Nossa Senhora
Poderíamos perguntar se diante de tantos perigos e ameaças,
Deus não havia dado algum sinal e ajuda à Sua Igreja. Esta é a questão que,
embora seja extremamente importante, está incrivelmente esquecida.
Na noite entre 18 e 19 de julho de 1830, onze dias antes do
golpe de estado, Nossa Senhora apareceu em Paris, na capela da “rue du Bac” das
Filhas da Caridade, à jovem religiosa Catarina Labouré. A humilde noviça, que
depois se tornou santa, ouviu a Virgem Maria, que com os olhos cheios de
lágrimas, profetizava as grandes desgraças que estavam para abater-se sobre a
humanidade. Em 27 de novembro, a Virgem Imaculada confiou a Catarina a missão
de propagar a “Medalha Milagrosa” para sustentar os fiéis e a Igreja com a
invocação: — Oh Maria concebida sem pecado rogai por nós que recorremos a Vós.
Eis, portanto, a resposta a esta questão capital que nos
deve orientar sobre a luminosa seqüência de aparições marianas que vieram
prevenir sobre os grandes perigos revolucionários modernos, que de 1830 até
hoje se sucedem numa escalada vertiginosa.
A consideração fundamental é esta: a intervenção
sobrenatural precede uma ameaça política à vida religiosa, mas a verdadeira
ameaça, invisível, está no interior da Igreja, é relativa à defesa da fé, da
doutrina, do culto, do clero, da hierarquia e do pontificado. Nossa Senhora
veio à “rue du Bac”, como a La Salette e Fátima, avisar sobre erros políticos,
mas para a defesa da Roma católica. A mensagem de ajuda é antes de tudo para que
o pontífice romano tenha um novo apoio inestimável para preservar a fé íntegra
e pura. Bastaria lembrar estas aparições de Maria Imaculada que em Lourdes, em
1858, diz “Eu sou a Imaculada Conceição”, confirmando assim a plena
oportunidade do dogma proclamado pelo papa Pio IX em 1854.
A revolução liberal dentro da Igreja
Com esta luz podemos entender que o verdadeiro perigo de
1830 não era tanto a revolução coroada que iria impor o erro no mundo pelas
armas, mas uma infiltração liberal que iria enfraquecer as defesas doutrinais
da Igreja pelo liberalismo. Este termo tem-se prestado a muitas confusões,
razão pela qual se impõe uma melhor elucidação deste mal, denunciado pelo papa.
Liberalismo é, essencialmente, atribuir à liberdade humana
prioridade sobre a verdade revelada por Deus. Esta rebeldia à verdade começou a
apoderar-se dos governos e das leis com a revolução francesa, mas era condenada
e mantida fora da Igreja até que eclesiásticos, como o padre Lamennais,
ocuparam-se de acolhê-la e “cristianizá-la”. Desde o século XIX o liberalismo
religioso fez três grandes tentativas de dominar a Igreja. A primeira, de
Lamennais, consistia em considerar o direito à liberdade um fato universal no
qual se inseria o da liberdade da Igreja, como uma espécie diante do gênero.
Esta posição quanto à liberdade religiosa tinha por conseqüência lógica a
separação total da Igreja e do Estado, da lei de Deus e da lei dos homens.
Depois da revolução de 1830, esta posição revolucionária agravou-se, por ser
defendida também por “católicos” da corrente liberal do padre Lamennais, que se
apresentaram à opinião pública como os verdadeiros defensores da liberdade da
Igreja. Podia haver ilusão nisto?
Essa primeira tentativa com seus embustes e ilusões foi
firme e prontamente repelida em 1832 pelo papa Gregório XVI com a encíclica
Mirari vos, que reconhecendo a entidade do perigo usou palavras da profecia
apocalíptica que estão no início deste livro.
A segunda tentativa de criar um “liberalismo católico” foi
no sentido de aliar a Igreja à democracia, repelida porém com grande força e
precisão doutrinal pelo papa Pio IX com a encíclica Syllabus e o Concílio
Vaticano I: não há maioria democrática que possa prevalecer sobre a
infalibilidade da Igreja e do papa, vigário de Cristo.
A terceira tentativa obteve no início um sucesso prático sob
Leão XIII que, embora firme na doutrina, concedeu pelo “ralliement” uma aliança
dos católicos franceses com o governo que operava com princípios liberais
condenados pela Igreja. Mas com o novo papa, São Pio X, essa concessão cessou.
As conseqüências foram dramáticas pela reação do governo, que despojou a Igreja
na França de tudo quanto possuía. O mesmo aconteceria anos depois em Portugal,
mas os princípios imutáveis da prioridade da lei de Deus sobre os votos
democráticos e as preferências dos homens, afirmou-se pela ação de São Pio X de
tudo instaurar em Cristo. Seriam desacreditadas pela encíclica Notre charge
apostolique também as tentativas da “democracia cristã” do Sillon de Marc
Sagnier, que aceitava uma vontade soberana do povo até de rezar ou ofender a
Deus (como acontece com a lei do aborto). Ficavam claras as palavras de Leão
XIII, de que o Estado que se rege pelos princípios do liberalismo é na prática
um Estado ateu. “Este — ateísmo social — baseado numa liberdade depravada não é
menos contrário ao direito natural e cristão que o ateísmo individual.” (Enc.
Libertas, de 1888)
O liberalismo infecta o clero e os povos
Pela mensagem de Nossa Senhora de La Salette de 1846 veremos
que o liberalismo religioso tranformaria muitos padres em “cloacas de
impurezas” e preparava o caminho para uma infecção mortal: o ateísmo militante
do estado socialista. Era a hora de Marx, da Internacional preparada pelos
erros liberais de um imperador carbonário: Napoleão III.
Mas o verdadeiro perigo não estava tanto no reforçamento do
poder temporal inimigo da Igreja, que manobrou o assalto contra a Roma católica
durante o I Concílio do Vaticano. O papa Pio IX sentiu-se prisioneiro no seu
palácio, mas sua preocupação estava sempre na defesa da fé contra os assaltos
internos. E estes vinham também da parte do clero e até de bispos. Aqui é
importante considerar, seguindo as preocupações dos papas e os avisos
sobrenaturais, qual era o perigo apocalíptico com que se deparava a Igreja
depois das palavras evocadas na Mirari vos pelo papa Gregório XVI.
De fato, se o grande mal consiste na abertura do poço do
abismo que infectará toda a Terra, e a chave doutrinal tem por nome “liberdade
religiosa”, a grande questão é interpretar qual é a estrela caída que a usará.
Ora, as estrelas do firmamento da Igreja são os bispos.
Estas são as luzes que guiam e iluminam no alto com a luz de Deus. Que seria
então a estrela que recebeu a chave? O bispo com a chave, senão o bispo de
Roma?
Em La Salette, Nossa Senhora disse: “Roma perderá a fé e se
tornará sede do anticristo.” Eis então o perigo supremo que, como mostraremos
adiante, não deixou de ser previsto pelos grandes papas do século XIX e sobre o
qual São Pio X, apenas elevado ao trono de São Pedro, disse ser lícito pensar,
diante do desastroso estado do mundo, que o anticristo já estava entre nós.
Não se pode, porém, pensar que este iníquo seja elevado a
tanto poder sem o concurso de muitas forças unidas: políticas, culturais,
sociais, maçônicas, eclesiais, e tudo reforçado pela impiedade dos povos e a
perversão do clero. E foi justamente para avisar disto que a Igreja recebeu as
mensagens marianas e pedidos sobrenaturais. Que fizeram os católicos desses
pedidos e dessas ajudas?
Nesta introdução à mensagem de Fátima devemos ver mais
especificamente o que fizeram as grandes nações católicas européias Áustria,
França e também Portugal, para que o mundo fosse levado à grande guerra e ao
crucial encontro histórico de 1917.
A revolução que contaminou Portugal
Portugal foi preservado dos efeitos da revolução protestante
pela sua devota unidade católica regida pelas ordenações tradicionais do Reino
que classificavam de crime a heresia, a blasfêmia, a apostasia e o sacrilégio.
A ruptura dessa fidelidade é obra do marques de Pombal. Chamado ao governo pelo
rei d. José, foi o cavalo de Tróia das idéias revolucionárias maçônicas que
havia absorvido com o josefismo na corte de Viena. Transferiu essas idéias ao
rei, insuflando seu absolutismo prepotente, a fim de que rompesse com a Santa
Sé, submetesse as bulas papais a censura e liqüidasse com os jesuítas. Com isto
pôde promover no país a maçonaria com o seu filosofismo, que vegetava inerme, a
idéia de igreja nacional e o protestantismo, que fundava em Lisboa (1761) sua
primeira igreja. Se manteve contactos com Roma foi só porque participou da
conjura internacional para extinguir a Companhia de Jesus. Infelizmente, nisto
o papa Clemente XIV cedeu para poder evitar o cisma na França e reatar relações
diplomáticas com Portugal.
Depois deste governo infausto o país estava contaminado pelo
racionalismo maçônico, mas o efetivo domínio destas idéias veio pelas tropas
invasoras de Napoleão I. Foi assim que o governo que sucedeu à invasão
perseguiu a Igreja, chegando a expulsar o seu cardeal patriarca e pressionar o
rei d. João VI, no exílio, a fim de que aprovasse uma nova carta
constitucional, inspirada na francesa de 1791, derrogando as velhas ordenações.
Como o rei parecia ceder a isto, um ministro do governo declarou: “Completou-se
a grande obra! O supremo Árbitro do Universo coroou os nossos trabalhos! Sua
Majestade acaba de aceder à nossa causa!”
Quando d. João VI voltou do Brasil, viu-se que não era
assim, mas morto o rei criou-se uma questão sucessória. D. Pedro I, tendo
renunciado a ser o imperador do Brasil, voltava à Europa e apoiado pelos
ingleses e a maçonaria, na qual fora iniciado no Rio de Janeiro, pretendia o
trono do seu irmão, o católico d. Miguel. Depois de uma difícil guerra civil,
em que foi apoiado estranhamente pela Inglaterra de Palmerston, juntamente com
a França de Luís Filipe e a Espanha de Maria Cristina, os aliados da nova
“carta” venceram e d. Maria II, filha de Pedro I, quarto de Portugal,
tornava-se rainha.
Os governos de 1832 a 1910 tiveram praticamente só primeiros
ministros maçons, razão por que Pio IX, dirigindo-se em 1877 a peregrinos
portugueses, denunciou: “Tendes um terrível e poderoso inimigo — é a impetuosa
maçonaria que quer destruir em vós todos os vestígios do catolicismo.”
No começo deste século este domínio maçônico tornou-se
abertamente republicano e anticlerical, suscitando uma tal subversão que o rei
d. Carlos e o príncipe foram abatidos a bala em plena Lisboa, depois do que se
multiplicaram profanações, saques e incêndios de igrejas e edifícios
religiosos, além da caça a padres e freiras, acossados como feras.
O governo instituía então a lei de separação da Igreja e do
Estado, o divórcio, banindo o ensino religioso. Na “festa da árvore” de 1911,
em Lisboa, cândidos escolares levavam o dístico: “Sem Deus nem religião”!
São Pio X publicou nessa ocasião a encíclica Iamdudum in
Lusitânia, para prevenir os fiéis contra os perigos que corriam devido ao erro
que constituía a iníqua lei de separação.
Quatro anos depois da proclamação da República, em 1915, o
delírio jacobino e anticatólico na capital era extremo. Só o norte do país não
acompanhava a onda de violência que fez com que a direita republicana desse
poderes ditatoriais ao general Pimenta de Castro para que restabelecesse a ordem.
Mas também este governo especial terminou depois de cinco meses num banho de
sangue e num caos tão grave que cruzadores ingleses e espanhóis aproximaram-se
de Lisboa, prontos a intervir.
Foi então que os católicos portugueses voltaram às preces
públicas e às procissões que imploravam à Virgem Maria que salvasse Portugal.
Organizou-se em 1916 em todo o país a cruzada do Rosário com a adesão de
milhares de famílias nas cidades e nas aldeias.
Além de provocar uma assombrosa crise interna, a revolução
portuguesa, por cumplicidade com as outras, levou o país à grande guerra. Eis
qual era a situação às vésperas da aparição de Fátima.
Razões ocultas da primeira guerra mundial
E nem se diga que não houve um aviso celeste aos governantes
católicos para prevenir a hecatombe mundial que vinha completar por meio
militar a obra de demolição revolucionária da civilização cristã.
Dom Bosco, em 1875, escreveu ao imperador Francisco José a
seguinte carta, remetida ao soberano por intermédio do papa Pio IX:
“Assim fala o Senhor ao imperador da Áustria: Retoma coragem
— Prepara-te e aos meus fiéis servidores. Minha cólera está a ponto de explodir
sobre todas as nações da Terra porque se quer desprezar a Minha lei e, fazendo
triunfar os que a profanam e oprimindo os que a observam. Queres tornar-te
instrumento do Meu poder? Queres cumprir as Minhas vontades mais secretas e
tornar-te o benfeitor da humanidade? Apoia-te sobre as nações do norte, mas não
sobre a Prússia. Aproxima-te da Rússia, mas sem concluir alianças com ela.
Alia-te à França católica. Depois da França virá a Espanha. Sejais um só e
mesmo braço, guiado por um só e mesmo espírito.” O imperador, porém, confiante
numa política centralizadora de poder não ouviu tal lição e arruinou-se com o
seu império.
O ano de 1875 foi de fato favorável seja para a Áustria,
seja para a França, cujo presidente, o marechal MacMahon, conseguiu aprovar uma
nova constituição apesar da aberta hostilidade dos maçons e liberais de toda
ordem.
Foi provavelmente a última ocasião para evitar a enxurrada
de males que estavam iminentes. O poder maçônico tinha desígnios precisos.
Gambetta dizia em 1877: “Nós aparentemente combatemos pela forma de governo e
pela integridade da constituição. Mas a luta é mais profunda: a luta trava-se contra
tudo que resta do velho mundo, entre os agentes da teocracia romana e os filhos
de 1789.” “Queremos organizar uma humanidade sem Deus”, diria Jules Ferry. E
Clemenceau: “A revolução é um bloco de onde nada se pode tirar...”
Muitas foram as tramas que levaram à grande guerra, mas o
certo é que seu estopim, o atentado assassino de Sarajevo contra o príncipe
herdeiro da Áustria, arquiduque Francisco Fernando e sua esposa, no dia 28 de
junho de 1914, foi urdido na loja da sociedade secreta de Belgrado “Narodna
Obradna” e não sem a conivência de elementos oficiais. Por incrível
coincidência, dia 17 de julho, toda a Armada da Inglaterra mobilizada, o
presidente francês Poincaré partiu para Petersburgo, na Rússia, com quem a
França se aliaria.
1917 — encontro de muitas revoluções
1917 foi o ano mais crucial da grande guerra que fez milhões
de vítimas na Europa, demolindo os últimos bastiões da civilização cristã.
De modo especial, nesse ano foi “injetado o vírus tifóide”
(comparação de Churchill) da revolução comunista na Rússia, nas pessoas dos
revolucionários Lênin e Trotski. Essa maquinação servia a curto prazo ao
governo alemão para minar a Rússia inimiga, mas a longo prazo servia à
revolução mundial, razão pela qual foi financiada por forças maçônicas. Lênin
partiu da Suíça num vagão blindado com armas e ingentes recursos financeiros.
Entrou na Rússia, porém, pela Suécia, porque o imperador católico Carlos I da
Áustria, aliada dos alemães, discordou da manobra. Trotski reuniu-se a Lênin partindo
dos Estados Unidos no navio “Cristianiafyord” com dinheiro, armas e homens
treinados. Foram presos no porto canadense de Halifax, e o armamento
apreendido, mas logo depois a prisão e a apreensão foram relaxadas por ordens
superiores.
Mas se a guerra e a revolução bolchevique constituíam os
fatos salientes de 1917, convém assinalar outros fatos menos destacados mas de
grande importância para o avanço da revolução. A maçonaria atingia tal poder
que, comemorando os 200 anos de sua fundação e no aniversário de Giordano
Bruno, desafiou a Igreja e o papa na própria praça de São Pedro, desfilando com
cartazes sacrílegos em que São Miguel Arcanjo era pisado por Lúcifer que devia
reinar em Roma e ter o papa por escravo. Também o sionismo obtinha uma
importante vitória para a formação do Estado de Israel com o aval recebido pela
declaração do ministro inglês Balfour. A volta do domínio judeu em Jerusalém,
que aconteceria 50 anos após com a guerra dos seis dias de 1967, evocava a
profecia evangélica do fim do tempo das nações (LC, 21,24). Diante de todos
estes eventos políticos decisivos para a vida do mundo — e hoje sabemos quanto
continuam a pesar — os católicos não podem deixar de perguntar-se se a eles não
correspondiam tantos outros, invisíveis e silenciosos, na vida da Igreja e do
pontificado romano.
Aqui veremos que a resposta indireta mas clara a esta
preocupação começou e continua a ser dada pela atitude eclesiástica diante do
evento extraordinário de Fátima e sua mensagem que profetizou os fatos
humanamente desconhecidos ou imprevisíveis naquela época: “os erros espalhados
pela Rússia”. Mas, como é que os avisos da Igreja celeste à Igreja militante
sobre os perigos que a ameaçavam e logo se desencadearam, não foram ouvidos?
Por que a ajuda oferecida não foi devidamente reconhecida?
Fátima foi e continua sendo o espelho que reflete uma oculta
transformação eclesial diante dos inimigos da Igreja. De fato, as dificuldades
ou a recusa de acolher uma ajuda sobrenatural dessa ordem são emblemáticas e
indicam que os múltiplos tentáculos da revolução, cujo avanço descrevemos, vão
envolvendo e penetrando no seu objetivo final: a Igreja. Sabemos, porém, que
nada escapa aos desígnios de Deus, que do maior mal tirará um bem inestimável,
quando finalmente o Imaculado Coração de Maria triunfar.
A. Daniele
Via Campomarino, 31
00050 Fregene Roma
ÍNDICE CRONOLÓGICO ESSENCIAL DOS EVENTOS DE FÁTIMA
1916 — Aparições do anjo. Na primavera, no verão e no outono
o anjo apareceu aos pastorzinhos para prepará-los ao grande evento.
1917 — Momento crucial da grande guerra de 1914-1918, o papa
Bento XV faz um pedido de intervenção de Maria Santíssima pela paz.
13 de maio — 1.a aparição de Nossa Senhora na Cova da Iria,
seguida de outras cinco, nos dias 13 dos meses seguintes, à mesma hora (exc.
Agt.)
13 de julho — A visão do Inferno, seguida pela Grande
Mensagem, onde havia o aviso sobre os erros espalhados pela Rússia, fato
humanamente imprevisível, e onde estava o Terceiro Segredo para ser revelado só
depois de 1960.
13 de outubro — O grande milagre do Sol, para que todos
possam crer, noticiado pela imprensa portuguesa e assistido por 70 mil pessoas.
1919 — 4 de abril — Morre como um santo o pastorzinho
Francisco.
1920 — 20 de fevereiro — Morre como uma santa a pastorzinha
Jacinta.
Agosto — Posse de dom José Alves Corrêa da Silva, nomeado,
pelo papa, bispo da restabelecida Diocese de Leiria (Fátima).
1922 — A capelinha de Fátima é dinamitada, num atentado
sacrílego. O bispo de Leiria abre o processo canônico sobre as aparições.
1925 — A pastorzinha Lúcia entra para o convento das
Dorotéias de Tuy.
10 de dezembro — Nossa Senhora aparece à irmã Lúcia em
Pontevedra (Espanha), com o pedido da devoção dos cinco primeiros sábados.
1929 — 13 de junho — Nossa Senhora aparece à irmã Lúcia, que
tem a visão da Teofania Trinitária na capela do convento de Tuy. Recebe o
pedido da consagração da Rússia ao Imaculado Coração.
1930 — O bispo de Leiria publica a Carta Pastoral que aprova
o culto de Nossa Senhora de Fátima e reconhece as suas aparições.
1931 — 13 de maio — Grande peregrinação da Igreja de
Portugal a Fátima, cujos bispos consagram o país ao Imaculado Coração de Maria.
1938 — 25 de janeiro — A imprensa dá notícia de uma noite
iluminada por uma luz desconhecida. Era o aviso da segunda grande guerra, ainda
pior que a primeira, conforme profetizado na Mensagem. No entanto, poucos então
o entendem.
1942 — 31 de outubro — No auge da guerra, Pio XII comemora
os 25 anos de Fátima e consagra o mundo ao Coração Imaculado de Maria.
1950 — O papa proclama o Dogma da Assunção e tem nos jardins
vaticanos a visão do Milagre do Sol, de 13 de outubro de 1917, em Fátima.
1952 — Pio XII consagra sozinho os povos da Rússia ao
Imaculado Coração de Maria. As devoções de Fátima ainda não são oficiais.
1958 — Morte de Pio XII (o papa de Fátima). É publicada a
entrevista de Irmã Lúcia com o padre Fuentes. O novo papa é inspirado a
convocar um concílio. Começa a grande ofensiva à mensagem.
1960 — Fontes vaticanas informam que o terceiro segredo de
Fátima, que está com o papa João XXIII, não será revelado como previsto.
1962 — João XXIII inaugura o Concílio Vaticano II, tomando
distância dos “profetas da desventura” e abrindo a Igreja para o mundo.
1965 — O papa Paulo VI encerra o Concílio que proclamou
Maria Mãe da Igreja, mas recusou atenção aos pedidos e avisos de Fátima.
1967 — Paulo VI vai a Fátima na comemoração do
cinqüentenário das aparições. Ainda não são atendidos os pedidos de Nossa
Senhora.
1969 — As transformações conciliares atingem o rito da missa
e a tradicional pastoral católica. O papa fala em autodemolição.
1978 — Morte de Paulo VI, que viu a fumaça de Satanás na
Igreja. Morte de João Paulo I, 33 dias após suceder Paulo VI. Eleito Karol
Wojtyla, cardeal da Polônia comunista.
1981 — 13 de maio — Atentado ao papa na praça de São Pedro,
em Roma. O pontífice reconhecerá um aviso relativo a Fátima.
1982 — João Paulo II vai Fátima, onde faz uma consagração do
Mundo incompleta, segundo o Pedido. Encontra e fala com irmã Lúcia.
1983 — João Paulo II repete a consagração do Mundo a Maria
Santíssima no Sínodo dos Bispos reunidos em Roma.
1984 — João Paulo II repete pela terceira vez a consagração
do Mundo a Maria Santíssima, sem conseguir pronunciar o nome da Rússia.
1985 — No Sínodo Extraordinário de nov./dez. de 1985, a
lembrança dos pedidos e da mensagem de Fátima são totalmente omitidos. É feita
a exaltação do Concílio, “nova Pentecostes”. As atenções se voltam para as
aparições carismáticas de Medjugorge (Iugoslávia).
1986 — 27 de outubro — Reunião das “grandes religiões” do
mundo em Assis, convocadas por João Paulo II para orarem pela paz segundo os
princípios da ONU. Uma imagem de Nossa Senhora trazida por devotos não foi
recebida.
1987 — 70 anos das aparições. As palavras da mensagem de
Fátima caíram no esquecimento. A vinha do Senhor está devastada. Mons. Lefebvre
vai, peregrino, a Fátima e diz que Roma perdeu a fé e persegue os que querem
conservá-la.
1988 — Roma excomunga mons. Lefebvre e os bispos por ele
consagrados em 30 de junho, em Écone. De Roma partem instruções dirigidas à
irmã Lúcia e padres do Apostolado de Fátima, declarando que a consagração da
Rússia já fora efetuada, não se devendo mais falar nisso. Alega-se que a
conversão da Rússia já estaria iniciada com a “perestroika”.
1ª PARTE - O SINAL DE CONTRADIÇÃO DO SÉCULO XX - 1917-1958 - QUANDO O PAPA PEDIU, NOSSA
SENHORA ATENDEU
Quem se dispõe a perscrutar os eventos de Fátima, deve ter
presente que um sinal sobrenatural só pode vir expresso na linguagem das
Escrituras e da Tradição, pela qual é o desígnio divino a dirigir os eventos do
mundo como a órbita do universo. Nesta linguagem está a chave da autenticidade
e da compreensão de todo sinal celeste.
Apuremos então a mente na linguagem cristã em que estão
cifrados tanto os eventos portentosos como os mais singelos. Nada é fortuito na
História e nada escapa à solicitude divina na vida de Sua Igreja. Reconheçamos
o motivo próximo das aparições de Fátima para não perder uma manifestação do
amor divino, chave de todo saber.
Quando em 1917 os horrores da l.a Grande Guerra provocavam
rios de sangue e de lágrimas sem que se pudesse prever o seu fim, o papa Bento
XV invocou com toda a Igreja a intercessão de Maria Santíssima pela paz. Eis os
termos da carta ao secretário de Estado, cardeal Gasparri, com as disposições
para que toda a Igreja invocasse a Rainha da paz nas suas orações mais
freqüentes:
“Rainha da Paz... Para tal fim, se eleve a Jesus mais
freqüente, humilde e confiante, especialmente no mês dedicado a Seu Santíssimo
Coração, a oração da miserável família humana para suplicar-Lhe o fim deste
terrível flagelo. Purifique-se cada um com maior freqüência no lavabo da
confissão sacramental, e ao amantíssimo Coração de Jesus ofereça com afetuosa
insistência as suas súplicas. E uma vez que todas as graças que o Autor de todo
o bem se digna conceder aos pobres descendentes de Adão provêm, por amoroso
conselho de Sua Divina Providência, pelas mãos da Virgem Santíssima, nós
queremos que seja dirigido à Grande Mãe de Deus nessa hora horrível, mais que
nunca o vivo e confiante pedido de seus filhos muito aflitos. Encarregamos
portanto a Vós, Senhor Cardeal, de fazer conhecer a todos os bispos do mundo o
nosso ardente desejo que se recorra ao Coração de Jesus, Trono de graças, por
meio de Maria. Com esse propósito ordenamos que, desde o dia primeiro do
próximo mês de junho, fique inserida na Ladainha de Loreto a invocação Regina
pacis, ora pro nobis.
“Eleve-se portanto a Maria, que é Mãe de misericórdia e
onipotente pela graça, de cada canto da terra, dos templos majestosos como das
pequenas capelas, dos palácios e ricas mansões dos grandes como dos mais pobres
casebres onde se aloja uma alma fiel dos campos e mares ensangüentados, a
piedosa e devota invocação e leve a Ela o angustioso grito das mães e esposas,
o gemido dos meninos inocentes, o suspiro de todos os nobres corações: possa
mover a Sua amável e muito benigna solicitude a obter para o mundo desvairado a
aspirada paz, e possa lembrar depois aos séculos futuros a eficácia de Sua
intercessão e a grandeza do benefício por Ela obtido a Seus filhos.”
A carta é de 5 de maio de 1917. Oito dias depois, 13 de
maio, na Cova da Iria em Fátima, Maria Santíssima aparecia, qual arco-íris da
paz e da graça, para mostrar aos homens o caminho da verdadeira paz neste mundo
e da salvação eterna no outro. Seria reconhecida?
De início este evento extraordinário ficou circunscrito à
região, mas com o passar dos dias começou “uma concorrência assombrosa de
peregrinos incomparavelmente superior a Lourdes na época das aparições e apesar
da dificuldade de acesso” (NDOC. p. 95).
A testemunhar e registrar os eventos foi o cônego dr. Manuel
Nunes Formigão, laureado em Teologia e Direito Canônico pela Universidade
Gregoriana. Pelos seus apontamentos, dia 13 de julho estiveram na Cova da Iria
de 4 a 5 mil pessoas, em agosto de 15 a 18 mil, em setembro de 25 a 30 mil
(NDOC. p. 362, 366, 374).
É importante notar que já das primeiras aparições sabia-se
terem os pastorzinhos recebido um segredo. Isto despertou grande interesse até
no prefeito maçom de Vila Nova de Ourém, que no dia 13 de agosto foi a Fátima e
levou a menina Lúcia ao pároco P. Ferreira a fim de que lhe revelasse a
mensagem celeste. Eis a resposta: “Sim (recebi um segredo), mas não posso
dizê-lo. Se V. Rvcia. quiser conhecê-lo, perguntarei à Senhora e se ela
autorizar, então eu o contarei a vós (TSF. p. 113) Diante desta resistência o
prefeito, enganando-as, levou as três crianças a Ourém onde, ameaçando-as de
morte, tentou ainda obter sem êxito a confissão do segredo recebido de Nossa
Senhora.
Como se vê, já no início, interessaram-se mais pela mensagem
de Fátima autoridades anticlericais do que as eclesiásticas. Estas chegaram a
ver nesses eventos mais motivo de embaraço do que uma ajuda providencial para a
Igreja.
No dia 13 de outubro de 1917, para o qual Nossa Senhora
anunciara um grande milagre afim de que todos pudessem crer, havia cerca de 70
mil pessoas a testemunhar o evento. Este era esperado até na França, segundo
carta publicada (NDOC. p. 23, 24). Dele escreveria o padre José Ferreira de
Lacerda: “Raro tem sido o jornal português, quer diário, quer semanário, quer
católico quer independente ou livre pensador, que não tenha referido aos
acontecimentos da Fátima e muito principalmente ao fenômeno solar.” (NDOC. p.
65)
Estas notícias dão idéia da dimensão e universalidade do
evento apesar dos obstáculos criados pela autoridade civil e do silêncio da
autoridade eclesiástica. É muito importante examinar isto.
Aqui vamos fazê-lo considerando as seguintes questões: 1) se
para a fé católica é possível e plausível que um papa seja atendido diretamente
por uma intervenção sobrenatural; 2) se, neste caso, o evento de Fátima se
conforma ao pedido feito por Bento XV; 3) se a mensagem de Fátima está na
linguagem de sempre da Igreja; 4) se seus avisos e pedidos são atinentes ao
momento histórico em que foram dados; 5) se, satisfeitos os pontos acima, que
razões podem subsistir na Igreja para que ignore tal resposta.
Em primeiro lugar é preciso dizer que a Igreja ensina como
verdade de fé que a revelação concluiu-se com a morte do último apóstolo.
Portanto, nenhuma mensagem sobrenatural vem acrescentar algo à revelação.
Todavia, pela mesma revelação sabemos que houve a maior intervenção de Deus na
ordem natural pela encarnação da Segunda Pessoa da Santíssima Trindade. Esta
foi o apogeu de uma longa série de intervenções sobrenaturais em favor da
preparação desse supremo evento. Depois de Sua Vida, Paixão e Morte, o Verbo de
Deus encarnado deixou no mundo a Sua Igreja, sinal visível do Seu poder de
Senhor da História. A Ela e à sua hierarquia e pastor foram dados poderes de
ligar e desligar, além da promessa dada a todos os fiéis de que se pedissem ao
Pai em nome de Jesus seriam atendidos. A fé, a esperança e a caridade na Igreja
exprimem-se na oração e no Santo Sacrifício, que são pedidos de intervenção
divina. É claro que a resposta sobrenatural segue os desígnios de Deus que
dirige os eventos e envia os Seus profetas quando estes se tornam necessários,
acima de qualquer entendimento humano. A razão por que foram enviados serão os
próprios fatos que nos revelarão cedo ou tarde. Por exemplo, hoje sabemos que
São Pio X foi o profeta que avisou sobre o flagelo modernista, hoje chamado
progressismo.
A linguagem sobrenatural, velada para a visão espiritual
imperfeita do homem, torna-se indecifrável para a mentalidade racionalista que
pretende explicá-la na ordem natural. Negando-se a causa divina, presume-se que
fatos e fenômenos possam ter por causa um zombeteiro ou cruel, mas sempre cego,
acaso. Como, porém, sinais, milagres e profecias não têm o menor sentido para o
acaso, como de resto a própria Igreja que confirmou o evento de Fátima e ensina
ser instituída e guiada pela Divina Providência, a visão naturalista não
podendo negar o fato objetivo mostra toda a sua cegueira.
Mas, atenção: se essa cegueira é lamentável ao pretender
explicar os eventos do mundo, quando se manifesta dentro da Igreja e para
explicar fatos espirituais, toma a forma de uma letal apostasia. Pondo em
dúvida o senso cristão da História, contesta a própria Fé.
A Divina Providência tendo instituído a Igreja com o papa por
chefe, para guiá-la, guiará a este a quem deu poderes especiais. Este é um fato
verificado na História. Dependerá, porém, do uso que a pessoa que ocupa a
suprema sede fará de seus poderes, quer para pedir a ajuda divina, quer para
reconhecê-la.
OS AVISOS E AS PROMESSAS DA MENSAGEM DE FÁTIMA
O núcleo da mensagem de Fátima está nas palavras ditas no
dia 13 de julho de 1917 e registradas nas memórias da irmã Lúcia, a pastora de
10 anos que, acompanhada pelos priminhos Francisco e Jacinta, de 9 e 7 anos,
viu e falou com Nossa Senhora na Cova da Iria, em Fátima. Era a terceira
aparição, e Maria Santíssima fez ver aos meninos o inferno. Assustados e como
que a pedir socorro estes levantaram a vista para Nossa Senhora, que disse com
bondade e tristeza:
“Vistes o inferno, para onde vão as almas dos pobres
pecadores. Para as salvar, Deus quer estabelecer no mundo a devoção ao meu
Imaculado Coração. Se fizerem o que Eu vos disser, salvar-se-ão muitas almas e
terão paz. A guerra vai acabar, mas se não deixarem de ofender a Deus, no
reinado de Pio XI começará outra pior. Quando virdes uma noite alumiada por uma
luz desconhecida, sabei que é o grande sinal que Deus vos dá de que vai punir o
mundo de seus crimes, por meio da guerra, da fome e de perseguições à Igreja e
ao Santo Padre. Para a impedir, virei pedir a consagração da Rússia ao meu
Imaculado Coração e a comunhão reparadora nos primeiros sábados. Se atenderem a
meus pedidos, a Rússia se converterá e terão paz; se não, espalhará seus erros
pelo mundo, promovendo guerras e perseguições à Igreja; os bons serão
martirizados, o Santo Padre terá muito que sofrer, várias nações serão
aniquiladas; por fim, o meu Imaculado Coração triunfará. O Santo Padre
consagrar-me-á a Rússia, que se converterá, e será concedido ao mundo algum
tempo de paz. Em Portugal se conservará sempre o dogma da fé. etc... isto não o
digais a ninguém. Ao Francisco, sim, podeis dizê-lo.
“Quando rezardes o Terço, dizei, depois de cada mistério: —
Ó meu Jesus! Perdoai-nos, livrai-nos do fogo do inferno, levai as almas todas
para o Céu, principalmente aquelas que mais precisarem.”
Como se vê, é uma mensagem completa para indicar como
conseguir a paz do nosso tempo. É lembrada que a causa das guerras, fomes e
revoluções é a ofensa a Deus. É revelado o perigo iminente: os erros que a
Rússia espalhará pelo mundo. É preanunciada uma guerra pior que a vivida em
1917 (e o seu sinal premonitório) como castigo pelos crimes do mundo. São
preanunciadas perseguições à Igreja e ao Santo Padre. E é indicado o caminho
único e necessário para evitar todo esse mal. Mas, deixando entrever que esse
não será seguido, ainda assim confirma a esperança na promessa final: Por fim,
meu amor triunfará; as portas do inferno não prevalecerão.
Na mensagem que começou mostrando o maior perigo para os
homens que é a perdição eterna, o inferno, Maria Santíssima convoca
maternalmente os pastores, dizendo: “Se fizerem o que Eu vos disser,
salvar-se-ão muitas almas e terão paz.” Se esse apelo é geral, havia ainda um
reservado à hierarquia e ao papa. A que mais poderia aspirar o Santo Padre?
Os termos da mensagem mostram conformidade ao pedido de
Bento XV também na explicação implícita do desígnio divino que determinou a
grandiosa resposta que constituiu a aparição de Fátima. De fato, a carta do
papa fazia a invocação ao Santíssimo Coração, ao amor de Jesus, pela Medianeira
de todas as graças, a Mãe de Deus, depois que cada um se purifique para poder
pedir e reparar e que a Igreja com todos os seus bispos recorram à Rainha da
Paz usando a invocação ordenada pelo pontífice a fim de que pelos séculos se
preste glória ao poder de intercessão e triunfo de Maria Santíssima.
Anos mais tarde a vidente Lúcia confirmará esse desígnio com
a explicação dada por Nosso Senhor sobre a razão pela qual não operaria a
conversão da Rússia sem que o papa fizesse a consagração pedida: “Porque quero
que toda a Minha Igreja reconheça essa consagração como um triunfo do Coração
Imaculado de Maria, para depois estender o Seu culto e pôr, ao lado da devoção
do Meu Divino Coração, a devoção deste Coração Imaculado.” (DOC. p. 415)
Tudo isto está não só em conformidade com o modo em que foi
feito o pedido de Bento XV mas também com a linguagem de sempre da Igreja. Há
uma continuidade devocional com mensagens dadas a santos de épocas precedentes.
Há uma estreita ligação entre os pedidos do Sagrado Coração de Jesus e do
Imaculado Coração de Maria. E ambos seguem de perto o curso dos eventos
históricos. Sobre isto será surpreendente o que veremos mais adiante, referente
ao rei da França. Assim como é extraordinário o elo entre Fátima e o
Apocalipse, fato prenunciado também por santos anteriores às majestosas
aparições de Maria Santíssima, como é o caso de São Luís Maria Grignion de
Montfort.
Quanto à atinência da mensagem de Fátima ao momento
histórico, no mundo e na Igreja, é a razão mesma deste livro e será vista
praticamente em todas as suas páginas. Aqui seria apenas necessário acentuar
que desde o início foi de conhecimento público que a mensagem secreta
referia-se à guerra mundial e, portanto, a eventos históricos de dolorosa
atualidade. Além disso, seria possível às autoridades eclesiásticas conhecer o
segredo se o quisessem. Estas, porém, não reconheceram a “benigna solicitude de
uma grandiosa intercessão”, como havia escrito Bento XV. Por qual obscura
razão?
Certamente, em 1917 havia dificuldades que tornavam o evento
de Fátima embaraçante para as autoridades religiosas portuguesas e isto podia
ter criado resistências também no Vaticano. Admitir a hipótese, porém, de que a
notícia não chegou aos vértices da Igreja, senão ainda em 1917, quando devido à
guerra as fronteiras de Portugal estiveram fechadas, no ano seguinte, seria
devanear. As notícias concernentes à perseguição religiosa das autoridades da
república então voavam.
Há dois indícios consistentes de que Bento XV conhecia o
evento de Fátima desde o começo: O restabelecimento da velha Diocese de Leiria,
que compreende Fátima, incorporada a Lisboa desde 1881, com o breve papal Quo
vehementius de 17 de janeiro de 1918; na carta de 29 de abril de 1918 ao
episcopado português, há referência a “um auxílio extraordinário da parte da
Mãe de Deus” (Sebastião Martins dos Reis, Síntese crítica de Fátima, p. 281).
O processo canônico para autenticar as aparições de Fátima
com um bispo local seria facilitado. Mas infelizmente a nomeação demorou e o
titular de então, o cardeal Patriarca de Lisboa, Mendes Belo, voltando em 1919
de Roma, onde fora exilado pelo governo da república, ameaçava de excomunhão
qualquer padre que propagasse a devoção de Fátima. Procurava-se um termo de
compromisso político-religioso, e a aparição mariana, mesmo sem sua mensagem,
parecia um obstáculo.
Em 1920 Bento XV designava para a Diocese de Leiria dom José
Alves Correia da Silva, que foi consagrado bispo em julho e tomou posse em
agosto daquele ano, mas que, confessando-se alheio aos eventos de Fátima, só
abriu o processo para certificá-los em 1922, ordenando o primeiro
interrogatório oficial da vidente Lúcia em 1924. Eram assim passados sete anos
antes que a Igreja começasse a tomar o devido conhecimento da mensagem, o dobro
do tempo necessário para reconhecer oficialmente as aparições de Lourdes, apesar
da oposição das autoridades civis e desconfiança das religiosas, também lá.
Esse atraso não pode ser justificado pela prudência; ao
contrário, evidencia que no pontificado de Bento XV, morto em 1922 sem se
pronunciar publicamente sobre Fátima, transcorria considerável distância entre
fazer um apelo a Maria Santíssima pela paz na Terra e crer que a resposta
pudesse ser dada por uma aparição do Céu.
E, todavia, pode-se negar que Maria Santíssima atendeu o
apelo do Papa? É mais fácil supor que a fé que iluminara Bento XV a convocar os
bispos, o clero e os fiéis a pedirem pela paz, não foi suficiente para guiar a
esperança em uma resposta que transcendesse as trevas e as ameaças deste mundo.
Afinal, que solicitude mais benigna e qual intercessão mais eficaz pela paz
podia vir da Mãe Celeste?
Que admiráveis benefícios se o papa a reconhecesse!
BENTO XV E A RESPOSTA DE FÁTIMA
Os dois acontecimentos principais, que continuam
condicionando ainda hoje o século XX, ocorreram durante o pontificado do papa
Bento XV, que por isto deve merecer uma especial atenção.
Pelas extraordinárias aparições em Fátima, foi dada por meio
de três pastorzinhos uma mensagem de paz para o mundo e de salvação para as
almas, diante da sanguinária revolução comunista russa que trouxe terror e fome
para os povos e ateísmo para as almas. As aparições sucederam-se até dias antes
que ocorresse a revolução que era prenunciada como um grande castigo, fato este
sempre mais visível para crentes e descrentes, de 1917 até nossos dias. Surpreende,
pois, que não conste nos documentos escritos por Bento XV alguma menção
explícita sobre estes dois eventos, e isto é ainda mais paradoxal se meditarmos
sobre o que foi visto antes, isto é, que as aparições da Cova da Iria foram
pela época, forma e conteúdo uma clara resposta ao apelo feito pelo próprio
Bento XV pela paz no mundo.
Este sinal sensível, representando diretamente a vontade de
Deus para os homens, tem um valor tão inestimável que a busca da Igreja para
certificar sua autenticidade já seria uma graça. Ao contrário, porém, uma vaga
incredulidade, ou pior, indiferença até mesmo para iniciar essa busca, já
mostrava um declínio da fé na Igreja.
Podem filhos fiéis ficar desatentos aos sinais da vontade do
Pai? Podem julgá-los impossíveis ou vagos se crêem no amor do Pai que enviou
Seu Filho unigênito ao mundo para salvar os homens? Não nos foram sempre dados
sinais proféticos? Ora, o duvidar do Signum Magnum de Fátima confirma-o como um
novo sinal de contradição no qual ficariam refletidos desde o início os fatos
claros e escuros do mundo e da Igreja neste nosso século. É sintomático,
portanto, que Bento XV, desconhecendo-o, deixou de ver também a dimensão do
flagelo que a revolução de 1917 na Rússia seria para o mundo e para a Igreja.
E, todavia, a feroz intransigência do bolchevismo ateu de Lênin era conhecida
em toda a Europa.
A responsabilidade de vigilância papal é de tal ordem que é
preciso recorrer à doutrina católica da Comunhão dos Santos para conceber como
as forças e fraquezas de um só homem podem influenciar a vida moral e
espiritual de multidões: a abundância ou escassez das orações da Igreja inteira
é que a farão merecer um chefe forte ou vacilante. A ação do papa seria quase o
resultado da fé da Igreja militante, como se os católicos em cada época
tivessem o papa que a sua fé merece.
Longe de fazer dessas comparações um indevido sistema de
medidas, parece claro que o modo mais direto com que Deus pode responder à
oração de Sua Igreja é através do amparo dado à ação de Seu Vigário. Isto não
justificará as pessoas, mas ajudará a explicar como as altíssimas
responsabilidades são de certo modo compartilhadas, tanto com a carga dos
pecados como com o amparo das orações.
Se o julgamento de intenções é em geral impertinente, de
modo especial o é para com um pontífice. A ele se devem dedicar orações e
reverência, não insinuações e críticas.
Agora, tudo isto não impede que os católicos sejam também
vigilantes no avaliar, perante o próprio ensinamento da Igreja, o que pode
representar um mal para a fé. Só assim fazendo poderão reforçar de maneira
direta ou pela oração e sacrifício a correção de erros.
Na defesa da fé o papa deve ser o primeiro a interpelar os
que a agridem. Vemos, porém, que esse supremo dever foi afrouxando nos nossos
dias, do mesmo modo que a idéia que alguém possa interpelar, sobre isto e sobre
a fé, as autoridades da Igreja e sobretudo o papa.
E todavia nunca esse dever foi tão urgente, pela avalancha
de ataques de todos os lados contra a fé. O afrouxamento geral da sua defesa,
mais que a virulência do ataque que sempre existiu, mostra ser o perigo
culminante do qual os fiéis devem tomar consciência: a falsificação religiosa
que leva à desordem e à perdição.
Este livro quer mostrar como em Fátima os desígnios divinos
colocaram, para despertar os cristãos, uma “pedra de tropeço”, um “sinal de
contradição” que, tácita mas objetivamente, interpela as autoridades
responsáveis e os fiéis, convocando todos à defesa da fé, cujo vilipendio pela
perseguição à Igreja e ao santo padre seria o maior castigo para o mundo.
Vejamos os termos desse aviso.
Pela mensagem de 13 de julho de 1917 fomos lembrados de que
Deus castiga o mundo pelos seus crimes por meio da guerra, da fome e de
perseguições à Igreja e ao santo padre. Isto poderia ser evitado e a paz obtida
para o mundo se, através da consagração pedida, a Rússia fosse convertida de
seus erros; se não, a punição virá pela difusão destes erros no mundo. Estes
serão o flagelo permitido por Deus.
Note-se que as perseguições à Igreja e ao santo padre são
meios para punir o mundo de seus crimes e isto é dito em especial aos filhos da
Igreja que vivem no mundo e têm parte na ofensa a Deus, que é a causa de todos
esses males. Mas deste modo haveria três classes de punições: uma para o mundo
com a guerra, outra dobrada para os católicos, com a guerra e a perseguição da
Igreja, e outra ainda para o santo padre, com a guerra, a perseguição e o
sofrimento pessoal. Na verdade, este castigo é um só pela perseguição à fé.
Se Deus permitir que a fé perseguida decline na Igreja e o
papa tenha muito que sofrer na sua fé, isto será para o mundo um castigo pior
que as guerras, fomes e revoluções juntas, será o avanço do ódio sobre o amor e
a verdade. É o que o mundo está vivendo.
Consideremos a veracidade dos avisos da mensagem. Pois bem,
depois da última aparição — de 13 de outubro de 1917 — foi questão de dias a
Rússia cair sob o poder da revolução bolchevista que trouxe como uma avalancha
a morte e o ódio das perseguições que culminam na guerra a Deus e à Igreja, erros
espantosos dos quais a Rússia tornava-se ao mesmo tempo vítima e instrumento
mundial, como dizia a mensagem.
Quanto à grande guerra, que desde 1914 ensangüentava a
Europa e que parecia dever durar ainda muito, terminou um ano depois da
aparição, deixando porém instalado o flagelo soviético. E como o mundo
continuou a ofender a Deus, e a mensagem ficou desatendida, no fim do
pontificado de Pio XI uma outra guerra ainda pior estava armada!
Foi então que na noite de 25 para 26 de janeiro de 1938 uma
aurora boreal de dimensão quase inverossímil inflamou os céus da Europa e mesmo
da África do Norte, em cujas latitudes esse fenômeno é extremamente raro. Os
jornais registraram a notícia, mas com a mensagem menosprezada, quantos
poderiam reconhecer nessa luz desconhecida o aviso premonitório da segunda
grande guerra que devastou a Europa de 1939 a 1945?
Seguiu-se uma ilusória paz em que o mundo, dividido pelos
falsos acordos de Yalta, polarizou-se em dois grandes blocos, ocidental e
soviético (OTAN e Pacto de Varsóvia), entre os quais a guerra fria passou a ser
uma realidade no campo político, diplomático e estratégico, enquanto a guerra
cruenta ficava localizada em zonas convenientes ao expansionismo soviético da
Rússia, reforçada para impor seus erros com a criação de nações satélites que
multiplicariam revoluções e perseguições. Os bons seriam martirizados e a
escalada de terror atingiu o ápice com o atentado ao papa na praça de São
Pedro, em Roma. O santo padre teve muito que sofrer, como preanunciara a mensagem.
Era dia 13 de maio de 1981, aniversário da primeira aparição em Fátima, e o
pontífice sentiu-se salvo por milagre e chamado por esse misterioso encontro de
datas (v.pág.138).
A mensagem anunciou ainda o aniquilamento de várias nações,
mas sem especificar o modo ou valores demolidos; logo adiante, porém, é dito:
“Em Portugal se conservará sempre o dogma da Fé...” e segue a parte ainda
secreta, chamada o “terceiro segredo” da mensagem, que permanece escondida no
Vaticano, embora devesse ser publicamente conhecida em 1960, como veremos. É
lícito, pois, pensar que se trate principalmente de gravíssimas questões
concernentes à fé e à Igreja. Não só, mas a frase — “por fim, o meu Imaculado
Coração triunfará. O santo padre consagrar-Me-á a Rússia, que se converterá, e
será concedido ao mundo algum tempo de paz” — preanuncia uma vitória no fim de
um período em que essa deva parecer impossível, bem como a consagração feita
pelo papa para a conversão da Rússia. Ora, as dificuldades em atender à
mensagem existem desde o começo e continuam crescendo misteriosamente, a ponto
de o papa atual, sentindo-se chamado pela urgência dessa consagração, tentar
fazê-la junto aos bispos do mundo, mas sem conseguir mencionar a Rússia. Tudo
isso será relatado mais adiante. Aqui, interessa lembrar que até essas
tergiversações e dificuldades em atender ao pedido, que não deixa de ser
reconhecido como celeste, estão previstas nas palavras ouvidas pelos
pastorzinhos na aparição de Fátima, cuja história continua a registrar uma
série de previsões verificadas, mas também de pedidos eludidos e contornados.
Toda verdadeira profecia é voz de Deus que vem lembrar o que
está sendo esquecido, chamar à conversão, indicar o caminho perdido. Mas acaso
não compete aos chefes e guias religiosos ensinar e operar por vias regulares o
que a profecia vem lembrar por vias extraordinárias? A finalidade de chamar à
conversão para a salvação pessoal e o bem da Igreja, não é para os homens da
Igreja a mesma que a da profecia? Onde, então, a discordância?
Pois bem, se as razões desta não estão no conteúdo, nem na
oportunidade da mensagem profética, estão necessariamente na carência de fé dos
guias humanos ou especialmente nos seus desvios. As profecias são, mesmo quando
dirigidas a todos, concernentes de modo particular aos responsáveis pela vida
dos povos. Assim foi no passado e o mesmo se dá no presente. E a razão é ser
ela uma ajuda para vencer dificuldades humanamente insuperáveis ou invisíveis.
É a misericórdia divina que socorre os homens em suas desventuras e perigos. E
qual maior perigo que a cegueira espiritual dos guias? Seriam os cegos que
guiam os cegos e caem todos no abismo (cf. Lc. 6, 39). Não são estes duplamente
cegos, porque continuam a guiar com suas próprias idéias e recursos, sem ver
que são cegos?
Vimos assim que a Igreja, passados treze anos, reconheceu a
integridade católica, a fidelidade doutrinal e a utilidade para a fé da
mensagem de Fátima. Depois disso, a dificuldade em aceitá-la ou, pior ainda, a
crítica para tentar demoli-la levantam suspeitas.
Também os doutores da lei e os fariseus negavam Jesus em
nome de Abraão. Nosso Senhor mostra, porém, que já não fazem as obras de Abraão
(cf. Jo., 8, 39). Ao contrário, como seus pais, perseguem, com o intuito de
eliminar, os profetas. (Mt., 23, 29)
Seria assim também nos nossos tempos? Há razões para isso?
Ora, a História mostra que foi assim em todos os tempos. Há
um contínuo combate contra a verdade da parte de um mundo que aderiu ao erro e
dos muitos que aderiram a esse mundo e o servem. Mudaram as formas, as técnicas
e a dialética. A profecia é agredida pelo ridículo, sufocada pelo silêncio,
arquivada pelo seu “alarmismo”. Mas quem ainda tem olhos para ver, saberá que
isto confirma uma profecia autêntica. Pode significar até mesmo a razão por que
foi dada: testemunhar a infidelidade e impiedade de quem falhou.
Nossa Senhora atendeu ao apelo do papa e da Igreja pela paz.
“O enviado não é maior que aquele que o enviou.” (cf. Jo., 13, 16) Poderia ser
melhor recebida pelos grandes da Terra do que o foi Jesus pelos sumos
sacerdotes? O desprezo pela mensagem deixa claro que não.
O “AGGIORNAMENTO” DE BENTO XV
Ora, além dos fatos explícitos que a mensagem de Fátima
prenunciou em 1917 e já aconteceram, ou continuam acontecendo, quem almeja
entender melhor o evento de Fátima deve aprofundar o significado implícito do
sinal sobrenatural ter sido dado em 1917, assim como do fato de ter ficado
reservada uma parte secreta da mensagem para ser conhecida somente em 1960.
Um sinal dessa ordem, mesmo sem considerar o conteúdo dos
avisos que trouxe, já indica a necessidade de testemunhar, para o bem dos
homens, acontecimentos espirituais imperceptíveis, mas que pela sua natureza
vão determinar os demais, visíveis. Dada a sua origem, nada pode ser casual ou
irrelevante em Fátima. Ou é recebida pelo que quer indicar, ou permanecerá como
um marco de recusa, senão à sua mensagem, que não é imposta nem obrigatória, a
Quem a enviou para ajudar os homens envoltos em trevas. Se foi dada naquelas
circunstâncias é porque era necessária e deveria indicar algo que os homens com
os meios normais não viam. Era já então o marco de uma renovação ou de uma
decadência, segundo fosse aceita e atendida ou recusada e contornada. Não há
meio termo.
De fato, hoje sabemos que 1917 encerrou uma encruzilhada
para o mundo e para a Igreja. Em junho de 1917 reuniu-se um congresso maçom das
nações aliadas e neutras com o fim de constituir a Sociedade das Nações,
precursora da ONU. Os mesmos maçons fizeram uma manifestação contra o papa na
praça de São Pedro exaltando Lúcifer, como lembra São Maximiliano Maria Kolbe,
que fundou a Milícia da Imaculada, então, para convertê-los. Em 1917 houve
também a declaração do ministro inglês Balfour, que deu o primeiro impulso para
a formação do novo Estado de Israel. Em novembro, a revolução bolchevista,
tomando o poder na Rússia, constituía a primeira potência da história governada
por uma ideologia intrinsecamente contrária a Deus. Era o fato culminante de um
processo político que a Igreja sempre condenou. Já em 1846 Pio IX na Encíclica
Qui plurimus acusava: “a nefasta doutrina do assim chamado comunismo, contrária
em modo extremo ao próprio direito natural, a qual, uma vez admitida, levaria à
radical subversão do direito, da propriedade de todos e da própria sociedade
humana.”
Quando em 1917 o comunismo subjugou a Rússia e passou a ser
o gigantesco flagelo da ordem social cristã e perseguidora não só da Igreja mas
dos próprios princípios da fé, não veio de Roma o necessário e proporcional
grito de alarme. Que vírus entorpecera a cristandade?
Era sinal de que também na Igreja algo estava mudando?
É sempre muito difícil verificar uma mudança dessa ordem na
política vaticana, cujos documentos e decisões são amortecidos, na aparência,
por palavras estudadas, por medidas prudentes e por atitudes piedosas. Note-se,
porém, que mesmo nos movimentos lentos e contínuos a verdadeira mudança não
está na velocidade, mas na direção, e esta era diversa do pontificado anterior
de São Pio X. A distinção fundamental estava no espírito de compromisso.
Intransigente sobre tudo que dizia respeito aos direitos
divinos e, portanto, da Igreja, foi o papa Sarto; tolerante e diplomático foi
seu sucessor, papa Della Chiesa, Bento XV. A questão está, portanto, em
estabelecer os contornos desse espírito novo.
A tolerância e a diplomacia não são certamente males; muito
ao contrário, podem proporcionar compromissos úteis e benéficos para muitos.
Para compor questões e disputas, quase sempre as partes devem conceder
vantagens e admitir erros ou incompreensões. Trata-se de ceder sobre o que é
próprio, discutível e contingente. Seria absurdo, porém, fazê-lo sobre o que é
valor universal, indubitável e permanente, questões relativas ao bem e à
verdade e que transcendem o terreno e o temporal; em suma, sobre o que é de
Deus e foi confiado à Igreja. Lembrá-lo, oportuna e inoportunamente, é função
dos pastores e especialmente do papa. Essa santa intransigência com o erro é
inerente à Santa Sede, que por isto deve merecer todo respeito e atenção.
O que é o Reino de Cristo senão a pregação do império do bem
e da verdade? E como poderia vencer o mal e o erro no silêncio e no
compromisso? Por evitá-los sempre, São Pio X viu o seu “integrismo” para
“instaurar tudo em Cristo”, minado dentro da própria Igreja, dor que,
ajuntando-se à da luta fratricida na Europa, abreviaram-lhe a vida. Como os
cristãos de sempre, teria preferido o martírio a um compromisso com a glória
devida a Deus. Qual espírito impediu a Bento XV ver que esta era o alvo visado
pela revolução atéia na Rússia?
A mensagem de Fátima veio lembrar o ensinamento católico de
que os erros crescentes do mundo, aumentando a ofensa a Deus, tornam-se causa
de guerras, revoluções e sofrimentos da Igreja. Tomando o pontificado de São
Pio X como referência do apelo diuturno a essa vigilância que deve crescer com
a virulência do erro, pode-se dizer que sob Bento XV aparentemente pouco mudou
em termos teóricos, mas a aceitação de uma equívoca noção de tolerância e
unidade eclesial levou ao abrandamento das defesas erguidas por São Pio X. E
isto, diante do modernismo que o papa Sarto mostrara ser a síntese das heresias
na Igreja e, portanto, laboratório dos erros do mundo, foi uma abertura a
funestos compromissos. Esse mal continuava à espreita na Igreja, embora transformado
ou camuflado, e desaparecendo a santa intransigência papal que o retinha,
voltou a avançar livremente.
Bento XV renovara a exigência do juramento antimodernista
para os sacerdotes, mas desejando um apaziguamento dentro da Igreja, chegou a
reprovar com a encíclica Ad beatissimi que alguns católicos se proclamassem
integrais para distinguir-se dos liberais. Agiu como se o mal adviesse da
oposição e não do erro liberal já condenado por todos os papas precedentes.
Quando em 1921 uma intriga internacional abateu-se contra o Sodalitium Pianum,
verdadeiro quartel-general antimodernista formado sob São Pio X, para evitar o
embaraço de uma defesa difícil Bento XV pediu ao responsável por essa
organização também conhecida por La Sapinière, monsenhor Benigni, que a
dissolvesse. Tinha com que substituí-la? De modo algum, pois já no começo de
seu pontificado havia feito uma temerária abertura ao trust de jornais
católicos de tendências modernistas. Estes haviam sido reprovados
explicitamente por São Pio X em comunicação publicada pela Acta Apostolicae
Sedis de 1/12/1912. Em outubro de 1914 Bento XV fez saber através do secretário
de Estado, cardeal Gasparri, que essa advertência não tivera caráter de
proibição (Enc. Cat. VI, p. 462). Tanto bastou para que o jornalismo que
auspiciava o aggiornamento da Igreja aos tempos modernos voltasse com vigor às
idéias reprovadas por Pio X. Seria o laicismo, o naturalismo, o
interconfessionalismo, o democratismo, etc, propostos entre os próprios
católicos. Bento XV havia condenado o modernismo inovador mas, propenso às
soluções diplomáticas, evitou as questões que pudessem acentuar a “marca de
intransigência e reação” que o mundo dava à Igreja para isolá-la.
Em 1917 fez um apelo às nações beligerantes pela paz. Não
foi ouvido senão para ser criticado, e terminada a guerra a Conferência da Paz
o ignorou até mesmo sobre a questão da Palestina. No que concerne a Portugal,
São Pio X havia anos antes rejeitado as imposições contra a Igreja do governo
republicano, assim como fizera com o governo francês em 1905. Com a encíclica
Jamdudum in Lusitania, de 24/5/1911, acusou as forças anticlericais da
república e condenou como absurda e monstruosa a lei de separação entre a
Igreja e a república portuguesa. Essa recusa de procurar compromissos resultou
no exílio de bispos e na prisão de sacerdotes, mas também na consolidação de
uma resistência católica que demonstrará a sua força anti-revolucionária por
ocasião das aparições de Fátima.
Com Bento XV a atitude da Igreja mudou. Terminada a guerra, as
relações diplomáticas entre Lisboa e a Santa Sé foram restabelecidas. “Em
dezembro de 1919, Bento XV dirigiu um apelo aos católicos portugueses
incitando-os a se submeterem à autoridade da república como legalmente
constituída e a aceitar mesmo os cargos públicos que lhes fossem oferecidos. A
beatificação de Nuno Alvarez, o herói de Aljubarrota, contribuiu muito também
para o incremento dos sentimentos de cordialidade. Não obstante, o governo
continuava a perseguir a Igreja de diversas maneiras. Empregava todos os meios
ao seu alcance para impedir o surto de devoção de Fátima. Talvez tenha sido por
esta razão que o cardeal Mendes Belo, Patriarca de Lisboa (de volta do exílio),
tenha ameaçado de excomunhão qualquer padre que propagasse a devoção e falasse sobre
as aparições... Parecia-lhe inoportuna a eclosão de uma nova devoção nesse
momento em que estavam melhorando tanto (?) as relações entre a Igreja e o
Estado.” (NSF, p. 155)
Neste mesmo livro fala-se de chacotas feitas sobre Fátima,
às quais esse prelado à escuta aderiu rindo. Mas tudo isso a pouco serviu. “Em
13 de maio de 1920, o governo mandou dois regimentos do exército à Cova da Iria
para impedir a devoção de Fátima. A multidão pôs-se a rezar o terço e a cantar
e até guardas acabaram aderindo e o cerco rompeu-se.” (NSF, p. 168)
Nesse mesmo ano a Rússia, sob o governo comunista, foi
flagelada por uma das maiores fomes de que se tem notícia, fazendo muitos
milhões de mortos. Os governos ocidentais estavam incertos sobre como poderiam
ajudar sabendo que socorrer essa população faminta significaria também reforçar
o governo que era causa da tragédia.
Foi Bento XV quem simplificou essa grave questão moral
proclamando em 1921, diante das nações indecisas, “ser dever de cada homen
acorrer onde outro homem morre”. Tratava-se de uma caridade toda humana que
iria socorrer populações desesperadas, desconhecendo se a ajuda chegaria ao
destino, mas sabendo que iria reforçar a causa dessa e de outras desgraças
funestas, que era o comunismo. Além disso, as necessárias tratativas para
fazê-lo davam inevitavelmente ao regime revolucionário de Lênin, declarado
destruidor da ordem civil anterior e perseguidor da religião e da liberdade, o
reconhecimento de sua legitimidade. Em o Erro do Ocidente o escritor russo
Soljenitsin dirá: “As forças ocidentais ocuparam-se em reforçar o regime
soviético com ajuda econômica e apoio diplomático, sem o que esse não teria
sobrevivido. Enquanto seis milhões de pessoas morriam de fome na Ucrânia e na
região do Kuban, a Europa dançava.” Tal acomodamento político, que ajudou a
consolidação do ateísmo militante que iria expandir-se a ferro e fogo pelo
mundo, foi iniciado com o beneplácito papal de Bento XV. Certamente o comunismo
e também o modernismo não deixaram de ser condenados no seu pontificado, mas em
que termos e com quais ações? Não admira que quando da sua morte até comunistas
e anarquistas sentissem o luto (Enc. Cat. II, p. 1294). O mesmo se daria com
Paulo VI.
A aparição de Fátima, antes mesmo que sua mensagem fosse
conhecida, vinha reavivar a fé para prevenir da sua perseguição. A suavidade
com que o fez demonstra o cuidado divino em não ferir a livre vontade humana.
“Porque Deus amou de tal modo o mundo que lhe deu Seu Filho Unigênito para que
todo que Nele crer não pereça, mas tenha a vida eterna.” (Jo, 3,16)
A fé no Redentor salva os homens e pode consertar também
este mundo que Deus amou. Eis a resposta de fé que deu a aparição de Maria
Santíssima em Fátima. O primeiro passo para beneficiar-se dela, porém, era
reconhecê-la para depois acolhê-la.
Hoje sabemos a importância desse evento em 1917, vésperas da
revolução comunista e atéia que tomou o poder na Rússia, e — devemos
acrescentar — antevésperas das cogitações vaticanas de entabular compromissos
com um governo iníquo e inimigo declarado de Deus. A mensagem lembrava que a
única saída estava na conversão da Rússia, que com seus erros agredia esta
mesma fé à qual seria por fim convertida. Os pastores, porém, iniciaram seus
diálogos e compromissos com o erro.
Quanto a Bento XV, muitas razões podem ser alegadas para
explicar por que não reconheceu em Fátima a resposta a seu apelo de paz, mas
isto é de importância relativa. O fato extraordinário é que em 1917 Deus deu um
sinal sensível de Sua Vontade aos homens. O reconhecimento do papa seria um
tributo a esta verdade, mas não condiciona o evento em si. Este, mesmo antes
que a mensagem fosse conhecida, o que seria possível já então no dizer de
Lúcia, indicava o único caminho para a verdadeira paz no mundo e salvação das
almas. Para isto são dadas as profecias religiosas. Destas o papa é o supremo
juiz quanto à autenticidade, enquanto é também o máximo vigilante sobre os
enganos e ilusões contrários à fé. E por isto nada deve impedir que seja o mais
informado e atento observador de sinais e luzes divinas para melhor guiar a
Igreja. Quantos males evitaria ouvindo antes os avisos de Fátima que as
lucubrações de certos doutores!
Ainda sobre a relação entre o apelo de Bento XV e a resposta
de Fátima, podemos dizer que esta dá um claro testemunho do poder de invocação
do papa quando move toda a Igreja a pedir pela glória de Deus e salvação das
almas. O poder está na fé que pode remover montanhas se por ela reconhecermos e
almejarmos fazer a vontade de Deus. Não faltarão os Seus sinais. Disto também
dá testemunho a mensagem de Fátima que, sendo de origem sobrenatural e
representando uma síntese da fé, esperança e caridade católicas, foi dada como
solução para a paz do mundo.
Mas o mundo, culpado de crimes e revoluções, teve que expiar
com a guerra e a fome os flagelos de avidez e domínio que engendrou. A mensagem
de Fátima que veio prevenir sobre estes castigos não sendo ouvida, ao contrário,
aumentando vertiginosamente a ofensa a Deus, o mundo continua engendrando sem
ver um flagelo monstruoso. Mas o pior é que a prevaricação humana coíbe toda
solução e saída, prevalecendo também na Igreja, se forem ignorados avisos e
desprezadas ajudas. Eis o testemunho silencioso e triste de Fátima.
A civilização de Cristo Rei, implantada pelos mártires,
difundida por toda a Terra pelos santos e confirmada em todos os tempos pelos
papas, está sendo desertada e apostatada? Na Igreja, a preocupação com os
perigos terrenos passou a ser maior que com a perdição eterna?
Será chegado o tempo em que um delírio de liberdade
provocará obscurecimentos da fé, seguido de vertigens, cegueiras e pavores?
...”Haverá sinais no sol, na lua e nas estrelas e, na Terra,
consternação dos povos pela confusão do bramido do mar e das ondas,
estremecendo os homens de susto na expectação do que virá sobre o mundo, porque
as virtudes dos Céus serão abaladas.” (Lc. 21,25)
OS PEDIDOS DA MENSAGEM DE FÁTIMA
Foi em 1925 e em 1929, durante o pontificado de Pio XI, que
Nossa Senhora voltou a aparecer a Lúcia para trazer, confirmando nisso também o
que havia dito em 1917, o pedido da consagração da Rússia a Seu Imaculado
Coração, e a comunhão reparadora dos primeiros sábados.
No dia 10/12/1925, em Pontevedra, na Espanha, a Santíssima
Virgem apareceu tendo ao lado o Menino. Mostrava um coração cercado de espinhos
e disse: “Olha, minha filha, o meu coração cercado de espinhos que os homens
ingratos a todos os momentos me cravam, com blasfêmias e ingratidões. Tu, ao
menos, empenha-te em me consolar e diz que todos aqueles que durante cinco
meses no primeiro sábado se confessarem, recebendo a sagrada comunhão, rezarem
um terço e me fizerem quinze minutos de companhia, meditando sobre os quinze
mistérios do rosário, com o fim de me desagravar, Eu prometo assisti-los na
hora da morte, com todas as graças necessárias para a salvação dessas almas”.
(DOC, p. 401)
Três anos e meio após, no dia 13/6/1929, na capela do
convento de Tuy, na Espanha, irmã Lúcia teve a grandiosa visão do Mistério da
Santíssima Trindade.
Esses eventos extraordinários, ligados à mensagem dada pela
Mãe de Deus em Fátima, evidenciam como o Padre Eterno chama os homens à
compreensão da indispensável mediação de Maria Santíssima. É como se revelasse:
— Eis aquela na qual repousa toda a esperança de salvação para a humanidade. No
santo rosário está a válida defesa do papado, da Igreja, da pátria e da paz.
Nossa Senhora de Fátima, que trazia em sua mão esquerda o
Imaculado Coração com uma coroa de espinhos e em chamas, disse à vidente: “É
chegado o momento em que Deus pede para o santo padre fazer, em união com todos
os bispos do mundo, a consagração da Rússia ao meu imaculado coração,
prometendo salvá-la por esse meio. São tantas as almas que a justiça de Deus
condena por pecados, contra mim cometidos, que venho pedir reparação:
sacrifica-te por essa intenção e ora.” (DOC, p. 463/465)
Lúcia deu logo conta do que viu e ouviu a seu confessor, que
a mandou escrever tudo. Mais tarde, em carta ao padre Gonçalves (29/05/1930),
disse que Deus parecia instar do fundo de seu coração para que pedisse ao santo
padre a aprovação da devoção reparadora, e ainda: “Se me não engano, o bom Deus
promete terminar a perseguição na Rússia, se o santo padre se dignar fazer, e
mandar que o façam igualmente os bispos do mundo católico, um solene e público
ato de reparação e consagração da Rússia aos Santíssimos Corações de Jesus e
Maria, prometendo, Sua Santidade, mediante o fim dessa perseguição, aprovar e
recomendar a prática da já indicada devoção reparadora.” (op. cit., p. 405)
Poderia alguém estranhar que comunicações celestes, portanto
de inestimável importância e valor, sejam precedidas pela expressão “se me não
engano”, que admite a possibilidade de erro e, portanto, de contestação de toda
a mensagem. Para resolver essa dúvida, deve-se verificar se o que foi
transmitido por Lúcia é correto do ponto de vista moral e doutrinal e se era
religiosamente oportuno e, portanto, edificante para os fiéis. Além disso, é
preciso aquilatar o grau de credibilidade que merece a mesma vidente Lúcia.
Certamente ela não foi a única testemunha das aparições, cujos sinais muitos
viram e a Igreja reconheceu, mas é a única mensageira sobre a qual se apóia
toda a mensagem.
Começando, pois, por esta, sabemos que as autoridades da
Igreja verificaram que nada contém de contrário à fé ou aos costumes. De resto,
ao papa competindo confirmar os irmãos na fé, é assim de conveniência que seja
o santo padre a usar de seus poderes para ordenar aos bispos e aos fiéis, como
pede a mensagem, o que deve ser feito quando o interesse da fé e, portanto, da
salvação está em jogo. Para isto foi pedida a prática de uma devoção e um ato
de consagração que se harmonizam com o que a Igreja sempre ensinou e promoveu.
Há, por conseguinte, fidelidade católica na forma.
Quanto à oportunidade dos pedidos, ela pode ser vista também
no simples campo histórico: quanto horror, sofrimento e conflitos teriam sido
evitados neste mundo se a Rússia tornasse ao Cristianismo repudiando a
ideologia perversa da qual se tornou promotora?
Ora, também o modo pelo qual esse pedido é feito segue
rigorosamente a teologia sempre ensinada e repetida, por exemplo, por Pio XII
na ocasião em que agradecia a intervenção da Virgem na preservação da Cidade
Eterna e de seus habitantes, durante a 2.a Grande Guerra contra qualquer
previsão humana:
“Quem quisesse implorar à Virgem a cessação dos flagelos,
sem um sério propósito de reforma da vida privada e pública, estaria pedindo
simplesmente a impunidade da culpa, o direito de regular a própria conduta não
com a Lei de Deus, mas com as paixões desenfreadas. Tal súplica seria a negação
e o contrário da súplica cristã, seria uma injúria a Deus, uma provocação à Sua
justa cólera, um obstinar-se no pecado, que é o único e verdadeiro mal do
mundo.” (Homilia de 13/6/1944, na Igreja de Santo Inácio)
O pedido de Fátima funda-se na reparação pelas ofensas e
blasfêmias, mas também ingratidões contra Deus e os santíssimos corações,
sinais de Seu infinito amor, que a tudo atende e perdoa aos que o invocam, mas
não pode permitir que prevaleçam impunemente o erro e o pecado. Também o
reconhecimento da onipotência divina sobre os eventos terrestres e o poder de
mediação da Virgem Santíssima sobre eles estão iluminados na mensagem,
integralmente fiel e a serviço da fé.
Quanto à fidelidade de Lúcia: são uma constante no
testemunho da irmã o cuidado extremo e os escrúpulos com que transmite as
mensagens. Mas o receio concerne somente à própria fraqueza e imperfeição, não
aos termos das revelações, sobre as quais jamais vacilou ou se contradisse,
embora submetida desde pequena a numerosíssimos e estudados interrogatórios por
parte de autoridades sagazes, mas também maliciosas. Assim sendo, a integridade
das palavras celestes está também garantida pelo pudor, simplicidade,
desinteresse, mas grande firmeza dessa alma cândida, eleita para repetir as
palavras da Mãe celeste. Ora, se isto se estende a Francisco e Jacinta, os dois
primos pastorzinhos, que em modo mais limitado testemunharam a aparição e de
quem está em curso a causa de beatificação, que dizer de Lúcia, escolhida para
ser a testemunha plena da aparição e também da mensagem de Fátima! Poderia o
Céu enganar-se, escolhendo uma mentirosa ou iludida?
A objeção de que não seria acreditada foi feita por Lúcia,
que pediu um milagre de Nossa Senhora para que todos cressem. Este foi
anunciado por Maria Santíssima em julho, agosto e setembro, realizando-se
diante grande multidão em outubro. (DOC. 339, 343, 345, 349)
Foi o chamado “milagre do sol”, que no dia 13 de outubro de
1917 teve por testemunhas mais de 70 mil pessoas, entre as quais também
jornalistas agnósticos e descrentes. Assim, se o fato “incrível”' se tornou
patente para tantos que o viram, por que a mensagem dessa mesma aparição,
reconhecida pela Igreja como autêntica, e tão incrível que quase tudo que
anunciou já faz parte da história contemporânea, deveria ser suspeitada? Se os
pastorzinhos não sonharam a aparição extraordinária, por que deveriam ter
inventado, ou mesmo distorcido, a sua mensagem perfeitamente lógica também no
plano natural?
Ora, tudo isto foi dito com a intenção de pôr em evidência a
lição evangélica de que a conversão é necessária a todos e sempre, não só para
quem vive longe da religião ou apartado da Igreja. Antes, pelas razões vistas,
ninguém mais que os pontífices e guias religiosos precisam preocupar-se com a
própria conversão. A responsabilidade, a par das dificuldades, o impõe. Basta
pensar que as autoridades não só não são guiadas como os subalternos, mas
freqüentemente são desviadas, pela adulação ou reverência destes, a considerar
que tudo o que julgam ou decidem é sábio, senão inspirado. Não poucos são os
chefes que, do alto da própria posição, esquecem a finalidade desta e o dever
da perene vigilância.
A Pedro disse Jesus: “Simão, Simão, eis que Satanás vos
reclamou com instância para vos joeirar como trigo; mas Eu roguei por ti, para
que a tua fé não falte; e tu, uma vez convertido, confirma os teus irmãos.”
(Lc, 22, 31-32) É o grande amor e temor de ofender a Deus que mantêm os chefes
à testa, na senda da verdade. Assim, deveriam acolher com reverência e gratidão
um aviso celeste que vem ajudá-los com a promessa: “Se fizerem o que Eu vos
disser, salvar-se-ão muitas almas e terão paz”; “Se atenderem aos Meus pedidos,
a Rússia se converterá e terão paz; se não... espalhará seus erros pelo
mundo...” E isto acontece desde então; o ateísmo espalhado pelo mundo e até
dentro da Igreja. Não é preciso acreditar na mensagem de Fátima para verificar
essa terrível realidade. Mas ignorar sua ajuda significaria ignorar o grave
dever de vigiar sobre o enorme perigo e enfrentá-lo em tempo na defesa da fé.
CRISTO REI NO REINADO DE PIO XI
Na aparição de 13 de julho a pastora Lúcia soube de Nossa
Senhora que se não a atendessem, deixando de ofender a Deus, começaria outra
guerra, ainda pior, no reinado de Pio XI. Esse nome era inexistente em 1917 e
Lúcia explicará ao padre Jongen não ter idéia se ele seria de um papa ou de um
rei. Isto consta do interrogatório feito pelo Monfortiano holandês em 1946,
publicado pelo padre João Marchi.
O pontificado de Pio XI é assim o único mencionado
diretamente na profecia de Fátima e nele ficaram claramente definidos os dois
eventos principais que, de modo oposto, continuam a condicionar o século XX: a
revolução comunista russa que dominou o império czarista e passou a ameaçar o
mundo; as aparições de Nossa Senhora em que esse perigo foi anunciado, com sua
causa e seus remédios. Para isto prometera voltar com os pedidos de consagração
da Rússia e comunhão reparadora dos primeiros sábados, o que fez em 1925 e
1929.
Ora, em maio de 1918 o futuro Pio XI, monsenhor Achille
Ratti, era bibliotecário vaticano e o papa Bento XV, interrompendo seus estudos
histórico-literários, enviou-o como visitador apostólico à Polônia, Lituânia e
Rússia, cuja tragédia passou a conhecer muito bem, embora não lhe tivesse sido
possível visitá-la.
Estes fatos e os que se seguiram mostram que os desígnios da
providência faziam com que o futuro papa fosse posto em contato direto com os
grandes problemas mundiais e os métodos diplomáticos ensaiados para
enfrentá-los. Uma nova era de política concordatária fora aberta por Bento XV
(cf. Enc. Cat. v. IV, p. 193). A ela se aplicaria o espírito aberto às
democracias emergentes do futuro Pio XI.
Tratava-se de concordar sobre os dissídios em potencial da
Igreja, a fim de que ela pudesse exercer uma nova função de medianeira no
concerto democrático das nações. Em Fátima, porém, na mesma época havia sido
lembrado que não pode haver neutralismo católico diante do erro. Este nunca
leva à paz e é injurioso a Deus, como ensinou São Pio X.
Em 1919 monsenhor Ratti foi nomeado núncio em Varsóvia,
sendo consagrado arcebispo, com o título de Lepanto, diante do presidente
Paderewsky, do marechal Pilsudski e seu governo. Dessa posição desenvolveu
grande atividade também em relação à Finlância, Letônia, Lituânia e Geórgia,
iniciando alguns acordos que iria concluir como papa.
Seria interessante meditar sobre um acontecimento na vida de
Pio XI, quando ainda era núncio em Varsóvia. Foi no verão de 1920.
“A Ucrânia, saída das ruínas da revolução russa e da antiga
Áustria-Hungria, restava ameaçada a leste: Kiev desde 1919 fora retomada pelos
bolchevistas. A Polônia foi então em socorro da Ucrânia, e o marechal Pilsudski
desbaratou o exército vermelho. Mas seus chefes juraram desforra e
contra-atacaram furiosamente, reocupando Kiev e dispersando o exército polonês,
que foi perseguido até as portas de Varsóvia. Na manhã de 10 de agosto a
situação era trágica: os bolchevistas haviam atravessado o Vístula. Houve uma
evacuação rápida para Poznan. Os embaixadores deixaram Varsóvia. Permaneceu
somente o núncio apostólico, decidido a ficar até o fim, mesmo se a capital
caísse nas mãos dos soviéticos. A França enviou às pressas um de seus melhores
chefes militares para organizar a resistência. Foi o general Weygand, a
testemunhar que monsenhor Ratti foi nesses dias mais intrépido que os
poloneses. Sua presença inspirava confiança e dava coragem. Foi em Varsóvia o
irmão em armas do cardeal Mercier em Malines. Encarnou a fé polonesa. (...) Uma
noite o general lhe disse: — 'Tudo está pronto, nada nos resta senão solicitar
a ajuda de vossas preces...' O dia seguinte, 15 de agosto (Assunção), a Virgem
estendeu sua proteção sobre a Polônia católica; uma contra-ofensiva atacou pela
retaguarda o grosso das tropas bolchevistas reunidas diante de Varsóvia e, dias
após, o exército vermelho ficou definitivamente vencido. Assim a Polônia,
libertando seu território, preservara a Europa do perigo iminente dos
soviéticos. Monsenhor Ratti havia sido ali a figura do 'Defensor Civitatis'.”
(Pie XI, Mons. Fontenelle, Ed. Spes, Paris, 1938).
Reconheceria o futuro Pio XI em suas preces a causa próxima
dessa vitória? De todo modo, a causa final só poderia ser a glória de Deus,
cuja participação humana está em proclamá-la para o bem da Igreja inteira. O
mesmo seria para com os pedidos de Fátima. Mas, infelizmente, estes sabemos que
o papa Pio XI não soube acolher.
Em fevereiro de 1922 morre Bento XV e poucos dias após o
cardeal Achille Ratti é eleito seu sucessor. Embora se propusesse continuar, em
suas grandes linhas, a política de conciliação internacional seguida por Bento
XV, preferiu tomar o nome de Pio. Concluiria 18 concordatas, além de vários
acordos e modus vivendi, alguns dos quais havia preparado pessoalmente. Era o
resultado da reaproximação à Santa Sé de países que sentiram depois da guerra
de 14-18 os inconvenientes da separação forçada entre Igreja e Estado, mas
também a necessidade de estabelecer novas relações pelo desmembramento do Império
Austro-Húngaro. É, pois, evidente a importância da nova política.
Ora, sobre questões de concordatas, que tocam de perto a
doutrina da realeza de Cristo, supremo legislador da sociedade humana, os papas
sempre se pronunciaram com documentos muito fortes, São Pio IX, com a encíclica
Quanta Cura e o Syllabus (8/12/1864), condena a separação e a dependência que o
Estado quer impor à Igreja, como se esta não fosse uma sociedade livre com
direitos próprios e permanentes conferidos pelo seu Divino Fundador. Não temeu
ver Roma invadida pelas tropas italianas para reafirmar essa verdade. Preferiu,
a ceder quanto ao princípio acima, considerar-se prisioneiro. Do mesmo modo São
Pio X, diante da ruptura da concordata napoleônica na França, em 1905,
pronunciou-se com a encíclica Vehementer, sem permitir que a força dobrasse os
direitos e princípios da Igreja. E apesar das perdas materiais e das
humilhações físicas, a vida espiritual na França beneficiou-se muito dessa
firmeza. Com Pio XI, de certo modo esses problemas voltavam na Itália, na
França, em Portugal, no México e em países do leste europeu.
Em dezembro de 1922, no início de seu pontificado, Pio XI
pronunciou no consistório secreto o discurso Vehementer gratum est, em que,
fazendo o elogio de Bento XV, fala do primado da caridade e dos esforços de paz
em continuar o envio de ajuda à Rússia. Anuncia também a encíclica Ubi arcano
Dei sobre os males presentes e suas causas e remédios é “a Paz de Cristo no
Reino de Cristo”, que será o lema do seu pontificado. Nela dirá que uma
Sociedade das Nações sem Cristo é utopia! Mas confirmando a política de
assistência à Rússia comunista, vítima da perseguição e da fome, nutriu a
ostpolitik em embrião, cujos resultados falimentares conhecerá bem cedo. Ali a
Paz de Cristo seria impossível porque era combatida Sua idéia e Sua Igreja. Em
qual base, então, seria negociável uma eventual concordata?
Em dezembro de 1925 é publicada a encíclica Quas primas,
sobre o Reino de Cristo que vai sendo esquecido pelos homens. É instituída a
festa de Cristo Rei para lembrá-lo aos cristãos. Mas quem o lembrará ao mundo?
Uma política concordatária justa poderia fazê-lo, mesmo encontrando
resistências e perseguições, como ocorre com todo testemunho. E este consistia
essencialmente em defender o princípio da soberania social de Cristo em toda a
Terra e sobre qualquer conveniência.
Em 1926, com a carta Paterna sane sollicitudo Pio XI
denunciou o governo revolucionário do México que persegue uma maioria de 95 %
de católicos, chegando a sustentar para isso uma seita que tem o nome de Igreja
Nacional. Esse estado de coisas vem da constituição de 1917 e da qual derivou
em 1926 a iníqua lei Cultos-Calles, cuja atitude contra a Igreja católica
provocou a reação armada dos cristeros. No início o papa animou-os na sua
defesa dos valores cristãos até o martírio.
Em 1929, porém, deixou-se aconselhar pelo delegado
apostólico Ruiz e Flores e pelo arcebispo Diaz Ibarreto do México, que
propunham um modus vivendi com o governo revolucionário (minoritário). Por ouvir
a nova orientação do papa e da hierarquia, os defensores da Igreja de Cristo
Rei cederam as armas e foram traiçoeiramente dizimados. Foi um modus moriendi,
como diria o bispo Lara y Torres.
Apesar disso, anos depois Pio XI condenou os cristeros que
não haviam acolhido — mas desobedecido — suas indicações de apaziguamento.
Também em 1926, na França, o papa condenou a Action
Française, liderada pelo monarquista Charles Maurras que, embora acatólico,
liderava a luta contra o laicismo e pelo monarca que fosse o lugar-tenente de
Cristo Rei. Pio XI sempre favoreceu e preferiu a Ação Católica mas esta não
tinha condições de substituir os primeiros no campo político, o que levou a uma
débacle dos valores católicos na França.
Quanto à Itália, em 1929 foram firmados os pactos de Latrão,
que davam um reconhecimento de fachada à religião católica, mas na verdade eram
uma conciliação com o estado moderno fascista ou liberal (cf. Chiesa Viva, n.º
148). Dois anos depois Mussolini atacava a Ação Católica e Pio XI condenava o
ato com a encíclica Non abbiamo bisogno.
Em modo mais rápido e drástico foi a assinatura e a violação
da concordata com o Reich de Hitler em julho de 1933. Já em março de 1934
começava uma aberta perseguição da Igreja na Alemanha. Pio XI condenava o nazismo
com a encíclica Mit brennender sorge, em 1937, nos mesmos dias em que condenava
o comunismo com a encíclica Divino Redemptoris. Como se vê, Pio XI esteve
pronto tanto para tratar com regimes fortes de doutrinas distorcidas como para
condenar estas e os regimes respectivos.
A Pio XI não faltou energia para acusar os erros, suas
encíclicas doutrinais o demonstram. Depois de citar as principais veremos como
as usou no campo das concordatas que tanto o ocupou.
Em janeiro de 1928, com a encíclica Mortalium animos
condenou os erros do pan-cristianismo, germe do ecumenismo pós-conciliar
hodierno. De fato, há nessa mistura de fé uma verdadeira ofensiva à idéia de
Cristo Rei e Sua doutrina, que seria igual a tantas outras, como se caridade e
união fossem possíveis sem a única fé.
A Quadragesimo anno é de 15 de maio de 1931 e lembra a
doutrina social da Rerum novarum de Leão XIII, baseada no Decálogo e na Lei
natural, contra o que se abatem as forças desordenadas do mundo e a rebelião a
Cristo do homem moderno.
O caráter forte e autoritário do papa Ratti não aceitava
intimidações no campo prático nem ameaças à doutrina no campo religioso sem dar
uma corajosa resposta ou advertência. Tudo indica, porém, que muitas vezes
esteve propenso a tentar soluções pessoais e a tratar com adversários da
Igreja, procurando ignorar a malícia anticristã destes. Assim, muitos acordos
parecem apoiar-se mais nos recursos humanos que no princípio imutável dos
direitos divinos, fazendo com que o reinado de Cristo ficasse no âmbito eclesial.
No âmbito civil confiou em que a Ação Católica pudesse promovê-lo, mas essas
organizações já haviam mostrado seus limites e inconvenientes sob São Pio X.
Eram os princípios sobrenaturais na sociedade humana que entravam em crise, o
erro organizativo era conseqüente.
É preciso relevar que, das concordatas feitas no pontificado
de Pio XI, as que melhor resistiram ao tempo e às forças inimigas da Igreja
foram as de Portugal (1928) e da Itália (1929). A primeira, conseqüência da
restauração católica que seguiu os eventos de Fátima, e que se apoiou na fé dos
portugueses, povo e governo. Mesmo quando veio a “revolução dos cravos”, que
trouxe o socialismo a Portugal e ameaçou bombardear Fátima, o espírito católico
português resistiu e a concordata não foi anulada. A proteção do Imaculado
Coração de Maria que se manifestou desde 1917 e especialmente nas décadas de 30
e 40, repetiu-se em 1975. O povo, guiado pelos prelados devotos, recorreu em
massa a essa intervenção. Eis a fé que sustenta as leis cristãs e as
concordatas eclesiais.
Quanto à concordata da Itália com a Santa Sé, resistiu
precariamente até vinte anos depois do Concílio Vaticano II, mas no seu
espírito foi modificada, como o havia sido a concordata com a Espanha sob Paulo
VI. Depois do espírito concordatário soprou o espírito conciliar e depois deste
até a idéia de Cristo Rei esvaiu.
A LUTA DE PIO XI CONTRA OS ERROS DA RÚSSIA
Foi durante esse pontificado, que durou de 1922 a 1939, que
o poder soviético consolidou-se na Rússia, impondo sua ideologia e ateísmo,
apesar das carestias e massacres sem precedentes históricos que isso causou.
Trata-se de milhões de mortos. Ora, Pio XI conhecia bem essa tragédia e,
convocando os católicos à oração, já em 1922 concedia trezentos dias de
indulgência para a jaculatória: “Salvador do mundo, salvai a Rússia.” Mas as
iniciativas para lembrar aos fiéis a gravidade do problema não impediram que fosse
continuada a política de assistência, que no fundo implicava aproximações e
compromissos, já iniciados por Bento XV. É justamente chamada de ostpolitik,
primórdio da aberta política conciliar atual, e descrita em seus pormenores no
livro de frei Michel de la Sainte Trinité, Toute la verité sur Fatima (vol. II,
p. 351 e segs.). Ora, nessa mesma obra relata-se como Pio XI em 1929 fizera
organizar em vários pontos da Europa conferências para que os cristãos tomassem
conhecimento da perseguição comunista que o papa assim descrevia: “A reparação
mais universal e solene é necessária pela recrudescência da propaganda oficial
feita de tantas blasfêmias e impiedades” (...) Não somente foram fechadas
centenas de igrejas, queimados inúmeros ícones, obrigados ao trabalho todos os
trabalhadores e alunos das escolas, cancelando-se os domingos e feriados, mas
chegou-se a obrigar os operários das fábricas, homens e mulheres, a assinar
declarações de apostasia formal e de ódio a Deus sob pena de serem privados de
tudo (...) “organizaram-se também infames espetáculos de carnaval durante os
últimos natais... escarnecendo e cuspindo sobre a Cruz.” (op. cit., p. 341)
Em vista disso tudo, Pio XI queria que “todos os seus irmãos
do episcopado católico e todos os cristãos do mundo” se unissem em uma súplica
solene. Para tanto foi organizada em Roma, no ano de 1930, apesar da
hostilidade de governos pró-soviéticos, uma solene cerimônia de reparação pela
perseguição na pobre Rússia.
Veremos que há razões suficientes para pensar que este ato
solene convocado pelo papa poderia levar ao indicado pelo Céu para o
cumprimento da consagração da Rússia ao Imaculado Coração.
- Antes de tudo, porque o pedido foi feito em 1929 (p. 21) e
transmitido pela vidente Lúcia em seguida, como consta de sua carta ao papa Pio
XII de dezembro de 1940: “Dei conta ao confessor do pedido de Nossa Senhora.
Sua Revcia. empregou alguns meios para que ele se realizasse, fazendo-o chegar
ao conhecimento de Sua Santidade, Pio XI. (DOC, p.437)
Naquele ano o bispo de Leiria deve ter estado em estreito
contacto com o Vaticano para o reconhecimento oficial pela Igreja do evento de
Fátima, que se deu em 13 de outubro de 1930, treze anos depois do grande
milagre do sol. Sabe-se que Pio XI, tomando conhecimento dos detalhes do
processo, havia estimulado dom José a reconhecer as aparições (TVF, II, p.
243). Já em 13 de maio de 1928 havia o papa autorizado que o Osservatore Romano
(n.º 28) publicasse um relato elogioso do que se conhecia de Fátima, tendo no
ano seguinte distribuído pessoalmente aos alunos do seminário português de Roma
imagens da aparição com a inscrição: “Nossa Senhora do Rosário de Fátima, rogai
por nós”. Isto foi presenciado por monsenhor Domingos Frutuoso, bispo de
Portalegre, que se havia oposto ao culto de Fátima. Expondo seus escrúpulos a
Pio XI este perguntou: — Quantos seminaristas tínheis em 1917? “Dezoito, Santo
Padre.” — E agora? “120”.
Que esperais, então, para agradecer a Nossa Senhora de
Fátima?. (MF, p. 27)
Esta resposta do papa ao bispo sem dúvida dá bem idéia de
como estava informado e convencido das origens do grande evento. Devia conhecer
também o pedido de 1929. Lúcia responde a William Thomas Walsh:
“Em 1929 escrevi os desejos e pedidos de Nosso Senhor e
Nossa Senhora, que são os mesmos, e entreguei-os ao meu confessor, que nesse
tempo era o reverendo padre Bernardo Gonçalves S.J., agora Superior da Missão
de Zambésia Leifidizi. Sua Reverendíssima transmitiu minha carta a Sua Excia. o
senhor bispo de Leiria e, logo depois, chegava às mãos de Sua Santidade Pio XI.
Não sei a data exata em que Sua Santidade a recebeu, nem o nome da pessoa que a
levou. Mas lembro-me muito bem de que meu confessor disse-me que o Santo Padre
ouvira bondosamente a mensagem e prometeu tomá-la em consideração” (NSF, 198)
Aqui, é importante notar que já em 17 de dezembro de 1927
Lúcia foi autorizada pelo Céu a revelar as duas primeiras partes da mensagem,
como disse sempre ao padre Jongen, em 1946. Estas estavam, portanto, ao alcance
das autoridades da Igreja e só não foram melhor conhecidas porque ninguém
perguntou sobre elas à irmã Lúcia.
Em 1929 havia, portanto, todos os elementos para que os
homens da Igreja cumprissem o pedido de Fátima: “É chegado o momento em que
Deus pede para o Santo Padre fazer...” (p. 21). No ano seguinte houve em Roma a
grande cerimônia de reparação pela Rússia e em outubro o reconhecimento oficial
da autenticidade das aparições. A consagração seria uma verdadeira graça
celeste, porque vinha dar a forma sobrenatural a um ato reparador para a conversão
da Rússia.
Era também o momento político mais propício, porque enquanto
a repressão e o terror da revolução soviética eram fatos mundialmente
conhecidos, ainda não havia assumido uma perigosa dimensão o novo fenômeno
político que causaria a II Grande Guerra: o nazismo nacional-socialismo alemão
cujos erros vistosos e agressividade fariam esquecer durante um período o
comunismo soviético.
Em 1930 as atenções ainda estavam voltadas para essa ameaça
universal e o papa Pio XI, depois da grande cerimônia de 19 de março,
continuava a lembrar a perseguição religiosa na Rússia, decidindo em 30-6-1930
que as orações depois da Missa (os exorcismos de Leão XIII) seriam ditas nessa
intenção. Foram muitas as iniciativas nesse sentido, mas por alguma razão misteriosa
evitou-se utilizar a indicação dada em Fátima. A esta ajuda, cuja origem
sobrenatural a Igreja tinha reconhecido, não recorreu o papa para salvar o
mundo e a Rússia do seu maior inimigo. Mas assim se deixava passar também a
ocasião de uma excepcional homenagem a Nossa Senhora. Frei Michel de la Sainte
Trinité (TVF, II, p. 336-343) mostra como esta havia estado nos planos de São
Pio X, que aguardara somente um sinal propício da Providência para convocá-la.
É interessante saber, porém, que já autorizara uma festa em honra de Nossa
Senhora dos Santíssimos Sacramentos no dia 13 de maio (FGS., p. 31) e concedera
em 13/6/1912 a indulgência plenária para quem nos primeiros sábados do mês
fizesse atos de reparação pelas ofensas ao nome e prerrogativas de Maria
Santíssima Mãe de Deus. (cf. Mf. p. 120)
Como se vê, tudo em Fátima é dado segundo a Igreja e o papa.
O pedido de consagração da Rússia e a devoção reparadora dos primeiros sábados
calhavam tão bem para o que Pio XI então quisera fazer que parecia resposta a
uma pedido deste papa, antes que de Bento XV.
E todavia os termos humanos prevaleceram sobre os de Fátima.
E aquela ocasião propícia passou. Nem a milagrosa aparição
na Cova da Iria, nem a surpreendente restauração social e religiosa de
Portugal, que foram reconhecidas por Pio XI, convenceram-no da necessidade de
atender os pedidos de Fátima para salvar a Rússia e tantas almas. Em 1933, na
Alemanha, o nazismo de Hitler que chegou ao poder com uma rapidez surpreendente
já em 14 de julho concluiu uma concordata com o Vaticano. Pio XI, que “para
salvar almas disse que trataria até com o diabo” (PXI, p. 412), tratou com os
nazistas e continuava tentando tratar com os soviéticos que o queriam condenado
à morte desde 1923 (cf. Pravda, ref. Enc. Cat. IX, p. 1535). Depois de 15 anos
de uma política humilhante e de péssimos resultados, Pio XI, com a encíclica
Divini Redemptoris, de 1937, condena o comunismo “intrinsecamente perverso, com
o qual nenhuma colaboração é possível”. Nela é lembrado São Mateus (17, 20): “Males
dessa ordem que hoje atormentam a humanidade só podem ser vencidos por uma
cruzada de oração e penitência... pela potente intervenção da Virgem Imaculada”
(§ 59). Pio XI, porém, não havia utilizado as armas de fé que lhe tinham sido
oferecidas, acompanhadas de sinais extraordinários. Preferira negociar, e o
momento passou.
“O PAPA FARÁ A CONSAGRAÇÃO, MAS SERÁ TARDE”
O padre Joaquim Maria Alonso OFM, estudioso de Fátima, cita
em seu livro Fátima Ante la Esfinge a carta de irmã Lúcia a seu bispo, de 29 de
agosto de 1931, em que comunica as seguintes palavras de Nosso Senhor: “Faça
saber a Meus ministros que, como eles seguem o exemplo do rei da França ao
retardar a execução de Meu pedido, eles o seguirão na desgraça. Nunca será
tarde demais para recorrer a Jesus e a Maria.”
Essa terrível comunicação do Senhor a Seus ministros, pelas
suas omissões em seguir o pedido de Fátima, consta também em outros documentos.
Assim em uma comunicação íntima que irmã Lúcia teve:
“Não quiseram atender ao Meu pedido! [de consagração]...
Como o rei da França, arrepender-se-ão e fá-lo-ão, mas será tarde”.
A Rússia terá já espalhado os seus erros pelo mundo,
provocando guerras e perseguições à Igreja. O Santo Padre terá muito que
sofrer. (DOC, p. 465)
Eis um termo de comparação proposto pelo próprio Senhor,
entre passados reis cristãos da França e papas de nossos tempos. Ambos deveriam
ser essencialmente executores dos desígnios de Cristo Rei e estes haviam sido
expressos em forma de pedidos tanto singelos e discretos como extraordinários e
necessários. Dependia da fé desses chefes reconhecê-los e cumpri-los para
salvar seus reinos.
Vejamos o caso do rei da França. Trata-se de Luís XIV, da
família Bourbon, que em 1689, quando estava com 50 anos e em pleno poder,
recebeu2, provavelmente através de seu confessor Père La Chaise, o pedido de
consagrar seu reino ao Sagrado Coração, pedido este transmitido a Sta.
Margarida Maria Alacoque, que teve uma visão no mosteiro de Paray-le-Monial em
17 de junho daquele ano. Eis os termos: “Faz saber ao filho primogênito de Meu
Sagrado Coração que, assim como o seu nascimento temporal foi obtido pela
devoção aos méritos de Minha santa Infância, do mesmo modo ele obterá seu
nascimento na graça e na glória eterna pela consagração que fará de si mesmo ao
Meu adorável Coração que quer triunfar sobre o seu, e pelo seu intermédio,
sobre os dos grandes da terra. Ele quer reinar no seu palácio, ser pintado nos
seus estandartes e impresso em suas armas, para fazê-las vitoriosas sobre os
seus inimigos, dobrando a seus pés as cabeças orgulhosas e soberbas, para
fazê-lo triunfar sobre todos os inimigos da Santa Igreja. (FPM, p. 202-206)
Note-se, porém, que embora fazendo tal pedido, Nosso Senhor
logo após revela à mesma vidente: “Não serão as potências humanas que farão
progredir a devoção ao Sagrado Coração, mas estas e o Reino do Sagrado Coração
serão estabelecidos por meio de pessoas pobres e desprezadas e no meio de
contradições, de tal modo que não se possa atribuir nenhum mérito ao poder
humano” (op. cit., p. 219).
E, de fato, Luís XIV, embora herdeiro de uma tradicional
devoção católica multicentenária, como mostraremos em seguida, não considerou o
pedido, evitando mesmo revelar que o recebera. Para o rei da França, tal pedido
não poderia parecer estranho como o é para a mentalidade moderna, mas, ou
porque mal aconselhado, ou porque era vítima naquele momento de uma crise de
grandeur, deixou de lado a devoção ao Sagrado Coração, cuja consagração era na
verdade uma oferta preciosa e talvez extrema.
Exatamente cem anos depois, no dia 17 de junho de 1789,
festa do Sagrado Coração, o Terceiro Estado despojava a monarquia dos Bourbon
de seus poderes. O rei Luís XVI, descendente direto de Luís XIV e, por isto,
conhecedor do pedido, já prisioneiro tentou cumpri-lo com uma solene promessa,
mas era tarde demais. Na prisão do Templo foram encontradas imagens do Sagrado
Coração com a consagração da França assinada por Maria Antonieta e Mme.
Elisabeth, irmã de Luís XVI, que compôs então um belo ato de resignação cristã.
Em 1793 o rei da França foi guilhotinado e igual destino
coube a quase toda a família real e a grande parte de sua corte. Era a
revolução desencadeada contra a civilização cristã e seus reis, da qual Nosso
Senhor queria preservar a França católica. Mas a suprema misericórdia não foi
ouvida. Talvez considerada inverossímil.
Voltando atrás no tempo, consta que também a Père La Chaise,
jesuíta confessor de Luís XIV, foram prometidas bênçãos à sua Companhia de
Jesus caso ele levasse o pedido ao rei, empenhado-se para que o cumprisse. Isto
não se deu. Desde então os jesuítas sofreram diversos reveses e perseguições no
século XVIII, sendo expulsos da França, Portugal, Espanha e Reino de Nápoles e
sua ordem suprimida pelo papa Clemente XIV em 1773. Seria porém o jesuíta beato
Claude La Colombière, confessor de Santa Margarida Maria, e continuadores, como
o jesuíta Jean Croiset, lutando contra as contradições do tempo, que iriam
difundir a devoção ao Sagrado Coração.
É interessante notar como o culto ao Coração de Jesus,
nobilíssima parte de Seu divino corpo e símbolo de Seu amor infinito, era dado
justamente para enfrentar a revolução racionalista. E curiosamente esse mal,
entre todas as ordens religiosas, afetou de modo relevante justamente os
jesuítas. Basta citar Teilhard de Chardin, de Lubac, e no recente concílio,
cardeal Bea, Karl Rahner, Eduardo Dhanis.
Para que se tenha uma idéia do que representava para a
França o culto ao Sagrado Coração, será útil lembrar ainda alguns fatos. O
pedido de consagração da augusta pessoa do rei e do seu exército foi lembrado
também a Luís XV, em 1744, pela superiora do mosteiro de Paray-le-Monial (FPM.,
p. 223). Não foi dado só a Luís XIV.
Durante e após a revolução de 1789, grande número de suas
vítimas e dos contra-revolucionários que a ela se opuseram, especialmente na
Vandéia católica, usava a imagem do Sagrado Coração.
Em 1899, o papa Leão XIII com a encíclica Annum Sacrum
ordenou a consagração do gênero humano ao Sagrado Coração de Jesus.
Nessa ocasião escrevia aos bispos para incitá-los a
desenvolverem essa devoção com a prática da comunhão das primeiras
sextas-feiras e a consagração do mês de junho ao Sagrado Coração. Ao bispo de
Marselha escrevia em 6 de julho de 1899: “Pode-se dizer, sem medo de errar, que
estava nos desígnios da divina Providência unir a França ao Sagrado Coração com
laços privilegiados de afeto”.
Por tudo isto, o pedido de consagração da França e de seus
exércitos (pedido da mística Claire Ferchaud), e mesmo a idéia de que a imagem
do Sagrado Coração com a Cruz fosse pintada na bandeira nacional, estavam ainda
vivos nos anos 1917-18, durante a presidência de Poincaré, que havia feito um
apelo à union sacrée dos franceses durante a guerra. Consta, porém, que o papa
Bento XV, consultado a esse propósito, teria considerado a idéia inoportuna e
mesmo comprometedora. Disto fez-se porta-voz o prestigioso cardeal Billot,
jesuíta, que se manifestou publicamente contra essa “absurda contradição”,
“este clericalismo aplicado à bandeira, que é um sonho impossível, mesmo
porque, esta, é levada também em guerra, e todos os povos têm iguais direitos
de honrar o Sagrado Coração de Jesus.” (!). (FPM, p. 231)
A DEVOÇÃO CATÓLICA NA FRANÇA ANTIGA
A devoção católica, real e popular, na França antiga, era
geral. Começara com o primeiro rei católico, Clóvis. Seguiram-se os príncipes
merovíngios da primeira dinastia francesa, tendo a segunda dinastia feito
notáveis progressos. Rei Pepino viajava pelos seus territórios seguindo o
itinerário de capelas, que se enriqueciam à passagem do rei.
Seu filho Carlos Magno foi pródigo em fazer erigir igrejas e
abadias, obra continuada por seus filhos. Vieram depois os Capetíngios, que
proclamaram Maria “Estrela do Reino”, erigindo as grandes catedrais de Paris,
Chartres, Amiens, Reims, Estrasburgo, Rouen, etc, que são maravilhas da
humanidade. De São Luís, rei de França, nem é preciso mencionar a devoção e
zelo fervoroso pelas coisas de Deus. É mais o caso de lembrar de como Deus
premiou os franceses, dando-lhes como rei um santo. Mas depois dele houve um
retorno ao mundano. Mesmo assim, Filipe o Belo e Filipe de Valois estabeleceram
o costume de oferecer as armas e cavalos com que venciam suas batalhas a Nossa
Senhora. E as suas rainhas e princesas não foram menos reverentes para com a
Rainha do Céu. O rei João de Valois instituiu a ordem mariana dos Cavaleiros da
Estrela, que jejuavam todos os sábados em honra a Maria Santíssima. Luís XI de
Valois durante as audiências solenes trazia como único ornamento uma imagem de
chumbo da Virgem Soberana de quem foi sempre especialmente devoto. Luís XII da
Casa de Valois-Orleans, em não poucas ocasiões, deu testemunho público de seu
reconhecimento a Deus e à Santa Virgem. Também Francisco I soube fazer um ato
de reparação exemplar por uma estátua mariana da qual havia sido abatida a
cabeça numa praça de Paris: precedeu sua corte, indo à frente da peregrinação
descalço e com a cabeça descoberta em reparação pública do gesto sacrílego de
um desconhecido. Diante dessa devoção católica e mariana, não admira que
protestantes e jansenistas encontrassem tantas dificuldades para obter algum
resultado na França. Mas chegamos assim a Luís XIII de Bourbon, filho de Maria
de Medicis e Henrique IV, convertido ao catolicismo. De seu casamento com Ana
de Áustria nasceu, depois de 25 anos de matrimônio, o menino que seria Luís
XIV. O rei reconhecia nesse nascimento a intervenção de Maria Santíssima e por
isso lhe consagrava solenemente a França, ordenando ao seu exército a recitação
do santo rosário para a conversão dos protestantes. No decreto de consagração
do rei e de seu reino à Virgem protetora ressoavam palavras ardentes e severas
disposições para que a posteridade não deixasse de observá-la.
LUÍS XIV PERANTE A HISTÓRIA E UM PEDIDO
O rei Luís XIV foi o instaurador da monarquia absoluta que
levava às últimas conseqüências a idéia do poder divino dos reis.
Mas a serviço de que pôs tanto poder? Ora, sua política
européia alternou pragmaticamente os desígnios de seus predecessores, sempre em
busca da supremacia francesa. Como rei católico, sua política foi, assim,
bastante contraditória. Revogou o Edito de Nantes, que preservava os direitos
dos protestantes, e ordenou duras perseguições aos jansenistas de Port-Royal, mas
evitou a política de Francisco I de unir as nações cristãs contra os turcos
invasores. Nisto contrariou até as lições de Nazzarino, que, embora descrito
por muitos como homem sem escrúpulos, não hesitou em mandar tropas a Creta para
ajudar em 1660 os venezianos contra os turcos. E, mais: em seu testamento
recomendara ao rei que “defendesse sempre a Igreja como se fosse seu filho
maior”.
Acontece que o devoto filho de Ana d'Áustria instituiu uma
vida de corte cujo mundanismo e luxo não tinha precedentes, aproximando-a de um
novo Olimpo pela suntuosidade e motivos mitológicos de suas festas. Foi assim
que o Rei Sol passou a ignorar toda piedade, rir-se do pudor e desprezar as
conveniências das leis da Igreja. Tornou-se quase um libertino, relata Lavisse.
Mas o caráter forte de Luís XIV fazia-o voltar à vida
espartana de soldado se estivessem em jogo os interesses da França ou a
dignidade do rei. Por isso seu reinado cresceu continuamente em poderio e em
1689 dispunha de 300 mil homens em armas, chegando ainda a disputar com a
Inglaterra a supremacia naval. “Nenhum príncipe cristão havia reunido tais
forças. Só os reis da Pérsia o fizeram. Tudo é novo, tudo é maravilhoso”,
escrevia então Mme. Sevigné. Diante de tal exército Louvois dizia ao rei:
“Sire, se alguma vez houve uma divisa adequada, foi esta, feita para Vossa
Majestade: — Só contra todos.”
Ora, a História registra grandes vitórias mas também
fragorosas derrotas dessas forças. Mas em ambas os historiadores notam algo que
as tornavam inúteis e inconclusas.
Nessa abreviada descrição histórica deve-se ressaltar um
acontecimento de 1683 em que as tropas francesas não tomaram parte, embora
envolvesse a Europa. Trata-se da investida do Islã contra o ocidente cristão
feita pelo exército de 200 mil homens do grão-vizir turco Kara-Mustafá, que
avançou sobre Viena.
Nessa ocasião o imperador apostólico Leopoldo apelou aos
estados europeus. Estes foram especialmente solicitados pelos núncios enviados
pelo Bem-aventurado Inocêncio XI através do continente para se mobilizarem.
Entre os chefes que acolheram, solícitos, o apelo do papa estão Carlos de
Lorena e o rei da Polônia, João Sübieski. Luís XIV, porém, cego pela política
hegemônica faz um cínico entendimento com o governo do sultão, esperando que
Viena caísse como lhe convinha.
A vitória coube, porém, aos que confiaram na força da fé.
Sobieski, grato, envia ao papa a mensagem: Venimus, vidimus, Deus vicit.
Era a paráfrase cristã do vencedor Júlio César. Para Luís
XIV aquele foi, ao contrário, um ano de tristezas e reveses. Morre a rainha
Maria Teresa em plena juventude. Perde também seu fiel ministro Colbert e a sua
posição de predominância na Europa.
Mas o momento especial desse rei da França ainda não
passara, e 1689 poderia ser o ano a reconhecê-lo e consagrá-lo, com o seu
reino, para a glória de Deus. Poderia, assim, ter tido início uma fase de
verdadeiro progresso no enriquecimento moral e espiritual. Isso já havia
acontecido no passado e determinara a insuperável civilização ocidental cristã.
Provavelmente com Luís XIV e seu século de ouro repetia-se a ocasião.
Politicamente, esse rei de índole decidida recebeu poder suficiente para mudar
os destinos da Europa e do mundo de então. Teria bastado que seguisse os
princípios da sua religião, reprimindo os ímpetos de sua ambição. Foi monarca
absoluto de uma nação rica de homens e de solo e as circunstâncias históricas o
tornaram árbitro de conflitos alheios. Em Roma reinava um papa, Bem-aventurado
Inocêncio XI, cuja sabedoria e santidade foi sem igual no século depois de São
Pio V, nem se repetiria até São Pio X. Mas, além disso tudo, Luís XIV recebeu o
dom de um pedido do Sagrado Coração de Jesus.
“HOMEM DE POUCA FÉ, POR QUE DUVIDASTE?”
No cap. XIV de São Mateus, depois da multiplicação dos pães,
lemos sobre Jesus que caminha sobre as águas e sobre Pedro que, desejando ir
ter com Ele, duvida por um instante e se afogaria não fosse a mão divina a
sustentá-lo, depois que pediu socorro. Ora, nos tempos tumultuosos de Luís XIV,
assim como nos tempos tenebrosos de nosso século, os grandes da terra parecem
duvidar poder vencer a intempérie, recorrendo à divina mão capaz de
sustentá-los. Eis que a Misericórdia adianta-se ainda, como se o pedido viesse
do Alto e aos grandes coubesse decidir quanto a atendê-lo ou ignorá-lo. Mas,
não é possível salvar ou salvar-se sem a fé, assim como é impossível pensar que
um pedido divino seja menos que uma ajuda extrema. Pedindo ao rei ou aos papas
a consagração aos Sacratíssimos Corações para vencer os problemas da terra, na
verdade é oferecida uma ajuda para que não soçobrem com seus povos na fé. É
como se Jesus dissesse a Pedro: Pede socorro! Já ao pedir darás sinal da fé que
te pode salvar. Peço que Me peças. Nisso reconhecerás o Salvador. Limitando-nos
aqui ao rei da França, sabemos que ele não pediu, consagrando-se e a seu reino
ao Sagrado Coração, como solicitado.
O momento passou e faltou-lhe a fé para essa consagração.
Desvaneceram-se, assim, também as altas finalidades de seu
poder, dado para pacificar os povos e não para perseguir dissidentes; para
converter extraviados, não para dizimá-los; para unir nações, não para
submetê-las ou traí-las. Desde então teve vitórias sem nexo que aumentaram a
miséria do povo. Teve gestos de poder que deixaram somente ressentimentos
profundos. Enfim, nos últimos anos de seu reinado, a França foi assolada pelo
calamitoso inverno dos anos 1708-1709 que trouxe mais fome e morte que as suas
guerras. Tanta carestia, gelo e novas invasões pareceram a todos castigos
celestes. E para o povo sofredor a causa procedia do rei, figura marmórea e
distante, cujo fausto permanecia como um acinte à miséria geral. Não parecia
Luís XIV monarca cristão, mas o faraó de Versailles, como o denominara Jean
Héritier. Sua prepotência levava a exasperações políticas de problemas
religiosos, favorecendo a formação de um caldo de cultura para a futura
revolução.
Naquela época Fénelon escrevia ao duque de Chevreuse uma
carta destinada ao rei: — Vós me direis que Deus sustentará a França, mas eu
vos pergunto até onde vai a promessa? Mereceis vós milagres enquanto a vossa
próxima e total ruína ainda não consegue corrigir-vos, a vós que continuais
duro, soberbo, faustoso, isolado, insensível e sempre pronto a vos glorificar?
Poderia Deus aplacar-se vendo-vos humilhado mas sem humildade, confuso pelos
vossos erros inconfessados e pronto a recomeçar?
No fim da vida Luís XIV viu-se também distanciado de seus
sucessores. Em 1711 morre o “grand Dauphin”. Em 1712 morrem, a poucos dias de
intervalo, a duquesa e o duque de Borgonha. Depois de poucas semanas, morre
também o duque de Bretanha, irmão maior do futuro Luís XV. Uma geração
intermediária ia desaparecendo, levando Mme. de Maintenon, com quem o rei se
casara secretamente, a escrever: “Aqui tudo está morto. Falta vida”. Os
remanescentes foliões da corte faraônica fugiam à procura de divertimentos para
uma Paris que já dava mostras de uma babilônia viciada e decadente.
Pressentindo a morte, o rei manda chamar o menino que seria
Luís XV e lhe diz: — Meu filho, tua fortuna dependerá da tua submissão a Deus.
Peço-te não imitar-me no amor pela guerra, mas ajudar o quanto possível teu
povo, fazendo o que eu não pude fazer...
No dia 1.º de setembro de 1715 extinguia-se Luis XIV, o Rei
Sol, decepção de um século que poderia ter sido “tão fecundo e tão favorável a
ele em todos os campos, a ponto de poder ser comparado ao século de Augusto”.
Assim escrevia Saint-Simon. Algo, porém, falhara fazendo predominar a aridez e
germinar o ódio. Assim foi que o féretro do rei atravessou uma multidão que o
insultava, vociferante e embriagada como jamais se havia visto.
A glória do mundo passara, fugaz e inútil, porque não
servira devidamente à glória daquele que ensinara “quem não recolhe Comigo,
dispersa”. Não soubera ouvir o pedido daquele que dissera “Meu jugo é suave, o
Meu peso é leve” (Mt. 11, 30). Ao contrário, fora tirano de jugo cruel e até
seus prêmios se tornavam lágrimas. Tivesse ouvido um dia o pedido que lhe fora
apenas sussurrado...
Já naquele 1715 outro pacto de poder ia surgindo. Um jovem
de 20 anos presenciava o declínio de um reinado sobre cujos erros iria
delinear-se a nova forma de domínio que se nutre não mais de direito divino,
mas de rebelião revolucionária. Naquele mesmo século, das idéias de Voltaire
surgiria o poderoso, utópico, implacável reinado do terror.
A França e o mundo não haviam merecido que o rei católico
efetuasse um ato de consagração que, fazendo triunfar a idéia do Reino de
Cristo, teria afastado a sedição revolucionária. Esta foi vista em germe no
édito real de 1682 (Mons. Delassus, La Conjuration antichrétienne, Cap. LXX) e
também na vontade centralizadora dos Bourbon, segundo o historiador Alexis de
Toqueville.
Aqui interessa, porém, a comparação. Depois de 1914, o mundo
que não havia ouvido São Pio X não mereceu que Bento XV e Pio XI reconhecessem
a aparição de Fátima, pela qual poderia ter sido obtida a paz e a salvação de
muitas almas. Preferiu-se o recurso humano ao sinal divino.
PAPAS E REIS DIANTE DE SINAIS CELESTES
Aos católicos de hoje, familiarizados com as aparições
marianas reconhecidas pela Igreja no último século e meio, pode parecer mais
adequado a um evento religioso que Nossa Senhora se dirija ou refira nas suas
mensagens, a papas e não a chefes civis. E, todavia, em 1689 o Sagrado Coração
de Jesus, por meio de Santa Margarida Maria Alacoque, não enviava um pedido ao
Seu vigário na Terra, o Bem-aventurado Inocêncio XI, mas ao rei da França Luís
XIV, que nada tinha de bem-aventurado.
Este fato já deve levar à reflexão os homens modernos porque
deixa claro que os eventos religiosos não dizem respeito só a fiéis,
eclesiásticos e papas, mas a todos os homens. Ainda mais, para o Céu o monarca,
absoluto ou não, é o pai e responsável que recebeu o poder para guiar sua
nação. E como os desígnios de Deus não mudam, não subsiste indício algum de que
os conceitos modernos de democracia e separação completa dos poderes da Igreja
e do Estado possam seguir alguma indicação divinamente inspirada. Ao contrário,
a instituição do papado pode demonstrar a preferência divina por um monarca que
siga os sinais da fé e responda às suas demandas.
As democracias modernas são, portanto, simples preferências
humanas.
O fato principal, porém, relacionado com a presente questão
é que aquilo que a bondade divina chama de pedido é na verdade uma ajuda
indispensável, talvez extrema, razão pela qual quem recebe esse sinal, se
íntegro na sua fé, não deveria considerar-se árbitro quanto a segui-lo ou não,
mas, reconhecido autêntico, acolhê-lo grato.
Foi por amor à nação francesa, filha primogênita da Igreja,
que Luís XIV, seu pai e responsável temporal, recebeu um pedido-ajuda. Para ser
amparado na função real que corria perigo devido às crises e desvios morais
ligados à pessoa do rei. Porque os problemas do povo não independem dos
problemas do governante, assim como os problemas dos fiéis não estão separados
dos de seu pontífice.
O que ainda é importante ponderar é a posição de um papa
perante um pedido-ajuda sobrenatural. Note-se que o papa Bem-aventurado
Inocêncio XI, único pontífice beatificado em mais de três séculos que
decorreram entre São Pio V e São Pio X, e teve diversos casos com Luís XIV, que
chegou a ameaçar um cisma, ficou porém excluído do pedido do Sagrado Coração,
que foi dirigido só ao rei. Ao papa que cumpria zelosamente seu dever em Roma,
restabelecendo as virtudes religiosas e morais, a instrução catequética, a
assistência espiritual aos doentes e sobretudo o culto eucarístico, nada era
pedido e nada ele teria negado. Ao contrário, ao monarca vicioso e prepotente
que ameaçava também o Santo Padre era dirigido pelo Sagrado Coração de Jesus o
pedido-ajuda de consagração, mostrando claramente que a ordem não é estabelecida
segundo os homens, mas segundo a misericórdia de Deus que quer salvar rei e
súditos.
Para salientar ainda como não é aos reinantes fiéis que são
encaminhados os pedidos celestes, pensemos no pontificado de São Pio X, vazio
de aparições ou mensagens. De fato, não havia nada que estivesse ao seu alcance
para dar glória a Deus e salvar as almas que não realizasse. O que poderia
pedir o Senhor ao doce Jesus na Terra, como dizia Santa Catarina de Sena, que
ele não procurasse fazer? Ele era a graça, o homem da Providência dado à
Igreja, exemplo para os fiéis, para os bispos, para os papas. E, no entanto,
também São Pio X não foi seguido e ouvido, acrescentando esta culpa a essa
geração esquecida de suas bênçãos e de seus profetas.
Quando em 1914 veio a guerra e o coração do Santo Padre
parou, era o castigo de ofensas a Deus que São Pio X não esmoreceu em
denunciar. Foi depois de sua morte que começaram os eventos de Fátima.
Antes, com a aparição do anjo e em 1917 com Nossa Mãe
celeste, que instrumento da misericórdia de Deus vinha suprir novamente a
cegueira dos homens dentro e fora da Igreja.
Resumindo então as considerações feitas sobre a comparação
entre o rei da França e seus ministros, proposta por Nosso Senhor: o contraste
entre o santo papa Inocêncio XI e o vicioso Luís XIV, que recebeu o pedido de
consagração, mostra que o pedido celeste é uma solicitação, não aos virtuosos
que cumprem seu dever, mas aos que estão vacilantes, à beira de decisões ou
políticas nocivas aos seus governados.
Na nossa época isto é confirmado pelo fato de o pedido
mariano de Fátima não ser feito ao “papa do século XX, santo que a Providência
deu à nossa era”, como dizia Pio XII por ocasião da beatificação e canonização
de São Pio X (3/6/51 e 29/5/54). Foi feito depois de sua morte, à geração que
se mostrou surda a esse profeta, como seria cega às aparições que seguiram. Eis
uma culpa que se segue a um benefício desprezado.
O que se continua a chamar de pedido celeste é na verdade um
pedido de ajuda, um socorro providencial contra um mal imenso já iniciado no
silêncio, mas que o orgulho ou vício dos homens não deixa ver. Era o
racionalismo que traria à luz a revolução francesa no século XVIII, para o rei
da França; é o modernismo e o comunismo russo, que por dentro e por fora da
Igreja darão vida à anti-Igreja.
Disso tudo pode-se deduzir que a tergiversação, diante do
pedido-ajuda que se reconheceu de origem celeste, indica uma crise de percepção
espiritual da vontade daquele que representam, daquele que, detendo todo o
poder no Céu e na Terra, concedeu-lhes a coroa ou as chave. Pior ainda, uma
crise de fé nos recursos sobrenaturais dados aos homens, para com a oração e
penitência obter uma intervenção divina na História. Seria duvidar que Cristo é
o Senhor da História.
“Não quiseram atender ao Meu pedido! (de consagração)...
Como o rei da França, arrepender-se-ão e a farão, mas será tarde. A Rússia já
terá espalhado os seus erros pelo mundo, provocando guerras, e perseguições à
Igreja. O Santo Padre terá muito que sofrer”. (DOC, p. 465)
Observa-se que, assim como Pio XI não acolheu a ajuda
sobrenatural de Fátima, também não aplicou com eficácia a idéia fundamental do
Reino de Cristo no mundo, que é impossível sem um poder temporal católico que
opera num campo distinto da hierarquia eclesiástica.
A política de concordatas a todo transe, a falta de apoio
aos cristeros e a interferência na política francesa pela condenação da “Action
Française”, demonstram uma ação natural pela diplomacia, com o que a Santa Sé
relegou a segundo plano a prioritária e intransigente defesa de princípios
sobrenaturais, missão e razão própria a quem detém a suprema cátedra. À
política nacional e internacional muitos se sentem chamados. Quem pode e deve
assegurar a defesa incondicional da fé? Só a Igreja.
Não é difícil entender, neste mundo moderno, a importância
de uma voz com autoridade máxima no campo religioso e moral, que se pronuncia
sem entraves ou compromissos quando os direitos de Deus são atingidos. Isto não
é dado a nenhuma autoridade civil, mas o é à Santa Sé, que está acima das
partes, queiram ou não seus inimigos. Eis seu dever precípuo e supremo, que não
pode estar subordinado à diplomacia ou a conveniências de poder. Se depois
houver circunstâncias nas quais, para evitar um mal maior ou obter algum bem
será conveniente evitar pronunciamentos drásticos, isso é compreensível. Muito
menos, porém, que impeça os civis de agirem no sentido católico em política.
A difusão dos “erros da Rússia”, do comunismo lembrado em
Fátima, pelo mundo, da Ásia à América, do México à Espanha, deve ter tirado de
Pio XI toda possível ilusão de “diálogo democrático” com os inimigos da Igreja.
Muita documentação sobre essas ilusões, especialmente no drama dos cristeros,
parece ter sido deliberadamente suprimida também no Vaticano. Sabemos, porém,
que em 1937 Pio XI foi explícito quanto ao comunismo, escrevendo também à
hierarquia mexicana (28-3-37): “Quando o poder se levanta contra a justiça e a
verdade a ponto de destruir os fundamentos de toda autoridade, não se vê como
seria possível condenar os cidadãos que se unissem para defender a nação e a si
mesmos com meios legítimos e eficazes contra quem programa sua desgraça (...) A
utilização desses meios, o exercício dos direitos políticos e civis em toda a
sua extensão, que incluem problemas de ordem puramente material e técnica ou de
defesa pelas armas, não estão de modo algum sob a competência do clero nem da
Ação Católica.”
Isto era dito quando o problema reaparecia em toda a sua
atroz dimensão na Espanha republicana que perseguia a religião. De resto,
parece que estamos simplesmente ouvindo o que é óbvio. Nenhum pai de família
precisa ouvir o pároco ou o papa para saber que deve defender sua pátria e sua
casa. E, todavia, nesse mesmo pontificado e subseqüentes, prelados e sacerdotes
imiscuíram-se a tal ponto nos problemas civis que muitos deles chegaram a
propor revoluções e reformas. Os princípios? Foram tortuosamente postos a
serviço das novas ideologias enquanto os católicos eram confundidos não só em
política mas também em religião por uma nova classe de eclesiásticos empenhados
no social. Eis a gênese sinistra de tantas “teologias” de revolução e
libertação. Eis os lobos vestidos de pastores de que falou Nosso Senhor.
E não admira que estes lobos rapaces sejam mais ferozes
contra as palavras de Fátima, que ilumina falsidades e traições que provêm de
dentro da própria Igreja, do que contra as tentativas vaticanas de atacar a
revolução com meios naturais. Essa ilusão perigosa, esse naturalismo de ação,
essa falta de confiança nos meios sobrenaturais com que Deus arma Sua Igreja,
já são crise e derrota do catolicismo que sem a fé sobrenatural é vazio e
inútil.
Eis de novo a importância e atualidade única de Fátima. A
verdadeira defesa do cristianismo e, portanto, da ordem e da paz não está no
poder material da tecnologia, mas na força da fé. Só esta pode ocupar os
espaços mentais de convicções e certezas capazes de sustentar o espírito de
sacrifício e o senso do dever que resistem e enfrentam as seduções e perfídias
ideológicas. Só a fé salva, também na sociedade, foi o que o Sagrado Coração
procurou lembrar ao rei da França no passado e Nossa Senhora de Fátima aos
pontífices atuais.
PIO XII, CHAMADO O PAPA DE FÁTIMA
O sucessor de Pio XI foi seu secretário de Estado, cardeal
Eugênio Pacelli, que tomou o nome de Pio XII. Além de grande devoto mariano,
Pio XII, por ter sido consagrado bispo no dia 13 de maio de 1917, quando Nossa
Senhora aparecia pela primeira vez na Cova da Iria, foi chamado “Papa de
Fátima” título que aceitou3.
Como núncio papal na Alemanha e depois secretário de Estado
por nove anos, o sucessor de Pio XI sempre demonstrou ter uma visão clara e uma
posição firme diante do perigo comunista. Mas, como o seu pontificado se
iniciava sob a pressão dessa colossal hecatombe que foi a segunda guerra
mundial, encontrou-se sobrecarregado de dificuldades para denunciar o grande
mal que naqueles dias podia parecer, de modo geral, secundário face ao temível
nazismo em expansão. Ora, na polarização dos blocos a URSS ficaria do lado dos
aliados democráticos, contra o eixo nazi-fascista. Daí a enorme dificuldade, em
plena guerra, de um ato partindo do papa mencionar um dos contendores sem
incorrer em parcialidade.
Apesar destas razões, em 1942 Pio XII quis atender
parcialmente ao pedido de consagração do mundo do Imaculado Coração de Maria,
com especial menção à Rússia. Assim havia sido pedido por irmã Lúcia, em carta
de dezembro de 1940: “... Povos separados pelo erro e pela discórdia, e
especialmente aqueles que professam por Vós uma singular devoção e em cujas
casas não faltava o vosso venerável ícone para honrar-Vos, provavelmente hoje
escondido à espera de melhores dias. Dai-lhes a paz e reconduzi-os ao único
rebanho de Cristo, sob o único e verdadeiro pastor!”
Era a alusão, indireta mas inequívoca, à Grande Rússia, que
se separou de Roma e proclamou-se ortodoxa e ora estava submetida ao comunismo
ateu. Faltou, porém, a essa consagração a participação dos bispos, como fora
pedido, e isto fazia com que ela fosse incompleta. Apesar disso, pode-se
verificar que naqueles dias alterava-se o curso da guerra, e um dos livros que
dá testemunho disso, Fátima, The Great Sign, de Francis Johnston, cita como
referência a obra The Second World War, vol. 4,33, do insuspeito Winston
Churchill, que para aqueles dias usava a expressão: the turning of the hinge of
fate, sem certamente referir-se, não sendo católico, à consagração feita dia 31
de outubro de 1942, tão radical foi a mudança do curso da guerra. Johnston cita
a frase de irmã Lúcia no mês seguinte: “Deus já demonstrou a Sua satisfação por
esse ato. Mas, como ele foi incompleto, fica a conversão da Rússia para mais
adiante.”
Pio XII não cessava, no entanto, de denunciar o mal que
estrangulava a Rússia e ameaçava o mundo. Em rádio-mensagem natalina do mesmo
ano, renova a condenação do comunismo: “Movida sempre por motivos religiosos, a
Igreja condenou os vários sistemas do socialismo marxista e os condena também
hoje, pois é seu dever e direito permanente preservar os homens de correntes e
influxos que põem a sua salvação em perigo.” Pio XII não hesitaria lembrar,
também, “da exclusão dos Sacramentos dos que aderem conscientemente aos
partidos comunistas nos quais militam e da excomunhão dos que se tornam
propagadores e defensores dessa doutrina atéia e materialista” (cf. decreto em
vigor desde 1/7/1949).
O papa Pio XII trocou também correspondência com o
presidente norte-americano Franklin Roosevelt, cuja atitude estranhamente
otimista, simplória e entreguista faria dele no melhor dos casos um dos maiores
“inocentes úteis” da história quando, firmando os tratados de Yalta com Stalin,
efetivou uma divisão prática do mundo em favor dos soviéticos que levou ao
repatriamento forçado de milhões de fugitivos do comunismo, dos quais grande
número foi trucidado. Talvez isto poderia ter sido evitado se houvesse ouvido
com mais atenção ao papa de então, evitando enormes sofrimentos e riscos ao
mundo livre.
Mas aqui será preciso aprofundar melhor a questão, como
mostraremos em seguida, porque hoje é sabido que já em 1942 havia quem, dentro
da Igreja, usando da confiança de Pio XII, e dizendo mesmo representá-lo,
contrariava, quando não traía, as instruções papais na política frente aos
governos comunistas. Trata-se de monsenhor Montini, futuro Paulo VI, de estranha
personalidade, como veremos.
Mas, voltando ao papa Pacelli: conhecendo depois de sua
morte o poder que haviam atingido dentro do Vaticano os seus adversários, há
sempre que admirar sua determinação e a proteção que recebeu para levar a cabo
empresas religiosas que hoje parecem simplesmente impossíveis: a canonização de
São Pio X, que combatera os perigosos modernistas, inimigos da fé que estão
infiltrados na Igreja a ponto de ocupá-la e pretender transformá-la; a
proclamação do dogma da Assunção de Nossa Senhora, apesar da incompreensão e
resistência encontradas dentro da própria Igreja. No ato de fé na praça de São
Pedro, porém, a 1.º de novembro do ano jubilar de 1950, 600 bispos e um
verdadeiro mar de fiéis seguiram Pio XII.
Para que se saiba como os dogmas católicos e as aparições de
Fátima estão estreitamente ligados, através do vigário de Nosso Senhor, temos
um relato feito pelo cardeal Tedeschini diante da multidão reunida no Santuário
de Fátima para as cerimônias de encerramento do Ano Santo: o cardeal fora
autorizado a revelar que o papa havia visto a repetição do milagre do sol de 13
de outubro de 1917, nos jardins vaticanos, tanto na véspera como na oitava da
promulgação do dogma da Assunção de Maria, por quatro vezes4.
Já em 1950 Pio XII, ao receber Pe. Suarez, geral dos
dominicanos, teria afirmado: “Diga aos seus religiosos que o pensamento do papa
está contido na mensagem de Fátima. Diga a eles que continuem a trabalhar com
grande entusiasmo na propagação do culto de Nossa Senhora de Fátima.” (LVF, p.
184)
Ora, justamente pela atenção e confiança sempre demonstradas
por Pio XII, para com o grande sinal dado por Maria Santíssima em Fátima, não
se compreende como em 7 de julho de 1952, quando consagrava os povos da Rússia
ao Imaculado coração de Maria (Carta Apost. Sacro vergente anno), ainda
faltasse a participação colegial dos bispos do mundo. Esta condição era parte
essencial do pensamento expresso na mensagem de Fátima, já então ao alcance de
todos, pelo empenho do mesmo papa Pacelli, através do arcebispo de Milão e seu
grande amigo, cardeal Schuster (hoje em processo de beatificação).
Diga-se também que não poucas vezes Pio XII lembrou as
lágrimas de Nossa Senhora. Referia-se, por exemplo, à aparição de La Salette
dizendo: “... memória perene da misericordiosa aparição de Maria de 19 de
setembro de 1846, quando Nossa Senhora, em lágrimas, como se narra, vinha
exortar seus filhos a voltarem prontamente ao caminho da conversão ao seu
divino filho e da reparação”. (I. P., Vol. 7, p. 452, 481)
Em 11 de outubro de 1954, na encíclica Ad Caeli Reginam Pio
XII diz que “com a nossa autoridade apostólica decretamos e instituímos a festa
de Maria Rainha, a celebrar-se todos os anos em todo o mundo no dia 31 de maio.
Ordenamos também que nesse dia seja renovada a consagração do gênero humano ao
Coração Imaculado da beata Virgem Santíssima.” Nesse ato é posta, de fato,
grande esperança de que possa surgir uma nova era, abençoada pela paz cristã e
pelo triunfo da religião.
Se essa lembrança que o papa ordenou com toda a sua
autoridade tivesse sido respeitada, teríamos tido uma consciência atenta dos
povos para o Signum Magnum de Fátima, além das graças sobrenaturais que
certamente disso adviriam. Mas assim não foi, infelizmente.
A ÁUSTRIA CATÓLICA RECORRE A FÁTIMA
No que diz respeito aos eventos de Fátima, durante o
pontificado de Pio XII, é importante lembrar um fato político acontecido com
uma grande nação católica. Trata-se da ocupação soviética da Áustria e do
recurso que os católicos desse país dirigiram a Nossa Senhora de Fátima, à
semelhança do que então fazia o papa.
Seria justo recordar, antes, a importância que teve o
império austríaco na defesa do catolicismo na Europa e, portanto, no mundo.
Bastaria dizer que no começo deste século XX o soberano da Áustria ainda tinha
o título de imperador apostólico e o poder de veto num conclave para eleição do
papa. E a providência fez com que, por esse direito em si irregular, fosse
vetada a eleição do esperado sucessor de Leão XIII, seu secretário de Estado
cardeal Rampolla, provavelmente ligado à maçonaria, como muitos sustentam, e
fosse eleito o humilde, simples, mas santo patriarca de Veneza. Certamente não
será simples aquilatar todas as razões políticas que fizeram com que o
imperador Francisco José, através do arcebispo da Cracóvia, cardeal Puzyna,
aplicasse seu veto no conclave de agosto de 1903, mas esse fato, apesar da
reação dos outros cardeais, não deixou de influir para que o voto fosse para o
cardeal Sarto.
Apenas iniciou seu glorioso pontificado, o papa Sarto, isto
é, São Pio X, cancelou esse privilégio de outra época. De fato, era passado o
tempo em que o Sacro Império havia sido o grande defensor da Igreja. Aqui não
iremos recordar esses fatos históricos, nem que a ambição das grandes dinastias
católicas sempre impediu a aliança entre a Áustria e a França, que teria
assegurado a paz na Europa. Mas é interessante lembrar os méritos e a devoção
da grande nação que foi o baluarte da cristandade contra o avanço otomano,
para, neste século, depois de inúmeros erros políticos, encontrar-se ocupada e
reduzida à humilhação.
Os governantes austríacos, não menos que os franceses, deram
testemunho público de sua fé católica e devoção mariana. O resultado pode ser
constatado no quanto a Áustria ficou preservada do protestantismo. Em 18 de
maio de 1647 o imperador Ferdinando III consagrava o país à Virgem Imaculada, e
para recordar o evento fazia erigir em Viena uma grandiosa coluna com a estátua
de Maria Santíssima.
Essa grande devoção mariana e católica resistiu às guerras,
ao anti-clericalismo do imperador José II e também ao nazismo. Depois da
segunda grande guerra ainda eram multidões de muitos milhares de austríacos a
peregrinar ao santuário nacional de Mariazell, para implorar graças ou
agradecer a Gnadenmutter.
Falaremos de fatos que parecem confirmar essa maternal
ajuda, apesar dos enormes reveses por que passou esse povo. De fato, depois da
primeira grande guerra o Império Austro-húngaro foi desmembrado e a Áustria
ficou reduzida a um pequeno país. Em 1932 seu chanceler era o católico
Dollfuss, partidário de um estado austríaco corporativo de matriz cristã e com
estreitos vínculos com a Santa Sé. Nesse sentido esse governo assinou então uma
concordata considerada uma das mais completas para um país católico.
Havia, porém, em 1933 uma grande pressão política e uma
considerável tentação popular, alimentada pela Alemanha nazista, a fim de que a
Áustria se tornasse parte do grande Reich idealizado por Hitler.
Assim, já em 1933, Dollfuss, contrário a isto, sofreu o
primeiro atentado. Não sobreviveu, porém, muito tempo porque em julho de 1934
um grupo de nazistas uniformizados como tropa austríaca invadiu a chancelaria,
assassinando o estadista que opunha tenaz resistência à idéia de incorporação
da Áustria ao Reich, o Anschluss.
Abriam-se assim os caminhos para essa operação, que aconteceu
depois da sua aprovação por um referendo popular em 1938. Isso foi considerado
por Pio XI o verdadeiro início de uma guerra que começaria no ano seguinte, já
no pontificado de Pio XII. Aqui é interessante lembrar que a mensagem de Fátima
dá razão a Pio XI.
Para os austríacos começavam as ilusões pangermanistas que
seriam brutalmente interrompidas cinco anos após. No dia 13 de abril de 1945 as
tropas soviéticas capturavam Viena que, como Berlim, seria dividida em quatro
zonas de ocupação. Igual destino tocou ao país, do qual grande parte ficava sob
o regime soviético. Ora, este, diversamente dos outros ocupantes — americanos,
ingleses e franceses — não mostrava intenções de querer pôr fim àquela divisão
forçada e provisória do pós-guerra nem de liberar a Áustria das despesas dessa
ocupação, que escravizava sua economia (os americanos o fizeram em 1947, os
soviéticos só em 1953).
Em 1954 era discutido na Conferência de Berlim o futuro
político da Alemanha e da Áustria, sobre as quais a URSS não fazia segredo de
querer manter uma nítida sujeição estratégica. Em vão o governo austríaco
renegava sua posição durante a guerra e declarava sua neutralidade. Os aliados
o aceitaram, mas os soviéticos não cediam.
Foi nessa época que se formou na Áustria uma Cruzada do
Rosário promovida pelo padre Pedro Pavliceck, que abriu listas de adesão
através das quais os fiéis se comprometiam a cumprir as devoções de Fátima e
rezar diariamente o Terço. As listas recolheram mais de um milhão de adesões,
cerca de dez por cento de toda a população.
Nessa mesma época, por razões desconhecidas e para surpresa
geral, dada a falta de precedentes, os soviéticos abruptamente recuavam de sua
intransigência e decidiam a retirada das tropas depois de impor ainda uma
vultosa indenização de guerra que, segundo eles, dez anos de ocupação não
haviam pago. O tratado de paz foi assinado em 15 de maio de 1955, semana em que
se comemorava Nossa Senhora de Fátima. Esta primeira evacuação pacífica dos
soviéticos fazia um ministro do Gabinete dizer: “Nossa libertação é
inexplicável, salvo pela intercessão direta da Virgem de Fátima” (Chanceler
Raab).
O DISCURSO CRISTÃO SOBRE A HISTÓRIA, DE BOSSUET
O bispo Bossuet, nomeado por Luís XIV preceptor do delfim de
França, o monsenhor de seus discursos, prestou a esse rei o juramento de educar
o real menino no amor e temor de Deus. Com este espírito, pois, lhe ensinará a
história universal, através desses discursos, que constituem uma referência
clássica para o entendimento do sentido cristão da História. Aqui faremos um
resumo da conclusão desse trabalho, contida no último capítulo.
“Lembre-se, porém, monsenhor, que este longo encadeamento de
causas particulares, que fazem e desfazem os impérios, depende das ordens
secretas da divina Providência. Deus detém, desde o mais alto dos Céus, as
rédeas de todos os reinos; tem todos os corações em Sua mão. Por vezes retém as
paixões, a outras abranda o freio, e desse modo move o gênero humano. Se quer
fazer conquistadores, faz com que o temor saia da frente destes,
inspirando-lhes, e a seus soldados, uma coragem invencível. Se quer fazer
legisladores, envia-lhes Seu espírito de sabedoria e de previsão; faz com que
previnam os males que ameaçam os Estados, e estabeleçam os fundamentos da
tranqüilidade pública.
“Ele conhece a sabedoria humana, sempre escassa em algum
aspecto; esclarece-a, estende-lhe a visão e depois a abandona às suas
ignorâncias: Ele a cega e a precipita; a confunde por si só, então ela se
enreda, confunde-se em suas próprias sutilezas e as suas precauções ser-lhe-ão
uma cilada. Deus exerce deste modo Seus temíveis julgamentos, segundo as leis
de sua justiça, sempre infalíveis.
“É Ele que prepara os efeitos nas causas mais remotas e
desfere os grandes golpes, cujos contragolpes têm grande alcance. Quando quer
assinalar o fim e derrubar os impérios, tudo será precário e irregular nas
resoluções. O Egito, tão sábio no passado, marcha embriagado, atordoado e
cambaleando porque o Senhor derramou o espírito de vertigem em seus projetos,
ele não sabe mais o que faz, está perdido.
“Que os homens não se enganem, porém; Deus endireita quando
quer o sentido perdido e quem insultava os outros pela sua cegueira, cai por
sua vez nas trevas mais espessas, sem que seja preciso mais, para perturbar-lhe
a mente, que sua longa prosperidade.
“É assim que Deus reina sobre todos os povos. Não falemos
mais de acaso ou de sorte, ou falemos disso só para usar um nome com que
encobrir nossa ignorância. O que é 'acaso', em relação a nossos pareceres
incertos, é um desígnio preparado por um parecer superior, isto é, o desígnio
eterno que encerra todas as causas e todos os efeitos em uma mesma ordem. Desse
modo tudo concorre para o mesmo fim, e é pela incapacidade de entender o todo
que nós encontramos, o acaso e a falta de regularidade nas particulares
ocorrências.
“Daí verifica-se o que diz o Apóstolo (I Tm., VI, 15), que
Deus é bem-aventurado e o único poderoso, o Rei dos reis e o Senhor dos
senhores. Bem-aventurado, cujo repouso é inalterável, que vê mudar tudo, sem
mudar, e que opera todas essas mudanças com o pensamento imutável; que dá e que
tira o poder; que o transfere de um homem a outro, de uma casa a outra, de um
povo a outro, para demonstrar que ninguém o detém senão por empréstimo e que
Ele é o único em Quem esse poder reside naturalmente.
“Eis porque todos os que governam sentem-se sujeitos a uma
força superior. Eles fazem mais ou menos o que pensam e seus pareceres não
deixaram nunca de ter efeitos imprevistos. Nem eles são senhores de disposições
que os séculos passados puseram nas questões, nem eles podem prever o curso que
tomará o futuro, por mais que o queiram forçar. Somente Ele tem tudo em Sua
mão, e sabe o nome do que é e do que não é ainda, e preside a todos os tempos e
prevê todos os pensamentos.
“Alexandre não pensava que trabalhava para os seus capitães,
nem que arruinaria sua casa pelas suas conquistas. Quando Brutus inspirou ao
povo romano um imenso amor à liberdade, não imaginava estar lançando nos
espíritos o princípio dessa licenciosidade sem freios pela qual a tirania que
pretendia destruir seria restabelecida mais dura ainda que sob os Tarquínios.
Quando os Césares elogiavam os soldados, não tinham a intenção de dar patrões a
seus sucessores e ao império. Em uma palavra, não há poder humano que não sirva,
a despeito dele mesmo, a outros desígnios que não são os seus. Somente Deus
sabe submeter tudo à Sua vontade. Eis porque tudo é surpreendente, quando não
se vêem senão as causas particulares, e todavia, tudo avança em uma seqüência
ordenada. Estes 'Discursos' o fizeram entender. E, para não falar mais de
outros impérios, considere-se por quantos pensamentos imprevistos, mas mesmo
assim seguidos por eles mesmos, a sorte de Roma foi conduzida desde Rômulo até
Carlos Magno.
“Talvez vos parecerá, monsenhor, que teria sido preciso
falar algo mais de vossos franceses e de Carlos Magno que fundou o novo
império. Mas, além de sua história fazer parte daquela da França escrita por
vós mesmo e que vós já adiantastes bastante, reservo-me para fazer-vos um
segundo Discurso, quando terei uma razão necessária de falar-vos da França e
deste grande conquistador, que sendo igual em valor aos mais renomados da
antigüidade, superou-os em piedade, em sabedoria e em justiça. (...) Enquanto
vereis os impérios caírem quase todos por si, vereis a religião sustentar-se
pela própria força, e então conhecereis facilmente qual é a consistente
grandeur, onde um homem sensato põe sua esperança.”
PROJETO PARA UM MUNDO MELHOR
Pela carta apostólica sacro vergente anno, de 7 de julho de
1952, Pio XII faz saber: “como anos atrás consagramos todo o mundo ao Imaculado
Coração de Maria Mãe de Deus, assim agora, de modo especialíssimo, consagramos
todos os povos da Rússia ao mesmo Coração Imaculado... para com o Seu
patrocínio obter a paz e que a verdade cristã, dignidade e suporte da
convivência humana, cresça e se fortaleça entre os povos da Rússia. Que todos
os enganos dos inimigos da religião, todos os seus erros e tramas falazes,
sejam repelidos para longe de vós.” (MM, p. 472)
Neste ato, havia claramente a intenção de completar a
consagração feita em 1942, atendendo ao pedido de Fátima que pedia a menção
explícita à Rússia. Mas, como se pode verificar (p. 18,19), nessa consagração
faltava ainda a participação colegial de todos os bispos do mundo (carta a Pio
XII, DOC 437). Por isto continuava a ser incompleta. Poderia o papa ignorá-lo?
Não nos é dado saber a razão que havia impedido Pio XII,
chamado o papa de Fátima, de atender inteiramente ao pedido. Pode-se supor que
teria sido informado por seus auxiliares imediatos de que encontraria uma
resistência por parte de alguns bispos, ainda maior do que na ocasião em que
promulgou o dogma da Assunção de Nossa Senhora.
Embora sejam questões diferentes, ninguém melhor que Pio
XII, beneficiado, como disse, pelas visões do “milagre do sol”, ocorrido em 13
de outubro de 1917 em Fátima, mas visto por ele nos jardins vaticanos nos dias
em que promulgava o grande dogma mariano, podia ver como eram intimamente
correlatos o dogma e a consagração que dão glória à Mãe de Deus. Todavia, não
consta que Pio XII tenha pedido, e menos ainda convocado, os bispos do mundo
para participar na consagração que fez da Rússia ao Imaculado Coração, não
atendendo, assim, plenamente ao pedido transmitido por irmã Lúcia, que
encerrava a promessa de paz e salvação de muitas almas, pela conversão da
Rússia por intervenção de Nossa Senhora.
Ora, naquele mesmo período havia um projeto acalentado pelos
homens da Igreja, que tinha alguma conexão com Fátima. Chamou-se “Movimento para um Mundo Melhor”. Foi fundado
pelo conhecido jesuíta padre Ricardo Lombardi e teve entusiástico apoio de Pio
XII. Para descrevê-lo faremos um breve apanhado do livro Pio XII per un mondo
migliore, de autoria do padre Lombardi, publicado em 1954 por La Civiltà
Cattolica, dos jesuítas, em Roma (abr. MM).
Saberemos que a idéia veio de uma exortação papal onde eram
usadas as palavras “para um mundo melhor” no dia 10 de fevereiro de 1952, sendo
o livro e o movimento baseados numa série de discursos desse papa que seguem a
linha do título.
Logo na primeira página há uma carta da Secretaria de Estado
de Sua Santidade, de 18 de maio de 1953, pela qual é dado o apoio e é expresso
o reconhecimento do papa pelo trabalho e ampliação desse movimento pelo mundo
melhor. A carta é assinada G. B. Montini, isto é, Giovanni Battista Montini,
que será o futuro papa Paulo VI.
Seguem descrição e diretrizes do movimento, baseados numa
nova ordem cristã para um mundo presente que caminha para a ruína e necessita
de um vigoroso despertar para renovar-se desde sua base. Mas ali é dito que o
papa havia assumido essa tarefa diante do futuro como seu primeiro construtor
(op cit., p. 25). Eis porque tudo é planejado com certeza do êxito para “a
grande hora que virá”.
Nessa perspectiva, a alocução iniciadora do dia 10 de
fevereiro — e a resposta obtida dos católicos — teria caráter histórico.
Fala-se de uma nova contra-reforma católica, de uma
contra-ofensiva de Deus diante da apostasia moderna, a que se segue o dever de
renovação da Igreja pela Ação Católica etc. Para isto é feito um apelo a todas
as dioceses do mundo católico.
Por ocasião de uma importante palestra radiofônica de Pio
XII, dia 13 de outubro de 1952, em que é lembrado que o verdadeiro inimigo é o
espírito de rebelião contra Deus e contra Jesus, que seria a revolução de
sempre, padre Lombardi associa o apelo ao mundo melhor a Fátima e lembra a
consagração da Rússia ao Imaculado Coração feito em julho. Não faz nenhuma
menção, porém, ao fato de que esse ato ficou incompleto pela falta de
participação dos bispos do mundo católico. Ora, para o seu movimento fez-se o
apelo a todas as dioceses, não, porém, para o pedido-oferta de Nossa Senhora de
Fátima, privilegiando assim o projeto humano sobre a indicação divina.
Nisto se nota uma falta de sintonia do movimento com os
eventos de Fátima, o que é também confirmado pelas idéias ventiladas. Por
exemplo, lê-se na página 66: “A assombrosa civilização moderna, dona de forças
gigantescas, está contudo agonizante porque privada de alma. Que receba o
espírito do Evangelho e domine os séculos com uma nova e admirável harmonia:
Terra e céu, cantem então pelos milênios a glória de Jesus.” Há nisto um
otimismo com relação ao progresso tecnológico que não sobreviveu nem vinte
anos. A mensagem mariana, ao contrário, faz previsões sombrias até a conversão
russa.
No fim é dito somente: “será concedido ao mundo algum tempo
de paz.” (p. 14)
O “Movimento pelo Mundo Melhor” parece antecipar o Concílio
Vaticano II dizendo que seus cursos em algumas dioceses italianas pareciam um
novo Pentecostes. É citado, então, um telegrama encorajador da parte do papa em
8 de agosto de 1953: “Sua Santidade vivamente comprazido fraterno convênio
sacerdotal de Fognano promovido para estudos urgente atuação Mundo Melhor,
invoca abundante efusão e lumes divinos de ajuda e conforto enquanto envia de
coração aos numerosos participantes implorada benção. (Assinado) Montini.” (p.
84)
É curioso o contraste que transparece continuamente no
“Movimento” entre um otimismo organizador que prepara “para a grande hora” e as
palavras que repete de Pio XII descrevendo o mundo à beira do abismo. É como se
fosse guiado por dois espíritos: o papa e sua visão do mundo em perigo, de um
lado, o padre Lombardi e uma euforia conciliar, montiniana, pelos progressos do
mundo, de outro. Isto ficará mais patente num programa de 140 pontos escolhidos
como sendo a “Doutrina Pontifícia para um Mundo Melhor” (p. 101-105).
Fala-se nele de uma nova ordem nacional e internacional
cujos princípios estão na liberdade e segurança, no respeito pelas minorias, na
repartição das matérias-primas, na redução dos armamentos e acordos
internacionais, na liberdade de ação da Igreja e na dignidade e direitos da
pessoa humana. Muitas idéias louváveis, outras utópicas, cujo âmbito não é
propriamente religioso, mas teriam grande impulso, depois de Pio XII, num
Concílio da Igreja. Aqui já aparecem, porém, como parte de uma cruzada do papa,
junto com a reorganização do mundo por uma sã democracia em que a Igreja seria
tutora da liberdade e dignidade humanas no plano nacional, cabendo a um órgão
comum a tutela da paz internacional.
No programa de 140 pontos, termina-se por reivindicar o
universo para todos os homens, depois de dizer: “A Igreja crê na paz e não se
cansará de promovê-la. Considera, porém, que há potências ocultas que sempre
agiram na História e portanto desconfia de propaganda pacifista.” Mais adiante,
o Capítulo XI é intitulado “O que a Igreja pode fazer para a restauração do
mundo”. Naturalmente, as palavras de Pio XII são de jaez diverso do desse
programa. É assim que o Capítulo XII tem por título “Necessidade de almas
orantes para a esperada renovação” e, o Capítulo XIV, “Penitência do pecado,
primeiro passo para um Mundo renovado”. Nele Pio XII havia falado do “miserável
espetáculo de um mundo em demolição pela ruína operada nas fundamentais
estruturas da vida moral”, atribuindo a culpa ao falso humanismo e repetindo
que o primeiro passo é a penitência (p. 210). Nas palavras papais ainda ecoava
o alerta de Fátima.
Pio XII advertia: “devem ser chamados a um mais reto
sentimento quantos presumam poder salvar o mundo com o que foi justamente
definida 'a heresia de ação', da ação que não se apóia na ajuda da graça e não
se serve constantemente dos meios necessários para obter a santidade, dados por
Jesus Cristo. Do mesmo modo, consideramos oportuno estimular as obras do
Ministério sagrado, os que alheios demais à atividade exterior e quase descrendo
na eficácia da ajuda divina, não se dedicaram bastante, segundo suas
possibilidades, a fazer penetrar a força do espírito cristão na vida diária,
com todas as formas de atividade pedidas pelos nossos tempos.” (Alocução de 12
de setembro de 1947, p. 267, op. cit.)
Mas, qual seria então o ponto de equilíbrio na ação cristã?
Pio XII em 14 de setembro de 1952 dava ao Katholikentag
austríaco a seguinte mensagem: “Se os sinais dos tempos não enganam, a segunda
etapa das lutas sociais, na qual, pode-se pensar, já entramos, colocam agora
outras questões e outras tarefas como supremas (...) A defesa do indivíduo e da
família, a fim de impedir que se deixem arrastar para o abismo que procura
engoli-los pela socialização universal: uma socialização ao cabo da qual se
tornaria horrível realidade a espantosa imagem do Leviatã. A Igreja combaterá
esta batalha com grande energia, porque estão em jogo os valores supremos da
dignidade do homem e da salvação de sua alma.”
Posteriormente, a 8 de dezembro de 1953, em rádio-mensagem
dirigida à Ação Católica italiana o papa diz: “Mas os perigos que pesam sobre o
gênero humano são tais que Nós não devemos cessar nunca de lançar nosso grito
de alerta. O inimigo está às portas da Igreja e ameaça as almas. E eis outro
aspecto atualíssimo de Maria Santíssima, a Sua força nesse combate.” (I.P., v.
7, p. 403)
Estas palavras de Pio XII, que aliás se repetiam em muitos
outros discursos, ensinavam a evitar a “heresia de ação”, que não se apóia na
ajuda da graça, mas confiar na eficácia desta para enfrentar o Leviatã
revolucionário presente, luta esta para a qual há que recorrer à força de Maria
Santíssima. Ora, não foi justamente isto o indicado e oferecido em Fátima para
enfrentar os “erros espalhados pela Rússia?”
E, no entanto, não se confiou plenamente na força dessa
graça trazida por Nossa Senhora para a Igreja. Aqui foi visto como eram
acalentadas soluções humanas que propunham uma evolução religiosa programada
para um mundo melhor. Para estas, apelavam-se a todas as dioceses do mundo
católico. Para a consagração pedida por Maria Santíssima, não. A Fátima
recorreu-se por outro motivos. De fato, padre Lombardi, depois de muito
insistir, conseguiu falar com irmã Lúcia no Convento de Coimbra em 7 de
fevereiro de 1954. Perguntava então à irmã Lúcia, que estava doente e febril: —
Diga-me se o Movimento para um Mundo Melhor [que ela conhecia], é a resposta da
Igreja às palavras que Nossa Senhora lhe dirigiu.
— Padre — respondeu —, há certamente necessidade de uma
renovação grande. Sem ela, e considerando o presente estado da humanidade,
somente uma limitada parte do gênero humano se salvará.
— Crê realmente que muitos vão para o inferno? Eu,
pessoalmente, espero que Deus salvará grande número de almas e escrevi a
propósito o livro A salvação dos que não têm fé.
— Não Padre, muitos se perderão.
— É certo que o mundo é um abismo de vícios... E no entanto
há sempre esperança de salvação.
— Não Padre, muitos, muitos se perderão. (S. F. Alonso, p.
106) Também a pequena Jacinta, que havia visto o inferno, falara em continuação
dos muitos que se perdem, de quantos as guerras levam ao inferno. Dizia sempre
que era preciso rezar muito para salvar almas. Ora, se essas visões pertencem
ao Terceiro Segredo não se sabe, mas padre Lombardi voltou a Roma tão
consternado que muitos ficaram alarmados, pensando que conhecera os castigos
que nele foram preanunciados. Nem por isto, porém, considerou-se que a resposta
da Igreja às palavras de Nossa Senhora de Fátima consistia em atender o pedido
feito para o bem dos homens. Nele havia todo um programa de restauração
católica, ditado pela graça, que justificaria qualquer movimento mundial ou
concílio ecumênico. Qual melhor ajuda?
“UM ACORDO ENTRE MONTINI E STALIN”
Com o título acima o quinzenário romano Si si no no, n.º 11,
ano X, de 15/9/1984 levanta novamente essa tenebrosa questão. Isso aconteceu
porque monsenhor Roche, autor do livro Pie XII devant l’histoire e íntimo
colaborador do importante cardeal Tisserant, vendo que este é atacado pela
importante parte que teve no Acordo Roma-Moscou, que será descrito quando se
falar do Concílio Vaticano II, manda uma carta ao diretor da revista francesa
Itineraires para, mais que desculpar, confirmar um acordo e lembrar outro pior.
Eis a parte da carta que interessa ao assunto tratado:
“... Comentando, não sem razão, o acordo (Roma-Moscou) que
data, na vossa opinião, de 1962, demonstrais ignorar um acordo precedente que
se situa durante a última guerra mundial, em 1942 para ser exato, e do qual
foram protagonistas monsenhor Montini (futuro papa Paulo VI) e o próprio
Stalin. Este acordo de 1942 parece-me de considerável importância. (Quem fala
conhece bem o assunto.)
“Quero, porém, no momento seguir-vos somente no comentário
feito ao acordo de 1962. Todos sabem (?) que esse acordo foi negociado entre o
Kremlin e o Vaticano no mais alto nível. Monsenhor Nikodim e o cardeal
Tisserant não foram mais que porta-vozes, um do chefe do Kremlin e o outro do
Sumo Pontífice, então gloriosamente reinante. (...) Eu posso assegurar-vos, sr.
diretor, que a decisão de enviar observadores russos ortodoxos ao Concílio
Vaticano II foi tomada pessoalmente por S.S. João XXIII, com o aberto
encorajamento do cardeal Montini, que foi o conselheiro do patriarca de Veneza
(posição anterior do Papa Roncalli), no tempo em que era arcebispo de Milão.
Não só, mas era o cardeal Montini que dirigia secretamente a política da
Secretaria de Estado durante a 1.ª Sessão do Concílio, instalado no lugar
clandestino que o papa lhe reservara na famosa Torre de São João na mesma muralha
da Cidade do Vaticano.
“Quanto ao cardeal Tisserant, ele recebeu ordens formais
tanto para negociar o acordo como para vigiar sua exata execução durante o
Concílio. Portanto, toda vez que um bispo queria enfrentar a questão do
comunismo o cardeal da sua mesa no conselho de presidência intervinha para
lembrar (ou melhor, impor) o compromisso de silêncio desejado pelo papa (ou
pela eminência parda que era Montini). (...) O cardeal Tisserant recebeu
instruções firmes e irrevogáveis do próprio papa e, sendo homem de fé,
acreditava e obedecia à autoridade, mesmo se estava convencido de erro
político.”
A revista segue comentando que não só monsenhor Roche; mas
outros bons conhecedores da “ação de monsenhor Montini como substituto na
Secretaria de Estado de Pio XII, sabem ter ele manobrado à esquerda, de acordo
com as simpatias que alimentou desde a juventude (cf. Fappani-Molinari, Montini
Giovane, ed. Marietti), mas no desconhecimento e em nítido contraste com o
pensamento e instruções de Pio XII, o papa que deveria ter representado mas
que, evidentemente, julgava desprovido de sua iluminada visão da política e da
História. Nesse sentido Montini estabeleceu às escondidas de Pio XII contactos
com os soviéticos durante a última guerra, como lembrou monsenhor Roche; desses
o papa foi informado pelo arcebispo protestante de Upsala, o qual, tendo
posição oficial na Suécia, dispunha de provas diretas do serviço secreto sueco,
sem dúvida um dos melhores informados das manobras dos países do leste europeu
(cf. Courrier de Rome, junho/75, n.º 145). Além disso, em outubro de 1954 Pio
XII teve conhecimento de um documento secreto do arcebispo de Riga, prisioneiro
dos soviéticos, que dizia terem sido feitos em nome do papa contactos com os
perseguidores, da parte de uma alta autoridade da Secretaria de Estado. Quem,
senão Montini? “Por essa traição”, escreverá monsenhor Roche, “a amargura de
Pio XII foi tão grande que sua saúde baqueou e ele resignou-se a dirigir
sozinho o andamento dos negócios exteriores do Vaticano.” (monsenhor Roche, op.
cit.) Mas havia coisas piores.
A publicação francesa La Contre-réforme Catholique, n.º
97,15, relata a seguinte informação: “A investigação revelou que no grupo de
monsenhor Montini havia um traidor. Era o jesuíta Tondi, que durante uma dramática
acareação com o cardeal N., reconheceu ter dado aos soviéticos os nomes dos
sacerdotes enviados clandestinamente à Rússia e que em seguida foram todos
presos e eliminados. É sabido que Tondi, casado (no civil e, depois, por
insistência superior, também no religioso), com uma ativista comunista, depois
de várias aventuras e a morte da mulher, voltou à Roma em 1965, encontrando
'trabalho' graças aos favores de quem era então papa Paulo VI. Mas daquela
atividade passada de Montini, Pio XII teve conhecimento de que este seu
substituto lhe havia escondido todas as mensagens relativas ao cisma dos bispos
chineses.” Eis o curriculum de um futuro pontífice que, embora claramente
desobediente e infiel ao papa que nele confiara, iria, como veremos, impor rigorosa
obediência às transformações e aggiornamenti pelos quais decidira fazer passar
a Santa Igreja. Aqui não trataremos da reforma litúrgica com a qual Paulo VI
foi bem além do que os padres votaram no Concílio, mas da relação que esse
Concílio teve com a mensagem de Fátima, o que é de extrema importância. Há
ainda um segredo escondido sobre essa relação.
Do segredo trataremos adiante. Aqui é importante registrar
que “os erros esparsos pela Rússia”, que a mensagem indicou e Pio XII tentou
combater, infiltravam-se na própria Igreja.
No ano de 1942, em 31 de outubro, o papa, com a intenção de
cumprir o pedido da mensagem de Fátima, consagrava o mundo ao Coração Imaculado
de Maria com a rádio-mensagem “Benedicte Deum coeli”: “Rainha da Paz, reza por
nós e daí ao mundo em guerra a paz a que os povos aspiram” A PAZ NA VERDADE, NA
JUSTIÇA E NA CARIDADE DE CRISTO. Daí a paz das almas e a paz das armas, a fim
de que na tranqüilidade da ordem se expanda o Reino de Deus.”
No mesmo ano 1942, porém, em lugar e data ainda desconhecidos,
uma iniciativa de monsenhor Montini, futuro Paulo VI, junto ao sanguinário ateu
Stalin, delineava o início de relações ocultas entre personagens da hierarquia
eclesiástica e chefes do aparato comunista soviético, declarados inimigos da
verdade, da justiça e da caridade de Cristo. Era concebida, assim, veladamente
dentro da Igreja a fé no diálogo político com os senhores do mundo que ameaçam
com revoluções e terrores que declaravam irreversíveis. Era o perigo do gulag
comunista, que incutia mais temor que o inferno.
Mas essas relações veladas com o regime que a Igreja declara
“intrinsecamente perverso” implicava compromissos inconfessáveis para
autoridades dessa mesma Igreja. Para conviver com o mal, deveriam evitar
condená-lo, deveriam reprimir quem quisesse condená-lo, e deveriam encontrar
uma doutrina para justificar tudo isso. É claro que a mensagem de Fátima, que
falava em erros e conversão da Rússia, deveria ser redimensionada, senão
banida. Mas, dada a dificuldade de fazê-lo totalmente, já bastaria censurar as
palavras “comunismo” e “Rússia”. E a tanto se chegou, como veremos.
O papa Pio XII demonstrou-se sempre contrário a compromissos
com governos comunistas e sabe-se que reprovou até o limitado modus vivendi
iniciado pelo arcebispo Wyszynski na Polônia. De fato, de que outro poder
dispõe um prelado católico senão o da representação de princípios e verdades
imutáveis? São estes tratáveis? Pio XII, na mesma linha de São Pio X, conhecia
a caridade da intransigência nas coisas de Deus, temperada pela esperança na
Providência. Por isto consagrou o mundo e a Rússia ao Imaculado Coração e com
alegria aceitou ser chamado o papa de Fátima
O pontificado do papa Pacelli salientou-se pela voz de um
grande doutor da Igreja, trabalhador incansável que não descuidou de nenhum
assunto debatido pelos homens nesses anos conturbados. Mas um doutor ensina, e
é tudo. O papa é também chefe, e quem comanda tem o dever de fazer-se obedecer.
Essa missão é por vezes dura, desagradável, mas necessária na Igreja e na
sociedade para o bem das almas. Também nisto o pedido celeste de Fátima para
abreviar os males do mundo era categórico: “Se Vossa Santidade se dignar fazer
[a consagraçãol (...) e ordenar que em união com Vossa Santidade e ao mesmo
tempo a faça também todos os bispos do mundo, abreviar (...)” (Carta em DOC. p.
437).
À imagem deste comando que faltou, muitas insídias puderam
ser armadas na Igreja. Entre estas, a controvérsia doutrinal ligada à salvação
e, portanto, ao dogma da fé lembrado na mensagem de Fátima. Trata-se do “caso”
do brilhante jesuíta americano Leornard Feeney, que, pregando a absoluta
necessidade do batismo da Igreja, fora da qual não há salvação, converteu
grande número de universitários de Cambridge e redondezas, mas suscitou a
reprovação do arcebispo de Boston, movido pelas objeções da maçonaria local. O
sacerdote apelou a Roma, que respondeu com uma carta, ao arcebispo Cushing em
agosto de 1949, na qual confirmava o dogma que fora da Igreja não há salvação,
relativizando-o, porém, pelos conceitos de batismo de desejo e fé implícita e
condenando o padre Feeney. Ora, esse documento vaticano, que não foi
oficialmente promulgado entre os atos da Sé apostólica (A.A.S.), passou a
favorecer uma nova tendência pastoral que, diante da possibilidade de
“conversões implícitas”, atenuou o esforço missionário. A insondável e extrema
clemência salvadora de Deus passaria a justificar o recuo do proselitismo
católico enleado mais em interpretações que em conversões.
As forças contrárias à Igreja são grandes e os problemas
doutrinais complexos, mas simples era o pedido da Mãe de Deus ao papa: a
consagração colegial da Rússia que também o papa de Fátima não soube cumprir.
Temia talvez a oposição de alguns bispos modernistas ou a desaprovação de
carreiristas que o circundavam? O resultado foi que, já antes de sua morte, em
outubro de 1958, a Igreja estava aberta aos inimigos da verdade, da ortodoxia
católica que doutamente ensinara e de Fátima, cuja mensagem salvadora não
soubera devidamente acolher.
Ora, essas confabulações e tratativas humanas eram as
primícias dos compromissos contrários à Providência, que desprezavam a fé na
mediação de Maria junto ao único Senhor do Céu e da Terra. E isso, vinte anos
após, teria levado ao advento de um concílio ecumênico que silenciaria sobre a
terrível ameaça comunista e sobre a esperança de Fátima, extenuando parte do
magistério e do testemunho que a Igreja edificou em vinte séculos contra as
forças das trevas.
Nestes anos, homens da hierarquia sentiam-se capazes de
dialogar com estas, para estabelecer uma convivência pacífica de que os
“retrógrados” antepassados não haviam sido capazes. A Igreja devia desculpar-se
(!). É a “humildade na soberba dos novos prelados!”
Passaram então a comandar na Igreja homens que tanto estavam
próximos à Cátedra papal quanto distantes do pensamento de Pio XII. Entre eles:
seu confessor, cardeal Bea, jesuíta alemão e renomado biblicista, que foi o
grande líder progressista do Vaticano II; o arcebispo de Milão, Montini, que
pelos seus abusos e traições na Secretaria de Estado fora “removido” para
aquela posição, mesmo sem ser feito cardeal; o cardeal Roncalli, patriarca de
Veneza, futuro papa João XXIII, cujo primeiro ato foi fazer Montini cardeal e
supremo consultor de um concílio que inaugurariam divergindo dos profetas da
desdita e abrindo a Igreja a um decantado mundo moderno.
Havia nesse novo curso um afastamento da visão do mundo de
Pio XII, dos temores que acometeram padre Lombardi e seu mundo melhor, e da
própria mensagem de Fátima que advertiu sobre os perigos deste mundo e do
inferno. Pelos novos programas ficou acertado serem os novos chefes contrários
à profecia de Fátima. Concebiam perigos e soluções diversas.
Pio XII, em agosto de 1958, e eram seus últimos dias,
perguntava a um grupo de peregrinos americanos conduzidos pelo padre Leo Goode:
“Acreditais em Fátima?” À resposta positiva dos fiéis o papa continuou: “Se
quisermos paz, devemos todos obedecer aos pedidos feitos em Fátima. O tempo de
duvidar de Fátima já passou. Agora é o tempo de agir.” (FGS, p. 73) Mas a
ocasião propícia passara e ele se esquecera de que o timão da barca de São
Pedro estava em suas mãos e competia-lhe comandar. Se suas palavras foram
firmes e seus documentos quase sempre luminosos, seus atos foram por vezes tíbios.
Temendo punir e remover, como compete a um verdadeiro chefe da Igreja de Deus,
promoveu e transferiu diplomaticamente homens que seriam os bispos, cardeais e
papas da autodemolição da Igreja. Seriam os fatos a fazer esse julgamento neste
mundo, que apesar dos “projetos” só piorou.
Na Arquidiocese de Milão, de onde o santo cardeal Schuster,
de acordo com Pio XII, já em 1941 fazia divulgar a devoção de Fátima, ficava o
arcebispo João Batista Montini, que usaria essa devoção e tudo mais na Igreja
para mandar avante seu grande projeto de fraternização e paz, pelo culto do
homem.
A TRISTEZA DE NOSSA SENHORA
No dia 19 de setembro de 1846, na montanha de La Salette,
França, dois pastorzinhos, Melania e Maximino, viram uma linda senhora sentada
sobre a pedra onde haviam construído um pequeno “paraíso” de flores. Chorava
com a testa entre as mãos. Foi então que chamou os meninos para transmitir-lhes
uma grande mensagem. Podia esta não ser muito triste se fazia a Mãe chorar
pelos filhos?
Esta infinita tristeza de Maria Santíssima será vista e suas
lágrimas recolhidas em tantos diversos lugares do mundo, nesta nossa época. Já
não é esta uma mensagem, um aviso de valor inestimável? A mensagem que segue
esses milagres pode deixar de ser igualmente triste?
Ora, isto é dito aqui porque há dois tipos de considerações
feitas sobre as aparições que só podem confundir as idéias dos católicos. A
primeira, ao dizer que nelas tudo é vago e, portanto, interpretável. A segunda,
a de que só a autoridade da Igreja pode entendê-las. No primeiro caso
confunde-se vago com velado. Também as Escrituras são veladas, mas nada têm de
vago. Cada palavra, vinda de Deus, tem valor inestimável e um sentido único,
embora imenso. No segundo caso, confunde-se o que só a autoridade pode esclarecer
e confirmar, com o que dispensa explicações humanas.
A tristeza de Nossa Senhora é uma mensagem que dispensa
palavras. Indica que muitos de seus filhos estão na via da perdição. As
palavras podem servir para ajudá-los e guiá-los, mas se não forem ouvidas, se
ninguém souber ou quiser chamá-los de volta, se na Igreja prevalecer o silêncio
e a omissão sobre os perigos iminentes para tantos, a tristeza da Santa Mãe
deveria bastar para adverti-lo.
Essa tristeza e esse menosprezo têm sido a constante de nosso
tempo e para demonstrá-lo será relatado aqui o caso do padre mexicano Agostinho
Fuentes, escolhido como vice-postulante da causa de beatificação dos
pastorzinhos Francisco e Jacinta e que para isto interrogou irmã Lúcia no
Convento de clausura em Coimbra, onde vive desde que se tornou carmelita
descalça.
O encontro foi em 16 de dezembro de 1957. Voltando ao
México, fez uma conferência em 22 de maio de 1958, onde relatou a entrevista
com a vidente de Fátima que foi publicada.
O sacerdote relata que irmã Lúcia recebeu-o cheia de
tristeza, magra e muito aflita, comunicando-lhe suas meditadas preocupações:
“Padre, a Senhora está muito triste porque não se deu
atenção à sua mensagem de 1917. Nem os bons nem os ruins tomaram conhecimento.
Os bons seguem o seu caminho sem preocupar-se com atender às indicações
celestes; os ruins, marcham na estrada larga da perdição sem tomar nenhum
conhecimento das ameaças de castigo. Creia, padre, o Senhor Deus muito em breve
castigará o mundo. O castigo será material e o padre pode imaginar quantas
almas cairão no inferno se não se rezar e fizer penitência. Esta é a causa da tristeza
de Nossa Senhora.
“Padre, diga a todos o que a Senhora tantas vezes me disse:
'Muitas nações desaparecerão da face da Terra. Nações sem Deus serão o flagelo
escolhido por Deus para castigar a humanidade se vós, por meio da oração e dos
santos Sacramentos, não obtiverdes a graça da conversão dessas nações.'
“Diga, padre, que o demônio está travando a batalha decisiva
contra a Senhora, e o que aflige o Coração Imaculado de Maria e de Jesus é a
queda das almas religiosas e sacerdotais. O demônio sabe que religiosas e
sacerdotes, descuidando de sua excelsa vocação, arrastam muitas almas para o
inferno. Estamos ainda em tempo de evitar o castigo do Céu. Temos à nossa
disposição meios muito eficazes: a oração e o sacrifício. Mas o demônio faz de
tudo para distrair-nos e tirar-nos o gosto pela oração. Ou nos salvaremos ou
então nos danaremos juntos.
“Porém, padre, é preciso dizer às pessoas que não devem
permanecer à espera de uma convocação à oração e penitência, nem de parte do
papa, nem dos bispos, nem dos párocos, nem dos superiores gerais. Chegou o
tempo de cada um, por sua própria iniciativa, realizar santas obras e reformar
a sua vida segundo a convocação de Nossa Santíssima Mãe. O demônio quer se
apossar das almas consagradas, trabalha para corrompê-las, para instigar muitos
à impenitência final; serve-se de todas as astúcias, sugerindo até mesmo o
aggiornamento da vida religiosa. Resulta disso a esterilização da vida
interior, o esfriamento nos leigos do espírito de renúncia aos prazeres e a
total imolação a Deus.
“Lembre-se, padre, de que foram dois fatos que concorreram
para santificar Jacinta e Francisco: a grande tristeza da Senhora, e a visão do
inferno. A Senhora encontra-se como que entre duas espadas: de um lado vê a
humanidade obstinada e indiferente às ameaças de castigos; de outro, vê a
profanação dos santos Sacramentos e o desprezo dos avisos de castigo que se
aproximam, permanecendo incrédulos, sensuais, materialistas.
“A Senhora não disse claramente que nos aproximamos dos
últimos dias. Mas me deu a entender, repetindo isso três vezes: na primeira,
que o demônio está para iniciar a luta decisiva, isto é, final, da qual
sairemos vitoriosos ou vencidos, ou estamos com Deus ou estamos com o demônio.
Na segunda vez me repetiu que os últimos remédios dados ao mundo são o Santo
Rosário e a devoção ao Imaculado Coração de Maria. E últimos significa que não
haverá outros.
“Na terceira vez, disse-me que esgotados os outros recursos
desprezados pelos homens, oferece-nos com temor a última âncora de salvação: a
Santíssima Virgem em pessoa, com suas numerosas aparições, suas lágrimas, as
mensagens dos videntes espalhadas por toda parte do mundo. E a Senhora disse
ainda que se não a ouvirmos e continuarmos na ofensa, não seremos mais
perdoados, será como recusar aberta e conscientemente a salvação que nos é
oferecida, e isto no Evangelho é chamado o pecado contra o Espírito Santo.
Padre, é urgente que tomemos consciência da terrível realidade. Não se quer
encher as almas de medo, mas é uma convocação urgente à realidade, porque desde
que a Virgem Santíssima deu grande eficácia ao Santo Rosário, não há problema
material ou espiritual, nacional ou internacional, que não possa ser resolvido
por ele e pelos nossos sacrifícios. Recitá-lo com amor e devoção, consolando
Maria, enxugará tantas lágrimas de Maria Santíssima, de seu Imaculado Coração,
nos salvaremos e obteremos a salvação de muitas almas.
“Na devoção ao Imaculado Coração de Maria, aproximaremos o
trono da clemência, da serenidade e do perdão e encontraremos nele o seguro
caminho para o Céu.”
Essa mensagem foi publicada e difundida pelo mundo em
versões inglesa e espanhola, com todas as garantias de autenticidade e com a
aprovação do bispo de Leiria. Em seguida, porém, parece que foi distorcida em
tom sensacionalista criando alarmes sobre acontecimentos que teriam lugar em
1960.
Nesse ponto o bispado de Coimbra interveio com uma
comunicação oficial que condenava a “campanha de profecias que chegam a
provocar uma tempestade de ridículo”, acrescentando uma declaração de irmã
Lúcia que declarava ignorar castigos falsamente atribuídos a ela. Referia-se à
entrevista de padre Fuentes, mas, como muito bem nota o padre Alonso, que é o
maior relator dos fatos de Fátima (obra em vários volumes, em vias de edição póstuma),
no seu livro Segredo de Fátima, fatos e lenda: “o que padre Fuentes diz no
texto original de sua conferência no México corresponde, sem dúvida, à essência
do que ele ouviu durante suas visitas à irmã Lúcia, pois embora no relatório os
trechos estejam misturados com adornos oratórios e outros recursos literários,
eles não dizem nada que a vidente já não tenha dito em seus numerosos escritos
publicados. Talvez o defeito foi ter classificado de mensagem ao mundo o que
ouviu.”
Devemos acrescentar ser verdade que há distorções e abusos
sobre muitas mensagens proféticas, isso ocorre até mesmo com a Bíblia, mas não
justifica que seja preterida a distinção entre o falso e o genuíno, condenando
tudo como fez o bispado de Coimbra. O que nos refere padre Fuentes é sem dúvida
valioso e fiel. Além disso, como se viu, não há fantasias sobre as formas de
castigos e cataclismas, como devem ter descrito à irmã Lúcia, que quase
certamente não leu o texto e é muito reservada quando fala da mensagem,
obedecendo sempre às ordens superiores.
É preciso lembrar, ainda, que há um segundo relatório em que
o padre mexicano fala dos sofrimentos pessoais de Pio XII, que nos últimos
meses de sua vida via uma situação preocupante no mundo e na Igreja. Teria tido
irmã Lúcia uma visão do que aconteceria sob os novos pontificados?
De fato, o quadro religioso descrito nesse relato de 1957 em
pouco tempo demonstrou ser apenas um esboço. Os católicos que testemunharam as
transformações da Igreja depois de Pio XII viram a vida eclesial degenerar
rápida e sinistramente. Abandonou-se a oração e a penitência como desprezou-se
a doutrina e a virtude, e, embora os perigos do mundo aumentassem em turbilhão
e invadissem até o recinto sagrado, ninguém mais convocava à defesa da fé. Se
antes não se ouvira Fátima, depois tentou-se deturpá-la e ocultá-la. A tristeza
de Maria Santíssima ficou esquecida.
E aconteceu que, enquanto crescia a indiferença para com os
sinais do Céu, aumentava a invocação de obediência e respeito para com os
projetos e transformações efetuados na Terra. Também dentro da Igreja, nunca se
convocou tanto à caridade e compreensão para com os erros de toda ordem. Só a
fé deixava de ser lembrada.
Dirão: quem na Igreja pode saber melhor que o papa e os
bispos como operar para a defesa da fé e a salvação das almas! Na verdade essa
missão cabe especialmente à hierarquia, mas é responsabilidade, não privilégio
humano, e é paga com espinhos, não com aplausos. “Ai de vós quando os homens
vos louvarem!” (Lc. 6,26)
A história da Igreja registra exemplos admiráveis de jovens
que aconselharam papas e donzelas que guiaram reis. Eram ajudas dirigidas à
hierarquia instituída dentro da ordem natural divina. E a grandeza desses
chefes foi reconhecê-la e acolhê-la, confiantes. Santa Catarina de Sena, Santa
Brígida e Santa Joana d'Arc foram mensageiras ardorosas e até severas, mas
submissas à ordem da caridade.
Quantas vezes reis e papas precisaram de ajuda celeste para
superar suas crises de fé e cumprir o próprio dever! Mas os males eram
superáveis na mesma medida em que crescem, acolhendo a ajuda enviada, que como
autoridades não falhariam em reconhecer.
Certamente nos últimos 300 anos de História não faltaram as
ajudas divinas; faltou, sim, a fé para acolhê-las. O rei da França não acolheu
o pedido do Sagrado Coração e a revolução cresceu na França até varrer sua
dinastia e infestar o mundo. No século passado não se deu atenção a Nossa
Senhora, que apareceu chorando na montanha de La Salette, e a maçonaria com o
liberalismo solaparam as defesas da Igreja e da sociedade cristã. Em nosso
século é o pontificado que antepõe soluções humanas ao caminho indicado em
Fátima e o mundo jaz degradado pelos erros religiosos, pelas ofensas morais e
pelo terror comunista.
2ª PARTE - O ESPÍRITO DA IGREJA CONCILIAR (1958-1978
Na segunda metade do século XX passou a soprar um novo
espírito.
Mais e mais os pastores da Igreja assumiam compromissos com
homens e governos que eram os portadores dos “erros que a Rússia espalharia
pelo mundo”, como foi advertido na mensagem de Fátima. Não se tratava mais de
um assistencialismo de emergência que acabava por favorecer os algozes do
governo soviético, como aconteceu sob os pontificados de Bento XV e Pio XI.
Naquela ocasião os princípios não eram envolvidos pela Ostpolitik vaticana,
mas, ao contrário, o comunismo era duramente condenado como doutrina. Um acordo
Montini-Stalin, que já pelo fato de ser possível, implicava reconhecimento da
legitimidade de um governo ateu, antinatural, perseguidor da civilização
cristã, devia ficar escondido. Representava a primícia de uma estrutura de
compromissos emaranhados, politicamente obscuros e falsos, e religiosamente
contrários à Providência, que ninguém ousaria propor a Pio XII. Deles só
poderiam advir iniciativas espúrias e perigosas que contaminariam também os
frutos do apostolado católico e, todavia, era almejado por muitos pastores. Foi
assim que vinte anos depois desse sinistro acordo se inaugurou um Concílio
Ecumênico que se iniciava já condicionado pelo comunismo, o que logicamente
levava a contornar Fátima e tudo que sua mensagem lembrava. Isto é o que
passaremos a relatar, começando por reconhecer que as palavras ditas a padre
Fuentes, que muito sofreu por tê-las divulgado, demonstraram-se verazes e
proféticas. De fato, nos anos que seguiram cada vez menos se haveria de esperar
convocações à oração e penitência por parte das autoridades da Igreja. João
XXIII sucedeu em 1958 ao papa Pacelli e em pouco tempo iniciou o aggiornamento,
também das condenações aos erros e conseqüente admoestação dos errados. E isto
foi estendido com otimismo às ideologias atéias e aos inimigos de Deus e da
Igreja, que, ao invés de serem convertidos, passaram a seduzir multidões de
fiéis e mesmo de consagrados, subvertendo a paz que é “tranqüilidade da ordem”.
(Santo Agostinho, A cidade de Deus, Cap. XIX)
AS DUAS CIDADES: DE DEUS E DOS HOMENS
Segundo Santo Agostinho
“Dois amores fundaram, portanto, duas cidades: o amor de si
mesmo, levado até o desprezo de Deus, formou a cidade terrena; o amor a Deus,
levado até o desprezo de si mesmo, gerou a cidade celeste. A primeira glorifica
a si mesmo, a segunda a Deus. Porque uma procura a glória dos homens, a outra
considera sua máxima glória Deus, testemunha da consciência. Uma ergue a cabeça
no orgulho. A outra diz a seu Deus: Sois a minha glória, elevais a minha cabeça
(Sal. 3,4). Numa, os príncipes e nações que submete são subjugadas pela paixão
do domínio. Na outra, apresentam-se unidos reciprocamente na caridade, os
chefes ao comandar e os súditos ao obedecer. Uma ama a própria força em seus
poderosos. A outra diz a seu Deus: eu te amo, ó Senhor, minha fortaleza (Sal.
17,2).
“Assim, na cidade terrestre, os sábios, vivendo segundo o
homem, procuraram somente os bens do corpo, ou aqueles do espírito ou ambos. E
mesmo os que puderam conhecer a Deus, não o glorificaram como Deus, nem Lhe
renderam graças, mas perderam-se em seus vãos pensamentos e suas mentes
insensatas ficaram ofuscadas. Declarando-se sábios (isto é, deixando-se dominar
pela soberba e elevando-se em sua sabedoria) tornaram-se estultos e
substituíram a glória do incorruptível Deus por imagens representando homens
corruptíveis, aves, quadrúpedes e serpentes (arrastaram ou seguiram os povos
aos altares da idolatria) e serviram a criatura antes que ao Criador que é
bendito nos séculos (Rom. I, 21-25).
“Na cidade de Deus, ao contrário, não há sabedoria humana,
mas piedade que presta ao verdadeiro Deus o culto que Lhe é devido, e que
espera como recompensa na sociedade dos santos, sejam estes homens, ou sejam
anjos, que Deus seja tudo em todos.” (I Cor. 15,28)
Eis a Cidade esquecida... que por fim triunfará!
JOÃO XXIII E O SEGREDO DE FÁTIMA
Parece não haver dúvida de que o pontificado em que
iniciaram as visíveis transformações da Igreja foi de João XXIII, alcunhado,
por quem auspiciava aberturas, de o “papa bom”. Aqui seguiremos o que foi
reservado para a mensagem de Fátima, prevenindo desde logo que em tais
questões, ligadas estreitamente à tradicional devoção católica popular, não há
que supor mudanças claras e radicais. Seria por demais insensato e
auto-acusatório para homens da Igreja alijar o espontâneo fervor que as
aparições despertam nas multidões fiéis.
Note-se que o mesmo em La Salette, cuja mensagem foi
hostilizada e cujos videntes sofreram humilhações e o exílio, construiu-se logo
um grande santuário e incentivaram-se as peregrinações. O mesmo prelado de Grenoble,
que mandara Melania para um convento de clausura na Inglaterra, que encomendara
uma imagem de Maria Virgem a seu gosto, não como fora descrita; ou seu
sucessor, que instituíra uma regra de saletianos segundo seu critério, não como
fora pedido, acalentaram a popularidade e renome dessa aparição. Mas, bem
entendido, depois de terem devidamente censurado a mensagem que lhes era
intolerável e a regra religiosa que lhes parecia incompreensível, embora ambas
tivessem sido ditadas por Nossa Senhora.
Quanto à mensagem de Fátima, sua parte conhecida repetia o
ensinamento católico de sempre, que a guerra era o resultado das ofensas a
Deus, dos crimes do mundo, dos quais os erros que a Rússia estava para
espalhar, o comunismo e o ateísmo, são os termos culminantes. Eram avisos sobre
males sociais, políticos e religiosos que o magistério da Igreja sempre
denunciara e combatera.
Veremos, porém, que o espírito que guiou João XXIII queria
que as acusações e condenações passadas fossem aggiornate e mesmo execradas. Isto
deu ensejo a que os progressistas e esquerdistas alcunhassem Fátima de
“aparição política”, a fim de neutralizar a sua mensagem.
Não se pode afirmar que tudo o que sugeria esse novo
espírito passasse pela boca de João XXIII, mas certamente o novo tom empregado
nos discursos papais, bonachões e otimistas, aludindo à lua e a lembranças
infantis, coadunava-se mais com um ameno entretenimento popular do que com uma
chamada evocando os graves males presentes e os perigos futuros, como faz a
mensagem de Fátima.
O novo pontífice eleito em 1958, centenário das aparições de
Lourdes, demonstrou preferência por esse evento mariano, que não havia deixado,
que se saiba, pendente nenhum grave segredo ou indeclinável pedido, como era o
caso de Fátima. Para esta última pareceu-lhe bastante instituir a festa de
Nossa Senhora do Rosário de Fátima, que descreveu como “centro das esperanças
cristãs”. No que respeita, porém, ao pedido da mensagem e ao seu segredo,
deixou cair o silêncio sobre o primeiro e fez arquivar o segundo. E essas ações
implicaram, mais tarde, também o arquivamento de qualquer propósito de
conversão da Rússia. Aliás, a Santa Sé achou por bem estabelecer com o governo
soviético um diálogo e iniciar uma política de compromissos, como sugerido pelo
novo cardeal Montini.
Neste ponto é preciso ver em que consiste o segredo da
mensagem, também chamado o “Terceiro Segredo”, e qual a sua história. Pois bem:
como se viu antes, a mensagem de 13 de julho (p. 6) interrompia-se depois da
frase “Em Portugal se conservará sempre o dogma da Fé,” etc. Quantas palavras e
linhas se seguem a essa frase e qual o seu conteúdo não foi jamais revelado. A
razão desse sigilo antes de 1960 está em uma clara instrução contida na própria
mensagem: “Isto não o digais a ninguém.” Assim é que o segredo ficou selado no
coração de Lúcia até os anos quarenta, assim como estava soterrado com os
pastorzinhos Francisco e sua irmã Jacinta, mortos muito jovens. Em 1943, o
bispo de Leiria (Fátima), desejando que tudo o que se referisse à mensagem ficasse
registrado, mandou que a vidente escrevesse tudo o que havia ouvido. Lúcia
titubeou, mas sabendo que a obediência nesse caso poderia significar a vontade
de Deus, acabou por fazê-lo, apesar das grandes dúvidas e dificuldades morais e
espirituais por que passou. Corria o ano de 1944 e dom José Correia da Silva,
de posse do escrito secreto, sem o ler, colocou-o num envelope selado que
guardou no seu cofre com instrução para que à sua morte fosse entregue ao
cardeal patriarca de Lisboa, provavelmente para que fosse encaminhado a Roma.
Ora, aconteceu que essa notícia, aparentemente singela e limitada, correu mundo
e tornou-se fato tão clamoroso e sensacional que se considerou prudente enviar
o escrito secreto o quanto antes à Santa Sé.
Segundo o grande conhecedor dos fatos de Fátima, padre
Alonso, no seu livro La Verdad Sobre el Secreto de Fátima, “o documento chegou
ao Vaticano pelas mãos do núncio apostólico em Lisboa, monsenhor Cento, em 16
de abril de 1957. Não consta que o papa Pio XII o teria lido, mas somente seu
sucessor, João XXIII, que recebendo o envelope levado à residência de Castel
Gandolfo em 17 de agosto de 1959, preferira esperar a presença de seu confessor
para abri-lo, o que aconteceu depois dessa data considerada de mau augúrio na
Itália. Antes de prosseguir na descrição dos fatos, é bom ver de onde vem a
confirmação de que 1960 era o ano indicado à irmã Lúcia para tornar conhecido o
Terceiro Segredo. Pois bem, ela vem principalmente do que apuraram os
entendidos da questão, cônegos Galambra e Barthas. Mas além deles, vem também
nada menos que do cardeal Cerejeira, patriarca de Lisboa, e de outros bispos
ligados ao fato, como dom João Pereira Venâncio, sucessor de dom José na
Diocese de Leiria, que chegou a propor a todos os bispos do mundo um dia de
oração e penitência na data de 13 de outubro de 1960. Como se verá, também no
Vaticano esta data era muito bem conhecida.
“Em 1967, 50.º aniversário das aparições de Fátima e ainda
no clima de desilusão pelo silêncio que se fez sobre o segredo dado pela Mãe do
Céu à pastorzinha Lúcia, segredo esse que não foi de nenhum modo esquecido
apesar do vento de mudanças e novidades soprado pelo espírito do concílio, o
prefeito da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, cardeal Alfredo
Ottaviani, forneceu em uma conferência (11-2-67) algumas notícias com intenções
tranqüilizadoras.
“O segredo não devia ser aberto antes de 1960. No mês de
maio de 1955 perguntei a Lúcia a razão dessa data e ela me respondeu: porque
então será mais claro. Isto me fez pensar que aquela mensagem era de tom
profético, visto que é próprio das profecias, como se lê nas Sagradas
Escrituras, que haja um véu de mistério. Quanto ao envelope contendo o 'Segredo
de Fátima', foi recebido fechado pelo bispo de Leiria e embora Lúcia lhe tenha
dito que poderia lê-lo, não quis fazê-lo. Quis respeitar o segredo também por
deferência para com o santo padre. Mandou-o ao núncio apostólico, então
monsenhor Cento, agora cardeal e aqui presente, que o enviou fielmente à
Congregação para a Doutrina da Fé que lho havia requisitado para evitar que
questão tão delicada, não destinada a ser dada ao apetite do público, caísse
por qualquer razão fortuita em mãos estranhas. Assim chegou o segredo. Foi
trazido à Congregação e, fechado como estava, foi levado a João XXIII. O papa
abriu-o. Abriu o envelope e leu. Embora em português, disse-me depois que havia
entendido tudo. Ele mesmo em seguida colocou o segredo num outro envelope,
selou-o e encaminhou-o a um daqueles arquivos que são como um poço no qual os
papéis afundam profundamente no escuro, escuro onde ninguém vê mais nada. Eis
porque presentemente é difícil dizer onde esteja o “Segredo de Fátima´!” Mais
adiante, acrescenta: “Eu, que tive a graça e o dom de ler o que consta do texto
do segredo, ao qual portanto estou vinculado, posso dizer que tudo o que há em
circulação a respeito dele é fantasia.”
A este depoimento muito importante podem-se acrescentar
outras precisões que dá padre Alonso em seu livro sobre o segredo: “... o
conteúdo do documento foi dado ao conhecimento de alguns membros da Sagrada
Congregação para a Doutrina da Fé, da Secretaria de Estado e de outros poucos.
É certo que o Santo Padre falou dele com os seus mais íntimos colaboradores.
Não fez, porém, qualquer declaração pública. Disse simplesmente: 'Isto não diz
respeito ao meu tempo', deixando qualquer decisão aos seus sucessores.” (Pe.
Alonso, op. cit.p. 51).
Depois de ter lido o texto, o papa João escreveu uma nota
que foi transcrita pelo seu secretário pessoal, monsenhor Capovilla,
colocando-a no envelope que continha o segredo. Este ficou guardado nos
arquivos dos apartamentos pontifícios até sua morte, em 3 de junho de 1963.
Como se vê, a existência desse segredo não é fantasia, como
não é possível negar que suas palavras passaram apesar sobre quem as mantém
escondidas, de João XXIII em diante.
CENSURA A UM SEGREDO APOCALÍPTICO?
Nos anos anteriores a 1960, quando se esperava que o
Terceiro Segredo seria dado ao conhecimento do mundo, houve um natural
“crescendo” de interesse e excitação da opinião pública diante das revelações
de Fátima. Afinal, tratava-se de anúncios sobre o destino da humanidade dados
pela Mãe Celeste. Ora, o que concerne à salvação das almas sempre foi central
na predicação e ensino católicos, e o interesse universal por um segredo que
vinha completar uma luminosa mensagem já em grande parte conhecida teria sido,
se bem utilizado, um precioso auxílio para convocar as multidões à oração e
preparar os homens à penitência que salva.
Mas assim não foi. Deveras estranhamente, os hierarcas e o
clero católico, que nunca temeram nem evitaram a predição sobrenatural, desta
vez pareciam muito mais preocupados em desviar a atenção dos fiéis de
revelações e segredos do que utilizá-los para um bom fim. Havia mais fé no povo
que se interessava pela mensagem do que nos religiosos e sacerdotes que dela
desviavam, como se Fátima fosse sinal de ilusão e superstição em grande escala.
Mas, não seria difícil ver que se essa atitude foi geral entre os homens da
Igreja, era porque o exemplo vinha de cima.
E o resultado inevitável quando há um vazio mental, ou
quando se i propicia um vazio de fé, é que esses sejam preenchidos pelo que de
vulgar e de mau está sempre à espreita para infiltrar-se. Foi assim que as
piores tendências e interesses que permeiam os meios de comunicação social
puderam conduzir o assunto, fazendo fermentar uma atmosfera de sensacionalismo
que alimentou uma mórbida curiosidade pelo mistério e pavores de catástrofes
materiais, num sentido pouco católico e, portanto, alheio à mensagem.
O modo como foi acolhida a publicação da entrevista de padre
Fuentes com a vidente Lúcia é exemplo disto, e a reação do aparato eclesiástico
que achou por bem condenar a reação do público às palavras que advertiam o
mundo, deixa à mostra o grau de aversão de muitos homens da Igreja a tudo que
tenha caráter sobrenatural e, portanto, envolva suas responsabilidades
religiosas. Ora, as mensagens marianas e também os milagres, que são graças
para os homens, deste modo acabam por ser verdadeiros desafios para
eclesiásticos esquecidos dos seus deveres.
O livro citado de padre Alonso sobre o segredo de Fátima,
apesar das muitas informações objetivas e comentários ponderados, não deixa de
conter um conformismo exagerado tendente a justificar, a todo transe, a decisão
papal de arquivar no silêncio o Terceiro Segredo. Considera o autor, por
exemplo, que a atmosfera de curiosidade e espera ansiosa, criada em torno dessa
parte desconhecida da mensagem, seria razão suficiente para não torná-la
pública, evitando assim que fosse exposta a manipulações sensacionalistas, bem
como a deformações de seu conteúdo. Na verdade, as deformações ocorrem em
conseqüência da pouca ou má luz, não da clareza. Além disso, não faltam à Santa
Sé recursos e meios para explicar o que possa considerar necessário, também
sobre a própria parte em relação a uma mensagem que não foi até agora
considerada mais que uma revelação privada, apesar de a aparição que a trouxe
ser reconhecida autêntica pela Igreja. Se deve haver cuidado e prudência, isto
é devido mais ao valor que à forma das palavras, e se tudo o mais da mensagem é
inatacável, e nem por isso tem o aval oficial da Igreja, por que isso seria
problema para a parte menor? Não se explica.
Há em toda essa questão uma espécie de inversão lógica, pois
uma mensagem, assim como uma notícia, é dada em função do que deve comunicar.
Não pode uma comunicação objetiva, nem deve deixar de existir, ou ser
manipulada, em função de supostas reações subjetivas a evitar. Esses métodos
podem ser comuns, hoje, nas mãos de manipuladores da opinião ou profissionais
da propaganda, mas são indignos se aplicados pelos vigilantes eclesiásticos da
verdade. É a pior censura, que cedo ou tarde vai desmascarar seus autores: não
mais a proibição do que é objetivamente mau e nocivo à moral dos povos e à
edificação das almas, mas supressão de uma notícia essencial e necessária, de
origem celeste, com a hipócrita desculpa de proteger as gentes de uma turbação
espiritual e de avisos que, sacudindo as consciências, são a razão mesma da
mensagem. É como censurar o aviso de desgraças porque perturbador, a visão do
inferno porque horrenda, o alerta contra falsos profetas porque subversivo, o
mistério da iniqüidade porque iminente e espantoso.
Seria oportuno considerar, a propósito, o mau uso feito da
palavra “apocalipse”, que depois de tantas más leituras, distorções e abusos,
deu lugar a uma literatura fantástica e quase sempre falsificada com esse nome.
Dela muitos se apartarão, desconfiados. Seria insano, porém, por causa disso,
censurar ou arquivar o próprio; Apocalipse, livro sagrado porque inspirado por
Deus e que contém ensinamentos preciosos reservados também para o nosso tempo.
Se o mundo, à imagem e semelhança desse livro profético,
acumulou escórias religiosas e falsas profecias, o mesmo fez com os Evangelhos,
dados para quem tem ouvidos para ouvir. Mas a falsificação não altera os
originais, ao contrário, os confirma quando estes advertem contra os erros e
seduções dos falsos profetas que pensam e falam como o mundo.
E tudo isto se aplica igualmente à mensagem de Fátima e ao
seu Terceiro Segredo, dados para o bem dos homens desta nossa época aflita por
uma espantosa crise de fé. Considerou-se, porém, necessário ocultar essa
mensagem preciosa. Ficaremos sabendo, seguindo os comentários de padre Alonso,
que para a nova mentalidade dos últimos pontificados esse segredo não deverá
ser nunca publicado e portanto continuar como um peso nos arquivos vaticanos.
Parcial confirmação disso teve-se com a entrevista de agosto de 84, dada pelo
atual prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, cardeal Joseph Ratzinger,
como veremos mais adiante.
SEGREDO DO PAPA OU MISTÉRIO DO PONTIFICADO?
Façamos algumas considerações à luz do bom senso. Antes de
tudo, é incontestável que só o papa pode decidir sobre um segredo que lhe foi
confiado, assim como sobre a consagração pedida. Isto não impede, porém, que
qualquer decisão sua a propósito seja indicativa de uma atitude. Ocultar
mensagem celeste é indício revelador.
Como João XXIII não se manifestou sobre a mensagem de Fátima
será preciso recorrer a indícios indiretos para conhecer sua atitude diante dos
problemas que ela levanta. A pessoa que pode ajudar nisto é seu secretário
particular, monsenhor Lóris Capovilla, que também leu o segredo, redigindo uma
nota de João XXIII sobre ele e, depois da morte deste, levando o documento ao
papa Paulo VI, que o pedira.
Em seu livro Papa Giovanni XXIII, gran sacerdote, como lo
ricordo (Ed. Storia e Letteratura, Roma 1977), monsenhor Capovilla relata (p.
39-40) a confidencia do papa que, no fim da vida, ofereceu esta como sacrifício
para a conversão da Rússia. Além disso, tendo recebido de Krushev
congratulações pelo seu octogésimo aniversário, havia dito: “Poderá ser uma
ilusão, mas também um fio que a Providência me põe nas mãos e eu não tenho o
direito de cortá-lo!” Razão pela qual recebeu em Roma a filha do estadista e
seu genro, Aléxis Adjubei, que fumou um charuto em sua presença no dia 7 de
março de 63. Ora, o papa Roncalli, que já havia manifestado seu interesse
ecumênico quando núncio na Bulgária, com o Concílio mostrou confiar na fórmula
neo-ecumênica para a conversão também da Rússia ortodoxa. Quanto à conversão da
Rússia soviética, confiava nestas aproximações diplomáticas, além de um diálogo
aberto com o comunismo italiano que, como conseqüência nas primeiras eleições
de seu pontificado ganhou um milhão e 200 mil votos.
Monsenhor Capovilla faz a pergunta: “Era João XXIII um
profeta inspirado ou um guia inexperiente? “Responde com a primeira hipótese e
lembra o realismo desse papa que sabia enfrentar um trabalho diplomático longo,
cujo resultado esta geração ainda não veria. Pois bem, tudo isto mostra, à
parte as palavras, que o “papa bom” conhecia a gravidade do problema lembrado
em Fátima, mas tinha uma solução: deixou cair sobre a mensagem de Nossa Senhora
o silêncio e mandou arquivar seu Terceiro Segredo. Estes são fatos aos quais se
seguiram um tácito arquivamento da missão de converter a Rússia.
A política da Santa Sé concentrou-se num projeto de
sobrevivência que implicava os compromissos sugeridos pelo novo cardeal
Montini.
Ora, o fato de uma mensagem ser dirigida ao chefe da Igreja
para o bem comum, não implica direitos, mas deveres: o juízo de oportunidade,
necessidade e excepcionalidade de um aviso celeste já foi manifestado por Quem
o deu. Nisto cai por terra também a desculpa de que só pode julgar quem conhece
o texto. Mesmo porque justamente para ser conhecido ele foi dado, assim como para
que houvesse uma consagração esta foi pedida. Julgar que a palavra final
compete ao papa porque só ele conhece a mensagem e a situação presente, e vive
com os pés no chão, é tão ridiculamente ilógico que só pode ser respondido com
outra pergunta: e por que, então, pareceu aos Céus necessário mandar-lhe uma
mensagem, ele temeu revelá-la e, agora, encontra-se com esse segredo nas mãos
sem saber explicá-lo? Se sabe não dever publicá-lo, não sabe então por que este
lhe foi dado. A própria existência do segredo é sinal de contradição, mas
jamais algum fiel poderia ver contradição no que é proveniente do Céu. Isto
espelha, portanto, uma contradição humana. Esconde-se aquilo que não se quer
fazer saber. Ora, se o segredo foi dado com relação a algo que os homens devem
ver, compreender, evitar e corrigir nesta nossa época, e a razão da data — 1960
em diante — era “porque então será mais claro”, como disse Lúcia ao cardeal
Ottaviani, que sentido lógico pode haver em dizer o contrário, isto é, que os
homens não precisam ver, compreender, evitar e corrigir? Alguém fará isso por
todos? Mas, e se esse “algo” concerne justamente ao governo da Igreja, razão
pela qual foi dado para aquele período? Afinal, se foram tomadas todas as
medidas para prevenir perigos e erros ali assinalados, por que tudo isto não
pode vir à luz?
Pelo que consta, João XXIII leu o segredo e, inteirado dele,
julgou que eram questões de outro tempo, não do seu. Ora, isto implica alguns
juízos impossíveis, além da irreverência para com a mensagem. De fato, quem
conhece o que sucederá no próprio tempo? Estaria esse papa profetizando? E se o
fez, por que o fez em sentido contrário ao da profecia que teve em mãos? Em
todo caso, se o tempo estava errado, o que já é impróprio pensar, não deveria
por isso mesmo servir para avisar quanto ao futuro?
Enfim, essa negativa papal conduz a um labirinto de
absurdos, para não dizer impiedades, e à objeção de atribuir-se a João XXIII o
que não há certeza de ele ter dito, a resposta é elementar: negando-se a tornar
conhecido o segredo, e evitando até mesmo aludir a ele diante dos fiéis, com
essa atitude extrema englobou tudo o mais que pode supor de errado. Não há
nenhuma prudência em omitir um alarme de perigo para não perturbar quem será
vítima. Nem há nisto bondade, mas, ao contrário, exercício de uma tutela
abusiva e alienante.
Na religião católica ninguém será isentado de
responsabilidade em virtude do silêncio de seus maiores, mesmo papas. E sendo
os avisos proféticos dados tanto aos povos como a cada um, os fiéis podem ser,
diante deles, esclarecidos, não substituídos em acolhê-los.
De fato, Nosso Senhor disse: “O que recebe um profeta na
qualidade de profeta, receberá a recompensa de profeta.” (Mt. 10,41)
O ensinamento da Igreja tem sempre por critério a verdade. A
ela tudo e todos estão sujeitos, e o papa não menos. Por isto lhe foi confiado
um segredo, dito celeste. Para atestar se era veraz segundo está escrito: “Não
extingais o Espírito, não desprezeis as profecias. Examinai tudo: abraçai o que
for bom. Guardai-vos de toda aparência do mal.” (I Ts. 5,19) Se a mensagem era
falsa, deveria ter sido necessariamente alijada para o bem dos fiéis. Mas se
assim não era, é dom celeste de inestimável valor, e não respeitá-la pelo que
é, conclamando as gentes às suas palavras e à gratidão, já seria sinal de pouca
fé. Se é veraz, as condições de oportunidade, de necessidade e de prudência são
inerentes a ela. Não poderia ser dada por Maria, Virgo prudentissima, e ser
inoportuna, extemporânea, inútil ou imprudente. Ao papa compete dizer se é
autêntica, tudo o mais vem de per si, para benefício do próprio pontífice e da
vigilância da Igreja e de seus filhos. Do papa devemos saber se é mensagem
autêntica e fiel e não constitui novidade diante do Depositum Fidei. Diante
deste, qualquer mensagem pode ser julgada, mas não menos o papa. E nisto pode
ter vindo para suprir as falhas hodiernas, essa mensagem que muitos teólogos
obstinam-se em classificar como simples revelação privada. Também nisto
poderíamos saber do papa se palavras celestes que vêm lembrar, chamar, pedir a
consagração de nações e da Igreja, dirigindo-se a uma geração inteira e
revelando-se indispensável e única via, podem não ser, como diz, uma profecia
universal. Como se vê, muito poderia ter João XXIII esclarecido sobre a
mensagem de Fátima, e conhecendo o seu segredo, deveria fazê-lo. Afinal, era um
dom celeste ou uma falsificação sem sentido? Eram palavras fiéis e edificantes
ou ardilosas e desviantes? Era uma revelação casual e privada ou uma profecia
universal e por isso indispensável? (p. I) O poder pontifical é obrigado ao
esclarecimento do que diz respeito à fé, a fim de preservá-la íntegra e pura,
confirmando todos, pastores e fiéis nessa fé revelada por Deus. Se o pontífice
omite-se perante ela, à vigilância fiel interessa saber por que o faz,
especialmente se então surgem novidades.
Pois bem, como poderia saber João XXIII que o segredo não
era para o seu tempo se este apenas começava em 1959 e já havia sido inspirada
a idéia de um concílio ecumênico ao papa? Tinha ele a visão de um futuro
radioso e sem riscos para a Igreja? Ora, também nesta ocasião, colocando a data
de 1960 para que o segredo fosse relevado ou escondido, ficou evidenciada a
clarividência de Quem o dera. Nessa ocasião começavam os preparativos para um
estranho concílio que viria transformar não só o tempo desse papa, mas o dos
papas conciliares que o sucederam e continuaram.
A INSPIRAÇÃO DE JOÃO XXIII
Depois de ter visto que o terceiro segredo de Fátima não
mereceu de João XXIII mais que alguns comentários e por ser julgado
impublicável foi arquivado, voltemos um pouco atrás para, seguindo a descrição
do mesmo papa, saber o que o havia inspirado, não deixando portanto espaço para
atender a projetos diversos.
João XXIII conta que numa conversa que teve com o cardeal
secretário de Estado Tardini, em fins de 1958, perguntava-se o que poderia ser
feito para dar ao mundo exemplo de paz e concórdia entre os homens e uma
ocasião de esperança, quando subitamente brotou-lhe nos lábios a resposta: um
concílio! Eis como ficou explicado esse “impulso da Divina Providência”, esse
“clarão de suprema luz”, expressões que o papa usaria para anunciá-lo, tanto
aos cardeais como ao mundo no discurso de inauguração em 1962.
Não compete a nenhum homem julgar a inspiração que levou
João XXIII à decisão soberana de convocar o Concílio Vaticano II, mas isto não
exclui a legítima e natural reação dos cardeais que, ouvindo esse anúncio da
boca do papa, durante as festividades na basílica romana de São Paulo fora dos
muros, em 25 de janeiro de 1959, receberam-no com um frio estupor que
surpreendeu o pontífice, que se ia habituando a sorrisos e anuências a tudo que
dizia. Como poderiam, porém, os velhos cardeais esquecer todos os riscos e
contra-indicações pelas quais a idéia de continuar o Concílio do Vaticano I
vinha sendo descartada pelos precedentes pontificados! Como poderiam fingir
ignorar que a frenética imprudência dos meios de comunicação do mundo chegou a
invadir, com cumplicidades internas do Vaticano, até o quarto onde Pio XII
morria, para fazer um furo de reportagem, sobre sua agonia e morte! Será que
uma pessoa viajada e conhecedora do mundo como João XXIII ignorava esses
perigos de manipulações e pressões exercidas contra a Igreja pelas forças de um
mundo cada vez mais contaminado pelo materialismo e ateísmo? Poderia
desconhecer que havia projetos maçons, protestantes e comunistas para
transformar a Igreja por dentro e que esses sistemas chegavam a coalizar-se
para melhor infiltrar-se dentro da cidadela católica?
Na verdade, a Igreja — e isto não é segredo para ninguém,
disposto a ver — já estava nessa época em grande parte invadida por uma nova e
velha leva de modernistas, cujos erros e heresias só haviam ficado congelados
pelas medidas decididas e eficazes de São Pio X, até os anos 1914-1917. Mas
nesse ponto o seu sucessor, Bento XV, permitiu que o processo de defesa fosse
gradualmente atenuado.
É evidente que bastaria uma abertura, mesmo pequena, para
unir os adversários externos da doutrina católica aos seus inovadores internos,
e um concílio nessa época teria proporcionado naturalmente isso. Se alguém
objetar que uma assembléia eclesial a esse nível sempre teve por razão
principal a defesa da fé atacada por novos e perigosos erros e heresias, saiba
que o papa, ao convocar o Concílio Vaticano II, não escondia seu otimismo,
desejo de paz, de unidade, de reconciliação, nem tampouco sua aversão a
condenar os erros contra a fé e os seus autores. Tudo isto está claramente dito
no discurso inaugural de 11 de outubro de 1962 na Basílica de São Pedro. O que
é muito menos claro são os entendimentos preliminares estabelecidos com
conhecidos inimigos da Igreja católica.
Ouçamos a propósito o testemunho do monsenhor Marcel
Lefebvre, que teve parte importante na preparação do concílio:
“Não se deve esquecer que houve três contactos. Três acordos
que foram concluídos antes do concílio pela Secretária para a Unidade dos
Cristãos, um com a maçonaria, com a loja judaica B'Nai Brith que tem sede em
Nova York, outro com os protestantes do Conselho Mundial das Igrejas e outro
com os enviados de Moscou. (...) Nesses contactos dizia-se: Não será condenado
o comunismo, mudar-se-ão todos os bispos contrários a ele, substituindo-se por
bispos colaboracionistas. Com relação à loja maçônica e ao Conselho Mundial das
Igrejas foi dito: aceitar-se-á a liberdade religiosa como direito fundamental
do homem, reconhecendo assim pelo concílio a Declaração dos Direitos Humanos.
Inaudito, tremendo, uma mudança radical da orientação da Igreja! E foi aceita!”
No livro Atanásio e a Igreja do nosso tempo o bispo alemão
de Ratisbona, Rudolf Graber, mostra com horror que nos documentos das
sociedades secretas do século passado “já aparecem as idéias que estão
submetendo à prova de sua capacidade de resistência a Igreja do período
pós-conciliar”. Mas o objetivo não é mais simplesmente o publicado no cap. XVI
da Alta Venda da Loja dos Carbonários italianos, que diz: “O nosso objetivo
final é o de Voltaire e da Revolução Francesa: a destruição para sempre do catolicismo
e também da idéia cristã, a qual, se restasse em pé sobre as ruínas de Roma,
significaria a ressurreição do cristianismo logo depois.” Esse documento,
intitulado “Instruções Permanentes da Alta Venda” foi revelado em Dublin, em
1885, pelo monsenhor George F. Dillon, atendendo à exortação de Leão XIII para
que “se arrancasse a máscara à maçonaria”. O novo objetivo é o de servir-se da
Igreja, depois de tê-la infiltrado tanto na doutrina como na liturgia de idéias
revolucionárias, tendo em vista o sincretismo universal cuja sinarquia final
constituiria a anti-Igreja. Para tanto o objetivo principal é conseguir “um
papa de acordo com nossos desejos”. Vale a pena reproduzir o texto original: “A
tarefa que empreendemos não é obra de um dia, nem de um mês, nem de um ano.
Pode durar talvez um século (...) a hora da Alta Venda virá quando seus agentes
tiverem invadido todas as funções. Governarão, administrarão e julgarão.
Formarão o conselho do Soberano. Serão convocados para eleger o pontífice e
este, como a maioria de seus contemporâneos, estará necessariamente imbuído
pelos princípios italianos humanitários que estamos para pôr em circulação
(...) deixai que marche atrás de vossas bandeiras o clero, convencido de que
segue a bandeira das Chaves Apostólicas (...) estendei as vossas redes no fundo
das sacristias, dos seminários, dos conventos (...) e os reunireis depois como
amigos em torno da Cátedra Apostólica. Tereis pescado uma revolução com tiara e
manto pluvial, que marchará com a cruz e a bandeira, uma revolução que precisa
apenas de um pequeno estímulo para incendiar os quatro cantos do mundo.”
Haveria muito mais a transcrever e a verificar nesse
documento, cuja importância foi considerada tão grande pelo papa Leão XIII que
mandou publicá-lo na Itália, custeando-o pessoalmente. Mas aqui devemos nos
limitar a João XXIII, que convoca o Concílio Vaticano II; e portanto,
acrescentemos logo, que outra enorme aspiração da maçonaria era dispor de um
concílio católico.
Tal possibilidade era remota no século passado. Pode-se
recordar este fato histórico muito indicativo: no dia 8 de dezembro de 1869,
quando se abria em Roma o Concílio Vaticano I, convocado por Pio IX para
condenar os erros do racionalismo e do materialismo e definir as prerrogativas
do magistério papal, em Nápoles, abria-se contemporaneamente um anticoncílio
maçônico de livre-pensadores europeus, entre os quais Victor Hugo, Garibaldi,
Ricciardi, etc. Destinava-se a contrapor ao ensinamento da Igreja as liberdades
de consciência, de religião, de ensino, da idéia revolucionária: “Destruir o
divino para fazer progredir o humano”.
Como o Concílio Vaticano II declarou ser a liberdade de
religião (e de ateísmo), consciência e ensino um direito natural do homem,
revolucionando a doutrina sagrada, parece claro que desta vez o anticoncílio,
como o sínodo judaico, não aconteceram fora, mas dentro do Vaticano. Seria uma
nova Igreja conciliar a implementá-los doravante.
O CONCÍLIO INSPIRADO AO PAPA JOÃO
Pelas palavras de irmã Lúcia, a vidente de Fátima, o mundo
católico soube da grande tristeza de Nossa Senhora com a desatenção às suas
palavras, o que redundava em aumento tanto das ofensas a Deus como do perigo de
perdição para os homens. Mas, e depois de 1958, como teria sido?
Relatamos o modo pelo qual João XXIII recebeu o terceiro
segredo de Fátima e mandou arquivá-lo. Se havia um novo apelo, não se sabe; se
havia um aviso grave, ficou ignorado. O que foi proclamado, e pelo próprio
papa, foi a inspiração que teve para convocar o concílio. Este deveria ser a resposta
exemplar que os homens da Igreja dariam ao mundo: uma assembléia universal de
paz.
O espírito que guiava João XXIII mostrou melhor suas feições
no discurso de abertura desse concílio, dia 11 de outubro de 1962. Depois de
lembrar ainda a inspiração recebida com “um toque inesperado, um lampejo de
suprema luz”, e a comunicação dada disto aos cardeais, o papa passou a
justificar a oportunidade dessa iniciativa grandiosa.
Falou da necessidade de aggiornamento para a Igreja e de um
almejado salto na direção do pensamento moderno. Nesse sentido há duas
passagens significativas que devem ser consideradas: “Parece-nos dever divergir
desses profetas de desdita que pressagiam eventos funestos, como se pairasse a
ameaça do fim do mundo. Nos tempos modernos há quem não veja senão prevaricação
e ruínas; dizem que nossa época, comparada com as passadas, foi piorando;
comportam-se como se nada houvessem aprendido da história, que é mestra de
vida, e como se no tempo dos concílios ecumênicos precedentes tudo tivesse decorrido
na plenitude de um triunfo da idéia, da vida cristã e da justa liberdade
religiosa.”
Neste discurso, que também diverge — para não dizer
contraria — a linguagem profética da Igreja de todos os tempos, somente
queremos registrar uma objetiva discordância com tudo o que está dito na
mensagem de Fátima. Se já na parte conhecida fala-se de fomes, guerras,
perseguições à Igreja e ao santo padre, o que haveria na parte escondida que
deveria ter sido dada a conhecer em 1960? Afinal, se o terceiro segredo ficou
censurado para evitar alarme, como é que agora até a lembrança disso parece
repreensível? A única resposta plausível a essas interrogações é que o papa
discordava da verossimilhança do conteúdo da mensagem de Fátima, por demais
“pessimista e retrógrada”, e queria distância dos que a lembravam e pediam que
fosse publicada e cumprida.
A segunda passagem significativa concerne à repressão dos
erros no passado.
“Vemos, na passagem de uma época a outra, que as opiniões
dos homens se sucedem, excluindo-se reciprocamente, e os erros apenas
despontam, freqüentemente esvanecem como névoa ao sol. A Igreja sempre se opôs
a esses erros, os condenou mesmo com a máxima severidade. Agora, contudo, a
Esposa de Cristo prefere antes usar o remédio da misericórdia que o da
severidade.” João XXIII não deixa de lembrar perigosos erros e costumes atuais
que desprezam Deus e sua Lei, mas “os homens mostram-se hoje, finalmente,
propensos a condená-los por si mesmos”.
Soube-se depois, pelo próprio secretário do papa, que esse texto
recebeu a colaboração da eminência parda, o arcebispo de Milão Montini, feito
cardeal logo nos primeiros dias do pontificado de João XXIII, de quem foi
conselheiro e depois sucessor com o nome de Paulo VI. Partilhavam claramente as
mesmas idéias acima expostas, que de novo só tinham a aparência, pois já haviam
sido, elas mesmas, condenadas pelo magistério da Igreja. Eram, de fato, os
conceitos modernistas da evolução e progresso do pensamento humano. Pois a
verdade seria capaz de impor-se por sua própria força intrínseca num
enriquecimento progressivo, dispensando condenações dos que se lhe opõem. E em
vista de tal evolução do pensamento, da moral e da compreensão da verdade, o
único erro seria pressagiar a possibilidade de tempos piores. Eis a nova heresia!
Neste ponto não há nenhuma ironia em constatar que toda a
pretensa novidade do discurso inaugural do Vaticano II, em face da verdade e da
realidade do mundo, voltava-se contra o próprio concílio, porque o utopismo
progressista não é vigilante abertura para o real, mas fechamento aos riscos,
aos perigos, aos erros, aos castigos e às profecias, como se nada disto
existisse e como se, ao contrário, não fossem os profetas de venturas e paz, os
enganadores e falsos, segundo as Sagradas Escrituras. Basta percorrê-las: “E o
Senhor destruirá num só dia a cabeça e a cauda de Israel, os que obedecem e os
que governam. O ancião e o homem respeitável são a cabeça, e o profeta que
ensina a mentira é a cauda. E os que chamam ditoso a este povo, enganando-o
(...) serão precipitados na ruína”. (Isaías, 9,14). “Coisas espantosas e
estranhas aconteceram nesta terra: os profetas profetizavam a mentira, e os
sacerdotes aplaudiram-nos com suas mãos; e o meu povo amou essas coisas. Que
castigo não virá, pois, sobre esta gente no fim de tudo isto?” (Je., 5,30).
“Assim diz o Senhor” — Ai dos profetas insensatos que seguem seu próprio
espírito sem ter visto nada! Os teus profetas, ó Israel, são como raposas entre
ruínas. E não subistes a brechas, nem fizestes muralha em defesa da casa de
Israel, para resistir no combate, no dia do Senhor.” (Ez., 13,3-5) “Ai, Senhor
Deus! É possível que tenhas permitido (aos falsos profetas) que enganem este
povo de Jerusalém dizendo: — tereis paz! E eis que a espada penetra até a
alma.” (Je., 4,10). Pode-se citar inúmeras passagens bíblicas denunciando os
falsos profetas de venturas, cuja adocicada demagogia populista se transforma
em fel, na aversão ao profeta veraz. “Ai de vós quando os homens vos louvarem!
Porque assim faziam os pais deles aos falsos profetas.” (Lc, 6,26). Esquecidos
desse ensinamento, muitos eclesiásticos, desde então, demonstraram o que eram,
repetindo aos homens o que gostavam de ouvir e ocultando o que lembrava males e
perigos. Não admira, pois, o apoio que receberam dos chefes os demolidores
críticos da mensagem de Fátima.
Destes, o mais cáustico, embora não elaborasse mais que
conjeturas baseadas na mentalidade corrente, foi o jesuíta belga Eduardo
Dhanis. Dedicou anos à tentativa de reduzir a aparição e a mensagem à dimensão
de uma ilusão infantil somada a pias invenções com apenas uns pontos de
verdade. Seriam fenômenos místicos possíveis em ambientes ignorantes e alheios
ao progresso da psicologia e à maturação religiosa do homem moderno. Com toda
essa “nova ciência”, Dhanis, que era professor de teologia em Louvain, foi
convidado pela Universidade Gregoriana de Roma, da qual em 1963 Paulo VI o
nomeava reitor. Quando morreu, soube-se por um artigo em sua homenagem no
Osservatore Romano (20-2-79) que fora uma das pessoas em quem o papa Montini
depositara mais confiança. Importante também foi sua parte durante o Concílio,
e nisto se associou a outros bem-sucedidos inimigos de Fátima, como Karl
Rahner, Kloppenburg e outros, citados por padre Alonso. (TVF, Vol. I, p. lie
ss.)
Neste ponto, é importante verificar se há uma efetiva
oposição entre o espírito de Fátima e o espírito do concílio, para então
entender como isto se manifestou nos trabalhos do Concílio Vaticano II. Ora,
este, como disse João XXIII no discurso inaugural, resumindo o seu pensamento,
o do futuro Paulo VI e de muitos, queria a abertura da Igreja para o mundo,
evitando condenações e divergindo dos profetas anti-modernos que condenavam o
mal e lembravam castigos. Mas isto era justamente o oposto do espírito de Fátima.
Havia então que fazer esquecer sua mensagem, redimensionando seus avisos e
pedidos.
O MODERNISMO ANTIMARIANO DO CONCÍLIO
Um Concílio da Igreja, primeiro deste século, para ser
moderno no sentido normal dessa palavra, deveria pôr em foco os fatos principais
de nossa época, para submetê-los ao juízo do multissecular magistério da
Igreja, que, por meio de sua hierarquia reunida em assembléia, os ordenaria ao
fim último do homem e de sua sociedade terrena. Em outras palavras, a Igreja
militante reunida, deveria, frente aos grandes fatos contemporâneos, julgá-los
segundo o bem e o mal que podem causar aos indivíduos e aos povos. “O que for
bom deve ser abraçado e o que for mau condenado”. (I Ts, 5)
Ora, os dois eventos decisivos de nossos tempos para a salvação
ou castigo das almas e dos povos, aconteceram em 1917. Foram a Aparição de
Fátima e a Revolução soviética que tomou conta da Rússia, e espalharia seus
erros pelo mundo como está na mensagem de Fátima. As guerras, fomes,
perseguições e o surgir de seitas e ideologias perniciosas, estão
essencialmente ligados ao espírito revolucionário que atingiu o ápice do poder
no comunismo. Esta foi a visão católica da história contemporânea que
prevaleceu, bem ou mal, até o pontificado de Pio XII que reconhecia na
Revolução o processo global organizado de todas as rebeliões individuais da
história humana, sob tantos diversos nomes: “Este se encontra em todo lugar e
no meio de todos, sabe ser violento e sub-reptício. Nestes últimos séculos
tentou levar a termo a desagregação intelectual, moral e social da unidade no
organismo misterioso de Cristo. Quis a natureza sem a graça; a razão sem a fé;
a liberdade sem a autoridade; por vezes a autoridade sem a liberdade. É um
inimigo que se tornou sempre mais concreto, com uma falta de escrúpulos que nos
deixa atônitos: Cristo sim, mas Igreja não.
Depois: Deus sim, Cristo não. Finalmente o grito ímpio: Deus
morreu, aliás nunca existiu. Segue a tentativa de edificar a estrutura do mundo
sobre fundamentos que nós não hesitamos em indicar como sendo a principal
responsável da ameaça que pesa sobre a humanidade: uma economia sem Deus, um
direito sem Deus, uma política sem Deus. O inimigo empenhou-se e esforça-se
para que Cristo seja um estranho nas universidades, nas escolas, nas famílias,
nas administrações e justiça na atividade legislativa, na reunião das nações,
onde se decide sobre a guerra ou paz.” (Pio XII, discurso aos homens da A.CL,
12-10-52)
Assim é descrito o processo revolucionário cujos fundamentos
principais foram a pseudo-reforma protestante, o liberalismo da revolução
francesa e, no nosso século, o marxismo-leninismo da revolução russa, que dava
realidade a tantos diversos socialismos. Só não foi descrito o ritmo de
crescimento desse processo. Mas isto somos nós a testemunhar diante dos efeitos
do Concílio. Se o processo andou depois da Renascença, marchou depois da
Bastilha e correu com o domínio bolchevista, hoje se precipita depois das
aberturas do Concílio Vaticano II, e isto a despeito dos avisos de Fátima. A
razão disso já foi vista: ao invés de reforçar as barreiras contra o processo
revolucionário, os mentores do concílio houveram por bem fazer acordos de
convivência com as igrejas-membro do conselho protestante, com as lojas da
maçonaria liberal e com o Soviete supremo do comunismo internacional. Com isto
seus trabalhos foram condicionados: o fim precípuo do concilio passou a ser não
mais a defesa da fé, mas a promulgação da liberdade de consciência de marca
liberal-maçônica, que por sua vez abriria as portas ao neo-ecumenismo e
tornaria incoerente a condenação de erros como o comunismo. Restava, porém, uma
pedra de tropeço que concentrava ao mesmo tempo o contrário disso tudo,
lembrando os dogmas e devoção marianos, o inferno e os erros da Rússia. O
Vaticano II não poderia conciliar estes quatro pontos com as prioridades
citadas antes. Para abrir-se a estas, deveria fechar-se a Fátima. Naturalmente,
de modo muito dissimulado. Senão, vejamos: O primeiro ponto são os dogmas
marianos da Imaculada Conceição, da Assunção e da Mediação universal de Maria,
ainda não definido mas que tem o consenso de toda a Igreja. A aparição e a
mensagem dada representam um chamado a essas verdades de fé católicas que os
protestantes não aceitam e o ecumenismo esconde.
O segundo ponto é a devoção especial a Nossa Senhora e seu
Imaculado Coração, que além de passar pelos dogmas católicos todos contra os
quais se debatem as heresias em particular e o modernismo em geral, realiza a
mediação de Maria através da consagração pedida. E qual melhor ocasião para a
consagração que um concílio, quando os bispos do mundo estão reunidos com o
papa?
O terceiro ponto é a lembrança do inferno que Nossa Senhora
na aparição de 13 de julho fez ver aos pastorzinhos, demonstrando a extrema
importância para os homens de considerarem o castigo terrível que comporta a
ofensa a Deus, sem conversão e penitência. É o ensinamento de sempre da Igreja
no seu trabalho pastoral. E se a aparição veio lembrá-lo é porque seria
esquecido ou modificado.
O quarto ponto, enfim, é o perigo dos erros espalhados pela
Rússia, de que veio advertir Maria Santíssima em Fátima (1917), dias antes da
tomada do poder na Rússia pela revolução comunista. Esta representou para a
humanidade uma catástrofe sem precedente: milhões de mortes pela fome e guerra
civil, abolição dos direitos naturais dos homens, destruição de seus valores
fundamentais e perseguição da religião para a imposição do ateísmo de estado.
Tudo isso concerne de modo especial à Igreja, que já havia condenado e
prevenido contra essa doutrina intrinsecamente perversa.
Note-se que estes pontos constituiriam um programa
obrigatório para a Igreja reunida em concílio nesta época histórica, mesmo se
esta época fosse marcada somente pelo advento do comunismo e sem a aparição
extraordinária de Fátima: os papas e os bispos sempre recorreram à Virgem Maria
para combater os inimigos mortais da Fé e da Igreja. O perigo próximo é o
comunismo e suas seqüelas, que naturalmente era preciso mencionar publicamente
e convocar os fiéis à defesa. Mas, o que aconteceu nesse Concílio do Vaticano
quanto a tudo isto?
O ESQUEMA ESPECIAL DE MARIA SANTÍSSIMA REPROVADO
Há que distinguir: o que o concílio propunha e o que
realizou. Já nessa distinção, observando as transformações operadas nos
esquemas iniciais propostos que deveriam guiar os debates, poderemos entender
qual espírito conduzia essa assembléia. Aqui o faremos seguindo os quatro
pontos descritos, que são indicações dadas pelo Espírito que determinou os
eventos de Fátima.
Os problemas começaram com o título do esquema especial
dedicado a Nossa Senhora. Os prelados do grupo dito “do Reno”, devido a
procedência germânica, guiados pelo festejado perito Karl Rahner, opunham-se a
tudo que pudesse incomodar os protestantes, com a intenção de abrir o caminho a
um almejado neo-ecumenismo. Este já era difícil mencionando a Virgem Maria, e
tanto mais chamando-a “Medianeira de todas as Graças”.
Ora, esse esquema de seis páginas era curto mas essencial,
lembrando as prerrogativas da Mãe de Deus a uma geração beneficiada pela maior
das aparições de Maria. Nele eram tratadas as importantes questões da Mediação
universal e da Co-redenção, que um dia serão promulgadas como dogmas, tal o
consenso que a Igreja sempre teve com relação a essas verdades católicas.
A oposição ao esquema, porém, não deu trégua, e tanto fez e
tanto engrossou a voz em nome do ecumenismo e contra um culto exagerado a Maria
que conseguiu reduzir o esquema especial de Nossa Senhora a um capítulo do
grande esquema sobre a Igreja. Não bastaram as objeções a isto levantadas por
muitos padres que viam sob má luz esses compromissos feitos em nome da Igreja e
que envolviam, de qualquer modo, a honra devida à Virgem Santíssima.
Naqueles dias, questões como esta ainda encontravam uma
geral resistência. Nas votações os “neo-ecumenistas” obtiveram a vitória com
estreita margem de votos. O grupo Coetus Internationalis Patrum, com o
arcebispo Marcel Lefebvre, dom Sigaud e dom Mayer, além de centenas de outros,
operava coeso em defesa da Tradição, apesar de as forças contrárias receberem
apoio indireto do papa. Das muitas intervenções contra essa insídia,
lembraremos a voz de um bispo da selva amazônica, prelazia do Acre-Purus, o
servita dom Giocondo Grotti, que naquela ocasião soube refutar os argumentos
sinuosos contrários ao pleno louvor a Mãe de Deus, finalizando: “Esse ecumenismo
consiste em confessar ou esconder a verdade?”
Com isto vemos que desde o princípio o espírito do concílio
empenhava-se em marginalizar a lembrança de Maria Santíssima dos trabalhos. Que
dizer de Fátima, de sua mensagem e de seus pedidos!
O ATO DE CONSAGRAÇÃO ELUDIDO
Os progressistas de hoje, como os modernistas de ontem,
engenham-se na tentativa de domesticar a transcendência e simplificar o
mistério com recursos psicológicos e semânticos, como se a mente humana
progredisse nessa inteligibilidade. Quando, porém, mensagens e pedidos são
confiados aos homens e em termos compreensíveis a qualquer nível cultural,
então negam que sejam verossímeis, ou, se for preciso, negam que tenham sido
dados. Não gostam de lembrar, do alto do próprio orgulho, as palavras divinas:
“Em verdade vos digo: Todo o que não receber o Reino de Deus como um menino,
não entrará nele.” (Mc, 10,15)
Estas palavras estão aqui para lembrar outro ponto
fundamental de qualquer trabalho pastoral: a humilde confiança em Deus. Qual o
ser normal que diante da dor, de um cataclisma ou da morte não exprime, mesmo
que secretamente, um pensamento ao Alto? Pois bem, em Fátima foi prenunciado um
cataclisma social que está hoje diante dos olhos de todos, o comunismo. Foi
lembrada a sua causa, os pecados dos homens, e foi oferecida a solução, a
consagração da Rússia ao Imaculado Coração de Maria e a devoção reparadora.
Qual melhor atitude pastoral do que lembrá-la e atendê-la? E qual melhor
ocasião que o Concílio Ecumênico, que reunia todos os bispos da Terra com o
papa, em Roma, capital da cristandade, para ensiná-la? Poderiam estar tão
ocupados com ciências e leis para esquecê-lo?
Ora, nem essa desculpa terão perante Deus, pois foram 510 os
padres conciliares que assinaram uma petição expressamente pedindo ao papa essa
consagração solene, entregue dia 3 de fevereiro de 1964 por dom Sigaud,
arcebispo de Diamantina, embora fosse sabido que os bispos da Alemanha e
França, além do importante cardeal Bea, fautor dos contactos
ecumênico-maçônicos, opunham-se a essa consagração. Aqui será também o livro Le
Rhin se jette dans le Tibre, da Ralph Wiltgen, svd, a descrever os fatos.
O ato pedido por Nossa Senhora não foi então atendido. Para
atenuar essa omissão, que permanecerá como sumo escândalo na história da
Igreja, Paulo VI em novembro de 1964 anunciou o novo título de Maria, “Mãe da
Igreja”, mandou uma rosa de ouro a Fátima e comunicou que em breve para lá
enviaria uma missão papal.
Com isto aquela importante assembléia mostrava não levar a
sério as palavras de Nosso Senhor à irmã Lúcia (carta de 18-5-36 ao padre
Gonçalves): “Quero que toda a Minha Igreja reconheça essa consagração como um
triunfo do Coração Imaculado de Maria, para depois estender o Seu Culto e pôr,
ao lado da devoção do Meu Divino Coração, a devoção deste Imaculado Coração.”
O INFERNO ESQUECIDO PELA PASTORAL CONCILIAR
No meio dos maravilhosos aspectos da aparição de Fátima,
veio a horrenda visão do inferno. Mas foi justamente na piedade pelas almas,
diante de tão impressionante perigo, que esses simples pastorzinhos cresceram
de modo admirável na caridade que santifica pela Comunhão dos Santos. Eis uma
lição pastoral.
Mas o que fez o Concílio, que se ufanava de ser pastoral,
para continuar nessa obra? Pois bem, pode-se percorrer a volumosa documentação
do Vaticano II atrás dos “novíssimos”: morte, juízo, inferno e paraíso, sem
praticamente encontrar qualquer menção. Dirão que sobre esses ensinamentos não
havia nada de novo a dizer. Talvez, mas certamente havia muito a lembrar, e por
isso Nossa Senhora em Fátima, por amor aos homens, mais que falar mostrou o
inferno.
É impossível não assinalar, porém, que a par da omissão
sobre a justiça divina deu-se grande ênfase à necessidade de paz e justiça,
humanismo de que o espírito conciliar se fazia promotor. Ora, os intelectuais
do mundo, há séculos, acusam a Igreja de usar a ameaça dos castigos divinos
para aumentar o seu poder em detrimento da justiça civil e da paz entre as
nações. Com o silêncio sobre o inferno, os intelectuais do concílio, antes
mesmo de reconhecer as “culpas” da Igreja, como aconteceria nos anos seguintes,
davam tacitamente razão aos colegas externos.
Essa linha não foi casual, pois continuou e foi
intensificada na atividade pós-conciliar através dos novos catecismos, dos
sínodos etc, onde não só a noção de castigo, mas a de pecado, foram
transformadas. No sínodo dos bispos de 1983, ocasião em que os fermentos do
concílio já produziram seus resultados nas cabeças dos vários prelados do
mundo, serão ouvidos disparates pseudo-religiosos, de fazer caçoar até os
jornalistas, com títulos do gênero “Inferno e paraíso fechados para consertos”,
“Novas categorias de pecados”; e enquanto a ofensa a Deus e à Sua justiça vai
sendo deixada de lado como conceito na Igreja conciliar, despontam estranhos
sucedâneos políticos, como seja o pecado social de quem não clama contra o
capitalismo e de quem não faz a opção pelos pobres, nova comunhão dos santos,
formato conciliar.
Se João Paulo II em suas alocuções lembra a perda do senso
de pecado no mundo hodierno, o próprio pecado original é descrito como um conto
imaginado por sábios do tempo do rei Salomão no catecismo francês pierres
vivantes, patrocinado pela conferência dos bispos franceses (Il Tempo de Roma,
Il Giornale de Milão, out. 83).
É claro que a par disso tudo também se tenta nos ambientes
eclesiásticos baixar um véu sobre a Paixão de Nosso Senhor, ou adaptar-lhe o
sentido para uso da nova pastoral sócio-política. Tratar-se-ia do martírio de
um libertador que, como acontece continuamente na História, veio libertar seu
povo da opressão. Que as torturas e morte ignominiosa sofrida pelo Filho de
Deus venha lembrar a causa da redenção: o horror da rebelião a Deus dos
primeiros pais e a degeneração pecaminosa que se seguiu, seria demais! Seria
atentar contra a noção de dignidade humana que o Vaticano II houve por bem
reformar!
À nova dignidade humana conciliar não podia deixar de
seguir-se o novo orgulho de bondade que consiste em ir além do Salvador, não
mais advertindo dos males e perigos, mas encobrindo-os. Assim, suprime-se a
menção do castigo eterno, por caridade. Ensina-se que o inferno é uma metáfora,
mas que, se porventura existe, não há provas de que haja condenados a tanta
crueldade. Deus é amor (DIC, p. 79 e ss.). E todavia, a Virgem Maria, Mãe de
Misericórdia, mostrou o inferno aos pastorzinhos para prevenir os homens e a
Providência achou que deveria desvelar ao nosso século os sofrimentos de Jesus,
gravados milagrosamente no Santo Sudário de Turim. Ainda por amor dos homens,
vinham suprir as almas sequiosas de espírito divino, aquilo que os pastores
sonegavam por orgulho humano. Pediam apenas que cada um rezasse pelo próximo
dizendo ao fim de cada dezena do Terço: “Ó meu Jesus, perdoai-nos, livrai-nos
do fogo do inferno, levai as almas todas para o Céu, principalmente as que mais
precisarem.”
Qual espírito ocultaria aos homens o abismo infernal que a
Mãe celeste mostrou em Fátima? Só se desse abismo subiu e a ele atrai.
O ESPÍRITO CONCILIAR ESTENDE A MÃO AO COMUNISMO
Para começar a esclarecer este ponto, vejamos o testemunho
de quem viveu esse drama: monsenhor Lefebvre, falando aos jornalistas no
aeroporto de Paris, dia 9 de dezembro de 1983:
“(...) Em todo lugar os fiéis nos dizem — mudaram nossa
religião, não é mais a religião católica. Estão escandalizados em ver bispos
com tendências marxistas. Mas isto não deveria surpreender, porque não se
condenou o comunismo durante o concílio e agora não há como condená-lo. É algo
absolutamente inaudito na história da Igreja.
Reuniu-se um concílio pastoral, dito pastoral, isto é, para
cuidar das almas dos fiéis, da salvação destes e do mundo. Pois bem, ao maior
mal, ao mais ignóbil, ao mais dissolvente da sociedade, da pessoa humana, da
liberdade, que é o comunismo, foi dito: não o condenaremos durante o Concílio.
“Pessoalmente sei de algo. Fui eu quem, com dom Sigaud,
reuniu as quatrocentas e cinqüenta assinaturas de bispos para a condenação do
comunismo. Eu mesmo as levei à secretaria do concílio, foram postas numa caixa!
E depois tiveram a pretensão de dizer que no concílio não houve nenhum pedido
de condenação do comunismo! Havia sido eu mesmo a levar pessoalmente esse documento
do qual conservei a lista dos bispos que o subscreveram. É realmente
inverossímil. Imediatamente protestei e me foi respondido que não era verdade
que haviam sido apresentadas 450 assinaturas. Depois disseram que estas
chegaram tarde e que não se sabia onde estavam. Efetivamente haviam decidido
que o comunismo não seria condenado, para que pudessem comparecer ao concílio
os delegados de Moscou.”
Esse assunto já começou a ser tratado sob o título “Um
acordo Montini-Stalin” (p. 51), onde se viu que essa tratativa sinistra, da
qual ainda não se conhecem as circunstâncias e da qual jamais se poderá saber
tudo, neste mundo, era o início de um processo de compromissos que teria no
concílio uma aplicação prática, cujo êxito nos dará idéia do quanto valiam.
Tratava-se de obter a presença no concílio de observadores
do patriarcado ortodoxo de Moscou, aliás sabidamente comprometido com o regime
soviético. Note-se que os ortodoxos turcos e gregos já haviam decidido que não
compareceriam ao concílio reunido em Roma, em 1962, desde que, antes do acordo
Roma-Moscou, constava que os russos não iriam. Curiosamente essa solidariedade
acabou por deixá-los fora, dada a mudança fulmínea destes, fazendo com que o
arcebispo de Atenas os acusasse de haver rompido a “Unidade ortodoxa”. Isto
tudo consta do livro Humanismo soviético, do padre Ulisse Floridi, Ed. Agir (p.
225). O mesmo autor escreveu o importante livro Moscou e o Vaticano, editado em
muitas línguas. É dito aqui, para mostrar como o interesse ecumênico dos organizadores
do concílio era, senão um pretexto, pelo menos muito mais propenso a uma
aproximação com os teleguiados de Moscou do que com os patriarcados de
Constantinopla e Atenas. Mas há um outro aspecto citado nesse livro que deve
ser notado: “No Congresso pan-ortodoxo de Rodes, em 1961, o pedido da delegação
russa causou grande impressão: que fosse cancelado da ordem do dia o assunto
relativo às missões e ao ateísmo e fosse substituído por aquele referente à
luta pela paz e contra o racismo. Falando da unidade das igrejas, o arcebispo
Nikodim declarou que a Igreja russa era favorável, mas que ela não podia
tolerar que certos ambientes ocidentais, e nomeou o Vaticano, aproveitassem
desta aspiração para dela fazer a base ideológica da luta contra os povos empenhados
no caminho da democracia (isto é, dos países comunistas!).” (cf. La Croix,
21/10/61)
Ficamos sabendo com isto que o patriarcado de Moscou segue a
política de silenciar sobre o ateísmo e indignar-se contra um anticomunismo que
ainda via em Roma. Revela-se assim uma “igreja popular-democrática” que tem por
porta-voz o jovem Nikodim. Tudo isto pode ter assustado os popes orientais, não
o papa da Roma conciliar.
Como se viu antes, João XXIII ordenou ao cardeal Tisserant
que iniciasse tratativas com Nikodim, que para os serviços secretos ocidentais
era um agente da KGB. O mesmo que iria morrer com a idade de 53 anos, em 1978,
nos braços de João Paulo I, no Vaticano. Depois que o próprio papa deu
explícitas garantias ao governo de Moscou de que não haveria debate sobre o
comunismo e menos ainda condenações, essas tratativas foram tão aceleradas que
em questão de dias monsenhor Willebrands, depois cardeal e substituto do
cardeal Bea, partiu para Moscou disfarçado de executivo sueco, a fim de
confirmar as garantias de não anticomunismo do concílio, obtendo assim a
partida para Roma dos observadores ortodoxos russos.
Esses fatos e tantos outros detalhes estão registrados nos
livros Papa Giovanni, il Papa della Tradizione, de Ernesto Balducci, e Pope
John and His Revolution, de E.Y. Hales, e em artigos das revistas Itineraires
de 1962, 63 e 84, Approaches de 83 e 84, e Si si no no dos mesmos anos. Como
observa Jean Madiran em Itineraires, se sobre os detalhes dessa operação, que
deve ser considerada a “vergonha da Santa Sé no século XX”, pode haver algumas
dúvidas, sobre a sua atuação que perdura no presente não há nenhuma: o Vaticano
deixou desde 1962 de fazer qualquer referência ao comunismo e seus males. No
máximo voltou-se a falar das deficiências do marxismo, quando até os
socialistas o fazem.
O jornalista católico inglês Gregory Macdonald, num artigo
em Approaches, n.º 79, lembra que o Concílio Vaticano II ficou condicionado por
essas misteriosas tratativas e diz: “Para aquilatar o significado disso tudo,
seria necessário indagar a que ponto estaríamos hoje se, antes do Concílio de
Nicéia, o papa tivesse concordado com o imperador, que não seria discutida a
heresia de Ário. A promessa a um poder civil que venha a coagir os trabalhos de
um concílio iminente, não constitui acaso a rendição da independência
espiritual da Igreja? Disto vem outra pergunta: a que ponto as decisões e os
documentos de tal concílio, mesmo se devidamente promulgados pelo papa,
vinculam os fiéis?”
Na mensagem de Fátima Nossa Senhora diz: “Virei pedir a
consagração da Rússia ao meu Imaculado Coração e a comunhão reparadora nos
primeiros sábados. Se atenderem a meus pedidos, a Rússia se converterá e terão
paz. Se não, espalhará os seus erros pelo mundo, promovendo guerras e
perseguições à Igreja. Os bons serão martirizados. O santo padre terá muito que
sofrer. Várias nações serão aniquiladas. Por fim, o meu Imaculado Coração
triunfará.” Ora, todos estes fatos mostram que os erros da Rússia condicionaram
o concílio e, através deste, tiraram a liberdade da Igreja e desarmaram seus
militantes. Será, portanto, sobre o espírito desse concílio que deverá triunfar
Maria Virgem.
PAULO V PROCLAMA NA ONU SUA LIBERDADE RELIGIOSA
Antes do encerramento do Concílio Vaticano II, em outubro de
1965, Paulo VI foi à sede da ONU em Nova York, onde pronunciou um surpreendente
discurso no qual aquela entidade foi considerada a última esperança da
humanidade. Depois de enaltecer os princípios em que operava, isto é, os
direitos humanos, passou a falar do culto do homem e de seu direito fundamental
à liberdade religiosa. Sobre essa matéria versava um dos documentos que
continuava a ser apresentado ao concílio para aprovação. Dirá monsenhor
Lefebvre: “Cinco vezes rechaçamos esse esquema no concílio, cinco vezes voltou nos
mesmos termos, porque foi prometido aos maçons e aos protestantes aceitar a
liberdade religiosa que é um direito inscrito na Declaração dos Direitos
Humanos, algo que jamais antes havia sido aceito. A Igreja sempre foi pela
tolerância, porém nunca pela liberdade religiosa de todas as religiões, porque
a Igreja professa ser a Verdade e o erro pode ser tolerado, mas nunca posto em
pé de igualdade com a Verdade. Eis a que chegamos”.
De fato, essa declaração conciliar anômala, pela qual seria
a própria Igreja, em nome de Deus, a declarar que os homens podem escolher
qualquer religião e até mesmo nenhuma, se preferissem, ainda encontrava
resistência dentro do concílio. No entanto, nessa ocasião, diante da assembléia
das Nações Unidas, Paulo VI houve por bem expô-la como doutrina já endossada
pelo concílio.
Com isto mostrava ser o principal mentor não só da abertura
à ONU e ao mundo que essa organização convoca aos seus princípios, mas dessa
Declaração, mais afim com esses princípios, do que com os da Igreja.
Paulo VI quis ir à ONU e lá antecipar essa Declaração que o
Concílio só aprovaria, quando de sua volta e na última sessão, dia 7 de
dezembro 1965, com a renitência de 70 padres que alegavam grave objeção de
consciência.
Passados vinte anos, ainda não foi devidamente aquilatado o
que representa para os homens a aprovação, por um concílio ecumênico da Igreja
católica, da declaração Dignitatis humanae sobre a “liberdade religiosa”. Quem
cuidou de compará-la ao magistério anterior da Igreja ficou sabendo que o direito
fundamental de que fala é considerado delírio, a Liberdade que proclama é
chamada indiferentismo, a dignidade que exalta é julgada decadência, e quando
considera a livre escolha isto sempre foi considerado erro ou heresia.
Em poucas palavras, essa declaração proclamaria o direito à
liberdade de errar, degradando a própria dignidade na escolha do indiferentismo
perante Deus, que vai desde a Sua negação até ao Seu ultraje. Tudo isto
declarado como modo de realizar a dignidade natural do homem, dom do Criador.
Portanto, Deus teria dado ao ser humano não só o livre-arbítrio, pelo qual
deverá responder no juízo final, mas o “direito” de escolher o erro e,
portanto, de cometer o pior delito. Tanto representa o direito à liberdade religiosa
que, referindo-se a Deus, é a liberdade máxima da qual as outras advirão
naturalmente. Não há de fato, delito material que não venha de um pensamento
delituoso que, por sua vez, não provenha de um pecado espiritual. E quem ordena
o espírito dos homens na verdade e no bem é a religião única, revelada pelo
próprio Deus.
Bem entendido, a liberdade foi dada ao homem por Deus e
apesar do preço altíssimo que esse bem implica. Isto é incontestável e é a
razão mesma pela qual existem também a responsabilidade e a culpa. O que essa
“declaração” quis acrescentar, seguindo as idéias do mundo, foi o direito a
exercer publicamente uma liberdade sem vínculos com a verdade revelada que está
na origem da moral e da religião únicas. Ora, as autoridades que aprovaram essa
“declaração” em nome dessa religião, que tornariam opcional, é como
autodeclinassem tanto da própria autoridade como dessa fé que se define única e
indispensável. 249 padres a contestaram até o fim. Mas pela pressão aberta de
Paulo VI, esse número caiu para 70, um número simbólico para representar a
consciência católica diante de algo que é muito mais que um erro, mas que foi
promulgado por um papa sob os aplausos delirantes de um concílio que se abria
para o Mundo.
Além dessa declaração sobre a liberdade religiosa, Paulo VI
promulgou a Constituição Pastoral da Igreja no Mundo Moderno, no dia 7 de
dezembro 1965, fazendo um discurso de encerramento sem precedentes na história
da Igreja; anunciava a glória do homem que se faz Deus.
Entre essas palavras de Roma e as palavras da ONU, muitos
católicos perceberam nitidamente que o papa reinante estava inaugurando uma
nova religião dentro da religião do Deus que se fez homem. O passo seguinte
seria formar uma nova Igreja conciliar para acolhê-la, com uma nova doutrina,
uma nova liturgia e uma nova lei canônica. Tudo o que era velho deveria ser
adaptado ao novo.
Mas, diante de uma questão de tamanha gravidade, comecemos a
descrição desse pontificado montiniano pela análise fria de Henri Fesquet no Le
Journal du Concile, onde, lembrando que Paulo VI é o promotor do “humanismo
integral” de Maritain, vê a sua doutrina como aplicação do “Reconhecimento de
uma humanidade adulta”. E conclui: “A humanidade hoje não é, nem acredita ser,
religiosa, mas tem fé em si mesma. Essa fé, embora inteiramente secular, foi de
certo modo batizada por Paulo VI.”
Talvez por essa razão esse Papa, depois do seu discurso no
palácio de vidro da ONU, em Manhattan, não se furtou em recolher-se à sala de
meditação, diante da pedra-altar a uma potência incógnita, que certamente não é
nada diante da Trindade divina, mas poderia cingi-lo do carisma de “grande
irmão do movimento de animação espiritual para a democracia universal”.
Seguir-se-iam anos de grandes transformações e miséria espiritual.
CARDEAIS DENUNCIAM A NOVA MISSA
No início de 1969 foi introduzida no culto católico uma nova
missa que, sendo fortemente apoiada pelo papa, seria posteriormente chamada
Missa de Paulo VI. Em setembro do mesmo ano, testemunharam contra a sua
ortodoxia o cardeal Alfredo Ottaviani, que fora até o ano anterior o
pró-prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, e o cardeal Antônio Bacci.
Eis a carta enviada a Paulo VI:
Santíssimo padre,
Após examinar e fazer examinar o “Novus Ordo Missae”
preparado pelos peritos do “Consilium ad exequendam constitutionem de Sacra
Liturgia” depois de uma longa reflexão e preces, sentimos o dever diante de
Deus e de Vossa Santidade de exprimir as seguintes considerações:
1) Como demonstra em modo suficiente o exame crítico anexo,
por breve que seja — estudo feito por um grupo escolhido de teólogos,
liturgicistas e pastores de almas —, o “Novus Ordo Missae”, considerando-se os
elementos novos, susceptíveis de apreciações diversas que aparecem
subentendidos e implicados, representa, seja no conjunto como nos detalhes, um
impressionante afastamento da teologia católica da Santa Missa, tal como foi
formulada na XXII Sessão do Concílio de Trento, o qual, fixando definitivamente
os “canons” do rito, levantou uma barreira intransponível contra toda heresia
que viesse atingir a integridade do Mistério.
2) As razões pastorais aduzidas para justificar tão grave
ruptura, mesmo no caso de terem o direito de subsistir em face de razões
doutrinais, não parecem suficientes. Aparecem tantas novidades no “Novus Ordo
Missae”, por um lado, enquanto por outro, tantas verdades perenes são relegadas
a um lugar menor ou diverso — se ainda encontram algum lugar — que poderia
transformar-se em certeza a dúvida — que infelizmente insinua-se em muitos
ambientes — de que verdades sempre acreditadas pelo povo cristão poderiam ser
mudadas ou passadas sob silêncio sem que haja infidelidade ao depósito sagrado
da Doutrina à qual a fé católica está ligada em eterno. As reformas recentes
demonstraram suficientemente que novas mudanças na liturgia não levariam senão
à total desorientação dos fiéis que já demonstram apreensão e uma inequívoca
diminuição da própria Fé. Na parte melhor do Clero, isto causa uma crise de
consciência torturante, da qual temos inúmeros e quotidianos testemunhos.
3) Estamos certos de que estas considerações, que só podem
ser diretamente inspiradas no que ouvimos de viva voz dos pastores e do
rebanho, não poderão deixar de encontrar eco no coração paternal de Vossa
Santidade, sempre profundamente solícito para com as necessidades dos filhos da
Igreja. Os súditos, para cujo bem é estabelecida uma lei, sempre tiveram o
direito, e mais que direito, o dever — se a lei se revela nociva — de pedir ao
legislador, como confiança filial, a revogação dessa lei.
Eis porque suplicamos insistentemente a Vossa Santidade que
não nos tire — em um momento de tão dolorosas dilacerações e de perigos cada
vez maiores para a pureza de Fé e a unidade da Igreja, que ecoam contínua e
tristemente pela voz do Pai comum — a possibilidade de continuar a recorrer ao
íntegro e fecundo “Missale Romanum” de São Pio V, tão altamente louvado por
Vossa Santidade e tão profundamente venerado e amado por todo o mundo católico.
Alfredo, Cardeal Ottaviani Antônio, Cardeal Bacci
Ora, essa nova missa havia sido definida: (pt. 7) — Ceia do
Senhor ou Missa é a sagrada reunião ou assembléia do Povo de Deus reunido em
comum e presidido pelo sacerdote para celebrar o memorial do Senhor. Por isso,
de maneira particular vale a promessa de Cristo: “Onde dois ou três estão
congregados em Meu Nome, ali estou Eu no meio deles”. (Mt. 18,20) Era, porém, a
definição de Lutero!
Depois da denúncia dos dois cardeais, que, aliás, deveriam
ser diversos, não fora uma deserção de última hora para não “desagradar” o sumo
pontífice, essa definição foi retirada sem comentários ou retratações. A nova
missa continuou a mesma, mas em 1970 apareceu uma definição onde se corrigia a
definição claramente herética.
Isto não poderá, porém, esconder nem o espírito da nova
missa nem o de seus promotores. Estes irão impô-la com toda a autoridade e
artifícios de que dispõem. Será então que muitos católicos, que quiseram
acreditar que Paulo VI havia sido enganado, tiveram que se convencer de que ele
era o grande promotor da novidade litúrgica. Os objetores serão perseguidos e
até suspensos, como será o caso de monsenhor Marcel Lefebvre. Todas as
novidades e experiências litúrgicas terão livre curso num impressionante
afastamento do sacrifício da missa católica.
QUEIXA AO SANTO PADRE EM 1972
“O leigo tem o direito de receber dos sacerdotes todos os
bens espirituais para obter a salvação da alma e para atingir a perfeição
cristã: quando se trata de direitos fundamentais dos cristãos, ele pode fazer
valer suas exigências (Cód. Dir. Can. 467; 892); é o sentido e o fim de toda a
vida da Igreja que está aqui em jogo, assim como a responsabilidade diante de
Deus, do padre e do leigo.”
São palavras de Pio XII no discurso Six ans, em 5 outubro de
1957.
Ora, o conhecido escritor francês Jean Madiran, assim
descreverá as exigências que tinha a fazer em 1972 (Réclamation au Saint-Père,
L’hérésie du XXe siècle II, Nouvel. Edit. Latines, Paris 1974, p. 9):
“Tudo o que na Igreja foi temerariamente inovado desde 1958,
ano da morte de Pio XII, transforma-se visivelmente em confusão e
aniquilamento. Tudo o que na Igreja posterior a 1958 se quis, com impiedade e
desprezo, separar da Igreja anterior a 1958, traz a marca manifesta da mentira
e da morte. Reconhecê-las-ei pelos frutos.
“Tudo o que a impiedade moderna quis pôr no lugar da
Escritura, do Catequismo e da Santa Missa, já cheira a decomposição. Pode-se
não ousar confessá-lo, com medo do partido no poder dentro da Igreja militante.
Pode-se mostrar vontade de não ter ainda percebido nada, para não arriscar-se
às represálias desse partido sectário, cruel e perseguidor. Mas, seja no
segredo do coração, seja escondendo suas certezas reencontradas, os fiéis agora
sabem. Os fiéis, esses que receberam, guardaram e cultivaram o dom da fé
teologal, sabem que é um partido, justamente, um partido, não um magistério
legítimo, que governa a administração eclesiástica; eles sabem que uma facção
ilícita e injusta, tirânica e ímpia, confisca em seu proveito os poderes
espirituais; eles sabem que a sua nova Igreja não é a Igreja; que a sua nova
religião não é a religião de Deus vivo.
“E esta verdade devidamente reconhecida nos liberta.”
Carta a Paulo VI, de 27 de outubro de 1972, publicada em
Itineraires.
“Santíssimo Padre,
Devolvei-nos a Escritura, o Catecismo e a Missa.
Estamos cada vez mais privados deles por uma burocracia
colegial, despótica e ímpia, que pretende com ou sem razão, mas que pretende de
todos modos sem ser desmentida, impor-se em nome do Vaticano II e de Paulo VI.
“Devolvei-nos a Missa católica tradicional, latina e
gregoriana segundo o Missal romano de São Pio V. Deixais dizer que Vós a
interditastes. Mas nenhum pontífice poderia, sem abuso de poder, proclamar a
interdição do rito milenar da Igreja católica, canonizado pelo Concílio de
Trento. A obediência a Deus e à Igreja nos obrigaria a resistir a tal abuso de
poder, se tivesse efetivamente acontecido, e não a submetermo-nos em silêncio.
Santíssimo Padre, seja com Vós ou sem Vós, que fomos cada dia mais, sob o Vosso
pontificado, privados da Missa tradicional, não tem importância. O que importa
é que Vós, que podeis devolvê-la, no-la devolva.
“Nós a reclamamos a Vós.
“Devolvei-nos o Catecismo romano, o que, segundo a prática
milenária da Igreja, canonizada pelo Concílio de Trento, ensina os três
conhecimentos necessários para a salvação (e a doutrina dos sacramentos sem os
quais esses três conhecimentos resultariam ordinariamente ineficazes). Os novos
catecismos oficiais já não ensinam os três conhecimentos necessários à salvação.
Numerosos sacerdotes e bispos chegam, como se pode comprovar perguntando-lhes,
a já nem mesmo saber quais seriam esses três. Santíssimo Padre, que seja por
Vós ou sem Vós, que fomos cada dia mais, sob o Vosso pontificado, privados do
ensino eclesiástico dos três conhecimentos necessários para a salvação, não tem
importância. O que importa é que Vós, que podeis devolver o Catecismo romano,
no-lo devolva. Nós o reclamamos a Vós.
Devolvei-nos a Sagrada Escritura: agora falsificada pelas
versões obrigatórias que pretendem impor o novo catecismo e a nova liturgia. Em
1970 escrevi a Vossa Santidade a propósito de blasfêmias introduzidas na
epístola do domingo de Ramos (blasfêmia 'aprovada' pelo episcopado francês e
confirmada pela Santa Sé): que foi mantida substancialmente idêntica, em nossos
livros litúrgicos, e simplesmente declarada facultativa (!). Deve-se citar
ainda, entre cem outras, o cinismo libertino que faz proclamar liturgicamente,
atribuindo a São Paulo, que para viver santamente é preciso casar-se.
Santíssimo Padre, é no Vosso pontificado que as alterações da Escritura se
multiplicaram a ponto de não haver mais, para os livros sagrados, uma garantia
certa. Devolvei-nos a Escritura intacta e autêntica. Nós o reclamamos a Vós.
“A Igreja militante é atualmente como um país submetido a
uma ocupação estrangeira: aparenta-se submissão a tudo, mas o coração não está
nisso, oh não! É o condicionamento psicológico e é a pressão sociológica que
fazem marchar as gentes. Um partido que Vós conhecestes bem, quando ele passava
por inocente e escondia seus intentos, um partido que quando obteve sucesso
revelou-se cruel e tirânico, domina diabolicamente a administração
eclesiástica. Este partido atualmente dominante é o da submissão ao mundo
moderno, da colaboração com o comunismo, da apostasia imanente. Ele possui
quase todas as posições de comando e reina, sobre os covardes, pela
intimidação, sobre os fracos, pela perseguição.
“Santíssimo Padre, confirmai na sua fé e em seu bom direito
os sacerdotes e os leigos que, apesar da ocupação estrangeira da Igreja pelo
partido da apostasia, guardam fielmente a Sagrada Escritura, o Catecismo romano
e a Santa Missa católica.
“E depois, sobretudo, deixai que chegue a Vós o sinal de
socorro espiritual dos pequeninos.
“Os meninos cristãos não são mais educados, mas degradados
pelos métodos, pelas práticas, pelas ideologias que prevalecem com muita
freqüência hoje em dia, na sociedade eclesiástica. As inovações que são
impostas invocando, com ou sem razão, o último concílio e o papa atual — e que
consistem, resumindo, em atrasar ou diminuir sem cessar o ensino das verdades
reveladas, e aumentar e avançar sem cessar a revelação da sexualidade e de seus
sortilégios —, produzem em todo o mundo uma geração de apóstatas e de selvagens,
cada dia mais preparados a se matarem cegamente.
“Devolvei-lhes, Santíssimo Padre, devolvei-lhes a Missa
católica, o Catecismo romano, e a versão e interpretação tradicionais da
Escritura. Se Vós não lhes devolverdes neste mundo, eles vo-los reclamarão pela
eternidade.
“Dignai Vossa Santidade de aceitar, junto à minha enfática
queixa, a homenagem de meu filial apego à sucessão apostólica e ao primado da
Sé romana, e para a Vossa pessoa, a expressão de minha profunda compaixão.”
Jean Madiran (Diretor de Itineraires e Présent)
FÁTIMA PROFANADA
Para descrever o momento do pontificado de Paulo VI em que
Fátima foi focalizada, aqui é transcrito o trecho relativo do Liber
Accusationis com que o padre Jorge de Nantes pede ao próprio papa que faça seu
autojulgamento. Para tanto, foi a Roma com diversas pessoas de seu movimento de
contra-reforma católica, a fim de apresentar o livro-libelo a Paulo VI. Como se
pode imaginar, o pedido não foi nem mesmo ouvido, e o livro causou a prisão e
expulsão da Itália de quem tentou entregá-lo em mão ao pontífice, durante uma
audiência no Vaticano.
Poderia parecer aos fiéis que essa recusa representa uma
condenação do Liber e suas descrições. Foi justamente o contrário, diante da
impossibilidade de refutação do que este encerra. Não só, foi também a prova da
contradição de quem proclamou o direito à liberdade religiosa, mas nega aos
católicos a possibilidade de defender a integridade da fé, diante da cátedra
papal. Eis o trecho: “Pela angústia sobre-humana em vista do que vai sucedendo
[na Igreja], aconteceu-me mais de uma vez esperar uma peregrinação do papa a
Fátima. O encontro do Vigário de Cristo e da Virgem Imaculada parecia-me poder
tornar-se o 'Sinal Celeste' da graça e misericórdia que poderia tudo salvar e
restituir ao antigo esplendor. (...) Parecia-me que os escândalos, a atmosfera
de cisma, as suspeitas de heresia, que pesavam sobre nós como chumbo,
ter-se-iam dissipado com a vossa ida a Fátima. De repente, teríamos
reencontrado nossa confiança e amor filial, como que lavados por um batismo de
graças. Naquele lugar, vos seria impossível senão rezar à Santíssima Virgem
Maria, juntamente com a imensa multidão católica, leal, tradicional, e depois
deixar que fosse a Mãe de Deus, Nossa Mãe tutelar a falar, revelando o seu
Terceiro Segredo e obedecendo a seus pedidos. Com isto o mundo se teria
convertido, começando por nós, vossos padres, vosso povo, os pobres pecadores.
Tal era a nossa esperança...
“Fostes a Fátima, é verdade, dia 13 de maio de 1967, 50 anos
de dias contados após a aparição celeste (...) mas cinco horas após não
subsistia qualquer esperança de paz, estava perdida a última e misteriosa graça
esperada desse encontro do Vigário de Cristo e de Sua Santa Mãe. Por que
escrevi sobre esta imensa e certa desilusão? Porque ficou evidente demais, do
começo ao fim, que fostes a Fátima não para ver, mas para mostrar-vos, não para
ouvir, mas para falar, não para cair de joelhos mas para sobressair diante de
um milhão de homens prosternados, não para acolher ordens celestes mas para
impor vossos projetos terrenos, não para implorar a paz à Virgem Maria mas para
pedi-la aos homens, não para santificar o vosso coração, purificando-o das
nódoas de Manhattan, mas para impor justamente nos domínios de Maria o mundo
dessa Manhattan. Fostes profanar Fátima.
“Desde o início percebeu-se claramente que Vossa intenção
era continuar fiel a Vós mesmo. O presidente Salazar não é um presidente Obote,
mas civilizado e cristão, é um dos mais prestigiosos benfeitores da civilização
cristã, e Portugal é no mundo o país mais fiel à fé católica, proclamada
corajosamente na sua Constituição e transcrita na sua Concordata. Mas naquela
ocasião, com o pretexto de ser uma viagem breve, de peregrino, não destes a
devida atenção nem ao país, nem ao seu chefe. E assim a imprensa progressista
pôde fazer ecoar pelo mundo o desprezo demonstrado por Vós a esse valoroso
povo.
“Premeditastes celebrar ali uma missa em português, quando o
mundo inteiro e de todas as línguas estava à escuta, deixando claro ao Portugal
tradicional que o vosso era o partido dos inovadores, da mudança, pondo a vossa
vontade acima da glória de Deus, e celebrando assim uma missa apressada,
ininteligível, fria e gaguejante, como observará Laurentin.
“Tínheis organizado uma série de audiências que ocupariam
todo o vosso tempo. Em especial um encontro altamente significativo, ecumênico,
com representantes de comunidades não católicas. Acabaram vindo somente dois
destes, eram presbiterianos, mas como não compreenderam o francês do discurso
que havíeis preparado, não tivestes outra escolha que trocar algumas palavras
inúteis. Embora muitos católicos quisessem falar-vos, orar junto a vós, não
foram recebidos.
“Permanecendo assim ocupado com as vossas quimeras políticas
e ecumênicas, não fizestes a peregrinação, e aí começa o escândalo espantoso.
Entre tantos discursos não se acham senão breves alusões superficiais e frias
às aparições de 1917. Não quisestes ir aos lugares da cova da Iria, embora
muito próximos, onde estas ocorreram, dando assim a impressão — voluntária? —
de não acreditar nelas. Aliás, sendo desde o momento da chegada objeto de um
culto apaixonado da parte da multidão, que vos prestou aclamações sem cessar
por mais de uma hora de trajeto, diante da imagem de Nossa Senhora de Fátima,
nem uma saudação fizestes. Nada escapa às câmaras de TV... Da tribuna saudastes
repetidamente a multidão sem ter saudado a Virgem. Passastes diante da sua
imagem, meta da vossa peregrinação, sem levantar o olhar. Não rezastes o terço
com o povo e se dissestes uma Ave-maria, não se soube.
“Chegou enfim o momento do grande encontro, da última
esperança que todos nós confusamente esperávamos. Teríeis encontrado a menina
de Fátima, Lúcia, a última dos pequenos e santos videntes de 1917! Por amor à
humanidade, por amor à Igreja e de todos nós, criaturas dispersas, por amor de
vós mesmo, Santo Padre, o Céu vos oferecia essa graça: Lúcia vos pedia chorando
alguns instantes de colóquio a sós. Não se recusa ouvir a pastora de Fátima, a
pequena mensageira do Céu, confirmada na graça e na sabedoria por cinqüenta
anos de claustro. — Vós recusastes essa graça.
“O vosso intérprete, padre Almeida, numa entrevista à Rádio
Vaticana contou o episódio: A um certo momento Lúcia exprimiu o desejo de dizer
algo ao papa a sós, mas este respondeu: compreenda, não é o momento. Além
disso, se tendes algo a comunicar-me, dizei-o ao vosso bispo e ele me
comunicará; tende toda confiança nele e obedecei-o em tudo. E o papa benzeu
irmã Lúcia como um pai que benze um filho que talvez jamais tornará a ver. Há
graças que passam e nunca mais voltam...
“Seis dias antes, 7 de maio, mostrastes um interesse bem
diverso por Claudia Cardinale e Gina Lollobrigida, numa tarde movimentada em
São Pedro. Quatro dias depois, 17 de maio, escutastes com a máxima atenção as
duas presidentes israelitas da Organização oculta do Templo da Compreensão. E
no entanto recusastes ouvir a mensagem pessoal que a Virgem teve a bondade de
mandar-vos por meio de Lúcia, sua filha predileta. Quero que saibais o gozo
infernal dos jornais progressistas e de todos as organizações anticlericais das
comunicações sociais, diante dessa notícia. Finalmente respiravam tranqüilos! O
papa havia resistido, não se deixara dobrar pela visão celeste, pela Voz vinda
do Alto, como acontecera com o primeiro Paulo. Não aconteceu o vosso caminho de
Damasco!
“Mas, o que queria dizer-vos aquela criatura? O que vos
atemorizava tanto? A soma de vossas heresias, cismas e escândalos não deixa
senão o embaraço da escolha: mas há uma possibilidade mais forte que as demais.
A mensageira do Céu queria certamente lembrar-vos a vontade da Autoridade
suprema, a única acima de vós, que é Deus; ver-vos publicar para o mundo o
'terceiro segredo de Fátima' (...) cujo teor essencial é sem dúvida análogo ao
dos dois primeiros... Mas, não conhecendo as coisas terríveis com que o Céu
adverte o mundo, este não se converterá e deslizará sem freios no pântano da
corrupção e do sangue. Será a terceira guerra mundial do comunismo perseguidor
e triunfante, a guerra atômica com suas inauditas devastações, a grande apostasia
dos cristãos. E pelo fato de, com vosso silêncio, não terem sido advertidos e
chamados à conversão, os povos perderão a fé junto com a vida.
“Este sinal de Jonas é esperado desde 1960. Todos os
contraditórios pretextos que objetam à publicação do segredo não fazem senão
agravar as responsabilidades de quem sabe e faz silêncio. Não, aquela mensagem
profética não é insignificante, nem tranqüilizante, nem reservada. Era uma
mensagem para todos em 1960! O é ainda hoje. E se pareceu terrível demais então,
assim ficou. Mas é a única palavra que pode afastar o flagelo que se aproxima
(...). Os desígnios do Céu não mudam (...) e o cálice está cheio, a iniqüidade
atinge o auge. É absolutamente necessário que a Igreja inteira saiba a que
abismo a humanidade está sendo arrastada pelo pecado. Senão, por que fostes a
Fátima?
“Depois de vossa peregrinação é como se a tivésseis
suprimido. Ninguém mais se ocupa nem das vontades de Deus que estão expressas
nela, nem da conversão da Rússia, nem do segredo, nem das devoções
recomendadas, especialmente 'a reza do Terço pela paz' que Lúcia vos havia
pedido de viva voz, fazer intensificar, naquele famoso 13 de maio de 1967.
“Mas, como fizestes para chegar a tanto? A resposta é
simples: substituístes com a vossa, a mensagem da Rainha da Paz; ao desígnio de
Deus que nos foi revelado em Fátima (p. 14) substituístes o vosso grande
projeto que revelastes em Manhattan e que consiste em pedir a Paz ao coração
dos homens, aos quais vós a confiais.
“Para esse fim não hesitastes em fazer-vos passar por um
ditoso beneficiário de uma revelação celeste. Aparecendo na janela do vosso
apartamento do Vaticano na tarde de vosso retorno, dissestes: 'Em Fátima
indagamos Nossa Senhora sobre as estradas que conduzem à paz e nos foi
respondido que a paz é realizável.'
“Foi um jornalista do jornal Messaggero que resumiu a
impressão geral que isto causou em Roma: 'Seria fácil demais forçar o sentido
de uma expressão tão singular, mas dela pode-se crer, deduzir que durante sua
peregrinação ao Santuário de Fátima Paulo VI tenha tido um momento, por assim
dizer, de comunicação interior com a nossa advogada, mãe e protetora dos homens
nos seus esforços pacíficos.'
“É justamente isto que quisestes fazer pensar. Que o Céu vos
tivesse dito: Ide, avança no teu 'Grande Projeto'; convoca todos os homens a
construir a nova paz, não mais somente os católicos com a oração e penitência,
mas com a tua nova revelação: Populorum Progressio, com 'Progresso e Paz'...
Vós quisestes atribuir ao Céu a mensagem do Inferno que não cessais de dizer e
repetir desde Manhattan: a paz é possível porque os homens são bons; a paz é
obra dos homens, de todos os homens, fruto de seus esforços convergentes sob a
direção mundial das organizações judeu-maçônicas. É o culto do Homem que substitui
o Culto de Deus.”
O padre de Nantes conclui citando uma oração de Paulo VI aos
homens que considera discurso de anticristo, solicitando-o a desmenti-lo
publicando o terceiro segredo, fazendo um convite universal à oração e
penitência, intensificando o Terço pela paz e pronunciando a Consagração ao
Coração Imaculado de Maria, do qual depende a paz, por que Deus lha confiou.
Inútil dizer que nada disso foi feito e esse Liber
Accusationis, que tem escrito na sua capa — “Entregue à Santa Sé no dia 10 de
abril de 1973 pelo Abbé Georges de Nantes e por sessenta delegados da Liga
Contra-reforma Católica” — ficou como um registro histórico sem nenhuma
resposta. Muitos alegaram que continha exageros e irreverências, e por isto não
poderia ser tomado a sério. Na verdade, a resposta de Paulo VI consistiu em
levar avante o seu “grande projeto”, como todos puderam ver, ignorando este
“Liber” bem como as respeitosas cartas e estudos de exímios prelados.
Deveria ficar bem claro que a desculpa da irreverência não pode
ser alegada nessa matéria, em que está em jogo a defesa da fé, nem sob o ponto
de vista meramente formal, nem, por maior razão, sob o ponto de vista
disciplinar, sobretudo não se pode negar a verdade que a preocupação maior da
Igreja deve ser sempre a salvação das almas; e aqui se mostrou como estas estão
em risco.
Há testemunhos que acrescentam alguns detalhes inéditos
sobre o encontro de Paulo VI com irmã Lúcia, a fim de deixar claro o que podia
significar irreverência para um pastor megalômano.
No momento do encontro, as pessoas mais próximas eram, além
do secretário particular, padre Macchi, o bispo peruano monsenhor Alfonso
Zaplana, da cidade de Tacua, falecido em 1975. Pois bem, este prelado contou
repetidas vezes a alguns de seus padres e diocesanos um fato que muito o
impressionara: depois de ter recebido a vidente com grande afabilidade e tê-la
apresentado à multidão, Paulo VI trocou breves palavras com irmã Lúcia sobre a
impossibilidade de falarlhe a sós naquela ocasião. Em seguida, percebendo que o
importante momento passaria sem que dissesse ao papa o essencial, a religiosa
prostrou-se de joelhos aos seus pés e em lágrimas perguntou-lhe se não lhe
parecia chegado o momento de revelar a parte secreta da mensagem. Diante disto
o rosto de Paulo VI alterou-se completamente e com voz irada interpelou Lúcia,
dizendo; “Como ousais dizer a nós o que devemos fazer!” O tom paternal
transformara-se, a ponto de deixar o bispo estarrecido.
CARTA DE D. ANTÔNIO DE CASTRO MAYER A PAULO VI (25-1-1974)
Sobre a distância que se estabelece entre o sumo pontífice e
os fiéis, e mesmo sacerdotes, haveria muito a dizer. Nem sempre depende do
papa, além do quê há muitas precauções de segurança e de conveniência a
considerar sobre tão singular posição. Por vezes, serão os auxiliares imediatos
do santo padre a criar à sua volta um 'cordão sanitário', que acaba por
isolá-lo contra a sua vontade. Assim, diante de muitos erros e abusos que vêm
de cima, será justo dizer: sua santidade não sabia; o papa foi enganado! Ora,
no caso de Paulo VI, ficava claro ser ele que se furtava à obrigação de atender
a quem lhe falava de questões de fé, bem como responder às graves acusações
sobre desvios doutrinais e litúrgicos.
Consta que quando em seus últimos anos tinha terríveis momentos
de depressão, pensando no que havia feito, seria ainda esse cordão sanitário
progressista que o animaria com reuniões festivas, a fim de que sentisse o
apoio popular para continuar sua obra. Essa forma de “animação” democrática e
pouco católica era do seu gosto e conforto. Todavia, isto só fazia agravar a
pertinácia com que levou avante seu projeto, apesar das sábias, respeitosas e
ponderadas advertências que recebeu de alguns insignes prelados.
A carta que segue — e a falta de resposta — comprova essa
culpa.
Beatíssimo Padre,
Prostrado respeitosamente aos pés de Vossa Santidade, peço
vênia para submeter-lhe à consideração os estudos que seguem com a presente
carta. O envio destes estudos efeito em obediência à ordem de Vossa Santidade
transmitida por carta do Eminentíssimo Cardeal Sebastião Baggio ao Em. mo
Cardeal D. Vicente Scherer, da qual este último me deu ciência oralmente em
encontro que com ele tive no Rio de Janeiro a 24 de setembro p.p.
Em 15 de outubro último, tive a honra de escrever a Vossa
Santidade, afirmando meu filial acatamento a tais ordens. Entre estas, estava a
de que, dada a eventualidade de “em consciência não estar eu de acordo” com
“atos do atual Magistério Ordinário da Igreja”, “manifestasse livremente à
Santa Sé” meu parecer. É o que faço com toda a reverência devida ao Augusto
Vigário de Jesus Cristo, ao entregar a Vossa Santidade os três estudos anexos.
Com isto — digne-se Vossa Santidade notá-lo — não pratico
outra coisa senão um ato de obediência à Sua veneranda determinação. As
apreciações que neles externo, eu as formei ao longo de anos de reflexão e de
oração. Não é minha intenção entregá-los ao público, certo de que minha reserva
agradará Vossa Santidade.
Eis que, Santo Padre, a obediência me obriga agora a comunicar
a Vossa Santidade pensamentos que talvez lhe tragam pesar. Faço-o, no entanto,
com paz de alma, pois estou na via da sinceridade e da obediência, na qual
conto permanecer com a graça de Deus. Mas, se está tranqüila minha consciência,
ao mesmo tempo está triste o meu coração. Com efeito, toda a minha vida de
Sacerdote e de Bispo vem sendo marcada pelo empenho de — no meu limitado
ambiente de ação — ser, por meu devotamento irrestrito, e por minha obediência
inteira, motivo de alegria para os vários Papas sob cuja autoridade tenho
sucessivamente servido.
Ora, na presente conjuntura, o devotamento e a obediência me
levam a contristar a Vossa Santidade. Um episódio da História da França no
século passado me açode ao espírito neste passo. Narra-o Chateaubriand nas
“Memoires d'Outre tombe”. Certa vez o Rei Luís XVIII lhe solicitou a opinião
sobre uma medida que o monarca acabava de tornar pública. A sinceridade impedia
o escritor de elogiar tal medida. Mas o receio de contristar o Rei movia-o a
calar-se. Esquivou-se, pois, de externar seu pensamento. Vendo isto, Luís XVIII
mandou formalmente ao escritor que falasse com inteira franqueza. Este,
atendendo ao nobre mandato, e antes de abrir-se a seu Rei, lhe dirigiu este
pedido: “Sire, pardonnez ma fidélité”. É o que peço a Vossa Santidade:
perdoe-me a fidelidade com que cumpro Suas ordens.
Suplico a Vossa Santidade compaixão para a obediência deste
bispo já septuagenário, que vive neste momento o episódio mais dramático de sua
existência. E peço a Vossa Santidade que me dispense pelo menos uma parcela
dessa compreensão e dessa benevolência que tem tantas vezes manifestado não só
em torno a si, como também com pessoas estranhas, e até inimigas do único Redil
do único Pastor.
Ao longo dos anos foi tomando corpo em meu espírito a
convicção de que atos oficiais de Vossa Santidade não têm, com os dos
Pontífices que o antecederam, aquela consonância que com toda a alma eu neles
desejava ver. Não se trata, é claro, de atos garantidos pelo carisma da
infalibilidade. Assim, aquela minha convicção em nada abala a minha crença
irrestrita e enlevada nas definições do concílio Vaticano I.
Receando abusar do valioso tempo do Vigário de Cristo,
dispenso-me de mais amplas considerações e limito-me a submeter à atenção de
Vossa Santidade três estudos: 1) Sobre a “Octogesima Adveniens”. 2) Sobre a
Liberdade Religiosa. 3) Sobre o novo “Ordo Missae”. (Este último de autoria do
advogado Arnaldo Vidigal Xavier da Silveira, a cujo conteúdo me associo.)
Supérfluo será acrescentar que neste passo, como já em
outros de minha vida, darei cumprimento, em toda a medida preceituada pelas
leis da Igreja, ao Sagrado dever da obediência. E neste espírito, com o coração
de filho ardoroso e devotíssimo do Papa e da Santa Igreja, acolherei qualquer
palavra de Vossa Santidade sobre este material. De modo especial suplico a
vossa Santidade queira declarar-me: a) Se encontra algum erro na doutrina
exposta nos três estudos anexos; b) Se vê na atitude assumida nos ditos estudos
face aos documentos do Supremo Magistério, algo que destoe do acatamento que a
estes devo como Bispo.
Suplicando, queira Vossa Santidade conceder-me, como à minha
Diocese, o precioso benefício da Bênção Apostólica, sou de Vossa Santidade,
filho humilde e obediente.
(ass.) Antônio de Castro Mayer, Bispo de Campos.
Essa carta tornou-se pública somente em 30 de junho de 1983
e foi a revista quinzenal romana Si si no no a primeira a fazê-lo, comentando:
“É uma documentação de grande atualidade e extremo interesse
para a compreensão de um pontificado cujas opções desastrosas ainda pesam sobre
a Igreja pelos seus muito amargos efeitos.
“Basta ler algumas linhas de seus documentos para entender
que o tom de dom Mayer nada tem em comum com apelos emotivos ou protestos
impulsivos: é um sucessor dos apóstolos que, ciente da sua enorme
responsabilidade, dirige-se ao sucessor de São Pedro para expor-lhe gravíssimas
objeções que se apóiam em argumentos incontestáveis. Ao mesmo tempo nota-se que
seu respeito pela figura do santo padre quase o faz tremer, mas isto não o
impede de expor com firmeza serena o seu discurso dos atos papais que
comprometem as raízes mesmas da fé católica, apostólica, romana.
“A carta de Sua Excia. Antônio de Castro Mayer não recebeu
outra resposta que esta, transmitida dia 22 de março de 1974 através do núncio
apostólico Carmine Rocco: 'As cartas de 25 de janeiro pp. dirigidas ao Em.mo
Card. Baggio e a Sua Santidade Paulo VI, junto aos estudos feitos por V.Excia.,
chegaram ao destino.'
“Sobre o conteúdo dos estudos desceu um impenetrável
silêncio. Desse modo sumário a autoridade decaída pensava resolver a questão.
Nem a gravidade das objeções doutrinais, nem a aflição de um venerável bispo que
se sentiu obrigado a discordar do papa para permanecer fiel a Cristo, à Igreja,
às almas, puderam induzir Paulo VI a entreabrir os anteparos atrás dos quais
escondia a sua face verdadeira.
“E todavia, como se pode ver pela carta de dom Mayer,
foi-lhe dito expressamente, em nome do santo padre, que manifestasse com toda a
liberdade as razões do seu dissenso. Na realidade, Paulo VI, ou alguém em seu
nome, queria somente averiguar até que ponto teria ido a resistência do então
bispo de Campos. Já nos anos sessenta, quando a este bispo havia sido atribuída
uma rigorosa análise teológica sobre a possibilidade de um papa herege e sobre
o novo Ordo Missae, o secretário de Estado Cardeal Jean Villot e o cardeal
Baggio intervieram pessoalmente, não para esclarecer questões doutrinais, mas
para pressionar o bispo dissidente a usar 'reserva e discrição que se fazem
obrigatórias'.
“Pois bem, na carta que acompanhou os três estudos, dom
Mayer assegura a sua reserva e intenção de não tornar pública a questão. Tanto
bastava ao papa Montini e aos montinianos. Tudo mais, a integridade da fé, a
fidelidade à tradição católica, a aflição de quantos, como dom Mayer,
sentiam-se dilacerados entre a obediência à Igreja e a obediência indevida mas
imposta, a um curso eclesial que contrasta com a fé e a tradição imutável da
Igreja, tudo isto pouco importava a quem pusera seu próprio 'eu' no lugar de
Deus. E assim foi enganada a boa fé, a devoção e a confiança de um bispo que
ainda não havia aquilatado a profundidade do abismo em que precipitara a
suprema autoridade da Igreja.
“Somente com o passar dos anos e a evidência dos fatos
convenceu-se de que em tempos como este o silêncio de quem tem responsabilidade
pelas almas é omissão culposa e a obediência incondicional é deplorável cumplicidade.”
No fim desse artigo, que segue o estudo sobre o novo
conceito de liberdade religiosa da declaração conciliar Dignitatis humanae, há
uma nota que diz “À primeira carta de Sua Excia. Mons. Castro Mayer a Paulo VI
em 1974, seguiram-se outras, dirigidas também ao atual pontífice. Todas
continuam sem resposta.”
TRÊS ESTUDOS — TRÊS PREVISÕES VERIFICADAS
O pontificado de Paulo VI reflete de modo sinistro todas as
conseqüências que advieram dos erros liberais e modernistas descritos por São
Pio X e sintetizados nos três estudos de dom Mayer.
De fato, o aspecto geral do presente aggiornamento e
transformação religiosa tem as características da tática modernista, descritas
pelo papa Sarto no início do século: uma aparente dispersão de uma miríade de
novas idéias, expressas numa linguagem vaga, indefinida e por vezes hermética
como textos arcanos. Essa tática “(...) consiste em não expor nunca suas
doutrinas de modo metódico e no seu conjunto, mas dando-as em fragmentos e
espalhadas cá e lá, o que contribui para que sejam julgados flutuantes e
indecisos em suas idéias, quando na realidade estas são perfeitamente fixas e
consistentes (...)” Eis o “hamletismo montiniano” descrito pela Encíclica
Pascendi de S.S. São Pio X.
O primeiro estudo versa a Encíclica Octogesima adveniens, de
Paulo VI. Nele é demonstrado como o socialismo, que em todas as suas formas foi
declarado incompatível com a doutrina católica pelo magistério da Igreja, nessa
encíclica, que alterna trechos tradicionais com novidades, expressões obscuras,
elogios às intenções, justificações parciais de heterodoxias e, até mesmo,
identificações destas com a doutrina católica, esse socialismo recebe no fim
uma parcial abertura, uma velada “redenção” como erro, uma espécie de batismo
verbal na prática. Exemplo disso é o “socialismo-cristão”. Não há dúvida de que
essas tendências já viviam no seio da Igreja desde pontificados anteriores, mas
com Paulo VI foram primeiro toleradas e depois, com esta Encíclica,
doutrinalmente justificadas. De fato, esta desenvolve uma apologia do
igualitarismo social, do utopismo, do democratismo e, por fim, para aplicar
tudo isto à religião, do interconfessionalismo.
Não é difícil imaginar como também a ordem inversa pode ser
posta em prática para fazer com que grupos religiosos cheguem ao socialismo,
aplicando o interconfessionalismo. Isto se viu nas “comunidades de base”, que
comungam numa crença que deixa de lado os dogmas da fé, “que podem separar”,
para aceitar a solidariedade revolucionária, que pede sobretudo a união.
Nesse sentido é significativo o programa proposto por dom
Hélder Câmara ao teórico marxista Garaudy: “O próximo passo para nós cristãos é
proclamar publicamente que não é o socialismo, mas o capitalismo,
intrinsecamente perverso. O socialismo só é condenável nas suas perversões. E
para você, Roger, o próximo passo é demonstrar que a revolução só tem um
vínculo histórico com o materialismo e ateísmo, mas ao contrário e co-natural
ao cristianismo. (Parole, d'homme, ed. Laffont, Paris, 75) Ora, sob Paulo VI, amigo
deste bispo, essas idéias se alastraram no mundo passando por católicas. Seria
isso possível se essa encíclica não as favorecesse?
O segundo estudo anexo à carta a Paulo VI tratava justamente
da questão pela qual uma atitude de isolamento e perseguição se manifestaria
com mais dureza para com os católicos fiéis à tradição: o problema da nova
missa. Ali é feita uma análise desta, à luz de tudo o que a Igreja estabelecera
nos séculos para dar força litúrgica às verdades de fé professadas pela
religião de Deus que se fez Homem, para, sacrificando-se, redimir os homens.
O estudo demonstra que a nova missa é uma clara concessão
aos protestantes, no sentido de diminuir ou cancelar tudo quanto seja uma
profissão de fé litúrgica dos dogmas católicos, que são inaceitáveis para os
reformados. Torna-se, assim, protestantizante.
Esta análise crítica, porém, não era nem única nem nova. Já
fora feita sob múltiplos pontos de vista e pelos mais diversos estudiosos,
religiosos, leigos e até diversos protestantes convertidos. Além disso, havia
sido avaliada desde o início nada menos que pelo prestigioso prefeito da
Congregação para a Doutrina da fé, cardeal Ottaviani, que juntamente com o
cardeal Bacci apresentou carta a Paulo VI acompanhada do “Breve exame crítico”,
onde é explicado por que a nova missa “afasta-se de modo impressionante da
Teologia Católica como foi formulada no Concílio de Trento”. (p. 91 e segs.)
A questão da revolução litúrgica promovida por Paulo VI é
grave demais para ser resumida. Aqui lançaremos apenas um olhar sobre o
espírito que a guiou e os frutos que produziu. Estes foram, desde o início:
falsidade, desprezo e perseguição da tradição católica, dessacralização, e,
pior que tudo, geral profanação da Casa de Deus. A falsidade já se mostrou diante
do exame crítico dos cardeais. Em novembro, 1969, com uma alocução em audiência
geral, Paulo VI indiretamente contestava a evidência, afirmando que a nova
missa era o rito de sempre até mesmo melhorado. Palavra de papa? Enquanto dizia
isso, mandava retirar, para discretamente fazer corrigir, a “Instrução geral”
da nova missa que continha uma definição protestante e, portanto, herética do
sacrifício da missa. Mas ficou evidente que mesmo a nova edição corrigida de
1970 não podia encobrir o erro. Enquanto isto, o cardeal Ottaviani foi vítima
de injúrias e traições veladas, e aproveitando-se de sua cegueira até cartas se
falsificaram. Era o início de uma surda perseguição contra a fidelidade
católica, que ainda continua. Documentam isto, entre outros, os livros sobre a
revolução litúrgica do inglês Michael Davies, especialmente Pope Paul’s New
Mass (1980, Devon, Ed. Augustine).
Quanto aos péssimos frutos de protestantização vistos por
dom Mayer, estão aí a vista de todo mundo. Para nos limitarmos ao país das estatísticas,
em 1959 havia nos EUA 39.505.475 católicos, 3.481.498 a mais com relação a
1958, e 12.787.132 a mais com relação a 1949. Um aumento de quase 50% em dez
anos. São cifras da Enc. Britannica (1960), que fazem um espantoso contraste
com as de monsenhor George Kelly The Battle for the American Church, Doubleday,
NY, 1981: “Depois do concílio, cerca de 10 milhões de católicos (30%) deixaram
de ir à missa dominical; cerca de 2 milhões a menos inscreveram-se em escolas
católicas; há meio milhão a menos de batizados e 50 mil conversões a menos.”
Seguem as estatísticas da perda de fé entre os fiéis: quanto aos religiosos, 50
mil freiras deixaram os conventos entre 1966-76; 10 mil sacerdotes abandonaram
o seu ministério e a matrícula nos seminários caiu de 50 mil para 17 mil. Da fé
destes é melhor não falar.
Eis, portanto, uma resposta em números que dá apenas uma
pálida idéia da transformação profunda operada pelo Concílio Vaticano II com
suas inovações, sua liturgia, seus erros inimagináveis. O desastre é universal,
não só no espaço terreno, mas na estrutura desta mesma Igreja, cujos bispos e
sacerdotes, desnorteados, deixam de entender se a própria missão e autoridade
devem coibir os abusos anticatólicos, ou promover as estranhas novidades
conciliares, se devem falar ainda da sacralidade suprema do santo sacrifício da
missa ou participar e co-celebrar em ceias ecumênicas ágapes sindicais,
confraternizações revolucionárias e até gay.
Não admira, porém, que as dúvidas superficiais se esvaeçam,
quando, para exemplo dessa protestantização galopante, são os papas que
celebram, rezam e abençoam nos outros templos, enaltecendo até a religiosidade
de Lutero e outros heresiarcas.
O terceiro estudo feito por esse doutor em sagrada teologia
de renome mundial que é dom Mayer, tratava do conceito de liberdade religiosa
na declaração Dignitatis Humanae, aprovada pelo Concílio Vaticano II, isto é,
pela maioria dos padres, menos 70 que até o fim, e apesar das garantias dadas
por Paulo VI, discordaram.
De fato, as implicações desse documento são de tal monta que
concentram tudo o que é devido aos erros dos outros, pois pretende sancionar
como direito natural a própria escolha do erro. Ora, o erro, seja político,
social ou religioso, tem a inverdade por origem e o direito a escolher uma
mentira religiosa implica a negação da religião verdadeira, até mesmo como
conceito.
Vai nisso tudo uma incrível confusão entre o livre-arbítrio,
pelo qual o homem pode optar pelo mal, arcando naturalmente com as
conseqüências dessa escolha, e a liberdade religiosa fundamental, pela qual
deve poder aderir à verdade religiosa. E esta é a revelação, Depositum Fidei,
guardada pela Igreja Católica.
Considerar indiferente essa reta adesão religiosa, isto é,
dar o direito à liberdade de aceitar ou não a verdade, segundo a própria
preferência ou opinião, seria dar legitimidade à negação do bem, da religião,
da revelação e, portanto, da encarnação, da redenção, do pecado original, da
criação mesma e, pois, de Deus. Ora, isto podem dizer os agnósticos e os ateus,
e já é difícil que quem professe sinceramente uma religião qualquer possa
partilhar dessa indiferença, mas que venha num documento católico é inaudito.
Uma declaração da Igreja é pronunciada com a autoridade
divina; portanto, aceitar o que proclama a Dignitatis humanae seria admitir que
Deus dá a cada homem, como direito fundamental, a escolha da crença ou negação que preferir, mesmo contra
a verdade, contra a revelação, contra a sua autoridade absoluta.
Ora, entre os absurdos desse documento está o fato de
pretender falar com a autoridade mesma da qual dispensa os homens de
obediência, não só em foro íntimo, mas publicamente. Em outras palavras,
equivaleria a alguém que se apresentasse como autoridade legítima para
autorizar todos a duvidarem de sua legitimidade e do que declara.
Como se vê, está em jogo a questão da autoridade. Uma
associação qualquer poderia declarar que os cidadãos são livres para aceitá-la
e até mesmo para tomá-la a sério. Seria extemporâneo e irrelevante, mas não
absurdo. Nenhuma autoridade ficou nisso implicada. No caso, porém, de uma
declaração em nome da Igreja, cuja existência mesma vem da autoridade de Deus,
é muito diferente porque seus homens são meros porta-vozes da autoridade. Eis o
impasse! Como seria possível, sequer pensar, que Deus, tendo revelado as
verdades de fé necessárias ao homem para salvar-se, depois faria declarar pela
Sua Igreja que é um direito fundamental que Ele concedeu desde as origens a
liberdade de aceitá-las ou negá-las, legitimando assim todas as crenças e
seitas religiosas, todos os agnosticismos e ateísmos. Se assim fosse, também
Adão teria o direito de escolher e comer o fruto que quisesse. O direito
natural está ligado à natureza de todos os homens, e desde o início, e a
escolha do primeiro homem foi religiosa porque teve relação com a vontade
revelada de Deus. Certamente conhece esta de modo mais direto que seus
descendentes, mas o problema religioso humano está na adesão filial, não no
conhecimento, que é sempre limitado.
Ora, pretender justificar essa liberdade de pensamento, de
opinião, de consciência; pretender mesmo que no seu uso reside a dignidade da
pessoa humana implicou todas as aberturas ideológicas e experiências dentro do
próprio catolicismo. Tudo seria então permitido, dentro e fora da Igreja
conciliar menos a fé. A fé única, fundamento da doutrina e liturgia católicas
há dois mil anos e que Fátima veio lembrar, tornava-se sinal de contradição na
própria Roma!
DECLARAÇÃO DE MONSENHOR LEFEBVRE
Festa da Apresentação de Maria Santíssima, 21/11/74
Nós aderimos de todo o coração e com toda a alma à Roma
católica, guardiã da fé católica e das tradições necessárias para a preservação
desta mesma fé, a Roma eterna, mestra de sabedoria e de verdade.
Nós rejeitamos, ao contrário, e recusamos sempre seguir a
Roma de tendência neomodernista e neoprotestante que se manifestou claramente
no Concílio Vaticano II e depois do concílio, em todas as reformas que dele
procederam.
De fato, todas estas reformas contribuíram e ainda
contribuem para a demolição da Igreja, para a ruína do sacerdócio, para o
aniquilamento do sacrifício e dos sacramentos, para o desaparecimento da vida
religiosa, para um ensino neutro e teilhardiano na universidade, nos seminários,
na catequese, ensino que procede do liberalismo e do protestantismo, já tantas
vezes condenado pelo magistério solene da Igreja.
Nenhuma autoridade, nem mesmo a mais alta hierarquia, pode
obrigar-nos a abandonar ou a diminuir a nossa fé católica, claramente expressa
e professada pelo magistério da Igreja há 19 séculos.
“Mas, ainda que nós mesmos ou um anjo do céu vos anuncie um
evangelho diferente daquele que vos temos anunciado, seja anátema!” (Gl. 1,8)
Não é, talvez, o que nos repete hoje em dia o santo padre? E
se uma certa contradição se manifestar entre suas palavras e seus atos, assim
como nos atos dos dicastérios, então nós escolhemos o que foi sempre ensinado e
não daremos ouvidos às novidades que destroem a Igreja.
Não se pode modificar profundamente a lex orandi sem
modificar a lex credendi. A nova missa corresponde ao novo catecismo, ao novo
sacerdócio, aos novos seminários, à nova universidade, à nova Igreja
carismática, pentecostal, todas coisas opostas à ortodoxia e ao magistério de sempre.
Esta reforma tendo saído do liberalismo e do modernismo, é
toda e inteiramente envenenada; nasce da heresia e termina na heresia, mesmo
que todos os seus atos não sejam formalmente heréticos. É, portanto, impossível
a qualquer católico consciente e fiel adotar esta reforma e submeter-se a ela
de algum modo.
A única atitude de fidelidade à Igreja e à doutrina
católica, para a nossa salvação, é a recusa categórica de aceitar a reforma.
Por isto, sem nenhuma rebeldia, nenhuma amargura, nenhum
ressentimento, nós prosseguimos na nossa obra de formação sacerdotal sob a
estrela do magistério de sempre, persuadidos como estamos de não poder prestar
maior serviço à santa Igreja católica, ao sumo pontífice e às gerações futuras.
Por isto nós aderimos firmemente a tudo que foi acreditado e
praticado na fé, os usos, o culto, o ensino do catecismo, a formação do
sacerdote, a instituição da Igreja, da Igreja de sempre, e codificado nos
livros que apareceram antes da influência modernista do Concílio, esperando que
a verdadeira luz da tradição possa dissipar as trevas que obscuram o céu da
Roma eterna.
Fazendo assim, estamos convencidos, com a graça de Deus, a
ajuda da Virgem Maria, de São José, de São Pio X, de que permanecemos fiéis à
Igreja Católica e Romana, a todos os sucessores de Pedro e de que somos os
fideles dispensatores mysteriorum Domini Nostri Jesu Christi in Spiritu Sancto.
Amém. (ass.) Marcel Lefebvre.
Ora, aconteceu que tudo o que está escrito aqui, e pede a
atenção de qualquer católico, foi tomado como um desafio a Paulo VI e ao seu
pontificado conciliar, em que o próprio papa já vira a autodemolição operando e
a fumaça de Satã infiltrando-se. Seguiu-se a perseguição ao valoroso arcebispo,
um dos mais fiéis e prestigiados por Pio XII.
A CONTINUIDADE NA AUTODEMOLIÇÃO DA IGREJA
Não há católico que deixe de ter um natural sentimento de respeito
e devoção pelo Papa, vigário de Nosso Senhor na Terra. De fato, ao santo padre
compete arcar com o maior peso na defesa e preservação da fé, contra a qual vêm
embater-se as paixões e as concupiscências do mundo, e sem a qual ninguém se
salva.
É claro, porém, que o Chefe da Igreja instituiu um Seu
representante terreno, e tudo mais na Igreja, para a fé, não para fim
contrário. Por essa razão São Paulo enfrentou São Pedro quando este pôs em
perigo a fé, e os padres e doutores de todos os tempos ensinam que os fiéis
devem fazer o mesmo se estiver em jogo a fé. Agora, depois de tudo o que se
relatou aqui a propósito do que foi a ação do papa Paulo VI, alguém poderá
objetar que todos os homens erram, e que se deve levar em conta tudo que foi
feito de bom também. Desse papa ficou registrado que mesmo durante o Concílio
ele tomou atitudes decididas para sanar documentos já bastante comprometidos
pelos maiores inovadores. Com isto foi ao encontro de dissabores e antipatias.
Mais tarde compôs o “Credo do Povo de Deus”, que era uma profissão de fé
bastante ortodoxa e decididamente malvista pelos modernistas mais ousados.
Outrossim, não negou a por sua assinatura à encíclica mais impopular de nossos
dias, a Humanae Vitae, sobre a natalidade e proibição da pílula.
No entanto, com relação à maior parte dos problemas que
enfrentou, achou por bem experimentar soluções novas no campo da fé. Quando em
seguida via que os resultados eram infaustos, chegava a dizer, alarmado, que a
Igreja estava em fase de autodemolição, ou que o fumo de Satã a invadia por
alguma fresta. Mas nem por isto voltava ao que sempre se fez, aplicando medidas
corretivas: o caminho pastoral da Igreja conciliar era irreversível. Por quê?
Porque o pretexto pastoral e até as pausas no processo de
transformação da Igreja serviram para consolidar o terreno conquistado pelo
progressismo. Mas a prova definitiva da implantação do espírito transformista
se teve em duas modificações principais e que dependeram do papa. A primeira
foi o reforço das conferências episcopais que na prática vinham condicionar os
bispos ao que era decidido nas cúpulas e comitês. E a segunda foi a aceleração
do processo de renovação, pelo estabelecimento de novos limites de idade para
bispos residenciais e para cardeais eleitores, bem como da ampliação do número
destes.
Sobre essa modificação, iniciada no tempo de João XXIII,
haveria muito a dizer. Aqui bastará uma referência ao que diz respeito à
eleição do papa. Como é fácil imaginar, isto sempre foi uma grave preocupação
para a Igreja. Certamente o Espírito Santo protege Sua Obra, mas a presença do
inimigo nessas circunstâncias tão delicadas é igualmente certa e ajudada pela
ambição que esse mau espírito sabe incutir nos homens. Ora, um dos perigos foi
sempre o continuísmo humano, tanto por interesses pessoais como por consolidar
erros que tiram da Igreja a liberdade de renovar-se.
Foi tendo em vista esse bem maior que o papa Sisto V
reorganizou entre 1586-88 a Cúria Romana e o Colégio dos Cardeais, que teria um
número máximo de setenta. Desse modo era mais fácil assegurar um consistente
número de cardeais de pontificados anteriores, que compensariam, para efeito de
continuidade, os novos, feitos pelo último papa. Diz-nos a propósito o renomado
historiador Georges Goyau: “A experiência de três séculos atesta a solidez e a
oportunidade da obra de Sisto V”. Reformas parciais foram feitas só em 1908,
sem alterar o limite de 70. Mas em 14-12-58 João XXIII faz 23 novos cardeais,
perfazendo um total de 74. Dentre estes, monsenhor Montini, que anos após seria
eleito papa num conclave de 80 cardeais. Este número seria elevado por Paulo VI
para 120 e as novas nomeações iriam servir para consolidar os novos critérios
conciliares e inovadores dos últimos pontificados revolucionários.
A razão alegada para esse aumento pode parecer plausível,
pois visa uma representatividade maior nesta época democrática em tudo. Não
pode, porém, deixar de ser notado que para fazê-lo usaram certamente um poder
soberano, mas no sentido contrário à intenção dos papas precedentes que visavam
um interesse maior da Igreja, que pouco tem a ver com o processo democrático: a
continuidade na fé. Ora, o fato de os velhos cardeais terem sido afastados nas
últimas eleições papais, e as escolhas feitas para novos cardeais, não deixam
dúvida de que os homens da Igreja quiseram assegurar não mais a continuidade da
Igreja de sempre, mas aquela das próprias inovações e diretivas. Eis a
seqüência dos fatos: dia 1.º de outubro de 1975 Paulo VI emite uma
“Constituição Apostólica sobre a Eleição do Supremo Pontífice”. Desta ficam
excluídos os cardeais com mais de oitenta anos. Na primavera de 1976 nomeia 20
novos cardeais de mentalidade progressista, terceiro-mundista, ou mesmo
produtos da ostpolitik como monsenhor Lekai, sucessor do cardeal Mindzenty na
Hungria. Note-se que os nomes de Arns, Lorscheider, Pironio, etc, então já eram
muito malvistos pela Cúria vaticana.
No conclave para a eleição do sucessor de Paulo VI, dos 111
cardeais eleitores 100 haviam sido apontados por este papa. Nele, as rigorosas
condições de segredo e de abstenção, por parte dos cardeais, de campanhas
eleitorais e compromissos, seriam regularmente esquecidas. Cardeais, como
Aloísio Lorscheider, dariam entrevistas sobre o caráter e o programa do
candidato ideal.
Curiosamente, o cardeal que votaria em Lorscheider,
subscrevendo indiretamente esse programa, seria o sucessor de Paulo VI. Era
Albino Luciani, patriarca de Veneza e futuro João Paulo I.
A MORTE DE PAULO VI5
“Um papa sem alma? A transmissão televisiva da viagem do
féretro do sumo pontífice, S.S. Paulo VI, de Castel Gandolfo à Basílica de São
Pedro em Roma, foi um espetáculo estranho, nunca visto.
“Ao microfone estava um sacerdote para animar a cerimônia:
seu comentário era dirigido a todo o mundo pela TV! Mas o mundo não ouviu uma
só prece a Deus pela alma do defunto. O que o mundo viu foi o carro fúnebre
percorrendo a Via Appia, por onde passaram os apóstolos e mártires que vieram a
Roma para ensinar sobre Deus e a alma, e para rezar a Deus, o que significa entregar-lhe
a alma.
“O mundo viu o carro passar perto das catacumbas, de onde
ainda hoje se elevam orações a Deus. Viu a passagem entre edifícios perfilados
nas ruas de Roma, mas faltou sempre o ritmo solene e único da oração e da fé na
vida imortal.
“Durante sua última viagem terrena, acaso não teria o sumo
pontífice S.S. Paulo VI, uma alma a salvar? E, no entanto, o cortejo passava
assim como as imagens da sua glória histórica terrena, materialística,
marxisticamente, para a Sua tumba na terra nua. Era como se das ruínas de aras
fumegantes viesse somente o murmúrio pagão de louvor ao Vencedor!”
Teria Paulo VI deixado disposições também para sua última
viagem?
Quem sabe! Em todo caso, com as reformas que operou na
Cúria, o secretário de Estado cardeal Villot assumia todas as posições-chave
para controlar tudo no Vaticano, absolutamente tudo, e não hesitava, com
relação ao resto, em interferir diretamente, mesmo passando por cima dos chefes
dos vários dicastérios. Sabia também como manipular as conferências episcopais.
Eis o novo poder!
O SUCESSOR DOS PAPAS JOÃO E PAULO
Sucedeu a Paulo VI o cardeal Albino Luciani, que foi o
primeiro bispo consagrado pelo papa João XXIII na Basílica de São Pedro, em
dezembro de 1958. Em 1969 Paulo VI o transferia para Veneza, onde foi feito
patriarca. Era um fiel continuador dos precedentes pontífices e do Concílio
Vaticano II. Tomou o nome de João Paulo.
A escolha desse nome duplo já diz muito, mas aqui nos
interessa saber a atitude do novo papa em relação à Fátima. Pois bem, o cardeal
Albino Luciani não só foi a Fátima como quis falar com irmã Lúcia, sem
esconder, de quem o indagou sobre essa visita, o quanto julgava importante a
mensagem trazida por esse verdadeiro “sinal dos tempos” (cf. revista Cuore
della Madre, jan. 78).
Teria João Paulo I tomado conhecimento do terceiro segredo?
Se o fez, nem por isso associou a crise da Igreja, que nele deve estar
descrita, ao que acontecia nas suas imediatas cercanias. E a prova disto é que
confirmou provisoriamente o status quo, como podemos ver pela carta aberta
publicada pelo diretor do quinzenário Si si no no, com data de 29 de agosto de
1978:
“Santidade, agora são já muitos em Roma a saber que:
— A Providência permitiu a identificação certa da efetiva
cumplicidade sectária de altos eclesiásticos, depois da repetida declaração
oficial de vértices de tal seita (maçons);
— Das várias provas dessa identificação, estão perfeitamente
ao corrente não poucos membros do colégio cardinalício, entre os quais o
cardeal Seper (prefeito da Congregação para a Doutrina da fé);
“Evidentemente, o cardeal Albino Luciani não estava ao
corrente disto tudo, senão seria inexplicável a apressada confirmação que vossa
santidade fez de todos os máximos prelados da Cúria e sobretudo do
condicionante secretário de Estado (card. Villot)6. A menos que se deva ver
nisso a conseqüência de uma eleição de compromisso. Tal conseqüência, porém,
continuaria para prejuízo de tantas almas, como tem sido no passado, e isto não
deve ser admitido por vossa santidade. Ainda que fosse para 'ganhar tempo',
redundaria numa evidente continuação desse prejuízo das almas. Nós demonstramos
repetidas vezes a responsabilidade de alguns diretores da Cúria na atual
deturpação da doutrina católica, que através da transformação antropológica
conduziu a uma progressiva autodemolição da Igreja, já lamentada pelo vosso
predecessor.
“Agora vossa santidade confirma os mesmos responsáveis.
“Com isso vossa santidade entrega-se ao inimigo, o qual se
mostrará habilíssimo — como vossa santidade ainda não pode saber, mas saberá ao
preço de indescritíveis amarguras — em colocar o papa diante de fatos
consumados que determinarão um curso eclesial segundo caminhos que não são da
fiel observância e testemunho, mas do renegamento e da traição.
“Nós não seguimos ilusões humanas, mas cumprimos, por meio
desta carta, um dever de consciência para com o sacerdócio e para com a Igreja,
pelo amor a Nosso Senhor. Se faltássemos em fazer chegar a vossa santidade este
aviso, nos sentiríamos culpados de pusilânime omissão.
“De fato, a Salus Ecclesiae deve permanecer, para todo
católico, a suprema lex. Com toda deferência devida a vossa santidade.”
Teria sido este um aviso profético para o papa Luciani?
FOI JOÃO PAULO I ENVENENADO?
Com o livro Em nome de Deus o jornalista inglês David Yallop
dá por certa a hipótese de que João Paulo I foi assassinado na noite de 28 para
29 de setembro de 1978, depois de apenas 33 dias de pontificado. Seja como for,
o autor enumera fatos suspeitos suficientes para que fossem abertos não um, mas
vários inquéritos. São fatos ligados a tramas tenebrosas em que estão
envolvidos personagens do mundo financeiro e maçônico, dos quais já se ocupam
há tempo as justiças italiana, inglesa e norte-americana.
São certamente questões muito intricadas que envolvem
vultosos interesses, os quais — é impossível negar — têm fios invisíveis que
passam pelo Vaticano atual. Diante deles, um papa inquiridor teria de arriscar
a vida, e os traficantes em conluio, motivação e meios para eliminá-lo, nos
seus próprios recintos.
Yallop dedicou-se a reconstruir, com os meios de que
dispunha, as doze horas do cardeal Villot, secretário de Estado, consecutivas à
morte do papa Luciani. Com isto visa a demonstrar que estas foram ocupadas numa
tentativa de transformar um envenenamento em morte natural. Ora, seja ou não
verdadeira a sua tese, o que é certo é a existência de poderes ocultos e
totalmente estranhos à religião, para não dizer à moral e honestidade, que
depois dessa morte ficaram intocados. De fato, para o pontificado que se seguiu
tudo foi considerado normal e continuou como dantes.
Por essa razão o padre de Nantes escreve, narrando o que é
descrito pelo livro de Yallop: “Caim, que fizeste de teu irmão?” A esse grito
que remonta às origens da história dos homens, João Paulo II responde do mesmo
modo que o pai de todos os assassinos: “Porventura sou eu guardião de meu
irmão?”
Mas, afinal, quais são os fatos certos que levantam
suspeita?
É certo que a morte de João Paulo I foi inesperada. E, além
disso, deve ter sido súbita, para que não tivesse tempo de tocar a campainha ao
seu alcance. Ou se tocou, é estranho que não tenha sido socorrido. Quanto ao
fato de ter ingerido uma superdose de calmante para dormir, como comentou o
cardeal Villot, causa espécie não só a hipótese de suicídio, mas também a de um
engano tão banal. De qualquer modo, seus objetos, documentos e o vidro de
Efortil de que se teria servido, não foram encontrados. Será que o que se passa
dentro do Vaticano não deve ser verificado em caso de suspeitas? Por que essa
morte do pai espiritual dos católicos não deve ser explicada do mesmo modo, ou
com ainda mais rigor, que as outras mortes?
Aqui, de fato, pode ser traçado um legítimo paralelo com as
operações financeiras em que ficou envolvido o banco do Vaticano, e que são do
conhecimento público, mas nenhum alto prelado considerou necessário explicar,
senão com a alegação de que seu diretor fizera uma avaliação não muito
cuidadosa sobre informação de terceiros (a cifra envolvida é de UM BILHÃO E
DUZENTOS MILHÕES DE DÓLARES). Ora, somente em 1982 seria feito um relatório
acerca dessas operações financeiras suspeitas. Mas, como podemos verificar, o
relatório em si, com seus pretextos incríveis, já é motivo de escândalo.
Teriam então usado as mesmas desculpas para apresentar o
caso a João Paulo I? Teria o papa concordado em acobertar tudo isso? Não há
dúvida de que a falcatrua refere-se ao tempo de Paulo VI, assim como não há
dúvida de que o cardeal Luciani sabia de algo. Quanto às pessoas envolvidas,
deixando de lado o grão-mestre maçon Licio Gelli, Ortolani, Sindona e Roberto
Calvi, que são casos de polícia, não é possível considerar alheio aos fatos
Marcinkus, diretor do IOR, nem os cardeais Villot, Baggio, Casaroli e Poletti,
que há muito têm o controle da política vaticana e dos quais há provas ou
fortes indícios de serem filiados à maçonaria. Assim, o cardeal Ugo Poletti,
inscr. 17/2/1969, matr. 32/1425, nome UPO (cf. revista OP); o cardeal Agostino
Casaroli, insc. 29/9/57. matr. 41/076, nome CASA (Chiesa Viva 145); o cardeal
Sebastião Baggio, inscr. 14/8/57, matr. 85/2640, nome SEBA (cf. Chiesa Viva).
Mas, passemos brevemente pelo que relata o jornalista Yallop
e que teve por único desmentido o comentário de ser absurdo, dado o prestígio
dos envolvidos (!). Eis a resposta evasiva desses prelados que, mesmo se não
forem responsáveis pelas finanças diretamente, são sempre responsáveis pelo
aspecto moral destas.
A gestão financeira do Vaticano em 1942 foi entregue ao
organismo montado para esse fim, o IOR, Instituto para as Obras de Religião.
Este, sob Paulo VI, ampliará suas operações, dando cobertura a grandes
movimentos de capitais internacionais à procura de paraísos legislativos
fiscais. Isto acontecia desde que fora nomeado para dirigi-lo Paul Marcinkus7,
de Chicago, que passara a fazer parte dos colaboradores mais próximos a Paulo
VI, também pela sua amizade com padre Macchi, secretário pessoal do papa.
Destacou-se logo porque, com seu porte colossal, entrava naturalmente na função
de “gorila”, tendo imobilizado nas Filipinas a faca assassina que atentara
contra a vida de Paulo VI. Como, porém, a truculência não basta para dirigir um
banco, veio a calhar na época a orientação de quem hoje sabemos ter sido o
banqueiro mafioso e maçom, Miguel Sindona, ligado à loja P2 do famigerado Licio
Gelli.
Ora, quando começou a ruir o enorme complexo de negócios que
haviam montado pelo mundo, quem sabe com que escrúpulos, mas certamente tirando
partido da credibilidade do Vaticano, deu-se início uma série de liquidações e
vendas apressadas ou fictícias, entre as quais a do tradicional Banco Católico
do Vêneto, que o bispo Marcinkus vendeu ao banqueiro Calvi. O patriarca de
Veneza, Albino Luciani, vindo a saber da operação, foi a Roma para tentar
impedi-la. Teve então uma violenta discussão com Marcinkus, que acabou pondo o
futuro papa porta afora de seu escritório vaticano.
Uma séria investigação sobre aquelas atividades financeiras
era uma necessidade, que se não foi satisfeita no reinado de Paulo VI, seria
uma das primeiras preocupações do novo papa. Assim, embora mantendo
inicialmente o mesmo secretário de Estado Villot, João Paulo I, que também
renovava provisoriamente todo o governo anterior, pensou que poderia apurar
esta e outras irregularidades ordenando inquéritos. Aqui vem o comentário do
padre de Nantes, lembrando a frase evangélica de São Marcos 3,6: “Então os
fariseus saíram e reuniram-se em conselho com os herodianos para ver como o
haviam de perder”.
Tudo indica que um mês de pontificado bastou para João Paulo
I ver que o Vaticano havia sido transformado num covil de bandidos assim como
aconteceu com o Templo de Jerusalém nos dias de Jesus. Portanto, havia decidido
operar remoções e transferências de muitos altos prelados. Assim, recebeu em
audiência dia 28 de setembro o cardeal Baggio, prefeito da Congregação para os
Bispos, que vinha apresentar-lhe sua lista de novas nomeações de bispos. Ora,
consta que o cardeal teria saído desse encontro furioso, porque não só as
nomeações receberam objeções do papa como o próprio Baggio seria transferido
para Veneza.
Seguiu-se o encontro do papa com o cardeal Villot, que
recebeu instruções de remover Marcinkus do IOR. Quanto à proposta de sua
própria substituição na Secretaria de Estado pelo cardeal Casaroli,
especialista em Ostpolitik e outros compromissos, foi afastada por João Paulo
I, em favor do poderoso vice de Villot, o cardeal Benelli.
Mas naquela mesma noite essas decisões, conhecidas somente
por poucos, seriam anuladas com a morte do papa. Teria sido a digitalina, que não
deixa vestígios? Não foi possível saber, pois a autópsia não foi permitida,
como muitos pediram, tendo-se imediatamente iniciado um estranho processo de
embalsamento sem que sequer uma gota de sangue fosse extraída para exame. Ora,
uma análise do sangue teria podido revelar muito da causa mortis. Não admira,
portanto, que depois disso tudo e mais o desaparecimento dos papéis e objetos
de uso pessoal do defunto, estes fatos sejam considerados suspeitos por muitos
e como provas do envenenamento, por Yallop e outros.
O que não deixa margem a dúvidas é que tudo continuou como
antes para aqueles que seriam removidos, transferidos ou substituídos. Quando
mais tarde morreu também o cardeal Villot, quem o substituiu no poder foi o
cardeal Casaroli. Era o pontificado de João Paulo II, primeiro papa não
italiano desde o século XVI, mas pouco mudou também para os cardeais Baggio e
Poletti e para Marcinkus. Só este último teve alguns problemas, mas com a
justiça italiana, e bastou que permanecesse dentro do Vaticano para ficar a
salvo.
Consta, porém, que havia uma voz que usava o nome de Luciani
quando fazia ameaças telefônicas ao banqueiro Calvi. Este foi encontrado
enforcado sob a ponte de Blackfriars, em Londres. Conheceria algo do que se
passara no Vaticano? Certamente quem o chantageava devia estar ao corrente de
muitos fatos ocultos e sinistros, e é impossível dizer que estes fossem
estranhos às finanças do IOR.
Causou surpresa o maçom Lício Gelli, chefe da loja P2,
quando, apresentando fotos do novo papa tomando banho de piscina (que disse
haver resgatado de um fotógrafo-espião para proteger sua imagem), comentou o
quanto seria fácil para quem pôde fotografar também atirar para matar. Estariam
chantageando o papa?
O supremo cargo de papa, à semelhança de Quem é
representado, está sujeito às piores insídias dos senhores do mundo. Estes, na
medida mesmo que o vigário de Cristo revela suas maldades e hipocrisias, só
podem votar-lhe sentimentos de ódio, não aplausos.
Hoje, muitas coisas estão mudadas na aparência. É certo,
porém, que as recentes aberturas conciliares deram livre curso aos inimigos da
Igreja e do papado, dentro do Vaticano e da Igreja toda.
Ainda que João Paulo I não tenha morrido envenenado, como
não é difícil acreditar, é certo que não pouco veneno moral e espiritual ingeriu
nos 33 dias de seu pontificado, enfrentando os relatórios da avalancha de erros
e traições que ocorrem em toda parte do organismo flagelado da Igreja. Teve
certamente em mãos os relatos da atividade político-revolucionária dos jesuítas
na América Latina. Não pode ter evitado saber das inovações teológicas e
releituras evangélicas para o uso das “teologias de libertação”. Deve ter sido
advertido das insídias preparadas pelos fautores das falsas igrejas populares,
para a Conferência dos Bispos em Puebla, a realizar-se em 1979. Não podia
ignorar a proliferação e apoio episcopal dado às comunidades eclesiais de base,
postas a serviço das reivindicações sindicais e da luta de classes.
Devia estar ao corrente, como ninguém, de que todas essas
faces ameaçadoras para a sociedade e para a Igreja eram do mesmo vulto, do
inimigo prenunciado em Fátima como flagelo de um mundo cada vez mais
corrompido, ávido de prazeres e indiferente a Deus. Por essa razão, se tomou
conhecimento do terceiro segredo de Fátima, a amargura maior poderia ter sido a
constatação do quanto seu predecessor havia desprezado um aviso tão claro e
essencial.
Diante de tudo isto e dessa morte tanto súbita quanto
suspeita, o sucessor no trono papal tornava-se herdeiro ligado diretamente às
causas de sua inesperada eleição: os enormes problemas de uma Igreja dilacerada
pelos seus inimigos externos e internos, que fazem com que ela seja perseguida
internamente e o papa tenha muito que sofrer com as insídias de seus próprios
irmãos e predecessores.
Ora, o sucessor Karol Wojtyla assumia o nome de João Paulo
II que derivava de seus três imediatos predecessores. Que faria?
3ª PARTE- CUIDAI QUE NINGUÉM VOS SEDUZA
(O tempo está próximo - Lucas, 21,8)
Quem, como o papa Luciani, acredita ser Fátima o verdadeiro
“Sinal dos tempos” procurará inteirar-se de tudo que diga respeito a essa
aparição e sua mensagem. Quando, então, entender que os grandes eventos
preditos vão acontecendo, saberá que ali está descrita também a espantosa crise
da Igreja contemporânea. Onde? Em que termos? Com quais conseqüências? E qual o
epílogo?
Ora, se à primeira pergunta respondermos que a parte oculta
deve estar no terceiro segredo, é como se respondêssemos a tudo mais. De fato,
os termos em que se manifesta essa espantosa crise são de ausência, silêncio,
omissão, engano e demolição com respeito a tudo que a Igreja ensinou em vinte
séculos e ao que a mensagem de Fátima veio lembrar. Assim é que a atitude para
com esta reflete também a atitude para com a doutrina de sempre: silêncio,
quando não engano e demolição. E o mesmo deve ser dito para o terceiro segredo
pela atitude de ocultamento e omissão.
Não deve admirar, pois, que desde o advento da Igreja
conciliar tanto se fale em sinais dos tempos e nova Pentecoste, dignidade
humana e liberdade de consciência, em abertura ao progresso e amor pelo mundo,
em igualdade e ecumenismo, etc. etc, tudo menos de pecado, de perigo, de
castigo, que são a causa e o efeito para os povos e indivíduos que, esquecidos
de Deus, não voltam à oração e penitência, dando ouvidos ao verdadeiro “sinal
dos tempos”.
Sobre isto, a Igreja e os papas conciliares têm silenciado,
assim como sobre a admoestação ao pecado; a descrição dos grandes perigos
presentes, e a descrição dos castigos terrenos para os povos, eternos para as
almas. O ocultamento do terceiro segredo não é, nem mais nem menos, que a
representação desses silêncios, enganos e omissões.
Quanto às conseqüências para a própria Igreja, foi Paulo VI
quem as descreveu, assustado, quando falou em autodemolição e fumaça de
satanás. E, no entanto, ignorou que para cada efeito há uma causa, para cada
erro uma correção e em cada sinal um aviso.
Nosso Senhor em João (9, 39-41) disse: “Eu vim ao mundo para
exercer um juízo — para que os que não vêem vejam e os que vêem se tornem
cegos. E ouvindo isto alguns fariseus que estavam com Ele, disseram-lhe:
Porventura nós também somos cegos? E Jesus respondeu: Se vós fósseis cegos, não
teríeis culpa; mas, pelo contrário, dizeis: nós vemos. Permanece portanto o
vosso pecado.”
Esses fariseus são aqueles doutores religiosos que não
aceitavam os sinais que o Messias lhes dava com os Seus milagres. Antepunham a
estes as suas regras, pensamentos e deliberações, adotadas
nos sinédrios e nos concílios de marca humana e venal. E as conseqüências foram
de destruição na Jerusalém antiga como hoje na Jerusalém católica e do retorno
e Babel e à Babilônia mundana. Assim foi no passado e assim é no presente. Mas,
pode ser este o epílogo na era cristã?
Certamente não. As portas do inferno não prevalecerão contra
a Igreja, já foi dito por Jesus; “Por fim meu Imaculado Coração triunfará”, foi
lembrado por Maria em Fátima. “O Santo Padre consagrar-me-á a Rússia, que se
converterá, e será concedido ao mundo algum tempo de paz.” O que nos separa
ainda dessa hora?
Eis que ao novo papa se dirigiu a esperança de que atendesse
ao pedido de Fátima. Se ele tem o espírito mariano isto podia ser possível. Se
ele confia na Mãe de Deus a ponto de ter escrito no seu brasão Totus tuus, isto
pareceria provável.
É certo, porém que, não poderia fazê-lo sem restaurar antes
a fé católica que foi manchada e alterada. Qual outro pode ser o triunfo do
Imaculado Coração de Maria? Pode ele triunfar com sua devoção esquecida, sua
mensagem escondida e sua reparação silenciada?
Não é tudo isto, devoção, consagração e reparação, fruto da
íntegra e imaculada fé católica? Qual triunfo sem o “dogma da fé”?
CARTA AO PAPA JOÃO PAULO II8
“Santidade,
Consideramo-nos entre os que com júbilo sincero deram graças
a Deus pela vossa eleição ao supremo pontificado.
“De fato, a vossa exposição no Sínodo Episcopal de 1974, as
vossas lutas contra a opressão atéia e, sobretudo, a vossa união ao primaz da
Polônia católica, davam ainda mais garantias de firmeza na vossa orientação
diante da agressão externa à Igreja. Contudo, depois de ter meditado
atentamente sobre os vossos primeiros discursos e os vossos primeiros atos,
surgem em nosso ânimo filial apreensões. E não somos os únicos e indagar se as
duras condições do vosso passado labor pastoral vos tenham permitido conhecer a
crise interna da Igreja. Essa crise, santidade, é muito grave. Ela é doutrinal,
mas ao mesmo tempo é do governo; é do povo cristão, mas é sobretudo dos
pastores; é das associações (sempre mais secularizadas), mas também dos
colégios episcopais (em contradição com o papa e com as autênticas
responsabilidades episcopais); é das igrejas locais, mas é principalmente da
'mater omnium ecclesiarum'.
“Ignoramos quanto vós conheceis até agora dos absurdos, de
fato e de direito, que são tecidos quotidianamente por alguns dicastérios da
Santa Sé em prejuízo das almas. Tememos, santo padre, pensando a qual relator
infelizmente vos submeteis por ter confirmado no cargo o cardeal Villot. Esta
confirmação, mesmo provisória, significa para Vós ter uma 'cortina' mais
limitadora que aquela com a qual até agora tendes combatido.
“Santidade, pedimos fervorosamente a Deus que vos ajude não
a venerar, mas a medicar o homem contemporâneo, gravemente afetado pelo vírus
do imanentismo; que vos torne testemunha inflexível da encarnação redentora,
cumprida por Deus, não certamente numa humanidade genérica, mas no único Homem
qui est benedictus in saecula: que Ele vos proteja dos inimigos domésticos e
das insídias dos falsos irmãos, dando-vos a visão das ambigüidades internas dos
que vos circundam, e a coragem de uma reserva soberana e de solicitude heróica.
Com toda a reverência devida,
Dom Francesco Putti.”
Esta carta aberta pode dar idéia do quanto o novo
pontificado foi desde o início condicionado pela sombra de um continuísmo
decepcionante para os católicos. Antes de tudo, pela confirmação no poder
eclesial de homens que já haviam mostrado propensão a maquinações e compromissos.
Depois, pela insipiência demonstrada em apurar erros e responsabilidades e
encontrar soluções claras diante das gravíssimas pendentes e crônicas, que
direta ou indiretamente foram causa da morte de seu predecessor.
Mas a maior apreensão com o novo pontificado era que atrás
da solicitude aparente em querer agradar gregos e troianos viesse uma nova
forma de culto do homem que alimentasse principalmente o indiferentismo
religioso e o populismo social.
As gravíssimas questões de fé que pesavam sobre o concílio e
os pontificados conciliadores continuavam ignoradas, porque os promotores das
suas reformas continuavam a dominar e a ser promovidos. Caso sintomático foi o
de monsenhor Virgílio Noé, grande inimigo da santa missa tradicional e maçom,
(inscr. em 3/4/61, matr. 43652/21, nome VINO, cf. Chiesa Viva, n. 149), nomeado
Secretário da Congregação do Culto.
Tudo indica que se evitou o remendo e o vinho novo porque
não se queria trocar nem as vestes nem os odres velhos. Preferiam-se estes ao
conteúdo perene, mas sempre novo. (cf. Mt. 9,14)
Como poderiam, nessas condições, remendar e sanar as
gravíssimas rupturas e o deterioramento doutrinal conseqüente do Concílio
Vaticano II e do pontificado de Paulo VI? Era mais fácil continuá-los.
FÁTIMA, 62 ANOS DEPOIS: CARTA A SUA SANTIDADE9
“Santidade, no dia 13 de maio completam 62 anos as aparições
de Fátima, no curso das quais a Virgem Santíssima confiou a Lúcia uma mensagem
na qual estava contido também o 'terceiro segredo'. Este em 1960 deveria ter
sido divulgado segundo o desejo de Nossa Senhora, mas medidas de prudência toda
humana opuseram-se. Decorreram desde então 19 anos. Não parece a vossa
santidade que já é tempo de torná-lo conhecido integralmente ao mundo católico?
“Esperamos ardorosamente que vossa santidade, devoto, de
modo particular, da Santíssima Virgem, queira considerar que o objetivo da
mensagem mariana, qualquer que seja seu conteúdo ou forma, é certamente o bem
do mundo católico e da humanidade e, portanto, das almas. Tornar pública uma mensagem
de aviso quando os fatos estiverem consumados, é reduzir seu proveito para as
almas. Hoje, porém, ainda poderia ser luz e ajuda nesse momento em que,
contrariamente a toda expectativa e previsão, deve-se constatar um progressivo
obscurecimento que há anos vem envolvendo a Igreja em todo o mundo. Não vai
nisso pessimismo: são fatos a documentar essa lamentável realidade.
“Faço este pedido, que não é pessoal, mas de muitos
católicos que veneram a Virgem Santíssima e pensam nas almas, sabendo que agora
resta só confiar em uma decisão pessoal de vossa santidade.
Com toda a deferência devida a vossa santidade. Festa de São
José (ass.) Dom Francesco Putti.”
Segue-se um comentário sobre a enorme desilusão causada pelo
silêncio a que João XXIII condenou o terceiro segredo de Fátima.
“Naqueles dias a imprensa católica, que tinha como certa a
sua divulgação, dividiu-se entre o estupor e a tentativa de justificar essa
deliberação da autoridade na Igreja. Mas as desculpas não poderiam ser
suficientes nem para dissipar a desilusão nem para dirimir perplexidades. Era o
caso de perguntar por que a Mãe do Céu teria acrescentado algo a uma mensagem
se o resto já bastava. Não se estava a confundir, de novo, prudência da Igreja
com insipiência de seus homens? Afinal, com qual senso de responsabilidade
ousava-se impedir uma intervenção celeste a favor das almas e da Igreja se o
terceiro segredo não era mensagem pessoal ao papa?
“Essa hipótese não se justificava porque desde o primeiro
momento Lúcia dissera claramente que o segredo referia-se aos fiéis. De fato,
ao entregá-lo em 1944 ao bispo de Leiria, disse que poderia lê-lo. Este só não
o fez por deferência ao santo padre, mas também, como declarou, porque não
queria nada com segredos. Ora, se o segredo fosse mensagem pessoal ao papa, nem
Lúcia poderia ter-lhe dito que o lesse, nem o bispo poderia tê-lo retido
consigo tantos anos.
“Afinal, deveria ficar secreto até 1960 não para as
autoridades eclesiásticas, mas para divulgação ao povo cristão. Eis que este
povo era o destinatário da parte que completava a mensagem. Qualquer
consideração lógica só fazia aumentar as perplexidades: se a aparição foi
reconhecida oficialmente pela Igreja, por que a sua mensagem não devia ser
revelada por inteiro? Pode um aviso celeste ser desprovido de sabedoria, de
prudência, e ter outro fim senão a salvação dos homens? Censurar o segredo com
o silêncio, equivale a considerar que a argúcia dos homens deve pôr um limite à
inoportunidade de Maria Santíssima. Os homens são capazes de tudo!
“Não seria a primeira vez que homens da Igreja desprezam
avisos celestes. Esse desprezo foi dispensado a muitos que Deus enriquecera de
dons extraordinários para chamar ao bom caminho uma humanidade pecadora. A
lista dessas pessoas perseguidas em vida pelas autoridades da Igreja, mas
declarados santos pela Igreja infalível depois de mortos, é bem longa. Que um
nome recente sirva de exemplo por todos: padre Pio de Pietralcina, a quem
alguns eclesiásticos rebateram os pregos para melhor crucificá-lo, e de quem
hoje se comprovam, sempre mais, as virtudes heróicas.”
Mas, voltando ao silêncio feito sobre o terceiro segredo, em
1963 numerosos jornais começaram a difundir um seu “resumo” que não foi no
começo desmentido pelas autoridades vaticanas. Pelas suas palavras pode-se
compreender por que homens da Igreja resistem sempre a essas mensagens: são
admoestações aos faltosos e infiéis.
O RESUMO APÓCRIFO DO “TERCEIRO SEGREDO”
“Não tema, minha pequena. Sou a Mãe de Deus que te fala e
pede que tornes pública esta mensagem ao mundo inteiro. Fazendo isto
encontrarás fortes resistências. Sê firme na fé e vencerás toda hostilidade.
Ouve e guarda bem o que te digo: — Os homens devem corrigir-se. Com súplicas
humildes devem pedir perdão pelos pecados cometidos e que continuam a cometer.
Pedes que eu te dê um sinal de modo que todos creiam em minhas palavras, ditas
a ti para o gênero humano. Viste o milagre do sol e todos, crentes e descrentes,
camponeses e cidadãos, estudiosos e jornalistas, leigos e sacerdotes, todos
viram. Agora, anuncie em meu nome: — Um grande castigo cairá sobre o gênero
humano inteiro, não hoje nem amanhã, mas na segunda metade do século XX. Já o
havia revelado aos meninos Melania e Maximino em La Salette e hoje repito-o a
ti. A humanidade não melhorou como Deus pedia, mas pecou ainda, pisoteando os
dons que lhe foram oferecidos. Em nenhum lugar do mundo há ordem e Satã reina
sobre as mais altas posições, dirigindo o andamento das coisas. Ele sabe como
penetrar até o vértice da Igreja; Ele conseguirá seduzir a mente dos grandes
cientistas inventores de armas, com as quais será possível destruir em minutos
metade da humanidade. Dominará os poderosos que governam os povos e os induzirá
a acumular grande quantidade de armas.
Se os homens não deixarem de agir mal e não se converterem,
serei forçada a deixar cair o braço de meu Filho. Se os que estão nos vértices,
tanto no mundo como na Igreja, não opuserem resistência a tanto mal, eu pedirei
a Deus Pai que os castigue com os homens, usando a severidade da Sua Justiça,
mais que no dilúvio.
Virá então o tempo dos tempos, e o fim de todos os fins.
Também para a Igreja virão grandes provações: cardeais combaterão cardeais,
bispos estarão contra bispos. Satã estará no meio deles e em Roma haverá
grandes mudanças. O que está podre cairá e não mais retornará. A Igreja será
obscurecida e o mundo invadido pelo terror. Tempo virá em que nenhum
governante, cardeal ou bispo, estará à espera de Quem há de vir para punir
segundo os desígnios do Pai.
Uma grande guerra será desencadeada na segunda metade do
século XX. Fogo e fumo cairão do céu e as águas dos oceanos se transformarão em
vapores e a espuma elevar-se-á submergindo tudo. Milhões e milhões de homens
morrerão de hora em hora e os sobreviventes invejarão os mortos. Haverá
angústia e miséria por todos os lados, ruínas em todos os países.
O tempo está próximo e o abismo se alarga sem esperanças. Os
bons morrerão junto com os maus, os grandes com os humildes, os príncipes da
Igreja com os fiéis e os que governam com seus subordinados. Haverá morte em
todo lugar e pelos erros cometidos os sequazes de Satã dominarão nesses dias o
mundo inteiro.
Por fim, quando os sobreviventes voltarem, gratos, a invocar
a Deus e proclamar Sua glória, Ele será de novo servido como no tempo em que o
mundo não se havia pervertido tanto.
Eu convoco todos os verdadeiros imitadores de meu Filho,
todos os apóstolos dos últimos tempos! O tempo dos tempos está próximo, o fim
dos fins se aproxima. A humanidade deve converter-se e ser chamada à conversão
pelos chefes do mundo e pelos chefes da Igreja. Ai, ai, ai, se a conversão não
vier e tudo restar como está, ou se piorar ainda! Vai minha pequena e proclama
isto. Eu estarei ao teu lado para ajudar-te.”
“O conteúdo deste 'resumo' parece repercutir o que foi dito
ao padre Fuentes (p. 67), onde é repetido o aviso urgente sobre a crise que
estava para afligir a Igreja, e em particular sacerdotes e religiosos, com
grave prejuízo para os fiéis. Sobre esse resumo a revista Lo Specchio (n.º 20,
de 14-5-67) comentava: 'Mesmo aos mais céticos o relatório da pastorzinha
portuguesa demonstra-se, pelo seu conteúdo, de tal modo ligado à realidade do
mundo hodierno que a ninguém consente ficar indiferente.'
“Depois de outros doze anos esse retrato fiel da realidade —
e, devemos especificar, da realidade eclesiástica hodierna —, é mais
impressionante ainda. Dizia Lúcia ao cardeal Ottaviani, que lhe perguntava por
que o segredo devia ser divulgado em 1960: 'Porque tudo será mais claro então'.
Eram as vésperas do Concílio Vaticano II, no qual todos os fermentos
modernistas iriam inchar na Igreja.”
SEGREDO DE LA SALETTE OU DE FÁTIMA?
Sobre o texto desse “resumo” é preciso tecer algumas
considerações, porque contém diversos erros e defeitos. Padre Alonso, em seu
livro sobre o segredo de Fátima, informa que o “resumo” foi publicado pela
primeira vez no semanário alemão Neues Europa de 15 de outubro 1963. Ali era
dito que tal texto fora comunicado por Paulo VI aos chefes de estado Macmillan,
Kennedy e Kruschev, que ficaram impressionados o bastante para antecipar a
assinatura do acordo de cessação das experiências atômicas para agosto daquele
ano. O autor dessa incrível versão seria o escritor alemão Ludwig Emrich.
Tudo isso é pouco plausível, mas a verdadeira objeção a esse
“resumo” está em dizer que foi dado a Lúcia dia 13 de outubro 1917, depois do
milagre do sol, e não no dia 13 de julho 1917, como se pode ver pela mensagem
interrompida. Seria, pois, um erro cronológico, que somado à estrutura
literária diversa do restante da mensagem, indica a inautenticidade desse
“resumo”.
A este ponto padre Alonso escreve: “O texto é uma lamentável
cópia do assim chamado 'Segredo de La Salette', mas ainda mais distorcido,
exagerado e falsificado.” E com essa frase fez um julgamento indireto sobre a
mensagem dada em 19 de setembro de 1846 na montanha de La Salette, aos pastores
Maximino e Melania, que viram Nossa Senhora chorando sobre o destino dos
homens. A aparição foi reconhecida pela Igreja e a mensagem de Melania teve o
imprimatur de bispos. Por essa razão, há que desconfiar do julgamento de padres
que desde então combatem essa mensagem que revelava a mísera decadência de
homens da Igreja já no século passado. Acaso isto não era uma realidade? Pois
bem, a aversão ao segredo o comprovou, tanto para padres como para muitos
bispos. Diz Si si no no: “Também em La Salette a Virgem havia confiado a
pastores uma mensagem sobre a corrupção que prenunciava a apostasia de muitos
homens da Igreja: 'Os padres, ministros de meu Filho, pela vida ruim que levam,
pelas suas irreverências, pela falta de piedade ao celebrar os santos
mistérios, pelo amor ao dinheiro, às honrarias e prazeres, os padres transformaram-se
em cloacas de impurezas. (...) Muitos abandonarão a fé e grande será o número
dos sacerdotes e religiosos que se separarão da religião verdadeira, entre
estes haverá também bispos. (...) Será o tempo das trevas; a Igreja terá uma
crise espantosa (...).
“Também diante da mensagem de La Salette os homens da Igreja
comportaram-se com a mesma incoerência de agora: a aparição foi oficialmente
reconhecida mas procurou-se proibir a divulgação da mensagem... anticlerical de
Nossa Senhora. Não se quis refletir que ela veio prevenir os fiéis contra os
maus padres, os mercenários, não os bons. O aviso teria afastado os fiéis dos
inimigos internos da Igreja, impedindo que dela se separassem, precipitando-se
junto aos maus pastores.
“Sem dúvida a denúncia materna foi clara, implacável, sem
véus ou diplomacias. Mas os bons pastores nada podiam temer dela. Eram os maus
a ficar desmascarados. Por que então procurou-se silenciar a voz da Santa Mãe
que avisa os filhos de perigo? Proibir sua divulgação mostrou a vontade de
cancelar a ajuda de Maria às almas.
“Consideremos o desastre eclesial que vivemos há 20 anos.
Sacerdotes apóstatas que ocupam cátedras em universidades eclesiásticas e
seminários, ministrando o veneno das heresias a jovens mentes indefesas. Sacerdotes
apóstatas que dirigem ou colaboram em revistas ditas católicas e outras mais,
divulgando doutrinas errôneas ou imorais a fiéis indefesos. Párocos e
confessores que não iluminam nem guiam, mas são poços tenebrosos para as almas
a eles confiadas. Bispos e conferências episcopais que aprovam documentos
abertos e comportamentos destoantes ou contrários à moral.
“De tudo isto periódicos como o nosso têm informado com
ampla documentação, aliás, inútil, porque a dolorosa realidade está à vista de
qualquer homem honesto. Diante de tal desastre eclesial e considerando a ruína
das almas, é justo perguntar: seria imprudência divulgar a mensagem de Nossa
Senhora que nos punha em guarda contra o que ainda estava por vir mas hoje é
atual? Ou a imprudência foi impedir a divulgação do aviso da geral apostasia?
“Tudo indica que infelizmente a mesma atitude repete-se com
o terceiro segredo de Fátima, isto é, com a presunção de ser mais prudente que
o Céu, impediu-se que ecoasse no mundo católico aquele alarme que teria ajudado
tantas almas ignorantes dos perigos, mas confiantes nas aparências e fábulas, a não seguir os
falsos pastores na ruína.” (assinado Franciscus)
Feitas estas considerações sobre o segredo de La Salette e o
“resumo” apócrifo do terceiro segredo de Fátima, que copia defeituosamente o
primeiro, autêntico, vejamos se essa iniciativa foi uma reles falsificação, ou
se encerra um aspecto positivo.
Pois bem, embora inautêntico, não contém nada inaceitável
diante da fé, e copiando a mensagem de La Salette, vem lembrar esta que foi
culposamente esquecida. Não só, mas lembra também que as mensagens celestes,
apesar da diversidade de linguagem e conteúdo, não se contradizem, mas
sucedem-se em harmonia.
E isto ficará claro quando, para o triunfo de Maria Virgem,
todas as suas mensagens aos homens vierem à luz do dia, mostrando quanto se
perdeu por não tê-las recebido, gratos e confiantes, e nem tê-las estudado e defendido
pelos tesouros que são.
FATOS ACERCA DO SEGREDO DE LA SALETTE10
“No fim da mensagem dada por Nossa Senhora da montanha de La
Salette, foi dito aos dois pastorzinhos: 'Bem, meus filhos, fareis conhecer
isto a todo o meu povo'. Começou então uma verdadeira perseguição aos pequenos
mensageiros desse novo sinal de contradição. A vidente Melania escreveria ao
padre Combe (1903): 'Os bispos que consideraram o segredo dirigido a si, foram
os grandes inimigos desta mensagem de misericórdia, justamente como os sumos
sacerdotes que condenaram à morte o divino Salvador.' De fato, tinham razão em
reagir, o segredo não fazia mais que refletir suas vidas desviadas.
“Assim foi com monsenhor Ginoulhiac, que substituiu o
venerável bispo de Bruillard na diocese de Grenoble. Para livrar-se da incômoda
vidente, enviou-a a um convento de clausura em Darlington, na Inglaterra, com a
ameaça de excomunhão se voltasse à diocese. Em 1860 Melania volta, mas teve que
exilar-se.
“Não muito depois o bispo enlouquece e morre num manicômio.
“Seu sucessor é o monsenhor Fava, que acalenta grandes
planos para o santuário construído em La Salette, meta de grandes
peregrinações, mas acirrado inimigo da mensagem, razão pela qual faz pressões
sobre Melania, que vai procurar no sul da Itália, cônscio de que será recebida
por Leão XIII. Teme que a mensagem prejudique seus projetos.
“Passados poucos anos foi encontrado morto em seu quarto.
Estava estendido no chão, nu, olhos esbugalhados e punhos crispados.
“Quanto ao bispo Gilbert de Amiens, e depois de Bordeaux
(que havia dito: 'O segredo de La Salette não é nada mais que uma trama
anti-religiosa feita de exageros e mentiras') anos depois de tal acusação, em
1889, foi igualmente encontrado morto no chão de seu quarto e durante os funerais
o féretro desabou do catafalco.
“Outro famoso inimigo da mensagem foi o arcebispo de Paris,
Darboy, que interrogou pessoalmente Maximino, pressionando-o para que revelasse
o segredo, denúncia clara da maçonaria e das tramas urdidas pelo imperador
Napoleão III. Não obtendo o que queria, gritara ao jovem: 'As palavras de tua
bela Senhora são cheias de estupidez, como estúpido deve ser o teu segredo.'
Maximino replicara: 'Ele é tão veraz, e tão certo que eu vi a bela Senhora,
como dentro de três anos vossa excelência será fuzilado'.”
Esse prelado já em 1865 havia sido admoestado por Pio IX
pelo seu aceso galicanismo. Anos depois, no Concílio Vaticano I, alinha-se ao
famoso monsenhor Dupanloup contra Pio IX, desertando Roma nas vésperas da
definição do dogma sobre a infalibilidade papal. Volta à França imperial, onde
parecia impossível que em pouco tempo iria desencadear-se a fúria
revolucionária da “Comune”. Foi assim que em 24 de maio 1871 Paris presenciava
com horror o fuzilamento de seu arcebispo pelos comunardos rebeldes11.
Como se vê, os inimigos do segredo de La Salette de certo
modo também eram adversários da verdade, da devoção católica e opositores do
papa. Em contrapartida, aderiram contritos e gratos à palavra dada pela Virgem
Mãe, Pio IX, Leão XIII e monsenhor de Bruillard12.
Também o pároco Perrin, já no dia seguinte à aparição e
antes mesmo de interrogar os meninos, fazia uma comovida homilia para chamar
seu povo à conversão e à penitência.
O papa Pio IX, ao ler o segredo diante dos padres franceses
que o trouxeram ao Vaticano, exclamou: “Oh, isto é muito sério!” E afirmou que
meditaria naquela mesma noite sobre mensagem tão importante. Na manhã seguinte
os padres receberam esta nota de Pio IX: “O papa ficou convencido da origem
celeste do segredo. Ele o terá em conta para as ações que deverá empreender.
Abençoa os meninos.”
Igualmente o papa Leão XIII acolheu Melania em Roma e
ordenou que lhe dessem toda a assistência a fim de que escrevesse com toda a
serenidade a “regra” da ordem religiosa desejada por Maria Santíssima.
O papa Pio X afetuosamente chamou Melania Calvat de “nossa
santa.” Os bispos italianos que a hospedaram por diversos anos, dando
imprimatur ao segredo, monsenhor Petagna de Castellamare e monsenhor Zola de
Lecce, morreram em “odor de santidade” e tiveram iniciadas, ambos, causas de
beatificação.
O segredo de La Salette foi censurado e perseguido pelas
suas profecias apocalípticas. Teriam feito o mesmo com o apocalipse! Quanto à
mensagem de Fátima, dada no setuagésimo ano da mensagem de La Salette, deve
concordar e continuá-la como aviso apocalíptico. Se hoje não é fácil entendê-la
toda, virá o dia em que não se entenderá como puderam os homens da Igreja
censurá-las e especialmente o terceiro segredo de Fátima, que certamente está
ligado a La Salette, sendo o completamento das trevas, crises e perseguições
anunciadas.
Lembremos então algumas passagens da mensagem dada a
Melania, que poderia ser conhecida, como diz o texto, desde 1858. Isto não
ocorreu pelos obstáculos postos pelos chefes religiosos que exilaram a
pastorzinha. Em 1858 Nossa Senhora aparecia em Lourdes, e que triunfo se essa
vinda tivesse sido acolhida pela Igreja peregrinante preparada pela mensagem de
La Salette! Mas...
“Os chefes, os guias do povo de Deus, relaxaram a oração e a
penitência; o demônio obscureceu suas inteligências; transformaram-se naquelas
estrelas errantes que o velho diabo arrastará com a cauda para fazê-los morrer.
“No ano 1864, Lúcifer e um grande número de demônios serão
soltos no inferno e abolirão pouco a pouco a fé, também nas pessoas consagradas
a Deus (...) diversas casas religiosas perderão inteiramente a fé e perderão
muitas almas. Os livros ruins abundarão na terra e os espíritos das trevas
difundirão um relaxamento universal por tudo que respeita o serviço de Deus
(...) será pregado um outro Evangelho (...) haverá prodígios por toda parte
porque apagou-se a verdadeira fé e uma falsa luz ilumina o mundo.
“Desgraça aos príncipes da Igreja que se ocuparão em
amontoar riquezas e salvaguardar a própria autoridade para dominar com orgulho.
O Vigário de Meu Filho sofrerá muito porque por algum tempo a Igreja será
abandonada a grandes perseguições: será o Tempo das Trevas; a Igreja sofrerá
uma crise horrenda.
“Os governantes terão todos o mesmo projeto, que será abolir
e fazer desaparecer todos os princípios religiosos para substituí-los pelo
materialismo, ateísmo, espiritismo e todo o tipo de vícios. No ano 1865 será
vista a abominação nos lugares santos; nos conventos as flores da Igreja
estarão putrefatas e o demônio se tornará como que o rei dos corações.
“Roma perderá a fé e se transformará na sede do anticristo.
A Igreja será eclipsada e o mundo estará na consternação. Mais eis Enoque e
Elias cheios de Espírito Santo (as duas testemunhas do Apocalipse) (...) Roma
pagã desaparecerá (...) É tempo, o sol se obscurece; só a fé viverá. Eis o
tempo, o abismo se abre. Eis o rei das trevas.
Eis a besta, o pretenso salvador do mundo, e seus súditos.”
São passagens do Apocalipse de São João. Portanto, em La Salette
fomos advertidos de que estávamos para entrar nessa época de trevas espirituais
e delitos materiais. Quanto às datas, em 28 de setembro de 1864 Karl Marx
fundou em Londres a 1.ª Internacional com o fim de instaurar a expansão e
domínio do comunismo no mundo. O aviso de 1917 em Fátima vinha completar esse
quadro com a vitória armada.
No livro Le secret de La Salette (Ed. Stella, 1981) Raoul
Auclair levanta a hipótese de que Nossa Senhora houvesse aludido aos anos '58,
64 e 65', que se aplicam bem ao nosso século, correspondendo ao fim do
pontificado de Pio XII, ao ano das decisões conciliares, e 1965 à proclamação
de erros pela autoridade da Igreja, que pode ser visto como a abertura do poço
do abismo. De fato, a estrela é o bispo, com a chave é o bispo de Roma, o papa,
e pelo que saiu do poço pela liberdade religiosa, vimos a descrição no início
deste livro do papa Gregório XVI. O que os sábios papas vêem, Nossa Senhora
confirma se é importante para a salvação das almas. Portanto, se já em La
Salette é profetizada a falência das estrelas episcopais e a abertura
apocalíptica, poderia não haver confirmação disso no terceiro segredo de
Fátima, dado para ser conhecido cinco anos antes da conclusão espantosa do
Concílio Vaticano II?
CARTA À SUA SANTIDADE13
“Santidade,
O vosso predecessor, João XXIII, convocou o Concílio sem
dar-se conta de que acendia um pavio ligado a uma bomba. Mostrou-se, porém,
subjetivamente certo de ter sido inspirado por Deus. .
“Também o vosso outro predecessor, Paulo VI, deu orientações
sem dar-se conta da demolição que teria provocado (por ex., com a reforma
litúrgica). Mas, mostrava-se também subjetivamente certo de ser inspirado por
Deus, a ponto de não tolerar críticas.
“Quando vós assumistes os nomes de João e Paulo, pensamos
que bem cedo perceberíeis as falhas de vossos predecessores. Não o fazíamos ao
acaso, mas considerando vossa intervenção no Sínodo de 1974, a epopéia de Nova
Huta e alguns juízos externados antes da vossa eleição ao pontificado e ouvidos
por pessoas dignas de fé. Tudo autorizava a pôr em vós essa esperança.
“Em seguida, porém, verificamos que vossa santidade, depois
de ter confirmado em seus cargos praticamente todos os responsáveis pelo
desgoverno de vosso predecessor, decidistes também fazer algumas promoções
desconcertantes. É evidente que vossos colegas do episcopado polonês não tinham
idéias claras sobre quem fosse um Casaroli; vossas estadas na Itália não vos
esclareceram, como trata com os partidários do laicismo, esses falsos cristãos
italianos, um Silvestrini; vossos amigos romanos não vos informaram da gestão
omissa como assistente da Ação Católica Italiana, de um Marco C'é; nem que
Martini deu cobertura a um ensinamento errôneo quando dirigiu o Instituto
Bíblico; nem que Caprio era muito discutível como administrador; nem que era
enorme a responsabilidade de Jadot no desastre católico dos Estados Unidos; nem
que Poupard dera um péssimo exemplo na Secretaria de Estado (e também em
Paris); e que Etchegaray, à testa da diocese de Marselha, não merecia prêmios,
bem o contrário...
“Evidentemente não percebíeis que as conseqüências que estas
promoções teriam provocado assim como não percebestes o significado de outras
nomeações que fizestes. Do mesmo modo parece que não avaliais as conseqüências
de elogios feitos a cardeais demolidores do apostolado católico no Brasil, como
sejam Lorscheider, Arns, Brandão Vilela etc; ao cardeal Marty, um dos maiores
responsáveis pelo olvido que a França revela à sua origem católica; ao cardeal
Garrone e até a seu subsecretário Marchisano, dos quais, como membros da
Congregação para a Educação antes de vossa eleição, devíeis conhecer a obra ...
(de demolição do seminários).
“Exultamos quando vos ouvimos acusar a teologia da
libertação, convocar à disciplina da veste eclesiástica, ao celibato sacerdotal
e ao culto eucarístico e mariano, ao ensinamento de Pio XI e Pio XII, e ao
critério soberano de conformidade à tradição. Quando, porém, em uma entrevista
respondestes sobre as ações necessárias para o governo da Igreja, com respeito
a questões já estudadas pelos vossos discatérios e que pedem a presença
vigilante do papa, afirmastes que as vossas viagens são inspiradas pelo
Espírito Santo.
“Os fatos, porém mostram que nada mudou para melhor na
América Latina, depois da viagem a Puebla. Nem nos Estados Unidos, depois da
vossa visita; nem na França, onde, com vossa presença, tantas liturgias
dessacralizantes ficaram como que endossadas; nem no católico Brasil, onde
vossas palavras foram imprudentemente subvertidas.
“Fala-se agora de outras cinco grandes viagens apostólicas
que distrairão ainda mais vossa necessária atenção de Roma, para o governo da
Cúria Romana. É de Roma que parte o bem da Igreja, ou o mal, pelo visto ninguém
vos informa que devido às vossas ausências as coisas vão ainda pior que
antes... Mas, como seria possível um saneamento da Igreja sem o saneamento da
Cúria?
“Por exemplo: vós não tivestes tempo, infelizmente, para
apurar que nas vossas universidades pontifícias em Roma se ensinam heresias e
imoralidades. E como poderíeis seguir o que é propagado pela Rádio Vaticana nas
diferentes línguas, ou como são administrados o Osservatore Romano, o Avvenire
e outros periódicos como Família Cristã, Mensageiro de Santo Antônio etc., além
de várias editoras que ainda passam por católicas?
“Não parece ser de vosso conhecimento nem mesmo a
permissividade nos tribunais eclesiásticos, denunciada recentemente e de
público pelo cardeal Felici (o enorme aumento de anulações matrimoniais, que
foi chamado divórcio eclesiástico). É muito provável também que não seja do
vosso conhecimento que o cardeal Willebrands tomou a defesa de Schillebeecks,
num processo iniciado com a vossa autorização para julgar esse teólogo. A mesma
coisa com relação a outros cardeais que endossam publicamente as heresias de
Boff. Quanto a Karl Rahner, desde 1973 é acusado de heresias pelo cardeal Siri,
sem resultado... Não é, pois, uma simples suposição considerar que vossas
contínuas viagens e audiências vos impedem de interessar-vos por questões de
enorme gravidade para a fé.
“Contudo, o que nos deixa mais atônitos, é vermos que depois
de dois anos que sois o bispo de Roma, não sabeis ainda quem seja o cardeal
Poletti, vosso vigário da Urbe. Neste jornal desmascaramos a iníqua tentativa de
vos fazer crer na integridade doutrinal desse cardeal, que há anos protege
professores que ensinam heresias e imoralidades. Santidade, os elogios
dirigidos por vós e esse cardeal só podem fundar-se na ignorância dos fatos por
nós insistentemente denunciados. [... segue-se a lista das denúncias.]
“Santidade! É tempo de pôr fim aos equívocos: nós expusemos
acusações de extrema gravidade sobre o tipo de ensino ministrado na
Universidade Lateranense; esse escândalo não pode continuar acobertado.
Assumimos a plena responsabilidade das nossas acusações, porque há nisso um
crime. Portanto, ou os criminosos somos nós, que acusamos, ou então são os
hereges contumazes e, ainda mais, seus protetores. Pedimos, portanto, a vossa
santidade fazer instaurar a respeito um regular processo público, para que
venha à luz a verdade, que não somente nós buscamos com todo o coração, mas
toda a Igreja, que pela sua natureza é contra o erro.
“Com todo o respeito que vos é devido, somos obrigados em
consciência a dizer-vos que providenciar para restabelecer a ortodoxia é
gravíssimo dever ao qual não vos podeis subtrair, e apesar de vossos
informantes tudo fazerem para vos distrair.
“Santidade, a sinceridade e a clareza com que nos dirigimos
a vós, não querem ser, nem podem ser falta de reverência para com a vossa
pessoa, embora os interessados assim o insinuem. A sinceridade e a clareza
tornam-se necessárias pela dolorosa situação em que jaz a Igreja. Em tais
circunstâncias, o silêncio e a omissão podem advir somente da falta de fé. Com
toda a deferência devida a vossa santidade, [ass.] dom Francesco Putti.”
Esta carta objetiva é também concisa nas acusações, enquanto
se limita ao que acontece em Roma e no Próprio Vaticano. Ora, quem perde o
controle da própria casa não demonstra poder exercitar sua autoridade em outras
partes. Esse periódico, por deferência a João Paulo II, fala sempre que estão
enganando o papa. Mas, é incontestável que os acusados, por agirem contra a fé,
são sistematicamente elogiados e promovidos. E os acusadores são isolados e
esquecidos. Se os cardeais feitos no Consistório de 1980 eram em grande parte
suspeitos demolidores, nos anos seguintes nada mudou senão para pior. Os
demolidores da fé teriam algum poder se este não lhes fosse dado do alto? Não!
Portanto, quem detém o maior poder tem a maior responsabilidade na
autodemolição da Igreja.
JOÃO PAULO II DIANTE DO ABORTO
Não resta dúvida que João Paulo II sempre falou, e nas mais
diversas línguas, da sacralidade da vida desde os seus albores e, portanto,
contra o crime e pecado do aborto que suprime a vida no seio materno. Desse
pecado, pediria depois que Nossa Senhora livrasse os homens. Mas, como foi
justamente no seu pontificado que o povo italiano foi chamado às urnas para
votar sobre esta questão, seria justo saber se o bispo de Roma juntou, às
palavras, ações eficazes para evitar que a ofensa ao Criador e transgressão à
Sua Lei pudessem ser objeto de escolha para tornar-se lei civil.
Para isto há que rememorar brevemente alguns fatos.
Durante o tempo de Paulo VI as forças anticatólicas
cresceram de tal modo na Itália, que toda ordem jurídica e moral, na aparência
ainda cristã, estava ameaçada. O partido Democrata Cristão, que recebia a
maioria dos votos católicos, estava tão permeado de idéias liberais e progressistas
que, embora majoritário, não constituía uma barreira contra a investida laica e
socialista. Além disso, o Partido Comunista Italiano, não era o maior do
ocidente como continuava a crescer às custas de defecções no campo católico.
Ora, esse processo paulatino tornou-se explosivo depois de 1968, quando o
espírito revolucionário passou a querer tudo e logo. Manifestava-se com
violência através das Brigadas Vermelhas (em boa parte de extração católica), e
de modo violento através dos radicais que faziam então seu ingresso no
Parlamento.
A primeira batalha não foi parlamentar, porém, através de um
referendo popular sobre o divórcio. Nessa campanha o partido DC (Democrata
Cristão), estava, contra a vontade, em companhia do partido de direita contra
todos os outros partidos. Não houve, por isto, uma convicta defesa de
princípios. Seguiu-se a inevitável vitória do divórcio.
Depois dessa primeira derrocada dos princípios católicos da
família, que deu aos divorcistas quase 60% dos votos italianos, estavam abertas
as portas para as seguintes “conquistas sociais”: as do aborto, do cancelamento
da concordata com a Igreja, da eutanásia, da educação sexual nas escolas, etc.
Ora, como se poderia imaginar, depois da derrota no
referendo sobre o divórcio o partido DC, já pouco propenso à luta e menos ainda
a cruzadas por princípios, preferiu conduzir essas questões através de
conchavos parlamentares, tanto mais porque estava sendo ventilado um
“compromisso histórico” com os comunistas.
Eis que os equilibristas demo-cristãos, capitaneados pelos
mestres em compromisso, Aldo Moro, Andreotti e outros menores, concertaram a
questão no próprio parlamento, para evitar crise do governo (!).
Foi assim que no dia 22 de maio de 1978 passava a lei 194,
que introduziu o aborto na legislação italiana. Ironicamente, iriam assiná-la o
presidente Leone e o primeiro-ministro Andreotti e seu gabinete, todos
demo-cristãos, e o faziam para dar continuidade ao governo. Mas a realidade
mostrou-se diversa. O líder Aldo Moro já estava nas mãos das Brigadas
Vermelhas, que o liqüidaram sem piedade. O presidente Leone já tinha seus dias
contados na presidência, que deixou devido a vários escândalos. O dúbio Andreotti
já devia cogitar da formação de outro governo de coalizão, pois aquele (do
aborto) cedo abortou.
A respeitabilidade aparente dessa classe política que tudo
justificava para reter o poder, não foi contestada por nenhum alto prelado.
Somente poucos e isolados lembraram a ofensa à Lei divina e só dom Putti
lembrou, em Si si no no, a excomunhão automática prevista para os católicos
colaboracionistas do aborto.
Resistência legal a essa lei veio, porém, de alguns
tribunais que levantavam a questão de inconstitucionalidade de uma norma que
aprovava uma ação que dias antes era considerada delito (pela mesma
constituição). Também nessa ocasião foi Andreotti quem encaminhou o caso para
que a procuradoria do Estado defendesse a lei homicida diante da Corte Constitucional.
Enquanto isto, Tina Anselmi, nova ministra da Saúde, organizava as estruturas
sanitárias para levar a termo o aborto estatal aprovado. Eram os demo-cristãos
empenhados na defesa do aborto por vias governamentais.
Nada disso, porém, alterou a simpatia de João Paulo II pelo
político Andreotti, que escreveu um livro sobre sua relação com os papas
recentes. Ele agora enriquecia sua coleção de memórias, com as fotos que os
repórteres fazem nas ocasiões em que passeia com João Paulo II, que, confidencial
e sorridente, o conduz pelo braço. Teriam do papa um pouco dessa atenção os
católicos que se batiam contra o aborto?
RESISTÊNCIA CATÓLICA AO ABORTO LEGALIZADO
Como se viu, a oposição demo-cristã foi de natureza
parlamentar e de tênue consistência. Quando a lei 194 foi votada, havia
diversos parlamentares da DC ausentes. Depois que a lei passou, então tudo foi
considerado matéria resolvida. Se algo veio comprometer essa passividade
pusilânime, foi do campo oposto dos radicais, que consideravam a lei insuficiente.
A legislação italiana prevê que se dentro de quatro meses
após a aprovação pelo Parlamento de uma nova lei um grupo apresentar uma
petição de referendo popular revocatório, subscrita por mais de 500 mil
eleitores, a questão, se constitucional, deverá ser submetida a voto popular.
Isto só poderia ser evitado se o parlamento, nesse meio tempo, introduzisse
modificações substanciais na lei que fizessem cair as razões da contestação.
Ora, embora os católicos na Itália ainda sejam maioria, pelo
menos nas estatísticas, não se pode dizer que foram guiados para opor
resistência a essa lei iníqua. Naqueles dias os esforços foram canalizados para
uma iniciativa de tutela a ajuda à maternidade, que, embora pudesse ser
louvável em si, desviava a atenção do problema principal. Mesmo assim essa
campanha, sem fazer alarido e fugindo às possíveis contestações de rua,
recolheu bem mais de 500 mil assinaturas em brevíssimo tempo. Mas a consciência
católica naquele 1979 ainda não estava anestesiada a ponto de esconder-se atrás
de tais panacéias, ou das palavras e conchavos dos chefes demissionários. Houve
duas iniciativas católicas no sentido de uma lei ab-rogativa. Aqui
mencionaremos a da Aliança Católica, grupo de católicos tradicionais que
formaram a “Aliança para a Vida” com o fim de combater o aborto, apresentando
uma lei sobre a matéria. Para recolher o meio milhão de assinaturas, porém,
solicitaram o apoio dos bispos italianos e eventualmente do papa. A resposta
indireta veio através da reação hostil da imprensa católica, que acusava a
iniciativa de ser de direita. Quanto às razões contrárias dos bispos, ficou a
incógnita, porque nem 1 % deles dignou-se responder, embora não houvesse
nenhuma outra solução em vista.
Quanto a João Paulo II, sabedor dessa iniciativa, que foi
acompanhada por um congresso romano das associações católicas de defesa da vida
de diversos países, dirigiu-se a estes na audiência pública na praça de São
Pedro com palavras genéricas em francês, e recebeu os dirigentes da Aliança
Católica numa audiência privada para dizer com grande afabilidade que a questão
estava nas mãos dos bispos italianos. Confortado pela atenção do papa, mas
neutralizado por sua evasiva, esse grupo ficou confundido e acabou por
dividir-se sobre o que se seguiria.
Decorreram dois anos de imobilismo católico, mas não dos
radicais abortistas. Estes continuavam trabalhando para que houvesse um
referendo que levasse a uma lei abortista totalmente libertária e aplicável
também a meninas. Foi quando esse projeto ganhou corpo, e a decisão das urnas
tornou-se inevitável, que uma iniciativa de sinal contrário e apoiada
indiretamente pela DC e pelo episcopado veio à luz. Mas curiosamente a proposta
já nascia dividida e ambígua na origem. De fato, foram apresentados dois
projetos de lei revogatórios parciais da lei 194: o primeiro, na modalidade
considerada máxima possível, isto é, admitindo somente a intervenção de aborto
terapêutico; o segundo, na modalidade mínima, admitindo o aborto voluntário e
direto por motivos terapêuticos e concedendo a distribuição gratuita a menores
de preservativos de qualquer tipo.
Como se vê, dois projetos de lei possibilistas, pelos quais
os católicos seriam levados a adaptar a lei natural e os princípios morais às
leis permissivas. Diante dessa manobra, feita em detrimento da Lei de Deus, da
defesa da vida e da preservação dos princípios de uma sociedade cristã, foram
poucos os opositores. Entre estes, manifestaram pública desaprovação a “Europa
Pro Vita” e a “Federação Mundial de Médicos para o Respeito da Vida Humana.”
Mas a CEI, Conferência dos Bispos Italianos, havia apoiado, senão promovido a
campanha para conseguir que os católicos votassem a favor dessas propostas. E
isto apesar da instrução da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, de 18/11/1974,
dizer: “Não é lícito participar de uma campanha em favor do aborto nem dar o
sufrágio do voto a ela, nem colaborar com sua aplicação.”
Foi assim, que com uma “comédia de enganos” orquestrada como
única saída política viável pelos políticos de DC e da CEI, os católicos foram
convidados a votar um “miniaborto” para evitar o maxiaborto radical. Até a
abstenção desse voto foi hostilizada.
Nesse meio tempo, a Corte Constitucional houve por bem
reprovar a proposta “máxima” apresentada pelos demo-cristãos, tornando
definitivamente obrigatório o aborto terapêutico, que ainda em 1978 era crime,
e com isto a escolha do eleitor dividia-se em quatro: votar a proposta radical
de aborto total; votar a proposta mista DC-CEI de aborto limitado; votar pelo
não a estes projetos, mantendo o aborto parlamentar “moderado” da lei 194; e
abster-se de votar, o que se obtivesse apoio maciço indicaria a nulidade do
referendo.
Dir-se-ia que a única opção católica era esta última. Mas
assim não pensavam os bispos, nem uma profusão de católicos entre os quais até
uma parte da mencionada Aliança Católica. E a confusão reinante não era de modo
algum esclarecida por João Paulo II, que fortemente, embora indiretamente, fez
a campanha pelo aborto, versão mínima, defendida pelos bispos como mal menor.
Na audiência com o papa dia 13 de maio de 1981, um conhecido
expoente católico francês exprimia a João Paulo II sua perplexidade diante
dessa rendição moral dos bispos italianos às pressões do mundo. A resposta do
bispo de Roma foi para explicar que a ele não competia interferir sobre a
decisão dos bispos. Era, pois, uma questão da lei de Deus, que nem o supremo
pontífice da Igreja ousava enfrentar, para evitar o rancor dos bispos e o ódio
do mundo.
Não decorreram nem duas horas, e na praça de São Pedro em
Roma ocorreu o sacrílego atentado à vida do papa.
A emoção do mundo inteiro foi enorme. Os católicos ficaram
abalados por aquele crime horrendo. Alguém pensou que seria justo suspender a
campanha política pelo referendo que se realizaria dia 17 de maio. Mas apesar
da grande comoção tudo prosseguiu de modo regular. Nas urnas foram reprovados
tanto o aborto radical como o aborto CEI-DC. Venceu o aborto parlamentar. O
gravíssimo atentado não influiu.
TREZE DE MAIO — 1917 E 198114
“Dia 13 de maio de 1917 a Virgem Santíssima apareceu pela
primeira vez em Fátima, onde confiaria a Lúcia uma mensagem em três partes para
o nosso tempo. Duas foram conhecidas anos após. A terceira deveria ser revelada
em 1960, porque então seria mais clara.
“João XXIII leu esse terceiro segredo, mas não permitiu sua
divulgação apesar da febril espera do mundo. O motivo dessa decisão, à luz dos
eventos que desde então se sucederam em ritmo frenético, foi-se tornando sempre
mais claro: era uma advertência aos eclesiásticos e à humanidade prenunciando
provações e perseguições para a Igreja se os bispos, e por conseqüência o
clero, não fossem fiéis à sua missão; e ulteriores castigos para a humanidade
se ela continuar em sua perversão moral e religiosa.
“Ora, desde 1960 a degradação da Igreja e da humanidade
aumenta vertiginosamente. Os infiltrados maçons trabalham há anos na demolição
da Igreja, como revelam inúmeros documentos, mas, sobretudo, os fatos sempre
mais ruinosos que resultam da desastrosa reforma pós-conciliar, o último dos
quais foi o apoio dado pelos bispos ao referendo miniabortista.
“A esse respeito, sua santidade João Paulo II, que parece
ter ficado surpreso por haver sido enganado, achou que não devia intervir, para
não desautorizar a CEI e dividir os bispos italianos. Como se fosse possível
manter uma unidade à custa da verdade, ou tocar a essência da fé e da moral,
sem dividir os católicos.
“Mas, o panorama de todo o mundo católico é desolador. A
Igreja na França, Bélgica, Holanda, América Latina, EUA, Canadá, etc., dá um
espetáculo da incrível degeneração orquestrada e dirigida festivamente pelas
diversas conferências episcopais nacionais. São os frutos amargos da
colegialidade mal-entendida e pior aplicada a partir do Concílio Vaticano II.
“As conferências episcopais nacionais revelaram-se, em quase
todos os lugares, centros de poder através dos quais infiltrações maçônicas
podem manobrar a vida da Igreja, condicionando até o papa.
“A Igreja, obscurecida pela fumaça de Satã, deixa de ser sinal
luminoso para os povos (influência política não significa influência
religiosa), as trevas do mundo se tornam mais densas, a redenção é recusada, o
príncipe deste mundo reina e os ministros da redenção não mais o enfrentam.
“Eis que as provações e perseguições prenunciadas são sempre
mais presentes e a humanidade sempre mais abandonada à sua desordem espiritual
que reclama castigos: Quos Deus vult perdere amentat15. Esses sinais são já
visíveis.
“Uma infâmia inconcebível — No dia 13 de maio de 1981 um evento
inaudito o mundo: o papa foi vítima de um atentado que por pouco não foi
mortal. O gesto sacrílego provoca horror e aflição, pois a escalada da
violência atingiu até a sagrada pessoa do vigário de Cristo.
“Poucos dias antes o santo padre havia dirigido palavras de
estranho pressentimento aos novos recrutas da guarda suíça. Também monsenhor
Deskur, polonês amigo do papa, havia recentemente manifestado seus temores ao
padre Virgílio Levi (cf. L'Osservatore Romano, 15 de maio de 1981, p. 5).
“Tudo parece indicar um complô internacional. O autor do
atentado não é um exaltado. Desde o início revela a frieza de killer
profissional. As investigações orientam-se imediatamente para a hipótese do
complô pelo cuidado com que foi escolhido o assassino: condenado à morte na
Turquia, evadido misteriosamente de uma superprisão, graças a altas
cumplicidades, munido de passaporte regular emitido pela polícia turca e
largamente subvencionado a ponto de viajar por dois anos e com luxo por nove
países, o killer tinha tudo a ganhar e nada a perder com o sacrílego gesto. A
pior hipótese seria a prisão perpétua na Itália, em vez da pena de morte na
Turquia, país com o qual a Itália não tem acordo de extradição.
“Quem tinha interesse em eliminar o Papa? O pensamento corre
para os problemas da Polônia católica (vítima do comunismo 'espalhado pela
Rússia', flagelo prenunciado em Fátima) que busca, para sua desesperada
resistência, apoio no papa polonês. No n.º 10, ano VI, de 1980, publicamos o
artigo ‘A KGB contra João Paulo II’ no qual se reproduzia a informação do
Centre Européen d'Information de que a KGB (serviço secreto soviético) armava
um complô para assassinar o papa (mais tarde a pista búlgara o confirmou).
“Mas a outra hipótese é que os mandantes são dos ambientes
maçons, cuja condenação voltou a ser confirmada recentemente pela Sagrada
Congregação da Fé, por vontade do papa e desagrado dos que na Revista Maçônica
de julho 1978 fizeram o elogio fúnebre de Paulo VI: 'Que fez cair a condenação
de Clemente XII e sucessores.'
“Que a Maçonaria tem numerosas infiltrações na Cúria Romana
e especialmente na Secretaria de Estado, é notório. Ao prefeito da Sagrada
Congregação para a Doutrina da Fé, cardeal Seper, foi fornecida uma lista de
eclesiásticos maçons, com a respectiva documentação, por um eminentíssimo
cardeal, ainda no tempo de Paulo VI. Infelizmente, (ver cartas à suas
santidades), nem com João Paulo I, nem com o atual pontífice, os maçons
infiltrados nos altos escalões da hierarquia eclesiástica foram removidos (ao
contrário, como se viu).
“A inesperada morte de João Paulo I permanece um denso
mistério, e foi em vão que de diversas partes fizeram-se pedidos de autópsia.
Consta que Karol Wojtyla, apenas eleito papa, teria mandado remover de seus
aposentos pesadas tapeçarias que escondiam microfones. Sabe-se também que se
cercou de pessoal polonês de sua confiança, a começar pelas irmãs, que cuidam
da cozinha.
“Mesmo assim, há não muito tempo circulou nos ambientes
próximos ao papa que este havia escapado a grave perigo, no Vaticano e também
em Castel Gandolfo. E eis que justamente agora, quando no mundo político se
fala da ligação entre o terrorismo e a maçonaria, um terrorista atenta contra o
santo padre.
“Seria a terceira hipótese: o atentado como resultado do
entendimento entre a KGB e a maçonaria internacional.
[Nota do autor: no mesmo número, à p. 3, faz-se notar como o
segredo de La Salette previne contra o complô perpetrado contra a Igreja e o
papa pela maçonaria, sempre denunciada pelas autoridades da Igreja.]
“Entre as duas datas — 13 de maio de 1917 e 13 de maio de
1981 — vemos uma estreita ligação. Quer-nos parecer que Nossa Senhora deseja
que seja devidamente considerado, independentemente da divulgação, o que ela
revelou em Fátima para o bem da Igreja, para o bem dos fiéis e para o bem de
toda a humanidade. Por essa razão pedimos a sua santidade João Paulo II que
leia, se ainda não o fez, o terceiro segredo de Fátima. Não é mais tempo de
belas palavras, mesmo apreciáveis, porque o mundo eclesiástico e leigo as rejeitam
e fazem silêncio sobre qualquer admoestação, especialmente se de natureza
religiosa ou moral. No atual estado de perversão, são necessários oportunos e
decididos atos de governo, sem medo de que a Igreja possa reduzir-se a uma
pequena grei. Este é o único caminho que pode evitar, se ainda houver tempo,
que seja Nosso Senhor a prover a purificação de Sua Igreja (ass. Pius).”
Nenhum católico pode duvidar de que o fato de 13 de maio de
1981 esteja nos desígnios de Deus, que permitiu o atentado quase mortal ao Seu
Vigário, mas proveu a sua sobrevivência. A violência inconcebível do ato parece
gritar um aviso extremo. Que desgraça desconhecê-lo a ponto de sentir sua vida
preservada para continuar como antes.
JOÃO PAULO II FALA DO TERCEIRO SEGREDO
É certamente importante saber que atenção e significado dá o
papa ao terceiro segredo de Fátima, que continua escondido no Vaticano, sem que
nenhuma notícia seja fornecida aos católicos. Deve-se reconhecer, pelo que
relataremos em seguida, que o atual pontífice, ao contrário de João XXIII, que
leu o segredo e o arquivou em silêncio, e de Paulo VI, que ignorou sua
existência, evitando falar até com irmã Lúcia, João Paulo II mostrou-se bem
mais acessível e confiante no justificar sua ocultação. A prova está no diálogo
que teve com católicos de Fulda, por ocasião da viagem à Alemanha em novembro
de 1980. Este foi registrado e autenticado para ser publicado pela revista
Stimme des Glaubens (10-81). Aqui é reproduzido com os comentários de Si si no
no, n.º 2, ano VIII (jan. 82).
“Perg.: Que é feito do terceiro segredo de Fátima? Não
deveria ter sido publicado já em 1960?
Resp.: Dada a gravidade do conteúdo, para não incitar a
potência mundial do comunismo a tomar certas iniciativas, os meus predecessores
no ofício de Pedro preferiram diplomaticamente sobrestar a sua publicação...”
“Obs.: Ter silenciado sobre o segredo (...) equivaleu a
acusar a Rainha do Céu de imprudência e de inoportunidade. Equivaleu a
considerar a prudência dos homens superior à celeste.
“...Por outro lado, aos cristãos basta saber isto: se há uma
mensagem em que está escrito que os oceanos inundarão partes inteiras da terra,
que de um momento para outro milhões de homens morrerão, não é deveras o caso
de insistir na divulgação de tal mensagem secreta.”
“Obs.: Essas palavras reproduzem quase literalmente a
profecia apocalíptica do terceiro segredo que circula há anos e diz: 'As águas
dos oceanos se transformarão em vapores e a espuma se elevará, submergindo
tudo. Milhões de homens morrerão de hora em hora'... (p. 125). Ainda para
justificar o silêncio dos predecessores, diz:
“Muitos querem saber por simples curiosidade e
sensacionalismo, mas se esquecem de que saber comporta também responsabilidade.
Procura-se somente satisfazer a própria curiosidade, e isto é perigoso se ao
mesmo tempo não se tem a disposição de fazer algo, ou nos convencemos de que
nada se pode fazer contra o mal.”
“Obs.: Não é um fato real, nem demonstrável que muitos
queiram saber só por curiosidade e sensacionalismo. De qualquer modo, muitos
não significa todos. Além disso, de uma natural curiosidade pode nascer um
sincero arrependimento e propósito de emendar-se. É doutrina comum da Igreja,
que Deus move as criaturas segundo seu comportamento natural. Ora, sendo a
curiosidade mola do conhecimento para os homens, é claro que a graça divina não
deixará de movê-los partindo justamente do limite extremo dessa curiosidade
natural.
“É verdade também que conhecer comporta uma
responsabilidade. E isto em relação ao livre-arbítrio, que pode decidir
rejeitar o bem conhecido. Mas o conhecimento em si é um bem, porque aumenta as
possibilidades de agir retamente. Por isto, instruir as almas é um dever, e
quem se nega a fazê-lo é culpado de omissão e co-responsável da ruína do
próximo.
“Enfim, visto que o castigo pende sobre toda a humanidade, é
lógico pensar que a Virgem Santíssima queria que cada assumisse as próprias
responsabilidades. Existe, portanto, um direito dos homens de conhecer a
mensagem celeste que nos diz respeito e cujo desprezo pode trazer-nos
conseqüências apocalípticas.
“As revelações de Fátima não se destinam ao bem pessoal de
irmã Lúcia ou do sumo pontífice, mas a toda a humanidade. Quem pode negar à Mãe
dos santos e dos pecadores o direito de comunicar algo a seus filhos? O papa,
dir-se-á, é juiz das aparições e de suas revelações, na Igreja. Mas a aparição
e as revelações de Fátima foram declaradas autênticas justamente pelo papa. Eis
a incoerência: de um lado, reconhece-se que em Fátima a Mãe de Deus falou para
a salvação da humanidade; de outro, acrescenta-se: 'Mas o que revelou não é
prudente dar-se a conhecer.'
“Perg.: O que acontecerá na Igreja?
Resp.: Devemos nos preparar para passar dentro em breve por
grandes provações, que pedirão de nós a disposição de sacrificar até a própria
vida numa dedicação total a Cristo, por Cristo. Com a vossa oração e a minha
será possível atenuar essa atribuição, mas não é mais possível desviá-la,
porque somente assim a Igreja poderá ser efetivamente renovada. Quantas vezes
do sangue surgiu a renovação da Igreja! Também desta vez não será diferente.
Devemos ser fortes, preparar-nos, confiar em Cristo e em Sua Santíssima Mãe e
ser muito, muito assíduos na prece do Santo Rosário.” Pegando um Rosário havia
dito antes: “Eis o remédio contra esses males. Rezai, rezai e não pergunteis
mais. Confiai o resto à Mãe de Deus!”
“Obs.: Também Paulo VI exclamou em Fátima, angustiado: 'Nós
dizemos: o mundo está em perigo ... o espetáculo do mundo e de seu destino
apresenta-se aqui imenso e dramático. É o quadro que nos descerra Nossa
Senhora, o quadro que contemplamos com os olhos estarrecidos ...' (v.
L’Osservatore Romano, 14 maio 1967). Mas, e os remédios? Foi justamente a
partir do pontificado desse papa que os reiterados pedidos marianos de oração e
penitência foram desprezados no triunfante naturalismo pós-conciliar, as suas
formas degeneradas, o seu número diminuído (até mesmo nas ordens
contemplativas), e quanto à penitência não se fala mais, ficando o jejum
eclesial reduzido a duas vezes por ano.
“Pior ainda: permitiu-se que as profanações se
multiplicassem, e que a devoção mariana, com o Santo Rosário, fosse obstada
durante anos, com um zelo realmente diabólico. Este desprezo da prática das
devoções pedidas na mensagem de Fátima não partiu do povo cristão, mas veio dos
vértices da Igreja.
“A consagração da Rússia ao Imaculado Coração de Maria, do
modo como foi pedido por Nossa Senhora, não foi nunca feita. E o que se fez
para a conversão da humanidade? Ambigüidades e erros doutrinais e a difusão de
uma 'moral' imoral, que favorecera o triunfo de leis civis, opostas à Lei
divina, natural e positiva. O divórcio, o aborto, a contracepção, a pornografia
e a conseqüente corrupção, especialmente da juventude, estão acumulando sobre a
humanidade eaira do Senhor. Não se trata somente do silêncio sobre o terceiro
segredo, mas de se ter feito exatamente o contrário de quanto havia sido
revelado na mensagem de Fátima.
Nossa Senhora de Fátima é 'incômoda'. Tem o defeito de
ignorar a 'diplomacia' e falar com toda a clareza. De tal modo, pode-se até
levar em procissão a Imagem, sempre que os bispos não o impeçam, como aconteceu
no Canadá, no Vêneto, etc, mas quanto à mensagem essa é deixada o mais possível
na obscuridade e no silêncio.
“Começou-se por substituir a palavra 'Rússia', que Nossa Mãe
havia explicitamente mencionado, pela fórmula 'nações inimigas de Deus'.
“E, todavia, Fátima é uma profecia para o nosso tempo. 1917
foi o ano da revolução bolchevista, que fez da Rússia a primeira nação
declaradamente atéia, difusora do ateísmo teórico e prático, imposto no Oriente
e infiltrado com todos os meios no Ocidente. Representa o ápice da apostasia da
humanidade. (...)” Pius.
JOÃO PAULO II RESPONDE SOBRE FÁTIMA
Em maio de 1982 o papa foi a Fátima e na homília da missa
celebrada dia 13, no lugar das aparições, foi como se respondesse a diversas
interrogações dos católicos.
“Vim hoje aqui porque justamente neste dia do ano passado,
na praça de São Pedro, em Roma, ocorreu o atentado à vida do papa, que
coincidiu misteriosamente com o aniversário da 1.ª aparição de 13 de maio 1917
em Fátima. Estas datas encontram-se entre si de tal modo que me pareceu reconhecer
nisto uma chamada especial para que viesse aqui.
(Como vê a mensagem de Fátima?)
“À luz da maternidade espiritual de Maria, procuramos
entender a extraordinária mensagem que começou a ressoar no mundo, desde
Fátima, a partir de 13 de maio de 1917, e que se prolongou por cinco meses até
13 de outubro.”
(Como a Igreja acolhe a mensagem?)
“Se a Igreja acolheu a mensagem de Fátima foi sobretudo
porque ela contém 'uma verdade e um chamado' que no seu conteúdo fundamental
são 'a verdade e a chamada do próprio Evangelho.'“
(O papa reconhece um conteúdo especial e atual na mensagem?)
“Esta chamada (de conversão e penitência) foi pronunciada no
início do século XX e, portanto, é a este século que particularmente se dirige.
A 'Senhora da Mensagem' parece ler com uma especial perspicácia os 'sinais dos
tempos', sinais de nosso tempo.”
(O papa reconhece em nossa época os sinais prenunciados?)
“Enquanto se completam 65 anos desde aquele 13 de maio de
1917, é difícil não divisar como este amor salvífico da Mãe abraça em seu raio
de modo particular o nosso século (...) o que mais se opõe ao caminho do homem
a Deus, diretamente, é o pecado, o perseverar no pecado e, enfim, a negação de
Deus. O programado 'cancelamento de Deus' no mundo do pensamento humano. A
separação Dele de toda atividade terrena do homem. 'A rejeição de Deus da parte
do homem' (...) se esta se torna definitiva conduz logicamente à rejeição do
homem por parte de Deus (cf. Mt. 7,23; 10,33), é a perdição.”
“Pode a Mãe que deseja a salvação de cada homem calar sobre
o que está minando as bases dessa salvação? Não, não pode! Por isto a mensagem
da Senhora de Fátima, tão maternal, é ao mesmo tempo tão forte e decidida.
Parece severa. É como se falasse João Batista nas margens do Jordão. Convida à
penitência. Adverte, chama à oração. Recomenda o Rosário.”
(A quem é dirigida?)
“Objeto de Seu cuidado são todos os homens da nossa época,
juntamente com as sociedades, as nações e os povos. As sociedades ameaçadas
pela apostasia, ameaçadas pela degradação moral. A ruína da moralidade traz
consigo a ruína das sociedades (...)”
(Empenha a Igreja?)
“O conteúdo do apelo da Senhora de Fátima é tão
profundamente radicado no Evangelho e em toda a Tradição 'que a Igreja se sente
interpelada por esta Mensagem.'“
(Como se apresenta o papa, hoje?)
“Apresenta-se relendo com tremor a chamada materna à
penitência e à conversão, o apelo ardente do Coração de Maria que ressoou 65
anos atrás em Fátima. Sim, com tremor porque vê quantos homens e quantas
sociedades, quantos cristãos foram na direção oposta à indicada pela mensagem
de Fátima. O pecado ganhou um direito de cidadania tão forte no mundo, e a
negação a Deus difundiu-se amplamente nas ideologias, nos conceitos e programas
humanos!”
(Por todos esses males, não é atual, e urgente atender e
lembrar o que é pedido na mensagem de Fátima?)
“Mas justamente por isso o convite evangélico à penitência e
à conversão, pronunciado com as palavras da Mãe, é sempre atual. Ainda mais
atual que há 65 anos. E ainda mais urgente. Portanto, este se torna o assunto
do próximo Sínodo dos bispos do ano próximo. Sínodo para o qual já nos estamos
preparando.”
Estas palavras de João Paulo II, colhidas no meio de tantas
expressões gerais, de tantas circunvoluções verbais, foram como uma centelha de
esperança para muitos católicos desiludidos. Seria acaso o anúncio prévio de
que a mensagem inteira viria à luz? Estariam o papa e outros bispos prestes a
proclamar a importância sobrenatural das suas palavras para a conversão dos
povos? Estariam preparando uma desassombrada acusação dos grandes males atuais
para pedir uma universal reparação? Usariam da ocasião de um sínodo, quando os
bispos se reúnem com o papa, para fazer a consagração solene da Rússia ao
Imaculado Coração de Maria?
Tudo isto parece muito longe das cogitações episcopais, mas
pode ser que o papa em Fátima tivesse tomado plena consciência de quanto seja
providencial e necessário o caminho que neste lugar foi indicado por Maria
Santíssima; se Deus quer que a Igreja reconheça, por essa consagração da
Rússia, o triunfo do Imaculado Coração, essa é a via única e infalível para
obter a conversão russa.
As esperanças, porém, ficaram reduzidas por um ato de
consagração incompleto que não cumpria o que fora pedido por Nossa Senhora.
Perduravam neles as preocupações de natureza diplomática e política em evitar
qualquer menção ao nome Rússia, como se fosse impossível localizar no regime
que a domina os erros e o ativismo ateu prenunciados na mensagem de Fátima.
Seria possível esperar que aquele ainda fosse um ato
preparatório para uma consagração solene e completa no sínodo do ano seguinte?
Infelizmente, naquela ocasião e em outras subseqüentes,
tanto as palavras como os atos foram cada vez mais demonstrando como estavam
distantes do espírito de Fátima, que sopra somente onde é preservada a pureza e
a integridade da fé e a vontade de testemunhá-la.
A VISÃO CONCILIAR DE JOÃO PAULO II
Não há intenção aqui de enveredar pelos complexos meandros
do pensamento de João Paulo II sobre o Concílio, para o qual colaborou com o
texto da Gaudium et Spes, e hoje promove sem reservas. A visão conciliar que
interessa ver é a ligada ao ato de consagração pronunciou em Fátima com a
intenção de atender ao que ali foi pedido por Nossa Senhora — a consagração da
Rússia.
Não é preciso repetir que faltavam condições. Mas, faltaria
também a compreensão do sentido católico extraordinário? Poderia a visão
conciliar coadunar-se com ele? Há boas razões para duvidar. Senão, vejamos.
João Paulo II disse e repetiu: “O concílio Vaticano II lançou as bases para uma
relação substancialmente nova entre a Igreja e o mundo (...)” (discurso de
22/12/1980 ao Sacro Colégio). Ora, como o mundo não mudou em relação à Igreja
de Cristo, senão pelo afastamento do seu ensinamento, teria sido a Igreja que
mudou, adaptando-se às condições do mundo, mas isto só é possível para uma nova
Igreja, a que se costumou chamar de “igreja conciliar.” De fato, nos seus
documentos conciliares transparece essa mudança e reconhecimento às crenças
diversas. Por exemplo, na declaração Nostra aetate está escrito (§ 2): “[a
Igreja] considera com respeito sincero o modo de viver e de agir por preceitos
e doutrinas (...) [de outras religiões].” Igualmente, João Paulo II dirá ao
escritor Frossard que tem “um respeito total pelas convicções dos que crêem de
modo diferente [ou negam].” Do mesmo modo, manifestou muitas vezes a
necessidade de “procurar uma inteligência e uma 'expressão da fé' que
corresponda e torne-se aceitável à maneira de pensar e de falar de nossa época”
(1-11-1982, aos teólogos de Salamanca). “Uma fé à medida do mundo”, dirá muitas
vezes, e também ao escritor Frossard (Dialogues, Ed. Laffont, Paris).
Qual seria essa fé? Na sua primeira Encíclica Redemptor
hominis é dito: “A natureza humana está elevada em cada homem a uma sublime
dignidade pelo fato mesmo da Encarnação.” Esse conceito está na constituição
conciliar Gaudium et Spes (n.22): “Com a Encarnação o Filho de Deus uniu-se, de
certo modo, a cada homem.” Mas a Igreja sempre ensinou a necessidade do batismo
para tornar-se cristão, este é o sacramento que dá essa dignidade e une o
batizado ao Corpo Místico de Cristo. Sem este, não há esta adesão, e nenhum
homem poderia deduzi-la por esses vagos conceitos mais humanitários que
propriamente religiosos. Além disso, se assim fosse muitos homens estariam
unidos ao Filho de Deus sem crer Nele, ignorando-O ou então negando-O. Não
seria nem moral nem lógico pensá-lo. Em todo caso, não é catolicismo ortodoxo,
pois exclui a união pela conversão e fé cristã. E sendo assim, também a
consagração a Deus é inútil; esta, de certo modo, já ocorreu através de
Encarnação, segundo esses conceitos. Não haveria, portanto, errantes a exortar,
nem erros graves a condenar no mundo. Todos seriam consagráveis.
Passemos agora ao texto da homília de João Paulo II do dia
13 de maio de 1982 em Fátima; “Consagrar o mundo ao Coração Imaculado da Mãe
significa voltar sob a cruz do Filho. Mais: significa consagrar este mundo ao
Coração transpassado do Salvador, trazendo-o à fonte mesma de sua redenção. A
redenção é sempre maior que o 'pecado do mundo', a potência da redenção supera
infinitamente toda a gama do mal que está no homem e no mundo.”
Essas palavras dão a entender uma redenção que opera mesmo
sem o reconhecimento do pecado, sem arrependimento e sem conversão. A redenção
e a consagração seriam tão potentes a ponto de prescindir da renúncia a toda
gama do mal e da penitência para ser eficaz.
“Consagrar-se a Maria significa fazer-se ajudar por Ela a
oferecer nós mesmos e a humanidade a 'Aquele que é Santo', infinitamente Santo;
(...) para oferecer o mundo, e o homem, e a humanidade, e todas as nações, a
'Aquele que é infinitamente Santo'. A santidade de Deus manifestou-se na
redenção do homem, do mundo, da inteira humanidade, das nações, redenção
efetuada mediante o Sacrifício da Cruz”.
— Por eles Eu consagro a Mim mesmo —, havia dito (em João
17, 19) Jesus.
Como se vê, fala-se de uma consagração total e
indiscriminada do mundo, e o mesmo é dito da redenção. “Por eles Eu me
santifico a Mim mesmo, para que eles também sejam santificados na verdade” (Jo,
17, 19). Mas, como podem ser santificados na verdade os ateus, os homens que
rejeitam a Cristo e Sua Igreja, um mundo corrupto e uma humanidade apóstata do
ensinamento cristão? E como poderiam beneficiar-se dessa consagração e
converterem-se se não é indicado o mal em que estão mergulhados? Antes houve
uma alusão ao mal e à recusa de Deus, da qual se lembra a recíproca, que é a
recusa dos homens da parte de Deus, a danação. É a palavra mais forte usada na
homília, mas que permanece única, vaga, sem ser ligada aos erros do ateísmo
militante e do comunismo inimigo da ordem cristã. Poderiam tais palavras ser
consideradas um apelo à conversão? Pelo texto parece que esse cuidado é deixado
à Mãe celeste, como se a função de confirmar na fé não fosse dever do sucessor
de São Pedro.
Em todo caso, há também omissão no trecho evangélico, porque
Jesus está referindo-se em sua “oração sacerdotal” aos fiéis, aos que receberam
a palavra de Deus e de Seu Filho. “Manifestei o Teu Nome aos homens que me
deste do mundo; eles eram Teus e Tu mos deste e guardaram a Tua palavra. Agora
conheceram que todas as coisas que me deste vêm de Ti; porque lhes dei as
palavras que me deste; e eles as receberam e conheceram verdadeiramente que Eu
saí de Ti, e creram que Me enviaste. É por eles que Eu rogo; não rogo pelo
mundo, mas por aqueles que Me deste, porque são Teus. “ (Jo. 17, 6)
Para obter a paz pela conversão à fé católica da Rússia
comunista, Maria Santíssima pediu sua consagração ao Imaculado Coração.
O espírito conciliar, porém, afetou gravemente a visão
espiritual dos seus arautos, temerosos de invocar conversões, principalmente da
Rússia.
FOI O PEDIDO DE CONSAGRAÇÃO SATISFEITO?
João Paulo II, indo a Fátima um ano depois do atentado que
sofreu e não escondendo que conhece o terceiro segredo, certamente mostrou a
todos, não só com palavras, a importância e urgência com que deve ser vista a
mensagem de Fátima. Acrescente-se a isto que em menos de dois anos, de 1982 a
1984, consagrou o mundo ao Imaculado Coração de Maria por três vezes, a saber:
na ocasião de sua visita a Fátima; no Sínodo dos bispos de 1983, em Roma; e na
cerimônia solene em São Pedro, dia 25 de março de 1984.
Pode parecer paradoxal, então, afirmar que tanto empenho não
demonstrasse acolhimento do pedido e adesão ao espírito da mensagem dada por
Nossa Senhora em Fátima. Voltemos então à homilia lá pronunciada por João Paulo
II, em 13 de maio de 1981. Logo antes da consagração que estava para fazer, é
perguntado com referência às consagrações feitas por Pio XII em 1942 e 1952:
“Com aquela sua consagração, acaso não satisfez à evangélica eloqüência do
apelo de Fátima?”
Ora, vista a importância dessa questão ligada à promessa
feita por Nossa Senhora: “Se atenderam Meus pedidos, a Rússia se converterá e
terão paz; se não, espalhará seus erros pelo mundo, promovendo guerras e
perseguições à Igreja; os bons serão martirizados, o santo padre terá muito que
sofrer, várias nações serão aniquiladas...” Visto que quem pergunta ou responde
sobre isto é justamente a suprema autoridade eclesiástica a quem esse pedido
foi dirigido, há que considerar com cuidado o que isto comporta.
A primeira resposta deveria vir pelo cumprimento do prometido.
E esta ninguém melhor que João Paulo II pode dar. Trata-se de comprovar se os
males anunciados da difusão dos erros da Rússia, o comunismo e o ateísmo, pelo
mundo, com a conseqüente perseguição da Igreja, martírio de muitos cristãos e
grandes sofrimentos do santo padre, deixou de ser uma realidade de hoje. Se no
mundo em geral, ou na Polônia em particular, ou mesmo na própria Roma, onde um
ano antes foi tentado um assassinato contra o papa, chegou finalmente a paz,
pela conversão da Rússia.
Parece que vivemos bem o contrário disso tudo, e mais ainda:
esse espírito inimigo infiltrou-se na Igreja, onde há bispos e padres que
acolhem os “erros da Rússia” como se fosse um novo Evangelho. João Paulo II
viveu isso pessoalmente por ocasiões de sua viagem à Nicarágua. Sabe também o
quanto é difícil ao prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, cardeal
Ratzinger, e outras autoridades da Igreja, enfrentar as insídias das igrejas
populares, as falsidades das teologias de libertação, o ativismo político das comunidades
eclesiais de base, e outras iniciativas apoiadas por certas autoridades
“intocáveis” dentro da Igreja.
Portanto, deve-se deduzir: ou o pedido de Fátima não foi
atendido pelo papa com a Consagração pedida, ou a promessa feita não foi
mantida pelo Céu, que não mandou a paz à Terra.
É claro que antes de considerar a segunda hipótese, seria
melhor dizer que a aparição e a mensagem de Fátima são ilusões que não merecem
crédito. Seria menos impudente que insinuar ser o poder celeste ineficaz ou
enganoso.
Pela realidade do mundo de hoje, portanto, ninguém disposto
a fazer um breve raciocínio de causa e efeito, entre os “erros da Rússia” e
suas conseqüências, poderia dizer honestamente que o problema não subsiste. Nem
os marxistas ocidentais o fazem. Como seria então para os católicos que
conhecem a mensagem de Fátima e sabem que isto foi prenunciado desde 1917 e
oferecida solução?
Passemos agora a considerar a resposta dada pela
documentação onde está registrado o que irmã Lúcia, a quem foi confiada a mensagem,
diz do seu cumprimento. Usaremos ainda o livro Documentos de Fátima, no qual o
padre Antônio Maria Martins S. J. publica as cópias dos manuscritos originais
da vidente, com as respectivas traduções em italiano e espanhol, além do texto
em português.
Veja-se então o anúncio do pedido de consagração feito dia
13 de julho de 1917 (p. 6 deste livro e p. 219 e 341, op. cit.). Vejam-se,
outrossim, as palavras do pedido feito em Tuy, na Espanha, dia 13 de julho de
1929, para a consagração da Rússia (p. 18 deste livro e 465, op. cit.): “É
chegado o momento em que Deus pede para o santo padre fazer, em união com todos
os bispos do mundo, a consagração da Rússia ao meu Imaculado Coração,
prometendo salvá-la por esse meio.”
Essas palavras foram transmitidas aos papas, mas na carta de
irmã Lúcia a Pio XII, em 1940, esta foi solicitada pelo seu bispo a mudá-las
para: “(...) consagração do mundo ao Imaculado Coração de Maria, com menção
especial da Rússia, e ordenar que em união com vossa santidade e ao mesmo tempo
a façam também todos os bispos do mundo, abreviar os dias de atribulação, com
que tem determinado punir as nações de seus crimes, por meio da guerra, da fome
e de várias perseguições à santa Igreja e a vossa santidade (...).” Não
entraremos aqui nas razões dessa modificação, basta dizer que as palavras
originais estavam na mesma carta (op. cit. p. 431-437).
Foi visto antes que Pio XII atendeu parcialmente o pedido.
Assim, em carta de 4-5-1943 de Tuy, ao padre superior (op. cit. p. 465), Lúcia
confirma: “Deus promete o fim da guerra para breve, em atenção ao ato que se
dignou fazer Sua Santidade (consagração de 31-10-1942). Mas como ele foi
incompleto, fica a conversão da Rússia para mais adiante.” De fato, não houve a
explícita menção da Rússia no ato de 1942, e se isto se realizou em 1952
faltava também naquela ocasião a participação dos bispos do mundo.
Em carta de Tuy, 2-3-1945, ao padre Aparício (op. cit. p.
497 e segs.), Lúcia diz: “Era preciso intensificar muito a oração e o
sacrifício pela conversão da Rússia, para ver se, apesar da consagração desta
nação não ter sido feita nos termos pedidos por Nossa Senhora, conseguimos a
sua volta para Deus. Eu tenho grandes esperanças, porque o bom Deus conhece bem
as dificuldades. Aí reza-se pelo santo padre? É preciso não deixarem de pedir
por sua santidade. Faltam-lhe ainda grandes dias de aflição e tormenta.” (Padre
Martins pergunta em nota: é referência inconsciente à crise da Igreja?)
Vemos, assim, também pela confirmação escrita de irmã Lúcia
sobre a consagração pedida em Fátima, que esta não foi atendida por Pio XII. É
interessante observar que em carta subseqüente de 11-1-1946 (op. cit. p. 499),
onde se fala da ida de padres à Rússia, Lúcia diz que não pode falar ou
escrever abertamente porque tem ordens rigorosas. E comenta: “Não admira. As
obras de Deus são sempre perseguidas.” Vejamos agora, à luz dessas declarações
de Lúcia, que nada mais fazem que confirmar, serem como qualquer um pode
verificar, os termos da consagração pedida e da realizada diferentes, como foi
feita a consagração em Fátima dia 13 de maio de 1982.
Antes de mais nada, deve-se registrar um comunicado escrito
do cardeal Casaroli, secretário de Estado de João Paulo II, de 20-4-1982, e
dirigido a todos os bispos do mundo, para comunicar a intenção do santo Padre
de consagrar o mundo a Maria por ocasião de sua ida a Fátima para o 13 de maio.
Falava-se nela da repetição do ato de Pio XII e pedia-se em termos gerais a
união espiritual na oração. Era uma missiva claramente formal, pois não é segredo
a desaprovação dessas medidas “antiecumênicas” por grande número de prelados.
Mas, seja como for, as intenções do papa ficaram desconhecidas dos fiéis, tanto
quanto essa carta. Portanto, quanto à participação dos bispos do mundo, que
deveria ser ordenada claramente pelo papa, ela não houve. A dificuldade enorme
para consegui-lo, devido aos novos caminhos ecumênicos do concílio, era
descontada na situação atual, mas nem pôr isto era veraz a frase usada por João
Paulo II na consagração de 13 de maio: “Estou aqui unido com todos os pastores
da Igreja nesse particular vínculo, pelo qual constituímos um corpo e um
colégio (...).” A intenção do papa não poderia suprir a dos bispos, e,
portanto, nesse aspecto a consagração já era incompleta.
No que diz respeito à menção explícita à Rússia, na
consagração do mundo de 13 de maio de 1982 em Fátima, João Paulo II usou a
seguinte frase: “De modo especial confiamos e consagramos a Ti, aqueles homens
e aquelas nações que desta entrega e consagração têm especial necessidade” (cf.
Osservatore Romano). Ora, isto vale para muitas, diversas nações.
Neste ponto, à pergunta de papa Wojtyla — “aquela
consagração acaso não satisfez ao apelo de Fátima?” — e se deve receber uma
resposta negativa no que se refere às consagrações de Pio XII, tanto mais negativa será para a sua consagração, cujo
texto não se aproximou da primeira nem renovou as palavras da segunda.
Mas para dirimir a última possível dúvida formal a respeito,
havia ainda um meio: perguntar diretamente à Lúcia. Isto deve ter sido feito
quando, naquela ocasião, o papa conversou a sós com a vidente por quase meia
hora. Poderia ela ter contrariado o que sempre escrevera, e confirmado fatos
objetivos? Tudo indica, porém, que João Paulo II, consciente da importância da
consagração, pela gravidade e atualidade do terceiro segredo que conhece,
pensava ainda resolver a questão com as fórmulas vistas há pouco.
Para confirmá-las, mandou depois seu núncio em Lisboa
visitar Lúcia em Coimbra. Isto aconteceu em 19-3-1983, e acompanhavam o núncio,
o dr. Lacerda e o padre Messias, como relatará um artigo do padre Caillon, que
teve essa parte reproduzida em outras publicações, entre as quais Approaches
(n.º 82); Si si no no (n.º 3, ano X, fev.84). Eis a declaração de irmã Lúcia:
“A consagração da Rússia não foi feita como Nossa Senhora pediu. Não pude
dizê-lo antes porque não tive a autorização da Santa Sé para fazê-lo.”
Depois disso o papa ainda tentaria fazer duas consagrações,
como veremos, o que demonstra com eloqüência em que ponto avançado a humanidade
e a Igreja devem encontrar-se diante dos enormes perigos prenunciados. Mas,
seriam finalmente completas? Conseguiria João Paulo II pronunciar o nome Rússia
publicamente, para o bem da Igreja e a glória da Virgem Maria?
Sobre as imensas dificuldades, hoje, de enfrentar os erros
da Rússia, isto é, o comunismo e o ateísmo, e sobre a evidência dos progressos
que esses erros continuam a fazer no mundo e na Igreja, não pode haver ilusão.
São empregados todos os recursos e articulados todos os terrores. Pelo medo,
abrem-se-lhe as portas.
Só poderia sustar esse avanço alguém que de uma cátedra
muito alta e com autoridade indiscutível acusasse o mal pelo nome sem procurar
compromissos ou escapatórias, nem com as palavras.
Essa cátedra, essa autoridade e esse amor destemido são os
atributos do sucessor de São Pedro, rocha da fé íntegra e pura. A força está na
fé sem mancha, sem misturas humanas, sem compromissos mundanos. E a ação vem da
caridade, que não existe sem a fé.
Ora, a fé conciliar demonstrou ser apenas um sentimento
confuso e uma caridade espúria, aberta a qualquer compromisso. Nada tem a ver
com Fátima, antes é contra tudo que seja genuinamente mariano. Eis a conversão
necessária, pois: a renúncia, ao “concílio irreversível”, suprema desgraça que
abalou o sucessor de São Pedro e deixa a arca de salvação à deriva.
O PAPA TEM DEVERES PARA COM FÁTIMA?
Para a mentalidade do mundo e também da Igreja conciliar, a
piedade mariana em lugares como Fátima é uma manifestação de um catolicismo
superado que pode ser aceito, mas nada pode impor. Por essa razão, a visita de
um papa ao lugar de uma aparição celeste nada mais seria que um gesto de
solicitude pastoral para com os devotos, ou, eventualmente, resultado de sua
pessoal devoção mariana.
Assim, já o comparecimento de Paulo VI em Fátima se
justificaria em atenção ao grande número de fiéis apegados a esse tipo de
piedade. Portanto, nada haveria de mal que aproveitasse a ocasião para fazer um
apelo de paz para a edificação de um mundo mais justo e fraternal, com a
colaboração de todos os homens de boa vontade, sem exclusão dos aderentes a
credos políticos e religiosos diversos, mesmo opostos ao catolicismo, ao culto
mariano e a Deus.
Mas, para a fé católica, que reconhece a verdadeira guerra
do mundo na oposição do mal ao bem, da sinagoga de Satã à Igreja, do príncipe
deste mundo a Cristo, qual é o sentido de Fátima? Ora, Fátima, acontecimento
excepcional de nosso século que não pode ser visto apenas como um entre tantos
fatos sobrenaturais de que é rica a história da Igreja, vem lembrar essa
oposição vital, que os belos discursos certamente não irão elucidar.
Assim sendo, o fato de o papa ir em peregrinação a Fátima
tem sentido católico, enquanto o chefe da Igreja e supremo custódio da fé quer
demonstrar que esta deve ser aceita e os ensinamentos que trouxe seguidos à luz
da fé católica. Disso estará dando exemplo, para a glória de Deus e o bem da
Igreja.
Recapitulemos, então, o ensinamento que a mensagem lembrou.
Antes de tudo, que os pecados dos homens são a verdadeira causa de todos os
seus males. Segue-se que estes males e castigos são permitidos ou mandados por
Deus, que é Senhor da História. Assim, do mesmo modo que males e calamidades
são conseqüência da ofensa a Deus, paz e prosperidade, se reais, são o
resultado da aceitação, por parte do Senhor, da reparação aos erros e ofensas
feitas no espírito de louvor e glória a Deus, pela Sua Igreja.
Aplicando isto à nossa época, as mensagens marianas lembram
o que vai esquecido, advertem dos perigos e dos castigos, e mostram os meios
para evitá-los, prometendo, se forem usados, a intervenção pelo bem e pela paz
dos homens e nações. Não admira, portanto, que tal mensagem seja confiada
sobretudo ao papa.
De sua suprema cátedra e púlpito, só ao pontífice romano é
dado julgar se essa mensagem é autêntica e deve ser recebida, e então ensiná-la
e proclamá-la universalmente. Isto, no caso da mensagem de Fátima, seria feito
atendendo fielmente ao seu pedido, e invocando os homens a fazê-lo igualmente.
Assim procedendo renderia glória a Deus por reconhecer Sua oferta, pela
esperança da Igreja em vê-la aplicada, e após, pela gratidão e conversão de
muitos homens pela intervenção salvadora.
Tudo isto seria também triunfo para a religião que ensina a
dar a glória de Deus, não só como dever, mas como bem último do homem. Enfim,
seria um compêndio vivo da fé, esperança e caridade que aos homens da Igreja
compete ensinar sempre aos fiéis, para na oração comum preservar a fé e
edificar uma sociedade melhor.
Ora, como se viu, a visão de Paulo VI estava muito distante
disso tudo: não mencionou sequer a oferta de Fátima; a sua esperança estava no
seu projeto e na ONU, e a salvação viria do culto ao progresso e ao homem, que
irmanaria toda a humanidade. Para isto operou, indo à ONU e estabelecendo
relações com as mais estranhas religiões e ideologias. E Fátima, por estar
longe destas, e ser malvista pelo mundo, tornava-se um empecilho se não fosse
devidamente redimensionada ou adaptada à reconciliação humana.
Seria diferente para João Paulo II, que demonstrara ter
consciência da importância de Fátima, à qual fora chamado também pelo atentado que
sofreu, como declarou? Apesar das aparências, a atitude é essencialmente a
mesma, não obstante esse chamado, porque, como vimos, não se atendendo o pedido
fielmente, nega-se a sua origem. E disto se segue que não se rende glória a
Deus, acreditando na Sua oferta, esperando na Sua promessa, e operando para que
possa manifestar-se com Sua intervenção milagrosa e salvadora.
E dizendo isto voltamos ao ponto inicial: a questão de fé.
Dissemos quais os pontos essenciais da fé católica que o
pedido de Fátima veio lembrar. Se quisermos resumi-los numa frase, diremos:
confiança na Providência. Nesta, até as ações mais ousadas serão tranqüilas.
Nesta, até a contemplação mais passiva será ativa.
Nesta, o gesto mais louco será racional. Mas, tudo isto é a
normalidade da religião de Deus, cujos pensamentos são loucuras para os homens,
do Senhor sem o qual nada podemos, de Jesus Cristo cuja suprema prudência foi
morrer na cruz pelos homens e que deu esse sinal. E quem não recolhe com Ele,
dispersa.
No século XX o sinal da Providência foi lembrado em Fátima.
Mas justamente então os homens antepunham suas soluções e seus sinais aos de
Deus. E os resultados foram colhidos no mundo pelas guerras, calamidades e
mortes. E no entanto, hoje, esses mesmos resultados destroem a vida espiritual,
envolvendo a própria Igreja, cujos chefes almejam uma paz do mundo sem ver que
esta, sem a fé, é a pior morte. Vivemos uma guerra satânica e o massacre de
almas é a realidade invisível. A Igreja foi crucificada pelas heresias,
dilacerada pelo cisma oculto de seus chefes, dessangrada pela apostasia de seus
filhos que não deram ouvidos a Fátima.
Tinham os papas obrigações e deveres para com Fátima? A
resposta é dada por uma outra pergunta: têm os papas obrigações e deveres para
com a fé? Ora, enquanto Fátima é a lembrança dos pontos essenciais de fé que
estão esquecidos, essa obrigação e dever são parte integrante desse supremo
cargo. E até há não muito tempo os papas ao serem coroados juravam: “Não
diminuir ou mudar nada de quanto encontrei conservado pelos meus predecessores,
nem admitir qualquer novidade, mas conservar e venerar com fervor, como
discípulo e sucessor fiel e com todas as minhas forças e empenho, o que me foi
transmitido; (...) Portanto, submetemos ao mais severo anátema de interdição,
trata-se de nós mesmos ou de outro, quem quer que tenha a pretensão de
introduzir qualquer novidade em oposição a esta tradição evangélica ou à
integridade da fé e religião cristã, ou também tente mudar qualquer coisa,
acolhendo o contrário, ou de concordar com os soberbos que ousem fazê-lo com
ousadia sacrílega.” Foram fiéis a isto os papas conciliares?
É o que seguiremos vendo. Mas, contrários à fé foram os
hereges que fizeram a reforma protestante e anglicana. Foram esses papas fiéis
às interdições de seus predecessores?
Seria interessante lembrar um precedente histórico. Honório
Papa, que pactuou com o herege Sérgio sobre um ponto da doutrina, foi condenado
postumamente pelo Concílio de Constantinopla III, e pelo papa São Leão II, “por
ter permitido com uma traição sacrílega que fosse manchada a fé imaculada.”
Bem entendido, protestantes e anglicanos podem estar hoje na
boa fé de uma religião que receberam, mas nem por isso podem cair as razões de
interdição ao erro de que são vítimas. Os homens podem e devem ser convertidos,
mas as idéias não, serão sempre novidades contrárias à fé dada por Deus e
transmitida pelos apóstolos. A Providência só opera pela fé, primeiro passo
para a Sua glória.
CONVERSÃO OU RECONCILIAÇÃO ENTRE HOMENS?
Durante sua peregrinação a Fátima e visita a Portugal, não
se cansou o papa de pedir orações para sua viagem à Inglaterra. De fato, esta
fora programada para o fim do mesmo mês de maio.
De volta a Roma, no dia 19, e na audiência geral na praça
São Pedro, João Paulo II diz: O convite à conversão e à penitência é a primeira
e fundamental palavra do Evangelho. Essa não cai nunca em prescrição e no nosso
século assume dimensões particulares diante da consciência crescente da luta,
jamais tão profunda, entre as forças do bem e do mal nesse nosso mundo humano.
Este é também o ponto central do cuidado da Igreja, como estão a testemunhar as
vozes dos pastores que indicaram ‘a reconciliação e a penitência’, como sendo o
tema mais atual, confiando portanto o seu desenvolvimento à próxima sessão do
Sínodo dos Bispos.”
Parece estranho que um discurso que começa falando de
conversão como primeira e fundamental palavra do Evangelho, termine concluindo
que por isso mesmo os pastores querem falar de reconciliação, tema mais atual
para discutir no Sínodo dos Bispos. Ambas são palavras evangélicas, mas a
referência feita a Fátima, sobre a sua mensagem, era da conversão a Deus. Agora
os pastores devem ter considerado mais pastoral e prudente falar de
reconciliação, que afinal, aplica-se também entre homens.
Para os nossos tempos a palavra “conversão” deve ter
parecido, forte, quase ofensiva, talvez absoluta demais em tempos de ateísmo e
apostasia. “Penitência” ainda é uma palavra lícita, visto que podem usá-la,
como se viu, para dizer que a Igreja deve penitenciar-se pelos erros do
passado.
Em todo caso, tudo isto vinha a calhar para o programa a ser
feito dentro de dias: a ida do papa à Inglaterra, onde, dia 29, na catedral
anglicana de Canterbury, com cujo arcebispo, primus inter pares da comunhão
anglicana mundial, depois de um ofício comum, abençoaram lado a lado a
multidão. Não mais o sucessor de São Pedro sozinho, mas os sucessores de São
Gregório, João Paulo II, e de Santo Agostinho, dr. Runcie, em igualdade de
condições. O papa equiparado a quem, para a Igreja, não é nem mesmo sacerdote.
É claro que se pretendia que essa reconciliação fosse em
nome da Igreja Católica Apostólica e Romana, que vinha penitenciar-se de erros
passados. Quais? Para isso fora rezar em Fátima João Paulo II? Ora, tal suposta
reconciliação implicaria uma divisão efetiva da Igreja em partes, e isto é uma
heresia já condenada por todos os papas precedentes. O único verdadeiro
ecumenismo consiste na reconciliação dos anglicanos com a Igreja instituída
divinamente por Jesus Cristo, que conferiu o primado a um só: a Pedro, que como
supremo pastor é sinal da unidade e unicidade da Igreja.
Então, o que ocorreu em 29 de maio na catedral de Canterbury
foi, perante a fé católica, somente uma falsa reconciliação entre João Paulo II
e o laico Runcie, a desdouro somente dos homens da Igreja que admitiram
possível algo que representava uma ruptura com tudo que o magistério
estabelecera como irreformável.
Aos anglicanos em boa fé era dificultada, assim, a conversão
à Igreja de Cristo, que é a Igreja Católica; e aos católicos, além da confusão,
ficava a humilhação de terem tido um chefe que desconheceu a função e unicidade
de seu cargo, dado para confirmar todos na fé e nunca estabelecer uniões e
reconciliações fora dela. Eis que o projeto que o papa Wojtyla trazia no
coração, quando foi a Fátima, era humano e tinha o mesmo sinal do projeto do
papa Montini, que vinha do encontro na ONU, em 1967.
Este fato não foi único, pois. Desde o Concílio
multiplicam-se iniciativas deste tipo. Isto é, reconciliações humanas e falazes
que deixavam de lado, para ser discutida depois, justamente o principal, a fé,
sem a qual, como Nosso Senhor e a Igreja toda sempre ensinaram, é impossível
agradar a Deus e, portanto, salvar-se. Na fé única revelada por Deus Pai os
homens reconhecem e ganham a filiação divina, tornando-se irmãos. Ora, pelo
pseudo-ecumenismo conciliar, os homens receberam o direito de escolher a
religião que preferirem, onde os deuses ou pais serão segundo os homens.
Dependerá depois dos homens adaptá-los para a confraternização.
É inconcebível pensar que Nossa Senhora possa ter algo em
comum com o espírito que levou a isto, e que é o mesmo que no passado, na Inglaterra
como em outros países não católicos, levou ao ultraje de tudo o que fosse
mariano ou relativo ao papa. Tudo isto é contrário à mensagem de Fátima, como à
doutrina da Igreja. E pode-se pensar que quando se falou das ofensas ao
Imaculado Coração de Maria, eram mencionadas justamente as ofensas dos
católicos que, em favor de falsas uniões ecumênicas, deixam de lado os dogmas
marianos que são abominados pelos protestantes em geral.
Disso tudo apreende-se que na Igreja Conciliar cultivam-se
as suspeitas e objeções a tudo que diz respeito a Fátima, pensando poder
ocultar que isto é feito na mesma medida em que contradizem e falsificam o
magistério e a doutrina da Igreja. Estes são repetidos e sustentados em Fátima,
é o espírito do Concílio que lhes é inimigo declarado, embora queira ocultar-se
na ambigüidade e até na falsa devoção mariana.
A este propósito é bom registrar aqui um fato bem estranho.
Existe em todo o mundo um Movimento Sacerdotal Mariano fundado pelo padre
italiano Estêvão Gobbi. Este, depois de receber uma 'inspiração” em Fátima,
1972, diz ter passado a receber mensagens regulares de Maria, que são
publicadas em opúsculos. Estes são traduzidos em todas as línguas e tudo recebe
o apoio claro do papa e hierarcas vários.
O tom dessas mansagens não é diverso do ouvido em Fátima ou
mesmo em La Salette, e em muitos aspectos parece igualmente uma chamada à
conversão e penitência. Convoca, porém, os sacerdotes a uma total obediência ao
papa e hierarcas a ele unidos, em qualquer ocasião, num tom adulatório e
acrítico, pouco afim à vigilância católica. Aliás, é dito ali que lhes será
dado o sinal do momento de agir, como se quase não vivêssemos já em plena
apostasia e abandono da verdade, e aos ministros do Senhor fosse dado ficar à
espreita.
A descrição do 13 de maio de 1982 em Fátima é uma apoteose
de João Paulo II, feita pela voz interior que o padre diz ser da mãe do Céu:
“Olhai o papa! O seu exemplo de oração é exemplo de fidelidade ao mandato
recebido com a sucessão de São Pedro; (...) embora muitas vezes esteja
circundado por um grande vazio e solidão. A sua palavra é aquela de um profeta,
mas cai tantas vezes num imenso deserto (...) Dá exemplo de fortaleza. Avança
sem temor, com a força do seu grande amor de pastor universal e vigário de meu
Filho. Não teme nem críticas nem obstáculos; não pára diante de ameaças e
atentados. (...) O que está agora vivendo já lhe foi predito por Mim.” É
curioso que também nas aparições de Medjugorge, que estão acontecendo na
Iugoslávia e, segundo o bispo local, monsenhor Zanic e expertos marianos,
parecem tudo menos de Maria, essa “aparição maternal” dirija-se a um retrato do
papa Wojtyla para beijá-lo carinhosa.
Também estas palavras soam estranhas: sabe-se que o papa, em
Fátima para a consagração pedida, não conseguiu convocar os bispos para
participarem nem teve o destemor de pronunciar o nome da Rússia, que deveria
ser consagrada. Depois, de volta a Roma e antes de partir para sua abertura
ecumênica anglicana, disse: “Fiz [em Fátima] quanto era possível naquelas circunstâncias.”
Mais que esse possível tão humano, é possível aceitar a
notícia de que nesse mesmo 13 de maio, em Granada, na Espanha, uma antiga
imagem de Nossa Senhora chorou lágrimas de sangue que foram vistas por muitos
fiéis. Formaram-se longas filas para homenagear a Rainha do Céu, que
demonstrava sua tristeza infinita aos homens da terra. Mas tudo não durou
muito. Já no segundo dia o bispo local, d. Arsênio, mandou retirar a imagem
para averiguações. Seguindo-se um longo silêncio, grupos de católicos
requereram respeitosamente ao bispo que explicasse o que fora apurado. Apesar
do grande número de assinaturas o bispo não deu qualquer resposta aos fiéis,
como parece ser o hábito pós-conciliar. Foi feita apenas uma declaração para os
jornais, na qual, sem mencionar análises de laboratório ou relatos
eclesiásticos, dizia que nada havia acontecido: quanto a esta certeza poria as
mãos no fogo.
Antes do fim do ano veio a notícia de que o palácio
episcopal de Granada, um belo edifício de notável valor histórico, fora
destruído num incêndio. Os eclesiásticos foram retirados incólumes, só o bispo
teve as mãos queimadas.
Quantas já são as vezes em que os homens viram ou souberam
que a Mãe chora sobre o destino dos filhos que se negam à reconciliação com o
Pai, e dos pais que se recusam a reconciliar-se com o Filho. A longa e triste
história da humanidade é o registro dessas desventuradas rebeliões. Mas, desde
que Nosso Senhor fundou Sua Igreja, Seus ministros trabalharam pela
reconciliação dos homens com Deus. Somente hoje, seduzidos pelo espírito do
mundo que deve ter invadido a Igreja, convocam a uma reconciliação humana, em
detrimento da fé dada por Deus. E se a Mãe vem lembrar a verdade, ofuscam sua
presença, censuram suas palavras, arquivam suas mensagens e negam suas
lágrimas, preferindo anúncios de paz e de venturas que os homens não podem
dar-se.
Não admira que no dia 13 de maio de 1983 o padre de Nantes
voltasse a Roma com 200 membros de seu movimento para entregar ao papa Wojtyla
um Liber Accusationis em que era pedido ao pontífice que se autojulgasse por
heresia, cisma e escândalo público.
O SÍNODO CONCILIAR DE 1983
Para uma reunião de bispos que se propõe falar de
reconciliação, seria importante ter um quadro geral do estado religioso do
mundo, onde, como se sabe, proliferam cada vez mais novas seitas e cultos
satânicos, em meio a um indiferentismo geral. Havia, portanto, urgência na
identificação das falhas e dos vazios pastorais para que os pastores católicos
pudessem reparar tanto mal.
Na verdade, porém, não foram sequer capazes de identificar o
próprio estado religioso em crise. Quem seguiu as notícias do sínodo sabe que o
papa pediu à presidência que impusesse ordem nos trabalhos, chamando ao tema
central da “reconciliação e penitência” que, para a Igreja, está no sacramento
da confissão e não na política.
Mas, uma vez que o tema da reconciliação político-social
ocupou tanto espaço nesse sínodo, há que notar ter sido esta reconciliação
tratada no mesmo sinal do ecumenismo religioso, isto é, sempre com a
preocupação de aproximações e uniões exteriores e humanas. Se antes era deixada
de lado a fé para se entabularem negociações com protestantes, judeus ou
budistas, depois, para se dialogar com movimentos e sistemas políticos, era
posta de lado a doutrina social da Igreja e, naturalmente, as palavras de
Fátima. Isto porque esses políticos, em geral, comungavam nos “erros espalhados
pela Rússia” prenunciados desde 1917 em Fátima.
Agora que o potencial bélico soviético atingiu um nível sem
precedentes na História e continua impondo seu comunismo e ateísmo em todo o
mundo, quer por vias internas, quer externas, justamente agora desponta o
espírito do diálogo e da reconciliação. E para os novos pacifistas eclesiais
que se recusam acreditar ser esse um diálogo de surdos e uma recondução
unilateral, além das evidentes implicações da KGB no atentado ao papa, através
da trama urdida usando-se fios turcos e búlgaros, naqueles dias foi friamente
abatido pelos soviéticos um avião jumbo civil coreano, com centenas de passageiros
inocentes, que se desviou inadvertidamente de sua rota para o lado comunista. O
fato foi inicialmente negado com cinismo e depois justificado com arrogância e
até acusações. Mas o mal estaria na desconfiança recíproca!
Esse sínodo aconteceu, portanto, enleado no fragor de
discursos e marchas pacifistas que pretendiam com isto acabar com as guerras,
ocupações, repressões e conflitos, além de atentados e ações bélicas que
indicam uma guerra onipresente. Mas, palavras falsas e agressões reais, tudo encontra
guarida nos corações da nova pastoral reconciliatória. Veja-se a iniciativa
desarmamentista dos bispos norte-americanos e também as palavras de João Paulo
II declarando ao mundo que a causa dos conflitos reside na falta de confiança
recíproca. A essa luz não estranharia uma mediação entre um ocidente que se
quer dócil e desarmado e um oriente comunista que se reconhece agressivo e
superarmado, só porque desconfiado.
No sulco desse pacifismo invertido, iriam seguir-se as mais
estranhas iniciativas e até a apologia da objeção de consciência ao serviço
militar em um país cujo empenho bélico é limitado à defesa. Os Jornais
registraram no dia 12 de fevereiro de 1984 as seguintes palavras ditas a 400
jovens de uma paróquia romana: “Sobre o problema da objeção de consciência
gostaria de dizer: demonstram maturidade aqueles Estados que são capazes de
aceitar uma outra forma de serviço público para os jovens, que não seja o
serviço militar, permitindo substituir um pelo outro.” Eram palavras de João
Paulo II falando de improviso sobre a ameaça das armas e da guerra. Como
polonês, teria dirigido esse discurso de maturidade à pátria ameaçada pelo
nazismo? Será que o comunismo soviético é hoje menos agressivo e menos armado?
Enfim, diante de idéias tão estranhamente irreais, podem os católicos não lhe
opor objeção de consciência?
Depois dessa ampla divagação, que dá a medida do que sugere
esse espírito de reconciliação, filho do espírito do Concílio, vamos considerar
os documentos desse sínodo para ver como foi tratado o tema central, que
segundo João Paulo II estava na mensagem de Fátima: “(...) ainda mais atual que
há 65 anos e ainda mais urgente.”
Pois bem, já no fim de seus trabalhos, marcados por
disparates e contradições doutrinais que impressionaram os próprios
participantes e provocaram a ironia até dos jornalistas católicos, notou-se que
falaram de tudo, mas alusões a Fátima só houve uma, e mesmo assim de passagem e
num documento escrito. A esse ponto o arcebispo Mabutas y Lloren, de Davao,
Filipinas, na 17.a congregação geral, dia 15 de outubro de 1983, achou que não
poderia deixar de observar aos seus colegas uma incrível omissão; “Parece
bastante estranho que tratando da missão de reconciliação (...) praticamente
todos tenham feito silêncio sobre a pessoa que a Igreja invoca como Refugium
peccatorum, a Santíssima Virgem Maria.”
Não admira, pois, que o papa, lendo isto, tenha no dia
seguinte considerado necessário ele próprio fazer uma tácita admoestação,
repetindo palavra por palavra para os padres sinodais reunidos a consagração do
mundo à Nossa Senhora, que havia feito em Fátima no dia 13 de maio de 1982. É
claro que também desta vez o nome da Rússia não seria mencionado, nem pedida a
participação dos bispos no ato. Nos primeiros dias o papa havia repetido ao
sínodo dos bispos e a todos os fies que no mundo ia-se perdendo o senso do
pecado. Nos dias seguintes foi ficando claro, para quem ainda duvidasse, que
isto acontecia também entre os que receberam a unção como sucessores dos
apóstolos. Os pastores não haviam atendido às palavras de Maria Virgem que
chorava sobre o destino dos homens. A que mais poderiam atender?
É POSSÍVEL REPARAR UM ERRO SEM DENUNCIÁ-LO?
Falou-se aqui continuamente na consagração da Rússia ao
Coração Imaculado de Maria para dizer que não foi efetuada; mas, estará claro o
significado deste ato e as condições necessárias para cumpri-lo?
Vejamos: consagrar significa oferecer, separar do mundo para
tornar sacro, reconhecer a soberania divina sobre algo ou alguém que foi
devotado a Deus. Portanto, consagrar implica também a ação de purificar e,
sendo uma pessoa que se consagra, em renúncia ao que é impuro e mau: implica
estar em estado de graça.
Do mesmo modo, e por maior razão, quem consagra deve ser
consagrado e estar nesse estado, e querer, ou prometer seu empenho nisso, que o
objeto de sua consagração esteja ou atinja esse estado de dignidade e
purificação para ser recebido.
O contrário disto seria o mesmo que oferecer alimento
contaminado como donativo, ou oferecer o que é indigno ou impuro como oferta ao
Alto. “Vós ofereceis sobre o Meu altar um pão imundo e dizeis: Em que te
profanamos nós? (...) Oferecei estes animais (defeituosos) ao nosso governador
e vereis se lhe agradarão e se ele vos receberá com agrado, diz o Senhor dos
exércitos.” (Ml. 1,7-8)
Ora, essa consagração implica então um juízo do que seja
bom, puro, digno, estado este que o consagrado possa atingir ajudado por quem a
consagra e quer operar para isso. Exemplo é uma criança que, batizada antes do
uso da razão, é prometida cristã, pelo banho de graça de Quem nos lavou em Seu
preciosíssimo sangue e pelo empenho de quem renunciando a Satanás por ela, lhe
dará condições de receber o ensinamento cristão. Mas, e uma nação?
Embora uma nação se componha de homens das mais diversas
extrações e credos, também uma nação pode ser consagrada para o bem de seus
habitantes, sempre que a estes sejam dadas as condições, ou pedidas
explicitamente a quem pode dá-las, para que se torne cristã nas suas leis, no
seu governo, nos seus costumes.
Mas, também neste caso, alguém deverá renunciar a Satanás
por ela, alguém que saiba claramente quais os males contaminantes que a
afligem, quais os erros que a afastaram de Cristo, e estes sejam proclamados a
todos os seus habitantes, que se quer cristãos, e para testemunha de todas as
gentes.
Estamos, assim, diante do que deveria ser a consagração da
Rússia. E neste ponto é bom voltar às palavras de Pio XII, tanto quando
consagrou o mundo com menção da Rússia (p. 40) como quando falou sobre o modo
como deve ser feito um pedido a Deus (p. 18). Em ambos os casos ficou claro
qual deva ser o propósito de conversão e reconhecimento dos erros contrários
que tornam os homens indignos diante do Senhor. Não é diverso do que se dá nas
confissões pessoais.
Mas, como aplicar isto à Rússia? Ora, quem não sabe que essa
grande nação já foi cristã, e, como lembrou Pio XII, era mariana, não havendo
casa que não tivesse em lugar de honra um ícone de Maria? E nas palavras ditas
à irmã Lúcia ficou claro: a Rússia foi confiada a Maria, que a salvará. Isto,
porém, depende do retorno à Igreja Católica que assegurará a continuidade dessa
conversão na Terra. Cabe assim à Igreja, pela boca de seu papa, consagrar a
Rússia, não a um cristianismo vago, ecumênico, conciliar, mas ao catolicismo
íntegro e puro de que é sinal o Coração de Maria, junto ao Sagrado Coração de
Jesus e representá-lo em seu máximo esplendor e fidelidade dogmática e litúrgica.
É claro que para essa consagração solene deverá haver não só
a menção explícita da Rússia, que não pode ser confundida com o que se quis
chamar de União Soviética, mas a menção clara dos erros que a dominaram sob
esse outro nome, levando essa nação, junto com outras, à gana de domínio,
destruição e ódio a Deus e à Sua Igreja. Eis a razão clara para mencionar o
nome da Rússia. Infelizmente, porém, esse nome parece arder mais que o amor
pelas coisas de Deus, e hoje todos temem a fornalha soviética.
Afinal, esse pedido seria normal para a Igreja em outros
tempos. Não se pediram cruzadas, nem flagelações, nem mesmo jejuns, mas apenas
uma consagração com menção do nome do consagrado de forma explícita. E isto já
pareceu impossível. Seria a renegação de uma Ostpolitik vaticana feita de
ilusões e enganos, mas cara aos homens, porque criada por eles.
E, todavia, eis a obra de misericórdia espiritual que daria
glória a Deus e juízo aos homens: acusar os erros, admoestar os pecadores e
depois reparar diante do Ofendido, por eles e pelos perseguidos. Mas a Igreja
Conciliar não quer mais condenar, inaugurou a nova misericórdia humana ao mesmo
tempo que aggiornava a doutrina e revolucionava a liturgia. Eis a miséria
atual. Dos homens da Igreja tivemos um novo culto, uma nova lei, uma nova
caridade e uma falsa paz que não converte, mas corrompe.
Ninguém negará que pode ter havido no passado métodos
humanos aplicados à religião que eram duros, insensíveis, intransigentes e por
vezes incompreensíveis para muitos, que criaram resistências ao jugo suave de
Nosso Senhor. Mas nem por isto pode-se negar que contra o mal toda
intransigência é pouca. Comprometer-se ou conviver com o que é ofensa a Deus,
ódio a Sua Igreja e perigo para as almas, sem denunciá-lo, nunca foi amor fraterno,
mas omissão; nunca foi caridade, mas covardia. Não se faz bem ao próximo
condescendendo com o que o aprisiona. Não se livra ninguém do mal silenciando o
nome deste.
Um consagrado para consagrar uma nação deve apontar os erros
que a submetem e dos quais se deve libertar para voltar à verdade e à justiça.
Silenciá-los é cumplicidade com o erro. Tratando-se nessa época de erro
culminante que vai sufocando todo o mundo, de que ideologia intrinsecamente
perversa que inocula o espírito de revolta e descrença em populações sem fim,
tratando-se do comunismo que é o maior flagelo que a humanidade já conheceu,
Nosso Senhor só poderia confiar essa missão extrema ao Seu representante na
Terra, ao sucessor de Pedro que, no temor e amor de Deus, fez sua profissão de
fé fundamento da Igreja: o papa.
Para fazê-lo em tempos normais não havia escolha de métodos
nem diplomacias. Tratava-se de denunciar o mal pelo nome, explicando em que
consiste, como opera, quem são seus promotores e então condená-lo aberta e
universalmente para o bem dos homens. As horas que vivemos não são, porém,
normais. O mal é culminante e está armado como jamais revolução alguma esteve.
Além disto, os homens acumularam tais pecados e afastaram-se tão
ignominiosamente de Deus em troca de prazeres e dominação que pela
multiplicação da iniqüidade se resfriará a caridade de muitos (Mt. 24,12). Quem
terá ainda o amor necessário para arriscar a própria vida, para denunciar o que
é morte e degradação para tantos? Hoje, não parece que esse alguém habite o
nosso mundo eclesiástico, e quem detém o poder das chaves dedicou-se a novas
aberturas. E eis que surgem inúmeros falsos profetas que a muitos seduzem.
Levantam-se novas doutrinas como novos cristos e fazem-se grandes prodígios que
poderiam enganar até os escolhidos. E as estrelas cairão do céu e as potestades
do alto serão abaladas. E então aparecerá o Sinal do Filho do homem no céu. E
todos os povos da terra chorarão.
No dia em que o testemunho católico deixar de condenar os
erros e as heresias que contaminam o mundo, mas der ouvidos às novidades das
falsas reformas, ignorando os verdadeiros sinais do céu; no dia em que todos os
apóstolos fugirem... só restará o Juízo.
NOVOS CRISTOS E NOVAS DOUTRINAS...
A diferença entre as palavras “conversão” e “reconciliação”
será mínima se usadas no sentido de volta do homem a Deus. Mas, já não é assim
na nova era do culto ao homem. De fato, desde a queda os homens são roídos pela
tentação de realizar com um passo mental o pulo do finito ao infinito, do
humano ao transcendente, do profano ao sagrado. Na história da humanidade essa
tentativa pertinaz já se repetiu incontáveis vezes e acabou no culto ao poder,
nas idolatrias de todo tipo, e nas heresias que querem moldar o divino ao uso e
especulações intelectuais humanas.
A imaginação já deu as mais diferentes formas religiosas a
essa auto-religião, mas sua constante é pretender parecer uma nova bondade, uma
compreensão do próximo, uma solução dos problemas existenciais. E isto para
esconder que é sempre produto da soberba e da inveja. Para estas a conversão é
indignidade, senão escravidão.
Fala-se da idolatria, hoje, como se fosse remoto culto do
passado. E, todavia, ela é sempre a mais comum das religiões, porque o ídolo
final nos humanismos do “culto ao homem” é a própria pessoa. Afinal, quem pode
ser maior que um inventor do próprio deus! E isto repete-se até para os
sectários de um líder carismático, por eles venerado com fervor, antes que ele
mesmo suspeitasse ser um semideus. E depois, tudo vem por si mesmo: as lendas,
o culto fiel, a representação de humildade, abnegação, heroísmo sem limites,
tudo será atribuído de bom, de sábio e de santo, da parte de quem venera como
potência imortal o ídolo que escolheu para ser-lhe superior.
Essa servidão idólatra foi divinamente rompida pela vinda do
Verbo de Deus que se deixou crucificar por nós. Mas nós, homens, para nos
salvarmos, precisamos glorificar o Deus que por nosso amor mostrou crucificadas
em Si toda a miséria e idolatria humanas.
Diante de tal sacrifício redentor só a conversão é possível.
Qual é o homem que cogita pagar a quem lhe deve? E um preço que nem todas as
vidas nem todas as dívidas se lhe aproximam? Os homens! Os sacerdotes
consagrados! Quem há entre vós que feche as portas e acenda o lume em Meu altar
gratuitamente? (Ml., 1,10).
Quem pode converter-se a Deus, sem ainda ser atraído por
Ele?
Ora, mesmo depois que o Verbo de Deus nos legou Sua palavra
e Seu sacrifício para ensinar-nos e fortalecer-nos, a idolatria humana não
morreu, mas o espírito do mal, infame imitador de Deus, saberia modelar ídolos
à semelhança do próprio Cristo Redentor. Na era cristã, insinuaria falsos
cristos e novos salvadores, numa contrafanação crescente até o ápice: O
anticristo com poderes na própria Igreja de Cristo. Poderia triunfar sem a
idolatria?
Eis que a idolatria levou ao dilúvio e levará ao fim. E os
homens adorarão aquele que se elevará sobre tudo o que se chama Deus, ou que é
adorado, de sorte que se sentará no templo de Deus, apresentando-se como se
fora Deus, eis o mistério da iniqüidade descrito por São Paulo em Tes. II
(2,4-11). E este artifício extremo do erro será permitido por Deus para que
“aqueles que não tiveram amor pela verdade, creiam na mentira.”
Já Jesus havia ensinado e advertido: “Eu vim em nome de Meu
Pai, e vós não Me recebestes; se vier outro em seu próprio nome, recebê-lo-eis.
Como podeis crer, vós que recebeis a glória uns dos outros, e não buscais a
glória que só de Deus vem?” (Jo, 5,43).
Eis, portanto, que em tempo de crise a maior vigilância deve
ser dirigida aos próprios vigilantes. E estes entre si, lembrando como as
heresias, os cismas, os escândalos religiosos quase sempre surgiram entre eles.
Falsos cristos e falsos profetas, têm por meio natural, por caldo de cultura, o
ambiente eclesiástico. Quem, sendo um alto prelado, negar isto, será pelo menos
um falso vigilante, e quem vive falsamente sua função não pode estar longe de
aceitar o engano que o vem afastando do dever. De certo modo já aderiu a ele,
calando-o. Não podem bastar diante de Deus desculpas de enganos e silêncios que
vieram da autoridade, do alto. Perante o erro, cada homem é responsável. Que
dizer dos responsáveis da Igreja, que deveriam vigiar essa responsabilidade!
Vivemos, portanto, dias em que a vigilância maior deve ser
dirigida não mais exclusivamente aos enganos grotescos de fora, mas às ciladas
sutis armadas dentro da Cidadela da Verdade, e na medida mesma em que até
revelações privadas de sabor mariano querem fazer passar tudo o que vem de
cima, e mesmo do papa, como indefectível, acima de toda suspeita, a prova de
todo engano.
É a papolatria de nossos dias contra a qual os mesmos papas
preveniram deixando bem claro em que condições o papa é infalível, o quanto a
Igreja é infalível. Esta, porém, é também indefectível e regida pelo Espírito
Santo, enquanto o papa pode até dispensar esta assistência divina, como o
fizeram no Concílio Vaticano II, que quiseram pastoral, e ao qual fizeram
bastar a inteligência precária dos homens, que se sentiam vagamente inspirados
e fortemente otimistas. Mas, quem sugeria isso tudo? Não, certamente, Quem
havia ensinado — cuidado que ninguém vos seduza... vigiai e orai. Não,
certamente, as mensagens marianas de Fátima ou de La Salette, que dizem, depois
de falar da decadência dos consagrados e das seduções a que se expõem: Desgraça
aos Príncipes da Igreja. O Vigário de Meu Filho deverá sofrer muito porque por
algum tempo a Igreja será abandonada a grandes perseguições, tempo de trevas, a
Santa Igreja passará por uma crise horrenda. A santa fé em Deus será esquecida,
cada indivíduo quererá guiar-se por si mesmo e ser superior aos outros. Roma
perderá a fé e se tornará a sede do anticristo. Isto é parte do que foi
profetizado em 1846. Para quando? Certamente também não foram os papas a
ensinar o otimismo a ser aplicado na defesa da Igreja, ao contrário. O papa
Leão XIII, no dia 13 de outubro de 1884, no fim da santa missa, ouviu vozes
atrás do altar, uma das quais arrogantemente dizia poder destruir a Igreja em
menos de cem anos. A outra voz disse, então, consentir nessa prova.
Foi por essa razão que esse papa ordenou que no fim das
missas, em todo o mundo, se invocasse a proteção de São Miguel Arcanjo. Além
disso, mandou publicar um exorcismo para ser usado pelos sacerdotes onde é
dito:
“As hostes astuciosíssimas encheram de amargura a Igreja,
Esposa Imaculada do Cordeiro, e inebriaram-na com absinto; puseram-se em obras
para realizar todos os seus ímpios desígnios. Ali onde está constituída a sede
do beatíssimo Pedro, a cátedra da verdade para iluminar os povos, ali colocaram
o trono da abominação de sua impiedade, para que, ferido o pastor se
dispersassem as ovelhas.”
Foi Paulo VI quem declarou com horror ver a “autodestruição”
da Igreja e a fumaça de Satã infiltrar-se no templo de Deus. Mas, havia sido
ele mesmo a suprimir o juramento antimodernista ordenado por São Pio X para os
sacerdotes e a remover as orações leoninas do fim da missa. É bem verdade que a
principal intenção destas foi mudada em 1934 por Pio XI, em favor “da volta
para Deus da Rússia.”
Já antes os papas Pio IX e Pio X, como Leão XIII, tiveram
visões apocalípticas. Ao contrário, porém, de Paulo VI, reforçaram as defesas
da Igreja, impedindo perigosas aberturas. São Pio X, que combateu valorosamente
o modernismo diante da crescente perversidade, considerou que: “o Filho da
perdição de quem falaram os apóstolos já está entre nós” (1903). Também Pio IX
havia visto crescer de tal modo a aversão a Deus no mundo que: “Ele reservou
para Si mesmo vencer seus inimigos.” Tudo isto está em POT (p. 206, 216, 229).
CARTA ABERTA AO PAPA — MANIFESTO EPISCOPAL
No dia 9 de dezembro de 1983 foi tornada pública uma carta
ao papa João Paulo II com um documento anexo pelo qual o arcebispo Marcel
Lefebvre e o bispo Antônio de Castro Mayer denunciavam as causas principais da
profunda crise que dilacera a Igreja e a sociedade contemporânea. Eis como Si
si no no a anunciou (n.º 17, ano IX): A carta e documento anexo entregues à Sua
Santidade não regateiam comentários: com o devido respeito, denunciam com
clareza e franqueza as causas da dolorosa situação em que está a Igreja,
iluminando a figura dos dois insignes bispos, cujo amor pela Igreja e pelas
almas vibra em cada linha.
“Essa denúncia é confirmada amplamente nos fatos dolorosos,
nos números negativos em todos os setores (vocações, confissões, freqüência à
missa dominical, etc.), nos seminários fechados, nos conventos desertos, na
dispersão dos fiéis, em breve, nos frutos amargos que uma reforma de cunho
protestante produziu na Igreja católica.
“O angustiado apelo dos dois prelados evoca também a
dissenção manifestada de modos diversos, mas com idêntico conteúdo, nestes anos
pós-conciliares por diversas autoridades eclesiásticas. Mencionaremos alguns
principais: os cardeais Ottaviani e Bacci com o 'breve exame crítico do novo
Ordo Missae'; o Cardeal Siri com a revista Renovatio e o livro Getsemani; o
arcebispo Arrigo Pintonello no manifesto de dezembro de 1976; 'chegou a hora de
dizer basta à sistemática traição da Fé' e na revista Seminari e Teologia, o
cardeal Hoeffner no discurso em Fulda, que denuncia a ruptura com a tradição; o
bispo de Ratisbona, Graber no livro Athanasius; o bispo holandês Gjissen, na
sua oposição à Conferência Episcopal Holandesa; o bispo norte-americano Dwyer,
na carta de 31-7-75 e Paulo VI, e no artigo 'A catedral devastada'. Deus queira
que o número dessas testemunhas corajosas da fé aumente sempre.
“A denúncia dos dois bispos reflete o pensamento de muitos
outros bispos, sacerdotes, religiosos e fiéis que sofrem com a humilhação da
Igreja, mas não dispõem de meios para fazer ouvir a própria voz, ou porque lhes
faltam força e coragem para falar contra a corrente, enfrentando as inevitáveis
conseqüências, ou por que cedem a um falso conceito de obediência.
“O eclipse da Igreja, que é mãe e mestra, torna infrutuosa a
redenção para a maioria das almas e acelera a decadência moral da sociedade com
todas as espantosas conseqüências que presenciamos com a difusão da droga, da
homossexualidade, do crime, do terrorismo, do divórcio, do aborto, etc. Eis que
os bispos não podem, não devem ficar em silêncio para não faltar à missão que
receberam de Nosso Senhor Jesus Cristo.” Segue-se a carta:
“Beatíssimo Padre:
Permita-nos Vossa Santidade que, com filial franqueza, lhe
apresentemos as reflexões que seguem.
A situação da Igreja é tal, há uns vinte anos, que se
assemelha a uma cidade ocupada.
Milhares de sacerdotes e milhões de fiéis acham-se num
estado de angústia e de perplexidade, motivado pela 'autodestruição da Igreja':
os erros contidos em documentos do Concílio Vaticano II, as reformas
pós-conciliares, especialmente a reforma litúrgica, as falsas concepções
difundidas por documentos oficiais, os abusos de poder cometidos por membros da
hierarquia deixam os fiéis perturbados e confusos. Semelhante situação vem
causando em muitos a perda da fé, o resfriamento da caridade, e destruindo o
conceito de unidade da Igreja no tempo e no espaço.
Sensibilizados pelas angústias de tantas almas desorientadas
que, em todo o mundo, desejam perseverar na identidade da mesma fé e da mesma
moral, tal como definida pelo magistério da Igreja ou por ela ensinada de modo
constante e universal, nós bispos da Santa Igreja Católica, sucessores dos
apóstolos, julgamos que não nos seria lícito calar sem sermos cúmplices de
obras malignas (cf. 2 Jo. 11).
Eis porque, baldadas as diligências feitas, nestes últimos
15 anos em caráter particular, vemo-nos obrigados a intervir publicamente junto
a Vossa Santidade para denunciar as causas precípuas desta angustiante situação
da Igreja e suplicar-lhe que, usando de seus poderes pontifícios, 'confirme
seus irmãos' na fé que nos foi fielmente transmitida pela tradição apostólica
(cf Lc. XXII, 32).
Com este propósito, tomamos a liberdade de, em anexo,
apontar a Vossa Santidade mais pormenorizadamente, embora não de modo
exaustivo, erros principais que estão na raiz desta situação trágica e que já
foram condenados por vossos predecessores:
1. — Um conceito 'latitudinarista' e ecumênico da Igreja,
dividida em sua fé (condenado especialmente pelo Syllabus, n.° 18; DS. 2918).
2. — Um governo colegiado e uma orientação democrática da
Igreja (condenado especialmente pelo Concílio Vaticano I; DS. 3055).
3. — O falso conceito de direitos naturais do homem que
aparece claramente no documentado sobre a liberdade religiosa do Concílio
Vaticano II (condenado especialmente em 'Quanta cura' de Pio IX e 'Libertas' de
Leão XIII).
4. — A falsa concepção do poder do papa (cf. DS. 3115).
5. — A concepção protestante do santo sacrifício da Missa e
dos sacramentos (condenada pelo Concílio de Trento, sessão XXII).
6. — E, finalmente, de modo geral, a livre difusão de erros
e heresias (como novo humanismo, evolucionismo, naturalismo, socialismo,
comunismo, etc.), caracterizada pela supressão do Santo Ofício.
Tais erros em documentos oriundos de fontes tão excelsas
criam, na Igreja, um profundo mal-estar e perplexidade em muitos fiéis.
Trata-se, Santíssimo Padre, não de fiéis reticentes no acatamento da autoridade
pontifícia, e sim, pelo contrário, de membros do clero e leigos que têm como
base de sua fé a adesão profunda e inabalável à cátedra de São Pedro.
Com todo o respeito, ousamos dizer a Vossa Santidade: é
urgente que esse mal-estar cesse logo, porque o rebanho se dispersa e as
ovelhas abandonadas estão seguindo mercenários. Nós conjuramos Vossa Santidade,
pelo bem da fé católica e da salvação das almas, a que reafirme as verdades
contrárias a esses erros. Verdades que nos foram ensinadas pela bimilenar
Igreja de Jesus Cristo.
Dirigimo-nos a Vossa Santidade com os sentimentos de São
Paulo com relação a São Pedro, quando aquele o censurava por não seguir a
verdade do Evangelho (cf. Gl. 2,11-4). Com esta atitude, cumprimos um dever
para com os fiéis que perigam na fé.
São Roberto Belarmino, exprimindo, aliás, um princípio geral
de moral, afirma que se deve resistir ao pontífice cuja ação seja prejudicial à
salvação das almas (cf. 'De Romano Pontífice', lib. 2, c. 29).
É com a intenção de auxiliar Vossa Santidade que lançamos
este grito de alarme, que se torna ainda mais veemente diante dos erros, para
não dizer heresias, do Novo Código de Direito Canônico, e as cerimônias e
discursos ao ensejo do 5.° Centenário de Lutero. Verdadeiramente,
ultrapassaram-se os limites.
Exprimindo-lhe nosso filial devotamento, rogamos à
Santíssima Virgem Maria sua especial proteção sobre Vossa Santidade.
Rio de Janeiro, 21 de novembro de 1983, Festa da Apresentação
de Nossa Senhora.
+ Marcel Lefebvre, Antigo Arcebispo — Tulle.
+ Antônio de Castro Mayer, ex-bispo — Campos.
A CONSAGRAÇÃO DO DIA 25 DE MARÇO DE 198416
“Coincidência — Só em 1984 soube-se que com data de 8 de
dezembro de 1983 João Paulo II mandara uma carta a todos os bispos do mundo,
para convidá-los a unirem-se a ele, e suas respectivas dioceses, na consagração
do mundo ao Imaculado Coração de Maria, no dia 25 de março de 1984.
“Ora, em 9 de dezembro de 1983, no dia seguinte a essa carta
e ainda sem ter nenhum conhecimento dessa iniciativa, monsenhor Lefebvre e dom
Antônio de Castro Mayer tornavam pública a 'Carta Aberta ao Papa' denunciando
as principais causas da hodierna tragédia eclesial, cujo documento anexo
terminava com a seguinte frase: 'É tempo de a Igreja recuperar sua liberdade de
realizar o Reino de Nosso Senhor Jesus Cristo e Reino de Maria sem se preocupar
com seus inimigos.'
“Deve-se dizer que João Paulo II mandara anexar à sua carta
do dia 8 de dezembro aos bispo do mundo o seu texto de consagração, que era
essencialmente o mesmo do ato efetuado em Fátima no dia 13 de maio de 1982 e no
sínodo dos bispos no dia 16 de outubro de 1983, onde, como se viu, é omitido o
nome da Rússia.
“Chegou-se assim ao dia 25 de março de 1984 e o papa, em
Roma, diante da estátua da Virgem trazida de Fátima para esta ocasião, recitou
seu 'ato de entrega' que redigira para consagrar o mundo a Maria Santíssima.
Nessa ocasião, notou-se que fugia brevemente do texto acrescentando estas
misteriosas palavras: 'Ilumina especialmente aqueles povos de que Tu mesma
esperas a nossa consagração e o nosso ato de entrega.'
“Não houve notícia, nem antes nem depois, de que os bispos
tenham aderido ao convite papal, dando à consagração um caráter colegial e
universal. Por conseqüência, clero e fiéis ficaram em todo mundo e mesmo em
Roma, indiferentes ou estranhos ao ato do papa, descrito não como um pedido
explícito de Nossa Senhora em Fátima, mas como se fosse sugerido pela pessoal
devoção mariana de João Paulo II. Nem faltaram as objeções dos 'ecumaníacos'
(maníacos do ecumenismo), tanto bispos como fiéis ou padres, preocupados com as
reações negativas dos protestantes ao processo de conúbio da nova Igreja
conciliar.
“Mais ainda, considerando as palavras misteriosas
pronunciadas pelo pontífice na ocasião, poder-se-ia indagar se havia nelas a
intenção secreta de satisfazer o pedido de consagração da Rússia ao Imaculado
Coração de Maria. Se assim é, como tudo indica, é preciso fazer algumas
observações.
“O católico sabe que 'sem a fé íntegra e pura é impossível
agradar a Deus' (Ebr. XI, 6). E se sem a fé é impossível agradar a Deus, ainda
menos possível é dar-lhe a devida glória e reparar as ofensas cometidas contra
Ele, contra Sua Igreja, contra Sua Santíssima Mãe, reparação e ofensas estas
que são, em síntese, ligadas à fé e assim ao pedido de Nossa Senhora em Fátima.
“Ora, o ateísmo e as heresias são essencialmente
reivindicações do direito de juízo e escolha sobre as verdades reveladas, das
quais se rejeitariam todas, ou as consideradas incompreensíveis ou
inaceitáveis. A Igreja hoje está ameaçada de fora pelos ateus e dentro pelos
propugnadores de heresias que são secundados por quem, com uma 'caridade sem
fé' já condenada por São Pio X, procura atenuar, ofuscar ou calar verdades
reveladas que possam desagradar os 'irmãos' que as hostilizam.
“Posto isto, pergunta-se: seria possível satisfazer o pedido
de consagração da Rússia ao Imaculado Coração de Maria com um ato hermético,
com alusões veladas e apenas intuíveis? Pode-se desse modo prestar a glória
devida a Deus? Impossível. A consagração só pode ser cumprida como pediu Nossa
Senhora: de modo solene, universal e explícito. Somente assim é uma confissão
de fé à altura de quem, na fé, vence os temores humanos e pela fé dispõe-se à
retratação dos erros que a ameaçam e à reparação das ofensas e males que
causam.
Desses erros o mais bestial e agressivo é o comunismo ateu,
mas os mais insidiosos e corrosivos são os desvios e heresias conciliares que
levam a um ecumenismo ferrenhamente antimariano, soprado pelo espírito inimigo
de Fátima, que só pode conduzir ao abismo.
“Nas aparições de Fátima brilham os grandes dogmas marianos
e católicos que falam da salvação, mas lembram do perigo da perdição eterna.
Eis porque sua mensagem é uma verdadeira prova de fé ou de apostasia. E como a
apostasia moderna é estranhadamente antimariana, como o seu inspirador que
ameaça de morte a fé na Igreja, ao seu chefe foi pedido um ato de coragem na
fé: a solene consagração da Rússia ao Imaculado Coração de Maria, que a
converterá diante dos olhos estarrecidos do mundo, corrompido pelos seus erros
e apavorado pelo seu poder destruidor. E assim na luz e força insuperáveis da
fé seriam também dissipados erros e heresias que flagelam a Igreja.
“É claro, pois, que o caminho para chegar a essa autêntica
consagração fiel ao pedido de Maria Santíssima não pode deixar de passar pela
estrada estreita da fé sem mancha, lembrada no 'Manifesto Episcopal' dos dois
bispos que dessa fé são fiéis testemunhas, e nunca pela avenida larga dos
aplausos, das adulações e das tenebrosas cumplicidades ecumênicas que humilham
a Santa igreja.
“A alguém poderá parecer que um ato de consagração a Maria é
sempre boa coisa. Essa idéia só é verdadeira em sentido absoluto. Quando há um
pedido específico de Maria Santíssima ela é falsa. E assim, um ato velado,
parcial, truncado, quando foi pedido um ato claro, universal e uma explícita
menção da Rússia, nada tem da glória devida a Deus pela Sua Igreja. Eqüivale a
insinuar à Rainha do Céu e da Terra que o seu pedido é inoportuno, exagerado,
incompreensível, e impor como resposta uma consagração revista e corrigida pela
sagacidade e diplomacia humanas, com a qual o Céu deveria contentar-se. Mas,
haveria nessa mentalidade o amor e a confiança que os filhos da Igreja devem à
Mãe do Céu, Sedes Sapientiae, Virgo Prudentíssima? A resposta seria supérflua.
“A esse ponto voltam à mente as palavras de Pio XII (p. 20).
“Como se poderia obter de Maria Santíssima a conversão da
Rússia, se o ato mesmo da consagração pedida para esse fim já está
intrinsecamente viciado por compromissos, mais ou menos visíveis, com esse
mesmo comunismo ateu que se teme acusar, e de que a Rússia é o centro de
difusão mundial, mal esse que hoje corrompe os próprios ambientes
eclesiásticos?
“Como seria possível obter a conversão da Rússia, quando na
consagração pública feita para tal fim se evita mencionar o nome do mal que a
sufoca, que é ameaça crescente para o nosso tempo e contra a qual a Mãe celeste
debalde indicou os antídotos?
“É tempo de a Igreja recuperar sua liberdade de realizar o
Reino de Nosso Senhor Jesus Cristo e o Reino de Maria sem se preocupar com seus
inimigos. A resposta que os dois valorosos bispos davam no dia seguinte ao
convite do papa, mesmo desconhecendo-o, soou mais atual que nunca.
Como se vê, a lembrança da verdade é sempre oportuna, mas o
que para os católicos em geral pode ter passado despercebido, para João Paulo
II, que no dia anterior mandara aos bispos um texto que sabia insuficiente,
seria uma resposta tempestiva a essa obstinação, como a dizer: continuais
prisioneiro de vossos compromissos. Não tenhais medo!
QUANTA VERGONHA!17
“O Manifesto Episcopal deve ter lembrado a muitos católicos
esquecidos, e que acabaram por acostumar-se com as mudanças pós-conciliares,
que havia em aberto graves questões de fé desde os dias do Concílio, que as
novidades na prática religiosa só fizeram tornar crônicas e ... indiferentes.
De fato, os católicos haviam visto tantos absurdos promovidos por autoridades
eclesiásticas que na impossibilidade de compreendê-los ou corrigi-los, acharam
que o jeito era desinteressar-se e esquecer.
“Limitemo-nos agora aos dias que se seguiram a essa denúncia
dos dois bispos, para vermos a resposta prática que o destinatário da carta, o
papa João Paulo II, daria às questões lembradas.
“Pois bem, já no dia 11 de dezembro iria ao templo Luterano
de Roma, onde chegou até mesmo adiantado. Havia sido convidado?
“Eis os fatos dos bastidores dessa visita como foram
referidos (sem desaprovação) na revista Carroccio de 22 de janeiro de 1984:
Para que João Paulo II pudesse pronunciar umas palavras e o resto do seu
“sermão” no culto vespertino dos luteranos foi preciso entabular longas
negociações, que se prolongaram até o domingo, dia 11, enquanto o papa estava
na paróquia vizinha de São Camilo. Discussões sobre a duração desse discurso,
que, aliás, teve de ser abreviado, sobre onde o papa deveria sentar-se (mais
baixo que o pastor, como um comum leigo, ao lado ou em frente do pastor Meyer),
sobre a bênção final e como chamá-lo. Decidiu-se por “santitá”; única palavra
em italiano e não em alemão de todo o culto. Essas discussões os luteranos as
tiveram não só com as autoridades católicas mas também internamente, com
inúmeros particulares, para dar a esse encontro um valor rigorosamente local, a
ponto de ter-se paramentado na ocasião com vestes de pastor, não de decano,
como lhe competia, pois isto seria elevar o nível do encontro que era “com o
bispo de Roma, assim como houve outros com alguns bispos católicos.”
Especificações e distâncias que são sinais quase obsessivos para os
protestantes de nada fazer que pareça reconhecimento do primado pontifício.
“Que degradação! Um pastor protestante ou um chefe budista
têm todo o cuidado em salvaguardar a inexpressiva dignidade dos seus cargos,
enquanto o papa humilha publicamente a real, altíssima dignidade do Vigário de
Cristo, aceitando ser posposto, no curso de visitas oficiais, a ministros de
falsas religiões. Não é preciso deter-se em comentários para intuir o escândalo
de tudo isso para os católicos.
“A dignidade de um cargo é coisa bem distinta da dignidade
da pessoa que o ocupa. Um rei, um presidente de república, podem humilhar a si
mesmos, mas não lhes é lícito humilhar a dignidade do próprio cargo. Por razões
muito superiores, não é lícito a um papa humilhar a sua dignidade de Vigário de
Cristo, porque esta tem por fundamento a própria Pessoa de Cristo que ele
representa. Mas, contrariamente a isto, já começou com Paulo VI a busca da
própria glória à custa da dignidade papal da qual mostrou dispor livremente
como de coisa própria e pessoal e os seus sucessores continuaram na trilha por
ele traçada. [Referência ao abandono de trirregno, e depois da coroação, como
se essas dignidades fossem devidas à suas pessoas e não a Cristo Rei. É a falsa
humildade.]
“Ao alinhavar estas breves reflexões sobre a recente viagem
a Papua — Nova Guiné de quem não é um simples chefe de estado, mas o Vigário de
Nosso Senhor na Terra, temos o coração dolorido, mas não podemos cancelar o
acontecido, e calar de nossa parte seria omissão muito grave.
“— Novidades litúrgicas — Dia 8 de maio, em Mount Haggen,
pela primeira vez na história uma moça participou de uma missa papal como
'ministro da palavra': fez a primeira leitura vestida com uma tanga de folhas e
o peito nu (cf. Il Tempo, Roma, 9-5-1984). Diz o jornal: Trata-se de Susan
Kenye, estudante de 18 anos do Holy Trinity College de Mount Haggen. Uma
indígena, talvez? O nome leva a duvidar e o Osservatore Romano fala de
estudante em costume indígena, em todo caso não era uma selvagem que não
soubesse ler e ainda por cima aluna de colégio religioso. Portanto, uma
exibição de nudismo planejada e certamente concordada entre os missionários do
verbo divino de Mount Haggen e o séquito papal, esquecidos de Gn. 3,21: (depois
do pecado original) 'o Senhor Deus fez para Adão e sua mulher umas túnicas de
peles, e os vestiu.'
“Alguém entendeu na incrível novidade litúrgica uma ligação
com o discurso sobre a inculturação que João Paulo II fez na tarde do mesmo dia
ao episcopado de Papua — Nova Guiné. Mas essa tal inculturação não poderá
jamais significar a aceitação do que, nos usos e costumes dos diversos povos, é
fruto da decadente natureza humana e fonte certa, como o nudismo, de ulterior
decadência moral: seria trair a missão da própria Igreja católica. Fica,
portanto, a amarga consideração de que depois das 'novidades litúrgicas' dessa
missa papal de Mount Haggen será ainda mais difícil para os sacerdotes
católicos ensinar o pudor, a decência e a castidade [insistentemente pedidos em
Fátima.]
“No curso dessa mesma missa 'no Ofertório começou uma
procissão com dança ritmada por tambores e de tanto em tanto o general da banda
lançava ao ar com a boca um punhado de pó, alternadamente amarelo e vermelho,
para afugentar simbolicamente da assembléia os espíritos malignos.'
“A inserção no ato mais sublime da fé católica de um rito
pagão supersticioso já é per se uma profanação. Feito na presença de quem tem o
mandato de confirmar na fé torna-se, como a precedente 'novidade litúrgica',
outro escândalo para a Igreja universal (Católica).
“Quando em Manágua (Nicarágua) a celebração da missa foi
perturbada pelo indigno comportamento de agitadores políticos locais, foi dito
que o papa empalideceu com a profanação. E, no entanto, aquele episódio foi
pouco, em comparação com as profanações de Mount Haggen, onde a fé e a moral
católica foram renegadas de fato por quem delas deveriam ser mestres.
“Honra ou desonra? — Dia 9 de maio João Paulo II nas Ilhas
Salomão assiste sorrindo (fotos) à exibição de um grupo de 'dançarinas do
ventre'. É verdade que é uso local 'honrar' desse modo os hóspedes. Mas parece
que nem o bispo nem o clero local que organizaram o recebimento do papa, nem
seu séquito, tiveram suficiente, não dizemos fé, mas bom senso para compreender
que para o vigário de Cristo tal recepção podia ser somente desonrosa.
“A humilhação do papado — Dia 10 de maio o papa está na
Tailândia, onde irá visitar 'Sua Santidade' Vasana Tera, supremo patriarca do
budismo tailandês. Eis a reportagem de Il Tempo (11 de maio):
“O venerando ancião de 87 anos, em sua veste cor açafrão,
estava sentado sobre os joelhos na posição meditativa dita da iluminação, fiel
imagem do buda de ouro que tinha às suas costas. A figura imóvel de quem
aprendeu desde a infância a técnica da meditação budista, que consiste em negar
qualquer sentimento, mesmo do próprio eu, não se moveu. Ele não expressou o
mínimo sorriso quando viu entrar o seu colega vestido de branco. O clamor, a
exultação e a comoção espiritual que o pontífice romano suscita em todo o mundo
não podia nem arranhar esse 'nirvana', essa paz ultraterrestre. Tanto mais que
o 'séquito mundano' — que aos olhos desses bonzos é representado pela imprensa
internacional — foi rigorosamente mantido a distância desse encontro entre pessoas
dedicadas à abstração de si mesmas e à pura contemplação.
“João Paulo II entrou nesse templo real, resplandecente de
luzes, e teve que tirar os sapatos. Enquanto o supremo patriarca parecia não
dignar-lhe sequer um olhar, o pontífice romano inclinou-se diante do bonzo (e
do buda que estava às suas costas) para ir sentar-se numa cadeira posta diante
dele, mas num estrado muito abaixo de onde estava a máxima autoridade budista.”
NOVA ETAPA ECUMÊNICA IRREVERSÍVEL
É inegável que na viagem que fez à Suíça, em junho de 1984,
João Paulo II acelerou o passo no caminho ecumênico iniciado pelo Concílio
Vaticano II. No primeiro dia em Genebra, participou de um encontro de oração no
CEC, Conselho Ecumênico das Igrejas, que reúne 300 igrejas-membros, ortodoxas,
anglicanas e protestantes. Lá, falando de seu ministério de bispo de Roma (não
pontificado), confirmou que o novo engajamento era irreversível e tudo na
Igreja Conciliar, mesmo o novo código canônico, exprime a obrigação de promover
o movimento ecumênico.
Teve ocasião, depois, de comemorar Calvino e Zwinglio,
ferozes inimigos da Igreja, aos quais dispensou compreensão e desculpas.
Quando, porém, esteve em Sion, a dez minutos do próspero Seminário de Ecône,
não deu o menor sinal de querer encontrar-se com seu fundador monsenhor Marcel
Lefebvre, que havia antes pedido para encontrá-lo. Era uma tácita confirmação
da resposta negativa que dava João Paulo II ao “manifesto” dos dois bispos que
haviam denunciado o falso ecumenismo que se afasta da doutrina tradicional.
Punha-se a questão: pode subsistir essa Igreja conciliar na
Igreja católica, que há séculos ensina como dogma de fé ser a única Esposa de
Cristo e, portanto, a única Arca de Salvação? Além disso havia a questão de
localizar a origem de tanto engano e saber até que ponto o responsável supremo
pela fé podia eximir-se de responder a estas gravíssimas questões, enquanto, na
prática, acelerava o processo ecumênico.
Dom Mayer respondeu:
“Na raiz de todo esse mal está o falso ecumenismo instalado
com o Vaticano II. Este apresenta-se mais como uma práxis que como uma
doutrina. A doutrina encontra-se na declaração Dignitatis Humanae, com a qual o
Concílio quis sancionar como direito natural do homem a liberdade religiosa,
entendida como liberdade de religião. Para a doutrina católica esse direito
seria uma aberração lógica, se antes não fosse uma blasfêmia, como foi dito no
Manifesto Episcopal. De fato, é impensável que a Igreja, cuja voz é a mesma voz
de Deus, possa afirmar o direito do homem de escolher entre as mais variadas
concepções humanas de Deus, contra a verdade única que Deus mesmo revelou de
Si.
A doutrina, portanto, contida nessa declaração conciliar é
herética. O Vaticano II, declarando direito natural do homem seguir a religião
ditada pela própria consciência, ou não seguir nenhuma, proclama o direito ao
erro. Ora, o erro não pode ser o fundamento de direito algum. O erro é contra a
natureza humana feita para a verdade. Como pode ele reivindicar conformidade
com essa natureza ? Acresce que nessa matéria há uma lei divina que importa na
obrigação por parte do homem de professar a religião católica. Como poderia a
Igreja conceder direito contra essa vontade soberana? Pior ainda: como poderia
dizer que esse direito contra a vontade divina é um direito natural? Fundado,
pois, na própria natureza humana? Só admitindo que o homem está acima de Deus!
Ora, isso é pior que heresia: é uma aberrante apostasia! Portanto, o Concílio
Vaticano II proclamou uma heresia objetiva. Os que seguem e aplicam essa doutrina
têm demonstrado uma pertinácia que normalmente caracteriza uma heresia formal.
Ainda não os acusamos categoricamente dessa pertinácia para dirimir a mínima
possibilidade de ignorância sobre questões tão graves. De qualquer modo, mesmo
que essa pertinácia não se manifestasse na forma de uma efetiva ofensa à fé,
manifesta-se claramente na omissão em defendê-la.
A Igreja que adere formal e totalmente ao Vaticano II com
suas heresias não é nem pode ser a Igreja de Jesus Cristo. Para pertencer à
Igreja católica, à Igreja de Jesus Cristo, é preciso ter fé, ou seja, não pôr
em dúvida ou negar um artigo sequer da Revelação. Ora, a Igreja do Vaticano II
aceita doutrinas que são heréticas, como vimos. Pode-se admitir, porém, a
possibilidade de que haja fiéis em boa fé que não sabem ter o Vaticano II
aderido à heresia. Mas, bispos? É difícil admiti-lo, mesmo não a excluindo como
possibilidade absoluta.
Quanto à possibilidade de que um papa governe a Igreja
rejeitando o que ela definiu, a história registra o caso do papa Honório I,
condenado postumamente pelo III Concílio Ecumênico de Constantinopla e pelo
papa São Leão II, por ter “... permitido com uma traição sacrílega que fosse
manchada a fé imaculada.” (DZ 563)
É certo, porém, que a Igreja católica é a única Esposa de
Cristo. Não há outras. Apresentá-la como “uma entre outras” é equiparar a
verdade ao erro, o que é a essência de toda heresia. Uma Igreja engajada
irreversivelmente nesse ecumenismo pós-conciliar não é a Igreja de Cristo,
Igreja Católica Apostólica Romana. Os católicos, para conservar-se fiéis aos
ensinamentos de Nosso Senhor Jesus Cristo, devem estar alertas e vigilantes
para não se deixarem levar por essa falsa igreja.” (Entrevista concedida ao Jornal
da Tarde de São Paulo, dia 6/11 /1984.)
AS PERSEGUIÇÕES À IGREJA E AO SANTO PADRE
“A última perseguição revestirá o aspecto de uma sedução.”
(Père Emmanuel)
O que foi relatado mostra claramente que as perseguições que
flagelam a Igreja e fazem sofrer o santo padre nem sempre vêm de fora. Mesmo
que pareça paradoxal, o rebaixamento e humilhação que tem sofrido o papado,
cátedra suprema da religião revelada, veio pela iniciativa e ação de quem ocupa
fisicamente esse cargo. Mas só não entende isto quem perdeu de vista a que
estão ordenados o papa, suas chaves, a Igreja e tudo o que haja nela: à fé
única. Esta é a perseguida, assim como todas as guerras e revoluções deste
mundo se desencadeiam contra um só: Nosso Senhor e Sua Igreja.
Deste modo, quando um concílio como o Vaticano II produz
documentos que são contra a fé, e se as autoridades responsáveis por isto, ao
invés de verificar com cuidado a acusação, referindo-se ao magistério e às
escrituras, quiserem impô-los, estarão praticando uma violência contra a fé e
perseguindo os que a defendem.
Nesse processo perseguidor usa-se a inversão da ordem
lógica, moral e religiosa: ao invés de verificar se o que foi aprovado pelo
papa, é de fé, dirão que é de fé porque o concílio e/ou o papa o aprovaram,
mesmo que a infalibilidade não tenha sido empenhada nisso.
Ora, se fossem alguns mais abusados a fazê-lo, seria um caso
que a autoridade religiosa mais alta poderia corrigir. Mas, se forem estas
mesmas a impor o que é erro, ou gravemente suspeito, estamos no caso extremo do
engano, prevaricação e perseguição, justamente da parte de quem compete a
defesa da fé e do magistério.
Não há, portanto, nenhuma figura de retórica quando se diz
que uma falsa fé persegue a fé verdadeira, neste caso dentro da própria Igreja,
cuja autoridade é revestida contra ela mesma. Foi para adiar o mais possível
tal iniqüidade que Jesus deu as chaves, junto às lágrimas e ao martírio no Seu
amor. Mas, vendo o fraco pecador Jesus disse que rezaria para que sua fé não
faltasse e acrescentou: “E tu, uma vez convertido, confirma os teus irmãos.”
(Lc. 22,32) Ora, isto mostra que a Pedro e sucessores é garantida a fé, mas
poderia também garantir a coragem, a perseverança, o destemor de chegar até o
martírio para defendê-la? O Evangelho, a História e os fatos do presente
mostram que não. E contra fatos não há argumentos, nem pode haver imposições
exegéticas.
Voltando às questões de perseguições, sabe-se que aquelas do
passado, vindas de fora, só fizeram solidificar a Igreja e expandir sua fé.
Esse fortalecimento foi causa de muita dor física e de martírios, mas não seria
próprio falar de sofrimentos do santo padre, senão no corpo. O Redentor foi
crucificado para que os homens tivessem na verdadeira fé a salvação. A
perseguição do mundo não deve ser temida. Ele venceu o mundo. “Não temei quem
só pode matar o corpo.”
O perigo é outro: “Cuidai para que ninguém vos seduza,
porque virão muitos em meu Nome...” (Mt. 24,4-5). O perigo, a verdadeira
perseguição vem do engano religioso, são as tenebrosas falsidades internas da
própria Igreja. Os sucedâneos político-revolucionários de aparência cristã e
até eclesial.
Ora, aplicando isto à mensagem de Fátima e de modo especial
à parte ainda secreta, observa-se que as autoridades da Igreja não teriam
motivo para esconder o aviso de uma perseguição externa. Ao contrário um
pré-aviso ajudaria a preveni-la, ou senão enfrentá-la. Não, porém, tratando-se
de perseguição interna. Esta envolve culpas e responsabilidades graves de quem
está no governo da Igreja.
Pois bem, é o momento de conhecer mais a fundo o perseguidor
e o perseguido dentro da Igreja invadida e ocupada de modo invisível. Já vimos
antes que a falsa fé sempre perseguiu a fé única.
Isso é fato já ocorrido na História, quando uma hierarquia
eclesiástica e seu clero, quase por inteiro, passaram-se para o arianismo. O
papa Libério também cedeu e, dizendo-se em paz com todos os bispos apóstatas,
excomungou Santo Atanásio, o principal bispo dos raros resistentes. Só depois
de anos de lutas e muitas vicissitudes para sacerdotes e povo, que em grande
parte permaneceu fiel apesar do aggiornamento de seus maiores, a verdade
prevaleceu contra a heresia dessas maiorias episcopais, que com o papa caíram
em erro. A perseguição à fé única fracassou, Santo Atanásio voltou do exílio e
a religião verdadeira retomou seu lugar. '
Foi este um caso incomum na história da Igreja, mas não
único. Antes mencionamos a condenação do papa Honório I por um concílio
ecumênico e pelo papa São Leão II. Foi devido a um compromisso feito com o patriarca
Sérgio sobre a questão monotelita. Um acordo que hoje poderia chamar-se
proto-ecumaníaco, pelo fato de colocar a união de igrejas e pessoas acima da
pureza e integridade da fé.
Na questão das “investiduras”, o imperador Henrique V, para
extorquir do papa Pascoal II concessões e promessas incompatíveis com a
doutrina da Igreja, aprisionou o pontífice que cedeu e depois hesitou
longamente em anular os atos que praticara coagido, excomungando o tirano. Se o
fez, com grande atraso, foi devido à pressão exercida por cardeais e bispos
como São Bruno de Segni, Santo Godofredo de Amiens, São Hugo de Grenoble e
Guido de Vienne, futuro papa Calisto II. Foi então convocado um sínodo sem o
papa, acusado de afastar os fiéis da comunhão em sua obediência. E não é preciso
dizer que a retidão e santidade também dessa vez não estavam do lado do
pontífice, que como não enfrentou devidamente quem perseguia a Igreja,
tornava-se cúmplice dos perseguidores.
Sobre essa dissimulada perseguição camuflada em liberdade e
igualdade ouçamos o papa Pio VII, que viveu as conseqüências da revolução
francesa: “Sob a igual proteção de todos os cultos, esconde-se e disfarça-se a
mais perigosa perseguição, a mais astuciosa que seja possível imaginar, contra
a Igreja de Jesus Cristo e, infelizmente, a melhor combinada para nela lançar a
confusão e mesmo destruí-la, se possível fosse às forças e astúcias do inferno
prevalecer contra ela”. Parecia previsão da abertura da Igreja ao liberalismo,
que dando livre curso ao erro, persegue a única antagonista que lhe se opõe: a
verdade. Eis o que fez a declaração da Liberdade Religiosa aprovada pelo
Vaticano II.
CONSERVAR SEMPRE O “DOGMA DA FÉ”
Na nossa época, em que o perigo que corre a fé tornou-se
culminante, porque a impiedade esfriou a caridade de muitos, e a fé sem a
caridade é morta, apareceu em Fátima a Mãe da Misericórdia. Eis a mulher,
arco-íris do amor, contra o dragão, abismo de ódio. É a luta final que o Livro
da Religião vem contando desde o Gênesis. Este bem pode ser chamado de exórdio
da revelação, fundamento da verdade, princípio do que se deve crer, ponto de
partida da fé.
Ora, tudo isto parece ser o senso comum da expressão “dogma
da fé”, que precede na mensagem de Fátima o terceiro segredo e, portanto, pode
constituir a sua chave ficando ao alcance de todos. Embora não pareça haver
definições teológicas sobre o que possa significar “dogma da fé” por
antonomásia, há então que compreendê-lo; indica o que está em crise e sendo
atacado, hoje, dentro da Igreja.
Pois bem, o ponto de partida, princípio e fundamento da
religião católica, é que as verdades de que é depositária a Igreja foram
reveladas pelo próprio Deus. Como Deus é uno assim como a verdade, a religião
revelada também é única e necessária para atingir a verdade e, por conseqüência,
a salvação do erro, da falsidade e do mal. Assim sendo, a Igreja católica está
fundada sobre este dogma da fé: ser a única verdadeira depositária da
revelação, portanto da verdade, e assim foi colocada por Deus como passagem
obrigatória para a salvação, e tudo que ignore essa fé é, por definição, falso,
nocivo ao bem dos povos, humanamente funesto.
Todos os outros dogmas proclamados pela Igreja decorrem da
revelação única, da verdade ensinada por Deus, cuja fé é indispensável aos
homens para o entendimento do necessário nesta vida e para a salvação na outra.
Eis o que poderia ser chamado de “dogma da fé”; o princípio pelo qual a fé é
una e necessária — creio Deus, creio a Deus, creio em Deus. Se quiserem
chamá-la de fé tradicional, não há objeção. Contanto que seja a única
verdadeira e sendo universal, é chamada católica, sendo ensinada pelos
apóstolos, é chamada apostólica, e sendo especialmente confirmada, explicada e
presidida pelo sucessor de São Pedro em Roma, é chamada romana.
Eis que o dogma fundamental na Igreja Católica Apostólica
Romana é ser a única arca de salvação, não porque os homens assim o dizem, mas
porque Deus assim o revelou. Este fato e esta verdade tornam-se, portanto, o
pressuposto do ensinamento salvífico, ou seja, a submissão ao ensinamento da
Igreja e de seu chefe na Terra, o papa, é indispensável para a salvação de
todos. É o próprio dogma revelado que pela sua origem, pela sua inestimável
importância e pela sua necessidade vital deve ser reconhecido infalível pelos
fiéis, como a Igreja e seu chefe o ensinam.
Ora, sobre tudo isto o modernismo, coleção de todas as
heresias, joga suas sombras de muitas e diversas maneiras, como cada heresia o
fez em um particular aspecto. A dúvida que sozinha reuniria todas, seria o
reconhecimento de diversas revelações e da equivalência entre elas, além de
outras religiões, ideologias e filosofias humanas. Seria o indiferentismo
religioso, pelo qual todas as idéias são igualmente boas, mas dispensáveis, num
pluralismo de bons sentimentos.
Essa idéia de que são muitas as boas opiniões, como
ideologias, como religiões, e de que uma sociedade civilizada deve dar a seus
membros o direito de escolher entre elas, deve assegurar essa liberdade de
opinião e de religião, veio com o liberalismo, cuja grande “descoberta” foi a
aplicação da liberdade não só àquilo que o homem aspira para aperfeiçoar-se na
verdade, mas também àquilo que serve para exercitar-se no erro. Essa falsa
liberdade do homem se apoiava na relativização da verdade e do bem.
Curiosamente, diz-se hoje que isto marcou o início da era
moderna, quando a razão humana erguia-se “definitivamente” como critério
absoluto da verdade em detrimento da fé. O grande empecilho da sua intrínseca
imperfeição ficaria pela utopia de um evolucionismo sem limites. Quanto à fé,
era confinada ao limbo reservado aos sentimentos interiores, que devem ser
respeitados somente como tais. Era o triunfo do dogma iluminista da supremacia
da razão como única fonte da verdade frente à revelação.
Mas se na sociedade civil este triunfo começou no século
XVIII, na Igreja ainda era duramente condenado pelos papas até a metade do
século XX. Nessa época, porém, as infiltrações na hierarquia e no clero já eram
devastadoras. Foi provavelmente em 1960, quando o “aberturismo” de João XXIII
ao mundo era um fato consumado, que dentro da Igreja também se instaurou a era
moderna que com o Concílio Vaticano II ficou “irreversivelmente” reconhecida e
afirmada pelos inovadores. Mas para nós, católicos, não é o juízo humano que
conta, mesmo se desse lado se ache quase a totalidade de consagrados e mesmo o
papa. Conta o que ensina a doutrina revelada, senão deixaria de ser a única
religião para transformar-se, ela também numa ideologia humana de um partido
qualquer.
A Igreja ensina que o “dogma de fé” é premissa obrigatória
para os católicos. É de fato dogma que fora da Igreja Católica Apostólica
Romana não há salvação. É claro que, sendo a mente das pessoas só conhecida por
Deus, Juiz perfeito, só Ele pode aquilatar se há culpa e em que grau para cada
um também em desconhecer essa verdade.
De qualquer modo, preservar o “dogma da fé” e ensiná-lo é
absolutamente necessário e é um dever para os católicos, tanto mais para os
consagrados na Igreja católica, especialmente se membros da sua hierarquia.
Todos devem testemunhar que o Juiz supremo instituiu a Igreja como única
depositária da revelação e, portanto, como Seu tribunal terreno, distribuidora
de penas, mas, também, de Sua graça. No segredo de Deus, pode haver almas fora
dessa jurisdição, excepcionalmente absolvidas na outra vida se encontradas em
boa fé; mas sua religião, ideologia ou seita devem ser sempre condenadas,
porque são sistemas humanos para negar ou modificar a verdade revelada,
conduzindo seus aderentes ao erro.
Deste modo, se a premissa da fé consiste na existência de
uma única religião e, portanto, de uma única Igreja verdadeira que a professe,
a heresia contrária a ela consiste em admitir que as religiões contenham cada
qual um aspecto da verdade, uma interpretação parcial, mas, correta, da
revelação, alguns elementos da graça divina, enfim que se equivalem, grosso
modo, principalmente pela possibilidade de despertar, nos diferentes
indivíduos, sentimentos religiosos que irão ajudá-los a realizar suas próprias
personalidades e alcançar a dignidade de pessoas humanas.
Com isto, também o conceito de dignidade à imagem e
semelhança de Deus, como foi revelado, passa a sofrer retoques. O essencial e
importante seria a fidelidade ao credo, gnose ou sentimento ensinado pela
religião, seita ou partido a que se pertence. A verdade deixaria de ser
objetiva para tornar-se subjetiva e, portanto, sujeita aos humores, sonhos e
utopias que a mente do homem acolhe. Preservadas as conveniências políticas e
sociais do respeito ao dever, comportamento ordeiro e fraterno, cada um seria
livre de seguir ou inventar a verdade que preferisse. É claro que, nesse
quadro, querer lembrar, ensinar ou, pior, proclamar uma verdade revelada e
única passa a ser “aberração reacionária” e o proselitismo correspondente um
crime contra a liberdade de consciência. Eis a subversão pastoral em que cai o
neo-ecumenismo. Nele, a noção prioritária de verdade e de eventual tolerância
ao que lhe é contrário cede às múltiplas noções de unidade e liberdade,
criando, por conseguinte, um direito “fundamental” e “natural” que assegure a
escolha e liberdade de religião, mesmo uma seita qualquer como a de Jones,
responsável pelo suicídio coletivo na Guiana.
Resumindo assim as diferenças entre o que se chamou “dogma
da fé” e a neo-ecumênica “escolha na fé”, a primeira é única, necessária,
obrigatória, e suas verdades constituem dogmas acima da inteligência humana; a
segunda é múltipla, optativa, dispensável, e suas verdades estão sujeitas à
opinião e à escolha humanas, podendo evoluir com o utópico progresso moral
democrático.
Ora, a origem da palavra heresia é justamente escolha. O
homem moderno há muito habituou-se a ver aplicada essa livre escolha em tudo.
As diversas declarações de direitos humanos não fazem mais do que afirmá-las.
Nada disso, porém, no campo da verdade, do bem e da moral pode ser considerado
direito pela Igreja, cujas declarações, embora pronunciadas por homens, vêm só
do depósito de fé dado por Deus, e, portanto, vêm em nome de Deus.
Quando um hierarca eclesial diz que os homens são livres
para escolherem em que acreditar, elegendo a própria religião ou nenhuma, e que
esta liberdade é um direito fundamental devido à dignidade do homem e sua
moderna maturidade, faz uma afirmação contrária à doutrina católica e,
portanto, a quem revelou as verdades divinas, que, estas sim, os homens devem
escolher para salvar-se.
Portanto esse hierarca engana, não fala como hierarca
católico. Pois bem, estes ensinamentos errôneos provêm do Concílio Vaticano II,
como explicou claramente dom Antônio de Castro Mayer. Conclui-se que, para
conservar o “dogma da fé”, não se pode aceitar esse concílio, que encerra
matrizes heréticas e também cismáticas.
Quem confessa o “dogma da fé” sem compromisso e
neo-ecumenismos satisfaz a primeira condição agradável a Deus segundo São
Paulo: “Sem fé é impossível agradar a Deus” (Hb., 11,6). Assim como: “Há um só
Senhor, uma só Fé, um só Batismo” (Ef., 4,5).
Só dessa premissa pode vir a esperança: “De instaurar todas
as coisas em Cristo” (Ef., 1,10). E isto pela oração feita ao Pai Nosso que
ensina a dar, primeiro, glória ao Pai, para, então, pedir. Pedir o pão com o
perdão. Pedir que nos preserve da tentação, como do mal. Se a primeira condição
para sermos agradáveis a Deus foi a de ter fé, a seguinte está em demonstrar
isto pedindo tudo de que necessitamos. Se a premissa é crer, a conclusão é
pedir. A fé no Deus que é Amor e Verdade implica a esperança de Sua ajuda e
vontade de salvação, e na caridade... de pedir. Pedir a Deus tudo o que
necessitamos é confissão de fé, é confirmação de esperança, é criar as
condições para a sua glória em atender-nos. Deus que, sendo a Verdade plena, de
nada necessita; sendo o Amor infinito, precisa de nossos pedidos de servos
inúteis, para salvar-nos. Dar glória a Deus é não só nosso indeclinável dever
como nosso incomensurável benefício. E como atingi-lo senão pela prece
contrita? E tudo segundo o ensinamento: “Em verdade vos digo que se pedires a
Meu Pai alguma coisa em Meu nome, Ele vô-la dará” (Jo., 16,23). “Pedi e vos
será dado; buscais e achareis; batei e abrir-se-vos-á (Mt., 7,7). Eis que o
homem que pede a Deus faz um ato de fé esperança e caridade. Este ato foi
pedido à Igreja na mensagem de Fátima. Pedindo a conversão da Rússia pela
consagração ao Imaculado Coração de Maria, foi pedido um ato de esperança no
poder de mediação de Maria, segundo a vontade de Deus que indicou esse caminho.
Foi pedido um ato de caridade, porque quando o pedido for cumprido e a
conversão realizada, será a glória do Imaculado Coração, a restauração da
Igreja, a conversão dos homens.
A INFALIBILIDADE NA FÉ LEMBRADA POR GUSTAVO CORÇÃO
O grande escritor católico brasileiro falecido em 1978,
solicitado a manifestar-se em 1973 sobre a carta enviada a Paulo VI por Jean Madiran
(p. 111-2), lembra a importância da infalibilidade “natural” na fé, de que fala
Santo Tomás de Aquino. Em resumo, para que o homem imperfeito possa conservar a
fé que lhe foi infundida de modo perfeito por Deus, esta fé vem acompanhada de
dons necessários a fim de que reconheça infallibiter o que lhe é contrário. Mas
tal defesa implica naturalmente equivalente grave responsabilidade, que não
será justificada pela defecção, nem de um papa.
E Corção volta à pergunta: “o que é, então, que leva todo o
mundo a este estranho enfraquecimento?”
“Onde procurar a causa principal, a força central que produz
a gradual redução da missa, que encoraja o Institutio Generalis que democratiza
a missa, que aconselha a devolução dos troféus de Lepanto, que inspira os discursos
da ONU, onde foi dito que essa associação é a nossa última esperança? Eu penso
ter encontrado esse cordão central, relendo o 1.º capítulo aos Gálatas.
Diversas lições nos vêm desse texto importante.
“Vejamos logo a primeira, onde o Apóstolo nos ensina uma
coisa muito importante para os tempos modernos. Ele diz aos gálatas, gente
simples e pobre, que é preciso lançar o anátema sobre quem quer que, apóstolo,
papa ou anjo, ousar nos propor um outro evangelho; (...)
“Vejamos agora a segunda lição, a que nos desvela o espírito
que leva as gentes à inquietude, ao gosto das mudanças, à febre das reformas,
ao prurido das novidades. No mesmo 1.º capítulo, São Paulo, depois de ter
explicado o que devemos dizer aos deformadores do Evangelho ou da Missa,
continua: Por que afinal, é a aprovação dos homens ou a de Deus que eu procuro?
Porventura é aos homens que eu pretendo agradar? Se eu agradasse ainda aos
homens não seria servo de Cristo. Três vezes ele nos diz o nome do Cavalo de
Tróia ou do espírito que parece embriagar os católicos modernos: o desejo de
agradar aos homens sobreposto ao desejo de agradar a Deus. Ou às avessas: o
medo de desagradar o mundo.
“Voltemos ao Catecismo de Trento: a Igreja denuncia três
inimigos: o Demônio, o Mundo (ou antiigreja), a carne (ou amor-próprio);
chegamos quase a ver funcionar as engrenagens dessa mecânica do desejo de
agradar. Ele consiste em uma dupla capitulação: para consigo mesmo
(amor-próprio); para com o mundo ou antiigreja: ambos comandados pelos cordões
manipulados pelo Demônio que bem as conhece! É preciso, portanto, combater a
consciência clara dessa mecânica central da subversão. Aqui poderíamos propor
ainda uma idéia muito útil ao bom combate.
“(...) A propósito da evolução das reformas litúrgicas se
lê: 'Ele (o Consilium), perfez o essencial da reforma litúrgica; principalmente
ele a pôs em movimento, ele lhe imprimiu o movimento de queda livre,
uniformemente acelerado...' (...) As grandes intuições por vezes se traduzem em
duas ou três palavras.
“(...) Apliquemos a idéia da queda livre ao nível da
metafísica. No nosso caso diremos: se a causa de um movimento permanece
constante, os efeitos seguirão a lei do movimento acelerado.
“Madiran completa seu exame da mecânica do Consilium com
esta conclusão espantosa: ... 'movimento acelerado que ninguém mais freará'.
Sim, que ninguém freará se admitirmos que ninguém pode reduzir-lhe a causa, que
ninguém pode nem mesmo frear esta força monstruosa que empurra nossa
civilização para o nada, força que é em verdade a fraqueza humana, sim a
fraqueza hedionda deste novo humanismo do culto do homem até o desprezo de
Deus, diante do qual os levitas da Igreja modernizada se desvanecem felizes e
festivos. Mas, o que nos impede de mobilizar-nos sob a bandeira de: AGRADAR A
DEUS? Mas quem então nos impedirá de pôr nossa confiança na força das orações,
a tempo e contratempo?
“Os que resistem são bem mais numerosos do que se pode
pensar.
“Nesta orgulhosa oligarquia dos vivos — como dizia
Chesterton — a parte maior é contra nós, contra a Missa, contra o Catecismo,
contra a Sagrada escritura, mas os mortos trabalham para nós, os Santos estão
do nosso lado nesta cruzada para libertar o Coração da Igreja; a Santíssima
Virgem, Mater afflictorum, quer ajudar-nos — mas nesse jogo da salvação há uma
condição, uma regra: é preciso pedir, é preciso saturar as horas do dia com
preces incessantes. Batei, e vos será aberto, orai sem cessar, importunai a
Deus e Ele vos ouvirá. É bem verdade que Ele não esconde Sua Ira pelos abusos
da graça feitos por essa civilização perversa, que teve à sua disposição a
abundância dos bens da Igreja na plenitude de Sua beleza.
E eis o que desvela um pouco o mistério sombrio da permissão
de Deus de que se fartam os novos levitas que abriram as portas da Igreja ao
culto do Homem até o desprezo de Deus!” (RSP p. 266-269)
Tudo o que se faz para lembrar e divulgar a mensagem de
Fátima é coerente na medida em que mostra o quanto a Mater afflictorum quer
ajudar seus filhos submetidos à orgulhosa oligarquia dos vivos. Essa ajuda vem
pelo aviso dos perigos, pela lembrança da necessidade de oração e penitência,
segundo os perenes ensinamentos da Igreja, mas vem também através de pedidos
especiais. É preciso pedir sempre, mas é preciso saber pedir também, conforme é
indicado.
Gustavo Corção, que nesse escrito não falou de Fátima,
lembra, porém, o que aqui queremos lembrar: a ira divina pelos abusos feitos
por essa civilização perversa contra a abundância de graças de que dispõe a
Igreja. Nela os levitas e fariseus modernos abriram as portas aos detritos do
mundo até o desprezo das graças de Deus.
Fátima é o espelho dessa prevaricação eclesial sem exemplo.
Voltando ao escândalo do terceiro segredo escondido no Vaticano, percebemos
logo que temos de pedir e suplicar ao Céu. Essa mensagem foi dada para a
salvação das almas, para a paz das nações, para a renovação da Igreja, tudo na
maior glória de Deus pela honra aos Sacratíssimos Corações. Revela ser a única
saída, e, todavia, é censurada, criticada, esquecida e arquivada. Quanta
vergonha! Bastaria que deixassem falar irmã Lúcia, ou o bispo de Leiria, ou
qualquer prelado que os ouvisse ou lesse o segredo, sem empenhar a
respeitabilidade da autoridade vaticana. Mas o que se faz é bem o contrário.
Diz Fr. Michel de la Sainte Trinité: “É um fato assombroso! Há 25 anos o
segredo de Fátima, só ele, está de certo modo no Index. Irmã Lúcia, só ela,
está reduzida ao silêncio. Dia 15 de novembro de 1966 o papa Paulo VI ab-rogou
os artigos 1399 e 2318 do Código de Direito Canônico que interditavam a publicação
de livros e folhetos que propagavam sem autorização novas aparições, revelações
ou profecias ainda não aprovadas pela Igreja. Isto é mantido no Novo Código. E
assim, desde 1966, não importa quem pode publicar e divulgar para os cristãos
as revelações mais fantásticas. Não importa qual impostura, qual diabrura. Nada
mais será interditado. Tudo foi autorizado a aparecer. E o 'Príncipe da
mentira' aproveita-se habilmente dessa licença multiplicando no mundo as
aparições falazes e suas mensagens fraudulentas que, difundidas livremente,
desviam incontáveis fiéis. Somente a mensagem, a mais segura, a mais
incontestavelmente divina, o segredo da Virgem de Fátima, permanece
escandalosamente no Index!”
Isto nos faz ver ainda mais claramente que temos de pedir
não só em modo geral para que Deus nos livre de todo o mal, mas de modo
especial para que a Sua vontade seja feita no que diz respeito a este segredo
dado para a salvação. Devemos pedir aos homens que o façam conhecer, mas
principalmente devemos pedir a Deus que no reconhecimento das lágrimas de Nossa
Senhora “sejam descobertos os pensamentos escondidos nos corações de muitos”
(Lc, 2,35). Isto representa hoje o segredo. Que Deus nos livre desse mal desolador:
os projetos humanos substituindo as mensagens divinas.
O CARDEAL RATZINGER FALA SOBRE O TERCEIRO SEGREDO
Enquanto permanecem pendentes todas as gravíssimas questões
que dizem respeito à fé, já vimos que as respostas ao “manifesto” dos dois bispos,
que são as duas testemunhas episcopais que tiveram a coragem e a clareza de
acusar os erros do Vaticano II, são apenas indiretas e negativas, continuando
tudo como antes.
Agora vejamos o que diz o cardeal Ratzinger, que é prefeito
da Congregação para a Doutrina da Fé e que, portanto, tem por missão e dever
precípuo ocupar-se desses problemas. Ora, como nada declarou sobre o “Manifesto
Episcopal”, que provavelmente não deve ter toda a regularidade burocrática que
esse alto funcionário vaticano quereria, deveremos ler uma entrevista à revista
Jesus para ter uma idéia do que admite e do que continua a ignorar.
“Num mundo onde o ceticismo contagiou também os crentes, é
considerada um escândalo a convicção da Igreja de que exista uma verdade e que
essa verdade seja definível e exprimível de modo preciso. É um escândalo hoje
partilhado também por aqueles cristãos que perderam de vista a estrutura da
Igreja, a qual não é uma organização somente humana e que, portanto, deve
defender um depósito de fé que não é seu. Não seria então mais a Catholica se
esse depósito não fosse comum e aceito por todos.”
Como se vê, o grande “vigilante da fé” admite que o
ceticismo e a negação da verdade objetiva contagiaram até os crentes, mas
parece ignorar, até aqui, que haja uma causa, também definível e exprimível,
que provocou tudo isso e que justamente a ele compete apurar e combater para
defender o depósito único e imutável.
E o concílio? Certamente os resultados parecem opor-se de
modo cruel às expectativas de todos, começando por João XXIII e depois Paulo
VI: esperava-se uma nova unidade católica e foi-se ao contrário, na direção do
dissenso, o qual, para usar as palavras do papa Montini, passou de autocrítica
à autodestruição. Esperava-se um novo entusiasmo e muitos acabaram na desilusão
e no tédio. Esperava-se um salto para frente, e em vez disso nos encontramos
num processo de decadência progressiva que se desenvolveu sob o signo do
concílio e portanto serviu para desacreditá-lo. O balanço parece negativo,
pois; repito o que já disse 10 anos após a conclusão dos trabalhos: é
incontestável que este período foi decididamente desfavorável para a Igreja
católica. Mas esse amargo balanço é, mesmo em parte, atribuível a forças
desencadeadas involuntariamente pelo concílio? Penso que não.
O cardeal segue explicando que o Vaticano II foi vítima do
antiespírito do concílio, que queria tudo novo e que a história da Igreja
recomeçasse a partir desse concílio. Mas, afinal, a “nova unidade”, o “novo
entusiasmo”, o “salto para a frente” que ele mesmo queria e descreveu acima o
que são senão o “novo espírito” antitradicional, anti-mariano e anticatólico?
De que serve a cada dez anos fazer análises amargas sem procurar, com zelo, as
causas dos problemas, sabendo ouvir quem os aponta com coragem?
A doutrina de que cada homem é chamado à salvação se obedece
sinceramente aos ditames da própria consciência, mesmo se não é membro visível
da comunidade católica, esta doutrina, diz o cardeal Ratzinger, “foi
excessivamente enfatizada a partir do concílio, apoiando-se em teorias como a
do 'cristianismo anônimo'; chegou-se a dizer que há sempre graça quando alguém,
não crente em nenhuma religião, ou em uma qualquer, aceita a si mesmo como
homem.”
É incrível como, do observatório que se encontra, este “vigilante”
da fé possa ver esse problema como um fenômeno longínquo, provavelmente sem
conexões com as teorias de “dignidade humana”, “liberdade religiosa” e
“ecumenismo” promulgadas no concílio e aplicadas hoje irreversivelmente na
Igreja Conciliar por João Paulo II.
Seria desejável uma restauração? 'Se por restauração se
entende voltar atrás, não é possível. A Igreja avança para o cumprimento da
sua. história, olha para a frente, para o Senhor. Mas se por restauração
entendêssemos a procura de um novo equilíbrio depois dos exageros de uma
abertura indiscriminada ao mundo; depois das interpretações, por demais
positivas, do mundo agnóstico e ateu, então essa restauração é desejável e,
aliás, está em curso.”
Tratando-se de problemas de fé, como seja possível um
equilíbrio a meio caminho do mundo agnóstico e ateu, deve ser fórmula secreta e
nova desse cardeal, que confessa, porém: “Antes do concílio não entendia
inteiramente certas fórmulas antigas como 'Maria inimiga de todas as heresias';
outras, como 'De Maria numquam satis' pareciam-me excessivas. Mudando a
situação durante e depois do concílio, tive que retratar-me.” De fato, ficou
registrada para a História a sua contribuição no concílio contra o esquema de
Maria e a idéia de que o Seu culto era excessivo, mas agora, no meio de tantos
erros e heresias, ele pode ver o resultado.
Leu o terceiro segredo? “Sim, li.” Por que não é revelado?
“Porque, a juízo dos pontífices, não acrescenta nada de novo ao que um cristão
deve saber da revelação: uma chamada radical à conversão, à absoluta seriedade
da história, os perigos que pesam sobre a fé e a vida do cristão e, portanto,
do mundo. E depois, a importância dos Novíssimos. Se não é publicado — pelo
menos agora — é para evitar que se confunda a profecia religiosa com o
sensacionalismo. Mas o conteúdo desse terceiro segredo corresponde ao anúncio
da Escritura e são confirmados por muitas aparições marianas, a começar dessa
mesma de Fátima na sua parte conhecida. Conversão, penitência, são condições
essenciais à salvação.”
Como se vê, há perigos pendentes sobre a fé censurados.
O cardeal Ratzinger, responsável da Doutrina da Fé,
reconhece a profecia religiosa do terceiro segredo de Fátima. Mais ainda,
confirma indiretamente as razões de seu ocultamento. Senão vejamos: — Contém
uma radical chamada à conversão; esta não é mais repetida pelos pastores. —
Fala dos perigos que pesam sobre a fé; estes não são enfrentados, mas omitidos.
— Fala da importância dos Novíssimos e, portanto, da lembrança do Inferno;
estes avisos preciosos estão apagados na nova “pastoral.” Quanto à absoluta
seriedade da História, provavelmente significa a gravidade dos fatos
prenunciados na mensagem de Fátima e já em boa parte acontecidos. Só faltam os
últimos “sensacionalismos” que virão inevitavelmente desmascarar o “espírito do
concílio” e sua obra de nefasta destruição e apostasia dentro da Igreja.
É claro que a juízo dos pontífices conciliares nada disso
convém revelar. Quanto ao cardeal Ratzinger, voltando ao livro do padre Wiltgen
sobre o “concílio desconhecido”, saberemos que já na primeira sessão ele
exultou porque todo o trabalho preparatório fora descartado. Disse: “Foi uma
forte reação contra o espírito que havia orientado por baixo esse trabalho.”
Com qual espírito associou-se então? Estaria João XXIII sujeito a dois
espíritos antagônicos, um que lhe inspirou o Concílio e outro que o fez
abandonar os esquemas preparatórios? Quantos segredos e mistérios envolve tudo
isso?
Ora, Ratzinger era o jovem teólogo (34 anos) do cardeal
modernista de Colônia, Frings. Junto ao seu festejado mestre Karl Rahner
,trabalharam muito e em uníssono com os bispos da “ala do Reno” que se reuniam
na casa do cardeal. Este, por sua vez, era o influente gestor dos fundos de
Adveniat e Misereor que financiaram a transformação eclesial na América Latina.
Para toda essa gente o problema do concílio estava no esquema especial de Maria
Santíssima, “que resultaria num mal inimaginável para o ecumenismo” (op. cit.,
p. 58,90).
NÃO HÁ SEGREDO QUE NÃO SEJA DESCOBERTO
(Mt. 10,26)
Na luta culminante da história entre a cidade terrena e a
cidade celeste, entre a sinagoga de Satã e a Igreja de Cristo, as armas finais
contra a verdade serão não mais a violência aberta mas o engano sutil; não mais
o embate frontal, mas a sedução sinuosa com o que é de aparência cristã. Serão
os falsos cristos do ensino escatológico de Jesus. Mostrarão como sendo
universal o que é sectário e como doutrina da luz um renovado ocultismo
carismático.
“Satã é o macaco imitador de Deus”, já dizia Tertuliano.
Não se trata certamente de verdadeiras contraposições, pois
a mentira é somente ofensa à verdade, que não pode ter contrário, assim como
falsos cristos e falsos profetas não poderiam ser senão falsos pontífices e
falsos mediadores diante do único Senhor e Mediador Jesus Cristo. E disso
decorre que os opositores de Quem é a Verdade nada mais podem ser que seus
imitadores e parasitas. Reconhecê-los-emos pelos seus frutos. As aparências
serão sedutoras e enganosas e tanto o sectarismo como o secretismo servem a
isto. De fato, estes recursos, mobilizando ocultamente as concupiscências
humanas, conseguem estabelecer pactos e cultos que conduzem a um supremo chefe
inacessível, que cedo ou tarde entronizará o anticristo.
Jesus assim responde ao pontífice: Ensinei sempre na
sinagoga e no Templo, onde concorrem todos os judeus e nada disse em segredo
(Jo., 18,20). Antes, instruindo seus discípulos havia dito: “Não os temais,
pois; porque nada há de encoberto que não se venha a descobrir, nem oculto que
não se venha a saber. O que Eu vos digo nas trevas, dizei-o às claras; e o que
vos é dito ao ouvido, pregai-o sobre os telhados;” (Mt., 10,26)
Ora, se houve um momento para a Igreja em que seus homens
mais operaram em maquinações secretas, utilizando recursos velados e ambíguos,
foi durante o Concílio Vaticano II. Sobre o que deveria ser inserido nas
entrelinhas de seus documentos, quem sabe quantos encontros e pactos obscuros
foram feitos. E hoje seus frutos bem amargos estão aos olhos de todos que
querem ver. É um dos seus teólogos mais ativos a reconhecê-lo, o cardeal
Ratzinger, que fundara a revista Concilium com Rahner, Hans Kung e outros
festejados teólogos liberais para fazer avançar o espírito do concílio. Qual? É
o cardeal que responde em entrevista à revista Jesus (ano VI, 11): “O problema
dos anos sessenta era adquirir os melhores valores expressos em dois séculos de
cultura liberal. Há de fato valores que, depurados e corrigidos, mesmo se
nasceram fora da Igreja, podem encontrar seu lugar na visão do mundo. Isto foi
feito. O clima é diferente agora, mas piorou muito em relação ao que
justificava um otimismo talvez ingênuo. Há que procurar, pois, novos
equilíbrios.”
Eis que o tal espírito conciliar era o mesmo da revolução
francesa, condenado durante dois séculos pelos papas juntamente com as
maçonarias que o insuflavam na sociedade e na Igreja.
O desastre conciliar não tem nem mesmo a desculpa de haver
encontrado um clima hostil na Igreja para aplicar suas novidades. Vindo junto
com os “desejos” do papa, teve as portas abertas e seus arautos, como
Ratzinger, foram premiados com brilhantes carreiras. Mas a corrupção acontecera
antes, como sempre no campo das idéias. E estas naqueles dias, não foram
curadas com a sã doutrina, mas deixadas livres para infeccionar todo o corpo
que hoje agoniza.
São Paulo ensinava aos Coríntios (3,2): “A nossa carta sois
vós, que escrita em vossos corações é reconhecida e lida por todos os homens.”
Até o silêncio e o segredo das mentes pode ser visível. “Quando se converterem
ao Senhor, então cairá o véu.” (II Cor., 3,16)
Quais novos equilíbrios podem procurar sem abandonar os
velhos projetos que se revelaram extraviados? Como corrigir os efeitos sem
remontar às causas? E parece bastante claro que foi a declaração conciliar
Dignitatis Humanae que abriu uma brecha para conceitos liberais maçônicos e
cavou o sulco para o neo-ecumenismo.
O presente impasse tem dimensões inauditas. Deus permitiu
que pelos crimes dos homens fosse o mundo a converter os chefes da Igreja ao
seu humanismo libertário. Forças antropocêntricas atraíram a hierarquia e o
clero a compromissos históricos em torno de utópicos direitos humanos que,
ignorando Deus, suprimem todo juiz. A nova pastoral parece feita para
justificar tudo isto com palavras, enquanto a realidade desoladora desmente a
justiça e a paz aventadas.
A mensagem de Maria Santíssima, para toda a cristandade,
ficou ocultada no Vaticano por razões não confessadas. Mas são os planejamentos
humanísticos e ecumênicos, tão opostos ao espírito de Fátima a desvelá-lo. A
palavra celeste revela mesmo no silêncio o que se lhe opõe. O comportamento
diante da mensagem de Fátima indica as intenções secretas para com tudo que é
de Deus e de sua Igreja, como a repetir a profecia do velho Simão: “E uma
espada transpassará tua alma, a fim de que se descubram os pensamentos ocultos
nos corações de muitos.” (Lc, 2,35) Em verdade, a palavra de Fátima tem sido o
sinal de contradição, a pedra de tropeço que colocada num ano crucial do início
deste século, vai desde então medindo homens e eventos.
A crucificação de Nosso Senhor pelos doutores da lei que não
quiseram reconhecê-Lo Filho de Deus vivo, tem hoje por imagem a crucificação de
sua Igreja pelos seus próprios chefes que não a honram como única Esposa de
Cristo. No ano 70 do Advento foi arrasado o Templo da Jerusalém que não
reconheceu o Salvador. Como será neste século?
Na primavera européia de 1986 completaram-se 70 anos das
manifestações do anjo que veio preparar os pastorzinhos Lúcia, Francisco e
Jacinta para receber a Mãe do Céu que vinha trazer a mensagem de extraordinária
importância para o destino dos homens. Mas esta não foi devidamente recebida e
seguiram-se as guerras e perseguições para “punir o mundo de seus crimes.” Os homens
não mudaram e parte da mensagem é mantida oculta em Roma, a Nova Jerusalém
cristã. Até quando? Será como a profecia de Daniel: “uma pedra se desprendeu de
um monte sem intervenção de mãos humanas e quebrou os pés de ferro e barro,
despedaçando o colosso.” (Dn., 2,34)
As construções, impérios, imagens e alianças dos homens que
reúnem todo o ouro, prata, bronze, ferro e argila do mundo podem atingir tal
poder que não há autoridade humana capaz de enfrentá-los ou contestá-los. Para
Deus basta uma pedrinha que rola da montanha. Estamos hoje diante de um colosso
moderno sem precedentes: o compromisso histórico entre a revolução atéia e a
reforma conciliar. Ambas podem ser filhas da mesma revolução, mas esse
desdobramento de forças, aparentemente tão diversas, podem dominar toda a Terra
para o mesmo dragão que dá o poder às duas bestas apocalípticas.
Teme-se ouvir evocar as imagens apocalípticas. E, todavia,
esse Livro Sagrado nos foi dado para nos guiar sobre fatos decisivos que a
história um dia registrará. Reconhecemos a besta das sete cabeças na revolução
armada. Segue-a a segunda besta, “com dois chifres como os de um cordeiro”, que
é a revolução religiosa que hoje presenciamos. Quem lhe preparou o caminho
senão “a estrela caída do céu na Terra a quem foi dada a chave do poço do
abismo?” A autoridade posta no alto para guiar e iluminar com o poder das
chaves, mas que as usa para abrir aos erros.
Um Judas dos últimos tempos abriu o poço do abismo para
fazer sair àquilo que o homem desejou mais que a Deus: o direito a uma
liberdade moral e religiosa que a revolução sempre insuflou.
A revolução religiosa está gerando um Movimento de animação
espiritual para a democracia universal no lugar da Igreja, e este sugere o
pacifismo diante de avisos apocalípticos como a mensagem de Fátima.
Hoje a revolução conciliar parece imperar junto ao
sincretismo das ideologias do mundo, numa conjura humanamente insuperável.
Ficou para os cristãos uma pequena mensagem escondida. Não foi dada por mãos
humanas. Dependerá destas para tornar-se conhecida de todos?
O IMPASSE DE TEMPOS FINAIS
No século passado, quando a agressão do mundo contra a
Igreja abrangeu todas as esferas, inclusive a político-militar, pela invasão da
Roma pontifícia, o papa Pio IX disse: “Visto que todo o mundo está contra Deus
e Sua Igreja, é evidente que Ele reservou a vitória sobre Seus inimigos a Si
mesmo. Isto será mais claro quando for considerado que a raiz de todos os
nossos males presentes deve ser encontrada no fato de que os que possuem
talento e vigor almejam prazeres terrenos, e não só desertam de Deus, mas O
repudiam completamente. E assim parece que estes não podem ser trazidos de
volta a Deus por nenhuma outra via senão através de um ato que não poderá ser
atribuído a nenhum agente secundário, e assim todos serão forçados a ver o
sobrenatural, exclamando: ‘Isto aconteceu pela intercessão do Senhor e é
maravilhoso para os nossos olhos’! Acontecerá um grande ‘portento’ que encherá
o mundo de admiração. Esse portento será precedido pelo triunfo da revolução! A
Igreja sofrerá enormemente. Seus servos e seus chefes serão escarnecidos,
flagelados e martirizados.” (POT, p. 206)
Pode-se mostrar que essa visão profética do papa Pio IX está
perfeitamente de acordo com o “portento” de Fátima, tanto pela alusão à
maravilhosa intercessão sobrenatural como por suas circunstâncias.
Não há contradição em dizer que o “portento” de Fátima será
precedido pelo triunfo da revolução. As aparições e a mensagem da Mãe Celeste
são um portento que anunciam o portento final: “Por fim, o Meu Coração
Imaculado triunfará. O Santo Padre consagrar-Me-á à Rússia, que se converterá,
e será concedido ao mundo algum tempo de paz.” As aparições de 1917 em Fátima
(em número de seis) anunciavam e, portanto, precediam o domínio da revolução na
Rússia e no mundo. O portento prenunciado por Pio IX é o fim desse poder pela
vitória de Maria. E como isto está profetizado em Suas palavras de Fátima,
ninguém poderá atribuí-la a agentes secundários, mas somente à intervenção de
Quem o anunciou ao mundo há 70 anos.
Na primeira aparição do dia 13 de maio de 1917, Nossa
Senhora disse aos pastorzinhos: “Vim para vos pedir que venhais aqui seis meses
seguidos, no dia 13, a esta mesma hora. Depois vos direi quem sou eu e o que
quero. Depois voltarei aqui ainda uma sétima vez.” (DOC, p. 331.)
A maneira como esta frase está destacada da outra pode
indicar que a sétima vez, número da perfeição, seja a volta triunfal. É velado
o esclarecimento sobre isto. É certo, porém, que o “portento” de Fátima ainda
está por vir em sua forma final e triunfante. Assim foi profetizado.
Passemos então às circunstâncias. Quanto à raiz dos males
dessa época, que vê o inexorável avanço dos “erros espalhados pela Rússia”,
pode-se dizer que essa débácle é muito mais devida aos recuos, discórdias de
espírito sectário de quem deveria defender a civilização cristã do que à
eficiência dos “valores” comunistas. Essa ideologia tem tido resultados
práticos sistematicamente falimentares e sobrevive pelo espaço e ajuda que
obtém dos “adversários.”
Essa deserção e repúdio de Deus e dos valores cristãos de
que falou o sábio papa não podem ser alheios à crise da própria Igreja, ainda
em que seus dias seria inimaginável e impronunciável a autodemolição que
flagela a Esposa de Cristo há 20 anos de pós-concílio, causando-lhe danos
maiores que séculos de lutas, cismas e perseguições externas. Haverá ainda pelo
mundo chefes e servos da Igreja humilhados e martirizados, mas este testemunho
sempre foi uma força que a edificou. É o esfriamento na fé, a apostasia, a
indiferença religiosa que abatem suas resistências como uma leucemia espiritual
que a dessangra. Seus filhos vão perdendo o senso do pecado e não há quem os
alerte. Também suas autoridades perdem a noção clara dos erros que arrancaram à
Igreja povos inteiros pelas heresias ou cismas, como se isto a tivesse dividido
na caridade ou na fé, o que é falso. A Igreja é una. Esta força vem do único
Chefe, Jesus Cristo, que tem Seu supremo poder de jurisdição sobre bispos e
fiéis, representado pelo sumo pontífice. O concílio Vaticano I definiu este
dogma de fé. Quem vai, portanto, contra essa união na caridade é cismático e
também herético. Separa-se tanto do corpo da Igreja como da verdade.
Por esta razão sendo cismáticas as Igrejas chamadas de
ortodoxas são também heterodoxas, professando uma fé diferente da universal
ensinada pelo magistério vivo dos papas. Essa cristalização doutrinal em
fórmulas rígidas e arcaicas certamente as tornaram vulneráveis, senão às
novidades, aos jogos do poder político que se multiplicam sobre corpos
religiosos privados de universalidade e do vigor que só uma cabeça que
representa todo o poder de Nosso Senhor na Terra pode dar. Na Rússia, o poder
soviético cuidou de fundir por decreto a Igreja católica com a ortodoxa. Pretendia
eliminar assim a verdadeira resistência, embora minoritária, e ocupava-se então
de domesticar uma igreja nacional cuja cúpula vergonhosamente aceitou até o
“patriotismo comunista”, como podem demonstrar livros e testemunhos de padres e
intelectuais russos. É famosa a carta do escritor Soljenitsin ao patriarca
Pimen, na quaresma de 1972. Soljenitsin: testemunhos, de André Martin (Ed.
Salesianas, Porto, 1976).
Pois bem, tudo isto está implícito na mensagem de Fátima.
Para salvar a Rússia, Nossa Senhora dirige seus pedidos ao papa de Roma,
pedindo uma consagração ao Imaculado Coração de Maria que é uma verdadeira
síntese de fé católica. Promete com isto converter a Rússia do ateísmo à Fé, da
guerra à paz e do cisma à unidade romana sob o único pontífice que representa o
Bom Pastor na Terra. Esta deverá ser a clara e pública intenção da Igreja que o
santo padre deverá demonstrar para cumprir a consagração, tornando-a
satisfatória.
Eis o problema. Esse pensamento parece estranho à visão
ecumênica dos papas conciliares em geral e de João Paulo II em especial.
Confirma a evidência dos fatos uma otimista revelação. Mas
como pode a Igreja conciliar, gerada de uma matriz cismática, discernir sobre
cismas?
Nos dias em que o turco Ali Agca, que atentara contra a vida
do papa, começou a falar do terceiro segredo de Fátima no tribunal que o
julgava, fazendo referência ao diálogo secreto mantido com o papa Wojtyla, que
fora à sua cela na prisão para perdoá-lo, jornais e revistas voltaram a
ocupar-se do assunto publicando algumas novidades. A revista dos paulinos Madre
di Dio, na edição de junho de 1985 traz uma confidencia do papa ao bispo Paulo
Cordes: “(...) seu constante desejo era nomear expressamente a Rússia dia 25 de
março, no texto da consagração, mas renunciou a isso temendo que suas palavras
fossem interpretadas como uma provocação aos dirigentes soviéticos. Todavia,
essa renúncia a uma expressa e particular consagração da Rússia pesou sempre
sobre o seu ânimo, porque justamente a Virgem mesma dava tanta importância a
este ato. Mas sua tristeza ficou aplacada quando soube que os bispos ortodoxos
da Rússia, tendo sido informados de que o papa se preparava para fazer tinham
providenciado a consagração da Rússia à Virgem.” (La Repubblica, 04/jun./85, p.
17)
Ignora João Paulo II que é o papa que detém o poder único e
insubstituível para isso? Pode essa consagração de ortodoxos separados de Roma
converter a Rússia à Igreja?
Em todo caso, para João Paulo II o ato já foi cumprido. Isto
ele declarou ao padre Pierre Caillon numa audiência no Vaticano, e isto é o que
faz saber através dos prelados que lhe estão mais próximos, como o monsenhor
Paul Hnilica, bispo tcheco-eslovaco exilado em Roma.
É claro, porém, que a consagração pedida, sendo ordenada à
glória de Deus pelo triunfo do Imaculado Coração de Maria, não pode ser um ato
dúbio, pessoal e discutível, mas público e solene a fim de que ninguém possa
duvidar que nele está a causa eficiente da conversão milagrosa anunciada há
setenta anos à Igreja.
Eis, então, o impasse atual: o chefe da Igreja, que tem os
poderes para cumprir o único ato capaz de salvar o mundo de castigos sem
precedentes, não mostra disposição de fazê-lo. A perseguição interna contra a
Igreja e o papado acabou por privar o mundo da única ponte capaz de alcançar a
misericórdia divina, o Pontífice Romano. Hoje, só a intervenção direta de Deus
pode restaurar a Igreja, restabelecendo sua autoridade pontifical.
O SÍNODO DE 85 RECICLA O CONCÍLIO
O mundo católico sabia que o ar de otimismo respirado na
Igreja nos últimos anos é enganoso, e que o sínodo extraordinário convocado
pelo papa para novembro de 1985, a fim de verificar os resultados do Concílio
Vaticano II 20 anos após seu encerramento, deveria enfrentar problemas muito
graves.
Fermentavam no âmbito eclesial e no civil manobras de
caráter político baseadas em “teologias ideológicas” e mobilização de aparatos
religiosos para promover a luta de classes com o rótulo católico. Era o caso da
Teologia de Libertação, da Igreja Popular, das Comunidades de Base e das
liturgias revolucionárias promovidas por bispos apesar das censuras e
instruções contrárias emanadas de Roma. Houve até o caso de dom Ivo
Lorscheider, presidente da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil),
que chegou a ameaçar o papa com um cisma se continuassem a vir do Vaticano
essas críticas negativas.
Esse ativismo episcopal, secundado por uma violenta campanha
da imprensa esquerdista contra a “nova inquisição” não bastava, porém, para
explicar a tibieza das medidas vaticanas, inversamente proporcionais à
gravidade e alcance internacional do motim. Havendo ataque à própria verdade
ensinada pela Igreja, já na ameaça de cisma ficava patente que um cisma
material fora consumado.
Mas, o que impedia uma destemida atitude da autoridade de
Roma?
Alguns ainda se iludiam acreditando que esse sínodo, que
teria a participação dos presidentes das conferências episcopais do mundo e da
cúria romana sob a direção do papa, enfrentaria decididamente as questões
porque estava em jogo a defesa da verdade, a proteção dos fiéis e a
credibilidade da própria autoridade papal, contornada publicamente.
Além disso, a assembléia sinodal, embora reunida para tratar
de assuntos religiosos, devia também um esclarecimento a toda a sociedade que
estava envolvida por esses problemas, visto que só Roma tem o poder de
confirmar ou negar o DOC, a origem controlada da doutrina que, em nome da
Igreja de Nosso Senhor Jesus Cristo, se dá a beber aos povos. Alguns avisos gerais
haviam sido preparados para contestar a genuinidade de tais enganos, mas a
distribuição dos mesmos fora abertamente boicotada,”porque confiada aos
contrafatores das conferências episcopais locais. A situação pedia medidas
claras e urgentes.
Pareciam ecoar as palavras da mensagem de Fátima: “A Rússia
espalhará seus erros pelo mundo, promovendo guerras e perseguições à Igreja...”
Mas, agora que os erros eram internos, promovidos pelos próprios hierarcas
contra a doutrina da Igreja, é impossível não ler nisto o que deve estar
prenunciado no terceiro segredo.
Curiosamente, porém, os transgressores da ortodoxia católica
a favor de ideologias e sistemas contrários à ordem cristã da sociedade, é que
se sentiam perseguidos por não poder espalhar seus erros e “teologias”
subversivas. Deveriam responder perante a justiça civil por suas falsidades
ideológicas, mas, ao contrário, acusavam as autoridades civis de perseguição
religiosa quando estas os interpelavam sobre iniciativas visando a luta de
classes, armada ou não.
A promoção da Teologia da Libertação e da Igreja Popular
como católicas depois da censura vaticana, é uma falsidade ideológica punível
também pela lei civil. Dizer que isso é perseguição religiosa significa agravar
a mentira. Contra esta devem estar também a religião e o papa, enquanto
defensores da verdade, não de enganos. Estes, implicando uma ruptura com a
legítima autoridade da Igreja católica, são também cismáticos, e isto não
depende do “respeito” que ostentam. Não depende nem mesmo das declarações da
autoridade em exercício. O cisma vai contra a autoridade papal, enquanto
responsável pela unidade da Igreja, supremo juiz da lei canônica a serviço da
fé. Que a subversão religiosa seja poderosamente sustentada pelas forças do
mundo, a ponto de deixarem a autoridade vaticana atual apavorada quanto a
pronunciar-se, não anula o cisma real, não oculta a ruptura, mas agrava e
amplia enormemente suas conseqüências. A contrafação religiosa não declarada
pela autoridade competente vai contaminar a sociedade civil, despreparada para
defender-se dos erros e enganos que continuam a ser impingidos como católicos
por pastores desviados.
Como quem cala consente, essas autoridades religiosas locais
teriam no silêncio papal um implícito aval do supremo pontífice para pontificar
localmente em seu nome e no da Igreja. Embora não seja o sínodo a sede para
medidas disciplinares, certamente o é para confirmar a justa doutrina e
condenar todos os enganos atuais que vão contra ela. Isto foi feito nos
concílios e sínodos precedentes da igreja católica, razão pela qual, hoje, até
a justiça comum pode discernir sobre o que é autenticamente católico, com
direito a usar essa denominação no mundo.
Houve, por exemplo, o caso de um seminarista na Alemanha, há
poucos anos, que abandonou o curso que seguia declarando que este não era
católico. A direção do seminário intimou-o então a pagar os custos do ensino. O
jovem recorreu à justiça comum que, com base na comparação da doutrina ensinada
com a tradicional da Igreja por definição imutável porque revelada, deu ganho
de causa ao aluno, vítima de uma falsificação.
É claro que essa adulteração no campo das idéias, a esse
nível, corrompe a vida social, e, se deve preocupar os juízes, tanto mais deve
preocupar as autoridades romanas, não fosse já ofensa a Deus. É preciso
conhecer a matriz de males insidiosos dessa ordem, que possibilitam a
falsificação religiosa já na formação do clero.
Ora, como os males de que falamos expandiram-se sem qualquer
freio nos últimos 20 anos, seria justamente o sínodo, que se propunha verificar
esse período de frutos conciliares, a ocasião para remontar às origens, as
quais deveriam estar inevitavelmente nos documentos produzidos pelo Vaticano
II. Seria temerário e ilógico negá-lo.
Diz Jerônimo de Santomás (Revista Roma, n.º 88): “Podemos
afirmar sem necessidade de fornecer prova alguma que a causa de toda a crise é
o próprio Concílio e sua aplicação. Quem deve fornecer provas é quem nega ser o
próprio concílio a causa eficiente do desastre eclesial. Se quiser ser
acreditado, porém, deverá desvendar qual é esse grande acontecimento que
sobrepujou o Concílio por seus frutos e por sua doutrina. Que acontecimento foi
esse? O único evento anterior ao Concílio e que surpreendeu a todo o mundo
cristão foi a negativa da parte de João XXIII de dar a conhecer o segredo de
Fátima que deveria ser publicado em 1960. (...) Jamais antes se fizera uma tal
afronta a nossa Mãe celeste.”
De fato, o que, senão esse concílio, com seu espírito de
abertura para o mundo, com seus documentos sujeitos a ampla interpretação a fim
de favorecer um ecumenismo populista, com seu democratismo litúrgico e
liberalismo doutrinal, poderia ter proporcionado enganos e cismas como a Igreja
Popular, a Teologia da Libertação et alia huismodi?.
Das novas atitudes eclesiais que transpareceram logo antes
da abertura do Vaticano II, há uma especial cuja influência nefasta ainda não
foi devidamente aquilatada. Ao contrário, foi louvada e incorporada, acrítica
ou deliberadamente, como uma inspiração celeste pelos sucessivos papas e bispos
conciliares. Trata-se da idéia de que a Igreja não mais deve condenar o erro
porque a verdade tem força para afirmar-se por si. Assim, a autoridade eclesial
ficaria dispensada de uma função antipática e impopular, para dedicar-se
inteiramente à missão do bom samaritano, provendo a assistência e a paz na
sociedade humana. Com essas idéias inaugurava-se a nova bondade conciliar, que
deixava entender ser a ação de julgar, condenar e executar a justiça pouco
caridosa.
Diversas vezes os papas conciliares pronunciaram-se com esse
conceito estranho que permeou os documentos do concílio e outros subseqüentes
da Igreja. Na correspondência que Paulo VI, ansioso por dialogar com
intelectuais não católicos, manteve com o prestigioso escritor italiano
Prezzolini, este precisou explicar ao papa Montini que seu apelo de 1967 ao
mundo pela justiça e paz, talvez tenha comovido muitos, mas a balança da
justiça terrena continua associada à espada, não à paz. Um juiz sem nenhum
poder para impor suas sentenças não pode ministrar a justiça. Mas ele ofenderia
a própria noção de justiça se renunciasse ao poder moral ou espiritual que
recebeu, negando-se a condenar culpados, com o pretexto de amor pela paz. No
caso de um papa, supremo juiz da Igreja na Terra, essa tácita renúncia a
exercer sua justiça levantaria questões de uma gravidade inimaginável.
O ensinamento cristão autêntico, tendo origem na verdade,
sempre redimensionou as falácias e demagogias deste mundo. É claro que a
promoção da paz em detrimento da justiça é alienação que leva à tirania do
erro. “Não julgueis que vim trazer a paz à Terra; não vim trazer a paz, mas a
espada” (Mt., 10,34). “Não a paz, mas a separação” (Lc, 12,51). Assim ensina
Nosso Senhor Jesus Cristo: “Deixo-vos a paz, dou-vos a minha paz; não vo-la dou
como dá o mundo.” (Jo., 14,27)
Por tudo isto, não se compreende bem como os papas
conciliares puderam fazer uma opção preferencial pela ONU e Paulo VI, antes de
encerrar o Concílio, tenha voado para Nova York a fim de proclamar no Palácio
de Vidro seu novo conceito de liberdade religiosa, mais conforme à liberdade da
UNESCO que ao Evangelho de Cristo segundo todos os papas. Os resultados desse
novo conceito de liberdade, exarado por tal cátedra religiosa suprema,
inevitavelmente iriam difundir-se em todo o mundo. No mundo católico deu origem
às mais livres e estapafúrdias mutações doutrinais e litúrgicas, cuja
conseqüência é o cisma difuso e subterrâneo que hoje vivemos. No civil deu
status de direito à liberdade de negar e agredir a verdade em todos os níveis,
deixando assim a moral, a justiça, o ensino e o próprio Estado à mercê do juízo
dos mais ousados e violentos sediciosos. Vieram as revoluções de 68, das
brigadas vermelhas, dos anarco-comunistas, dos homossexuais, etc., nas quais
passaram a ser julgados e suprimidos os juízes, professores e estadistas da
sociedade “repressiva.” Até o infeliz amigo de Paulo VI, o poderoso Aldo Moro,
foi justiçado pelos novos juízes, autoproclamados arautos de uma nova ordem de
justiça e paz. Enquanto isto, com os fundos internacionais para a paz impõe-se
até as dialéticas portadoras de guerra. Está demonstrado, por exemplo, que os
soviéticos utilizam recursos da UNESCO para a doutrinação comunista, até no
Afeganistão por eles invadido. A moral capitalista recusa-se a financiar tais
embustes e, assim, os EUA e a Inglaterra retiram-se da mesma UNESCO que a
Igreja conciliar considera com olhar desvanecido, não porque ignore os fatos,
mas por amor à nova idéia de paz!
Havia algum indício de que nesse sínodo de 1985, esses
enganos espalhados funestamente pelo mundo seriam denunciados? A resposta é
negativa. Por exemplo, apenas cinco meses antes, e com o mesmo espírito
enganador, fora preparado pela Congregação para a Unidade dos Cristãos, sob o
cardeal Willebrands, um documento segundo o qual cristãos e judeus deveriam
esperar juntos pela vinda do Messias! A falsidade doutrinal era a matriz da
adulteração política.
Levados ainda por um sopro de esperança, pedidos, súplicas,
lembranças das promessas de Fátima foram dirigidas a Roma antes do início dos
trabalhos sinodais. Monsenhor Marcel Lefebvre, juntamente com monsenhor Antônio
de Castro Mayer, enviaram nova carta ao papa. O padre de Nantes fez distribuir
aos prelados presentes em Roma uma nova súplica, pedindo a revisão dos erros
conciliares. Fátima foi evocada de público.
CARTA DOS DOIS BISPOS AO PAPA
(para o Sínodo de 1985)
Santo Padre,
Durante quinze dias, antes da festa da Imaculada Conceição,
Vossa Santidade decidiu reunir um Sínodo Extraordinário em Roma, a fim de fazer
do Concílio Vaticano II, encerrado há vinte anos, “uma realidade sempre mais
viva.”
Permita que por ocasião deste evento, nós que participamos
ativamente no Concílio, possamos apresentar-vos respeitosamente nossas
apreensões e augúrios, para o bem da Igreja e a salvação das almas que nos
foram confiadas.
Estes vinte anos, segundo o prefeito da sagrada Congregação
da Fé em pessoa, evidenciaram suficientemente uma situação que confina numa verdadeira
autodemolição da Igreja, salvo nos meios onde a milenar Tradição da Igreja foi
mantida.
A mudança operada na Igreja nos anos sessenta,
concretizou-se e afirmou-se no Concílio pela “Declaração sobre a Liberdade
Religiosa”: outorgando ao homem o direito natural de ser isento da coação que a
lei divina lhe impõe de aderir à fé católica para salvar-se, coação que
necessariamente se traduz nas leis eclesiásticas e civis submetidas à
autoridade legislativa de Nosso Senhor Jesus Cristo.
Essa liberdade de toda coação da lei divina e das leis
humanas em matéria religiosa está inscrita entre as liberdades proclamadas na
Declaração dos Direitos Humanos, declaração ímpia e sacrílega condenada pelos
papas e em particular pelo papa Pio VI em sua encíclica Adeo nota, de 23 de
abril 1791, e sua alocução no consistório de 17 de junho de 1793.
Dessa declaração sobre a liberdade religiosa emana como de
uma fonte envenenada:
1) O indiferentismo religioso dos estados, mesmo católicos,
que se realiza desde há 20 anos sob a instigação da Santa Sé.
2) O ecumenismo levado avante sem cessar por vós mesmo e
pelo Vaticano, ecumenismo condenado pelo magistério da Igreja e em especial
pela encíclica Mortalium animos do papa Pio XI.
3) Todas as reformas consumadas desde há 20 anos na Igreja
para agradar aos heréticos, aos cismáticos, às falsas religiões e aos inimigos
declarados da Igreja como os judeus, os comunistas e os maçons.
4) Esta libertação da coação da Lei divina em matéria
religiosa evidentemente vai fomentar a libertação da coação em todas as leis
divinas e humanas e mina toda autoridade em todos os campos, especialmente no
da moral.
Nós não cessamos de protestar, no Concílio e depois do
Concílio, contra o inconcebível escândalo desta falsa liberdade religiosa, nós
o fizemos com a palavra e com escritos, privada e publicamente, apoiando-nos
nos documentos mais solenes do Magistério da Igreja, entre outros: o Símbolo de
Atanásio, o IV Concílio de Latrão, o Syllabus (p.15), o Concílio do Vaticano I
(Dz 3008) e sobre o ensino de Santo Tomás de Aquino a respeito da fé católica
[Sum. Theol., IIa, questões 8 a ], ensino que foi sempre o da Igreja durante
cerca de 20 séculos, confirmado pelo direito e suas aplicações.
Eis porque, se o próximo Sínodo não voltar ao magistério
tradicional da Igreja em matéria de liberdade religiosa, mas confirmar esse
grave erro, fonte de heresias, nós teremos o direito de pensar que os membros do
Sínodo não professam mais a fé católica.
De fato, eles agirão contrariamente aos princípios imutáveis
do Concílio Vaticano I que afirmou em sua IV secção, no Cap. IV, “O Espírito
Santo não foi prometido aos Sucessores de Pedro para permitir-lhes de publicar,
segundo suas revelações, uma nova doutrina, mas para guardar santamente e expor
fielmente com sua assistência as revelações transmitidas pelos Apóstolos, isto
é, o depósito da Fé.”
Nesse caso, nós não podemos senão preservar na Santa
Tradição da Igreja e tomar todas as decisões necessárias a fim de que a Igreja
conserve um clero fiel à fé católica, capaz de repetir com São Paulo: “tradidi
quod accepi.” (Transmitimos o que recebemos.)
Santo Padre, a vossa responsabilidade está gravemente
comprometida nessa nova e falsa concepção da Igreja que conduz o clero e os
fies à heresia e ao cisma. Se o Sínodo sob a vossa autoridade perseverar nessa
orientação, não sereis mais o Bom Pastor.
Nós nos dirigimos à Nossa Mãe, e Bem-aventurada Virgem
Maria, com o Rosário nas mãos, suplicando-A de vos comunicar Seu Espírito de
Sabedoria, bem como aos membros do Sínodo, a fim de pôr um termo à invasão do
modernismo no interior da Igreja.
Santo Padre, queira perdoar a franqueza desta iniciativa que
não tem outro fim senão render ao nosso único Salvador Jesus Cristo a honra que
lhe é devida assim como à Sua Única Igreja.
(ass.) Arcebispo Marcel Lefebvre e Bispo Antônio de Castro
Mayer.
O Sínodo inaugurou-se com uma celebração solene na Basílica
de São Pedro na manhã de domingo, 24 de novembro de 1985. No mesmo dia, à
tarde, apenas do outro lado da colunata da praça e a poucos passos do Palácio
do Santo Ofício, iniciavam-se os trabalhos da Conferência sobre Fátima com o
título: “Este Sínodo Extraordinário de 85 é a última ocasião para a paz?” Sendo
um dos organizadores, posso dizer que foi num encontro em que conheci Pe.
Gruner (editor da revista Fátima Cruzader), dia 13 de novembro, que aventamos a
importância de uma iniciativa sobre Fátima em Roma e às vésperas do Sínodo. A
dificuldade estava na sua organização em tempo tão exíguo e na conhecida
oposição da Igreja conciliar, além do silêncio da imprensa, dado como certo.
Realizou-se, não obstante. Contou com a participação do padre Caillon, que
estava em Roma, do sr. Emílio Cristiano, que veio de Nápoles, de Hamish Fraser,
que veio da Escócia, e do irmão Michel de la Sainte Trinité, autor dos três
volumes sobre Fátima, que veio da França (St. Parres Les Vaudes). Se a presença
do público foi modesta em número, não o foi em qualidade. Havia dois bispos,
muitos sacerdotes e freiras, professores e magistrados entre os fiéis. Falou-se
então da resistência sempre encontrada pela mensagem de Fátima, da qual se deu
testemunho. Lembrou-se, então, que Sua Beatitude o Patriarca Latino de
Jerusalém, Giacomo Beltritti, presente no Sínodo de 1983 (p.204), havia naquela
ocasião lembrado a João Paulo II e à Assembléia Sinodal a importância de
fazerem a consagração colegial da Rússia ao Imaculado Coração de Maria, ainda
não realizada nos termos pedidos. Como se viu, João Paulo II fez uma
consagração novamente incompleta depois disso. A intervenção do patriarca,
porém, foi omitida dos documentos sinodais e deixada no silêncio até aquele
momento em que o revelamos nessa conferência e em presença do patriarca,
sentado logo diante de quem falava.
Mais tarde esse alto prelado, embora confirmando o fato,
pedia que não se mencionasse que pudesse ser o patrocinador da reunião, como
foi noticiado nos folhetos e cartazes. Provavelmente isso incomodava as
autoridades que votavam ao silêncio o que lembrava Fátima. O que conta é que,
bem ou mal, também nesse Sínodo seus participantes não poderão dizer que não
lhes foi lembrado o pedido pendente. Infelizmente, também nesta ocasião os
bispos reunidos deixaram de lado a mensagem salvadora de Nossa Senhora. Mas não
foi apenas isto. As questões das Igrejas populares, das teologias e liturgias
revolucionárias e demais tramóias que vêm corrompendo a vida religiosa, foram
igualmente escamoteadas. Prevaleceu o espírito conciliar, que tudo admite ou
omite para não condenar. Os abusos, as prevaricações praticadas por grupos de
poder que manipulam as conferências episcopais para impor ideologias
anticatólicas, foram absorvidos também pelo espírito conciliar que louva a
mesma autonomia que multiplica os abusos e o colegiado que disfarça as
responsabilidades. O comunismo continuou sendo assunto tabu para respeitar o
pacto Moscou-Vaticano das vésperas do Concílio (p.107). Foi um sínodo de paz!
A resposta sinodal consistiu, pois, na anistia de todos os
erros e na absolvição de qualquer responsável. Foi uma renovada proclamação da
“Pentecostes conciliar”, realizada na “maravilhosa união de bispos” junto ao
papa. Nesta ficaram reciclados os graves problemas doutrinais, morais, sociais
e litúrgicos, bem como cismas e heresias, mostrando que uma Igreja conciliar
neles mergulhada não pode vê-los. Não só negaram que a causa da crise religiosa
estivesse no Concílio, negaram que houvesse problemas e crise de fé. Foram
além. Proclamaram que o que veio do Concílio eram bênçãos do Espírito Santo.
Se antes pairava dúvida sobre a amplitude dos desvios
conciliares, agora havia certeza. Nessas declarações oficiais havia
objetivamente a malícia da blasfêmia contra o Espírito Santo, pecado sem
perdão.
Seria ainda possível pensar que João Paulo II agia sem
conhecer os problemas e pedidos que lhe eram enviados, mas fraudulentamente
desviados? Quase no fim do sínodo ocorreu um fato que mostra não ser esse o
caso: monsenhor Lefebvre e monsenhor Castro Mayer, sendo informados na
Argentina, onde celebravam algumas ordenações sacerdotais, da total indiferença
para com as questões por eles levantadas na carta ao papa, autorizaram a
distribuição desta aos padres sinodais, inclusive cardeais da Cúria. No dia
seguinte, sabedor que a carta dos dois bispos era conhecida por muitos
prelados, o papa fez o seguinte comentário, rindo, no banquete de encerramento:
“Atenção, porque sou um mau pastor!” (Corriere della Sera, 9/12/85). Era uma
clara referência à carta.
A suprema autoridade hierárquica da Igreja omitia-se de
responder sobre graves questões de fé. Rindo, ocultava e transformava fatos,
palavras e cartas que pediam sua intervenção em defesa da fé. Mas, quem não
respondeu a Maria Santíssima como devia, a que podia ainda responder?
RUPTURA ABISSAL DE ASSIS
Desde a Introdução vimos assinalando as insídias e os erros
com que a Revolução assalta a Igreja, por fora e por dentro, para destruí-la.
Observamos também que, mesmo quando seus inimigos, em 1914, dominavam quase
todo o mundo civil e estavam infiltrados em seu seio em posições importantes,
como revelou São Pio X, as defesas doutrinais e litúrgicas estavam íntegras e
continuava vivo o espírito missionário de tudo instaurar em Cristo. Espírito
que não decorre de uma atitude pessoal de algum papa, mas é inerente à doutrina
evangélica e à Tradição de que emana o Magistério papal pelo qual as leis
humanas devem submeter-se às leis divinas, aos Princípios revelados e ensinados
pela Igreja. Estes não são optativos e não há liberdade civil ou religiosa dos
homens quanto à Lei imutável de Deus. Os Estados estão, como os indivíduos,
vinculados a ela. Por isso, a chamada separação entre o Estado e a Igreja, que
é a depositária da Revelação única, corresponde à separação deliberada dos
homens em relação a Deus. Fato inaceitável diante do qual um católico não pode
ficar impassível e muito menos uma autoridade da Igreja calar-se. Vai nisto uma
questão doutrinária, e São Pio X levantou sua voz e exerceu sua ação para dirimir
toda confusão a respeito. Preferiu suportar as represálias materiais do governo
liberal-maçônico da França e depois de Portugal, antes que aceitar qualquer
compromisso acerca do princípio da união da Igreja com o Estado.
Vimos então que de 1917 até 1960 houve uma gradual mutação
neste testemunho intransigente do direito de Deus. As guerras e desgraças do
mundo sopravam um hálito de fome e de morte, sugerindo aos chefes um novo
espírito de compromisso e uma nova política de concordatas. Pareceu possível ao
Vaticano dos anos vinte até mesmo propor concordatas e acordos com potências do
ateísmo militante. Que pontos teriam em comum? Certamente não era o que mais se
coadunava com a Mensagem de Fátima, que por esta razão nunca foi inteiramente
acolhida.
Vimos depois como, de 1960 até 1982, com o Concílio Vaticano
II, a Revolução ocupou a Igreja em cujo nome se fizeram documentos e atos
inimagináveis. Mas os venenos conciliares continuaram a agir com força sobre
João Paulo II, que desde então operou uma escalada ecumênica além de toda
decência. Vinha entremeada de atos de índole mariana e conservadora, mas isto,
longe de atenuar as mudanças, só fez agravá-las pelo contraste com o
confusionismo religioso. Vejamos:
Em 12 de dezembro de 1985, dirigindo-se aos bispos
filipinos, João Paulo II, confirmando o que havia dito ao lado do rei Hassan
II, “comendador dos crentes” (do Islã), assim se expressou: “Quero repetir à
Igreja das Filipinas o que disse na concentração de jovens muçulmanos em
Marrocos: — Eu creio que nós, cristãos e muçulmanos, devemos reconhecer com
alegria os valores religiosos que temos em comum... Creio que Deus nos convida
a mudar nossos velhos costumes.”
No dia 25 de janeiro de 1986, falando da unidade dos
cristãos, disse: “A tarefa ecumênica almeja precisamente esta meta — realizar a
Igreja como sacramento da unidade sinfônica das múltiplas formas de uma só
plenitude.”
Em fevereiro de 1986 temos a notícia: “Na viagem pela índia
recebeu primeiro o sinal de Tilaba de uma sacerdotisa hindu, e depois, em
Madras, as cinzas sagradas das mãos de uma mulher numa cerimônia iniciática.”
No dia 24 de fevereiro noticia o Vaticano que a “Igreja
Católica” aderiu ao Conselho Ecumênico das Igrejas. Fato que colide com as
proibições promulgadas pelos pontífices pré-conciliares.
No dia 13 de abril de 1986, pela primeira vez, quem ocupa o
trono de São Pedro faz uma visita à Sinagoga de Roma e participa da recitação
de salmos reconhecendo que a Igreja perseguiu os judeus. Disse que “este
encontro conclui ... um longo período. ... Para que sejam superados velhos
preconceitos e se reconheça este comum patrimônio espiritual. ... A religião
judaica não nos é 'extrínseca', mas de certo modo é 'intrínseca' à nossa
religião. São nossos irmãos prediletos e de certo modo, pode-se dizer, nossos
irmãos maiores.”
No dia 27 de outubro de 1986, João Paulo II convocou os
representantes das grandes religiões do mundo para um encontro de oração pela
paz em Assis. Ali, pronunciou estas palavras: “Que tantos líderes religiosos
estejam aqui juntos para rezar ... a fim de que o mundo tome consciência de que
existe outra dimensão da paz ... não é o resultado de ... compromissos
políticos e acordos econômicos, mas o resultado da oração que, na diversidade
das religiões, exprime uma relação com um poder supremo que está por cima de
nós. ... Nosso encontro somente testemunha ... que na grande batalha em favor
da paz, a humanidade, com sua grande diversidade, deve tirar sua motivação das
fontes mais profundas e vivificantes nas quais se plasma a sua consciência e
sobre as quais se fundamenta a ação moral de toda pessoa. ... Daqui iremos a
diferentes lugares de oração. Cada religião terá o tempo e a oportunidade de
exprimir-se em seu próprio rito tradicional.”
Foi assim que o mundo assistiu ao espetáculo de bonzos
incensando um Buda colocado sobre o Sacrário de um altar católico de onde havia
sido removido o crucifixo.
Concluindo as orações pela paz de Assis, João Paulo II
disse: “Eu professo de novo minha convicção, condividida por todos os cristãos,
de que em Jesus Cristo, salvador de todos, pode-se encontrar a paz. ... Repito
aqui humildemente a minha própria convicção: — a paz leva o nome de Jesus
Cristo.”
Ora, como conciliar a convicção expressa nestes atos e
nestas palavras com o convite de oração pela paz feito aos representantes de
crenças não cristãs? Pode um papa ignorar sua missão de ensinar e confirmar a
fé de modo universal?
Em abril de 1987 o Grande Oriente da Itália publica: “O
nosso interconfessionalismo nos causou a excomunhão de 1738 por parte de
Clemente XII. Mas a Igreja estava certamente em erro se é verdade que dia 27 de
outubro de 1986 o atual pontífice reuniu em Assis homens de todas as confissões
religiosas para rezar pela paz. Que procuravam de diferente nossos irmãos
quando se reuniam nos templos senão o amor, a tolerância, a solidariedade e
defesa da dignidade humana, considerando-se iguais acima dos credos políticos e
religiosos?”
A maçonaria dava razão a João Paulo II, que dava razão a
esta e a imitava em detrimento de tudo quanto a Igreja ensinou.
Ora, para quem crê que é possível pedir pela paz sem invocar
o santo nome de Deus e professar Sua fé, também a Mensagem de Fátima, pela qual
Deus confiou a paz do mundo ao Imaculado Coração de Maria, não pode ter
sentido, ou pelo menos importância.
De fato, o espírito ecumênico de Assis não é conciliável
como o verdadeiro ecumenismo fiel de Fátima que convida ao retorno à fé, à
esperança e à caridade católicas. Foi assim que uma imagem de Nossa Senhora de
Fátima levada a Assis por peregrinos da Calábria ficou excluída das igrejas
naquela ocasião.
Devemos, agora, saber o que declararam os dois bispos fiéis
em relação a este ato inaudito:
DECLARAÇÃO (como conseqüência dos acontecimentos da visita
de João Paulo II à Sinagoga e ao Congresso das Religiões em Assis). — Roma
mandou nos perguntar se tínhamos a intenção de proclamar nossa ruptura com o
Vaticano por ocasião do Congresso de Assis.
Parece-nos que a pergunta deveria, antes ser esta: o senhor
acredita e tem a intenção de declarar que o Congresso de Assis consuma a
ruptura das autoridades romanas com a Igreja Católica?
Porque é precisamente isto que preocupa àqueles que ainda
permanecem católicos.
Com efeito, é bastante evidente que, desde o Concílio
Vaticano II, o papa e os episcopados se afastam, de maneira cada vez mais
nítida, de seus predecessores.
Tudo aquilo que foi posto em prática pela Igreja para
defender a Fé nos séculos passados, e tudo o que foi realizado pelos missionários
para difundi-la, até o martírio inclusive, é considerado doravante como uma
falta da qual a Igreja deveria se acusar e pedir perdão.
A atitude dos onze papas que, desde 1789 até 1958, em
documentos oficiais, condenaram a revolução liberal, é considerada hoje como
“uma falta de compreensão do sopro cristão que inspirou a revolução.”
Donde a reviravolta completa de Roma, desde o Concílio
Vaticano II, que nos faz repetir as palavras de Nosso Senhor àqueles que O
vinham prender. “Haec est hora vestra et potestas tenebrarum.” Esta é a vossa
hora e o poder das trevas. (Lc, 22:52-53)
Adotando a religião liberal do protestantismo e da revolução
os princípios naturalistas de J.J. Rousseau, as liberdades atéias da
Constituição dos Direitos do Homem, o princípio da dignidade humana já sem
relação com a verdade e a dignidade moral, — as autoridades romanas voltam as
costas a seus predecessores e rompem com a Igreja católica, e põem-se a serviço
dos que destroem a cristandade e o Reinado Universal de Nosso Senhor Jesus
Cristo.
Os recentes atos de João Paulo II e dos episcopados
nacionais ilustram, de ano para ano, esta mudança radical de concepção da fé,
da Igreja, do sacerdócio, do mundo, da salvação pela graça.
O cúmulo desta ruptura com o magistério anterior da Igreja,
depois da visita à sinagoga, se realizou em Assis. O pecado público contra a
unicidade de Deus, contra o Verbo Encarnado e Sua Igreja faz-nos estremecer de
horror: João Paulo II encorajando as falsas religiões a rezar a seus falsos
deuses: escândalo sem medida e sem precedente.
Poderíamos retomar aqui nossa declaração de 21 de novembro
de 1974, que permanece mais atual que nunca.
Quanto a nós, permanecendo indefectivelmente na adesão à
Igreja Católica e Romana de sempre, somos obrigados a verificar que esta
religião modernista e liberal da Roma moderna e conciliar se afasta cada vez
mais de nós, que professamos a Fé católica dos onze papas que condenaram esta
falsa religião.
A ruptura, portanto, não vem de nós, mas de Paulo VI e de
João Paulo II, que rompem com seus predecessores.
Esta negação de todo o passado da Igreja por estes dois
papas e pelos bispos que os imitam é uma impiedade inconcebível e uma
humilhação insuportável para aqueles que continuam católicos na fidelidade a
vinte séculos de profissão da mesma Fé.
Por isso, consideramos como nulo tudo o que foi inspirado
por este espírito de negação: todas as Reformas pós-conciliares, e todos os
atos de Roma realizados dentro desta impiedade.
Contamos com a graça de Deus e o sufrágio da Virgem Fiel, de
todos os mártires, de todos os papas até o Concílio, de todos os santos e
santas fundadores e fundadoras de ordens contemplativas e missionárias, para
que venham em nosso auxílio na renovação da Igreja pela fidelidade integral à
Tradição.
Buenos Aires, 2 de dezembro de 1986
† Marcel Lefebvre
Arcebispo-Bispo emérito de Tulle
† Antônio de Castro Mayer
Bispo emérito de Campos
que concorda plenamente com a
presente declaração e a faz sua.
Dia 30 de dezembro, com a encíclica Sollicitudo Rei
Socialis, João Paulo II acentua sua posição: “O encontro de 27 de outubro do
ano passado em Assis, para orar e comprometermo-nos pela paz — cada um na
fidelidade à própria profissão religiosa — nos revelou a todos até que ponto a
paz e sua necessária condição de desenvolvimento de 'todo homem e de todos os
homens' são uma questão também religiosa, e como a plena realização de ambos
depende da fidelidade à nossa vocação de homens e de mulheres crentes porque
depende antes de tudo de Deus.” Pode o conceito de fidelidade aplicar-se na
indefinição de qual seja a fé? Só se for uma fé pessoal que não depende de
Deus.
Devemos também sintetizar aqui a instância de católicos
leigos ao Sínodo de Bispos de 1987, onde, depois de lembrar diversas
contradições e omissões do Concílio sobre problemas atuais e suas conseqüências
em iniciativas como a de Assis, diz:
“Quem hoje guia este curso, mostrando-se amigo de quem ataca
a Fé enquanto ignora os apelos para a sua defesa, é justamente quem está no
trono papal. Por isso, uma gravíssima questão de consciência se impõe a todos
os católicos.”
Depois de lembrar os apelos não respondidos senão pela
escalada nos erros conciliares, diz:
“Este desprezo pela verdade não revela a apostasia da fé e a
ausência do autêntico pastor? Será que um poder anticatólico ocupa o Santo
Redil e impede seu chefe terreno de defendê-lo? Ou será que este aderiu a novas
doutrinas, renunciando por si mesmo à autoridade que lhe foi dada por Nosso
Senhor para defender e confirmar a sua grei na Sua Doutrina?
Quem se separa da cabeça visível da Igreja, o papa,
separa-se dela, excluindo-se por si mesmo da salvação. Mas isto não vale para
todos quando a separação afeta a unidade e a continuidade da Fé na Igreja
instituída por Cristo, onde todos, o papa, a hierarquia, o clero, a liturgia, o
código canônico, se definem católicos por estar a serviço da Fé íntegra e pura
revelada por Deus?
O cardeal Journet, citando Caietano (II, II, 39, 1), explica
que o axioma — onde está o papa está a Igreja — vale quando o papa se comporta
como papa e chefe da Igreja; caso contrário, nem a Igreja está nele nem ele na
Igreja. Para São Roberto Belarmino (De Romano Pontefice, 1, 2, 30): ‘O papa
herege manifesto deixa por si mesmo de ser papa e cabeça, do mesmo modo que
deixa de ser cristão e membro do corpo da Igreja’. São Vicente Ferrer, no seu
Tratado do cisma moderno, compara a obediência e honra prestados a um falso
papa, ao culto a um ídolo estrangeiro (1a. p., c. 1). Podemos ser fiéis a Deus
seguindo guias de fidelidade duvidosa?”
A instância termina lembrando que nestas circunstâncias cabe
a quem está na Sede de Pedro pronunciar uma inequívoca profissão de Fé
católica. E hoje nenhuma profissão de Fé seria mais completa e mais conforme à
vontade de Deus que a consagração pedida em Fátima.
Não surpreende que nem esta instância, nem milhares de
pedidos relacionados com Fátima chegados ao Vaticano, deixassem de ser
atendidos. Pelo contrário, foi dito pelo cardeal Cagnon que todas aquelas
cartas atrapalhavam o trabalho dos dicastérios vaticanos e João Paulo II não
queria ser pressionado por causa de uma revelação particular.
No verão de 1988 soube-se então que fora comunicado à irmã
Lúcia que a consagração da Rússia deveria ser considerada cumprida em 25 de
março de 1987 e que não se deveria mais falar nisto porque a situação da Rússia
havia melhorado muito nos últimos anos. Também o P. Caillon recebeu uma carta
enérgica semelhante.
O arcebispo Lefebvre, que com sua Fraternidade estivera em
Fátima, em 22 de agosto de 1987, havia dito sobre o Terceiro Segredo: “Porque
queremos guardar a unidade da fé, aqueles que estão em vias de perdê-la nos
perseguem. Porque os desobedecemos não querendo perder a fé, os que nos querem
afastar dela nos perseguem.” Dias depois escrevia aos sacerdotes que convidava
para serem consagrados bispos sem permissão de Roma:
“A Sede de Pedro e os lugares de autoridade de Roma estando
ocupados por anticristos, a destruição do Reino de Nosso Senhor continua rapidamente
no interior mesmo de seu Corpo místico da Terra, especialmente pela corrupção
da Santa Missa, expressão esplêndida do triunfo de Nosso Senhor pela Cruz,
'Regnavit a ligno Deus', e fonte da propagação de seu Reino nas almas e na
sociedade.”
Assim, parece com evidência a absoluta necessidade da
permanência e da continuação do sacrifício adorável de Nosso Senhor para que “o
seu Reino venha.” A corrupção da Santa Missa levou à corrupção do sacerdócio e
à decadência universal da fé na divindade de Nosso Senhor Jesus Cristo.
Com a premissa dos anticristos em Roma, que perdem a fé e
desviam o mundo católico, o arcebispo prosseguiu no intento de consagrar os
quatro bispos. Quando isto se deu em Écone, no dia 30 de junho de 1988, João
Paulo II, que opera para “realizar a Igreja como sacramento da unidade
sinfônica das múltiplas formas de uma só plenitude”, que convida à grande
comunhão universal de todas as religiões e crenças, excomungou o arcebispo fiel
com os seus seguidores que ainda o reconheciam como papa. Era o cisma da
perestroika conciliar.
Nesse mesmo dia João Paulo II recebe no Vaticano um grupo de
jornalistas soviéticos, a quem diz: “Certamente há um clima de perestroika que
seguimos com interesse. Esta democratização, esta maior participação dos cidadãos
na vida política e social, não só satisfaz as expectativas do Ocidente... como
corresponde também à doutrina social da Igreja.”
Ora, o líder soviético Gorbachev, pai da atual perestroika,
diz: “A nossa inspiração vem de Lênin. São as idéias de Lênin que alimentam a
nossa filosofia das relações internacionais e o novo modo de pensar.” O que têm
a ver as trevas com a luz? Cristo com Belial?
Será que alguém pode crer que na nova dialética do regime
soviético, nesta perestroika leninista, reside a conversão da Rússia para a
qual Nossa Senhora pediu na consagração? Na linha do Vaticano II, depois da
abertura ao protestantismo, à maçonaria, ao judaísmo, à democratização da
religião, agora querem impingir aos católicos também as idéias do sanguinário
Lênin recicladas com doutrina social da Igreja?
Estamos diante de fatos abissais. Mas, animados pela fé com
que pastorzinhos derrubaram gigantes, guiaram reis e advertiram papas, devemos
testemunhar desassombradamente a profecia de nossos tempos que contém o selo inestimável
da vontade de Deus. O colosso revolucionário ocupou a Igreja e pontifica o erro
por toda a Terra, seduzindo com uma solidariedade pacifista e sincretista que é
ofensiva a Cristo Senhor. Mas em Fátima Ele colocou a pedrinha predita pelo
profeta Daniel, que destruirá o leviatã infernal.
“POR FIM, O MEU IMACULADO CORAÇÃO TRIUNFARÁ”
Esta frase de Maria Virgem aos pastorzinhos de Fátima repete
com outras palavras o que Jesus Cristo, Filho de Deus vivo disse referindo-se à
Sua Igreja que assim O confessa pura e integralmente — AS PORTAS DO INFERNO NÃO
PREVALECERÃO CONTRA ELA.
No dogma da Imaculada Conceição resplende a síntese dos
dogmas católicos, como ensinava São Pio X: “Creiam os povos e confessem
abertamente que Maria Virgem, desde o primeiro instante da sua concepção, foi
isenta de toda mancha; com isto, será necessário admitir também o pecado
original e a redenção dos homens por obra de Cristo, o Evangelho, a Igreja e
até a própria lei da dor. Depois disto, tudo o que tem sabor de racionalismo e
de materialismo será arrancado e destruído e resta à doutrina cristã o mérito
de guardar e defender a verdade.” (Revista Sodalitium, n.º 5)
Essas verdades de fé constituem o fundamento de toda
caridade, contra a qual vai o naturalismo com seus racionalismos e
materialismos. A natureza dos homens, seres racionais, não pode prescindir na
vida material da verdade e do amor, para evitar de embrenhar-se nos caminhos da
degradação e da autodestruição, também na ordem natural. Mas sem a graça o
potencial da mente decaída não consegue nem mesmo ordenar-se ao fim que
justifica a vida terrena, nem preservar o valor do irrepetível sopro de verdade
e de amor que cada um representa e deve salvar para restituí-lo ao Criador na
eternidade.
O cristão sabe que o reino da verdade e do amor que perdemos
com o pecado original, é sobrenatural. Mas, desde que foi trazido à Terra pela
Encarnação de Quem é Verdade, Caminho e Vida, também a dignidade da
sobrevivência no mundo depende de tudo instaurar Nele. Há que tomar consciência
dessa verdade e agir com essa caridade. Para isto Nosso Senhor deixou-nos, como
sinal visível de Sua presença na Terra, a Igreja, Esposa Imaculada, a cujos
cuidados maternais, alimentação espiritual e modelo caritativo fomos confiados.
E todavia vemos hoje que a sagrada hierarquia eclesial
malogrou pelo resfriamento da caridade na Igreja que foi medido pelo termômetro
de Fátima. Nossa Senhora, aparecendo em 1917, mostrava o início de uma luta
decisiva e final. A revolução tomava conta da Rússia para espalhar-se pelo
mundo, enquanto na Igreja propendia-se a diplomacias e compromissos confiando
em projetos humanos e limitando o recurso sobrenatural oferecido em Fátima. E
foi assim que tanto o avanço da Rússia como o recuo da hierarquia assumiram
proporções espantosas, mas que se pretende ainda ocultar, como o Terceiro
Segredo.
Parecia certo aos católicos que toda a hierarquia da Igreja
não poderia malograr, assim como aos antigos judeus parecia impossível que o
Templo pudesse ser destruído. Hoje sabemos que só houve duas testemunhas
episcopais que tiveram a caridade de avisar os fiéis que se atentava contra a
fé na própria Roma, demolindo o Templo cristão.
O arcebispo Marcel Lefebvre fundou a Fraternidade São Pio X
para continuar a formação do sacerdócio fiel à doutrina e liturgia tradicionais
da Igreja. A estas continuou fiel a Diocese de Campos, enquanto d. Antônio de
Castro Mayer ainda se manteve seu bispo, passando à resistência depois de sua
demissão, a pedido de João Paulo II.
A Igreja da fé, esperança e caridade está ferida e humilhada
como Nosso Senhor na Sua Paixão, e o mundo está sendo tomado pelo ateísmo, pelo
materialismo e pelo comunismo, erros que a Rússia continua espalhando sem
resistência real das nações. No vazio de fé, esperança e caridade todos os
males podem avançar e dominar. Só voltando os olhos e as vontades do reino da
verdade e do amor será possível vencer tanto engano e ódio diabólicos. Como
fazê-lo?
Se fomos confiados à Igreja que está hoje crucificada,
sabemos que Maria está ao pé da Cruz, Stabat Mater, para recolher seus pobres
filhos dispersos pelas insídias da fera que sobe do abismo que foi aberto,
levando-os para o retiro de penitência preparado no deserto. Isto o Imaculado
Coração de Maria confirmou em Fátima aos pastorzinhos que se santificaram pelos
meios recebidos, conquistando também graças para os seus e para a Igreja de
Portugal. Imitemo-los.
Deve-se lembrar antes de tudo que sem a fé não se agrada a
Deus e só a defendendo e conservando-a íntegra e pura pode-se atender às
devoções e cumprir a consagração pedida em Fátima. Nada melhor para preservar
essa fé contra o naturalismo do mundo que os dogmas marianos. Foi o que ensinou
São Pio X e o Imaculado Coração de Maria veio suavemente confirmar junto às
comunhões reparadoras dos primeiros sábados.
Se hoje vivemos a autodemolição da Igreja, que é a
perseguição da fé no seu interior, saibamos entender a preciosa indicação que
precede o terceiro segredo, parte da mensagem onde isto é certamente descrito:
“Em Portugal se conservará sempre o dogma da fé (...).” Significa que no
espírito de Fátima, reparador das ofensas a Deus e confiante nas promessas do
Imaculado coração, pode-se perseverar sempre na fé e por ela preparar a
restauração da Igreja.
A mensagem de Fátima alimenta a fé e, junto com esta, a
esperança. Por ela sabemos o epílogo das guerras e perseguições de nossos
tempos tenebrosos: “Por fim, o meu Imaculado Coração triunfará. O Santo Padre
consagrar-Me-á a Rússia, que se converterá, e será concedido ao mundo algum
tempo de paz.” Na crise atual da Igreja isto pode parecer um fato tão incrível
como a conversão do império romano ao cristianismo no tempo de Constantino. Mas
assim será, e nesse triunfo muitas almas se salvarão e a cristandade será
restabelecida.
A fé e a esperança, porém, são mortas sem a caridade, e esta
foi resfriada pela multiplicação da iniqüidade e da sedução dos falsos
profetas, que desviaram a glória de Deus segundo Sua vontade. Esta está no
cumprimento da mensagem de Fátima: “Porque quero que toda a Minha Igreja
reconheça essa consagração como um triunfo do Coração Imaculado de Maria, para
depois estender o seu culto e pôr, ao lado da devoção do Meu divino Coração, a
devoção deste Imaculado Coração.” Ao reino dos Sagrados Corações chega-se só
pela mensagem que, representando a vontade de Nosso Senhor, deve atrair-nos
antes de tudo mais. Procuremos primeiro o Reino de Deus e sua Justiça e o resto
nos será dado por acréscimo.
Pelo amor e dedicação à mensagem maternal de Maria, cujo
conhecimento integral e divulgação universal queremos promover, estaremos
perseverando na fé, esperança e caridade católicas que testemunham o poder
mediador de Nossa Senhora, único que pode dar paz ao mundo. Neste amor devemos
intensificar nossas orações, rosários e penitências pedidos, a devoção da
comunhão reparadora dos cinco primeiros sábados e o terço quotidiano. Tudo isto
não é mais que uma gota de reparação num espantoso incêndio de ofensas a Deus,
às quais se juntou o descaso pela mensagem salvadora de Maria Santíssima dada
há setenta anos e ainda incompletamente conhecida, honrada e amada.
Despertemos, cristãos, o tempo está sempre mais próximo!
Voltemos à fé, ao nosso Rei Jesus Cristo, à Virgem Vencedora, à Igreja, à Idéia
Divina, única que nos pode defender e salvar. Já muito tempo passou depois
daquele aviso precioso: “Se não atenderem a meus pedidos, [a Rússia] espalhará
seus erros pelo mundo, promovendo guerras e perseguições à Igreja.” Já muitos
bons foram martirizados, já de muitos modos sofreu e sofre o Santo Padre.
E continuam sendo aniquiladas muitas nações.
A Santa Mãe desvelou a visão espantosa do Inferno aos
pastorzinhos. Se nossos olhos não conseguem vislumbrá-lo, pensemos ao menos nos
horrores das guerras fratricidas, nos genocídios e fomes. Pensemos nas
gloriosas nações apagadas do mapa, pensemos nas civilizações antigas suprimidas
e nos povos altivos oprimidos como escravos. Que é feito da Ucrânia, batizada
há mil anos e cujo rei era coroado em Roma? E a Lituânia, que se estendeu no
passado até o mar Negro? E a Polônia, e a Letônia, Hungria e Tcheco-Eslováquia?
Mas se estas nações européias e a própria Rússia não tocam nossos sentimentos,
sensíveis até às tragédias de hoje, que dizer do Vietnam, da Etiópia do Camboja
onde um quarto da população foi dizimada pela fome, pela doença, por uma letal
experiência em nome do comunismo? E o pobre Afeganistão, onde as crianças
explodem com os brinquedos soviéticos? Podemos não pensar no hospitaleiro
Líbano, hoje dilacerado?
Acaso não vemos que o ódio avança, que o terrorismo se
expande pelo mundo, que onde não chegam armas chegam drogas mortais?
Despertemos, cristãos, com nossas famílias. Voltemos a
preencher o dia de preces. Invoquemos os Sacratíssimos Corações com amor e
confiança. Nesse amor nos voltarão as luzes, e nessas luzes o conhecimento de
nosso estado lamentável. Basta de engano. As guerras e perseguições já
atingiram a Igreja, invadiram-na. A arca periga, a civilização cristã está
soçobrando enquanto os capitães e os marinheiros cantam embriagados e seduzidos
por sereias.
Aos fiéis compete, hoje mais que nunca, professar alto e
claro a fé íntegra e pura. Em Fátima foi dado um auxílio inestimável para isto.
Os filhos de Quem é sabedoria e vitória não podem temer fazê-lo. Como justos,
vivem de fé, como filhos, sabem confiar, como devotos que têm por mestre a
caridade, compreendem o quanto devemos todos reparar pela avalancha de ofensas
a Deus e pelos que não crêem, não amam, não esperam e adoram só a si mesmos.
Desde que foi dado aos homens o sinal celeste de Fátima,
advertindo das guerras e perseguições causadas pelos pecados dos homens e
crimes do mundo, a responsabilidade de todos aumentou, mas especialmente dos
fiéis. A mensagem foi dada ao mundo, e o mundo não a conheceu. Foi dada à
Igreja, mas os seus não a acolheram, aumentando o débito e diminuindo os
recursos. Foi assim que sobreveio a Grande Guerra e depois desta
multiplicaram-se os impulsos de auto-destruição da humanidade. Para quem, como
Paulo VI, via na ONU a última esperança de paz, só ficaram a ilusão e o terror.
Para os católicos não restou ninguém a quem apelar nesta Terra. A oferta de paz
da Mãe de Deus fora esquecida, enquanto a mentira e o ódio cancelam a lei
divina.
A amnésia conciliar conduz à crise, as reciclagens sinodais
ao desvario. Um cataclisma desolador pende sobre a arrogância humana.
Reconheçamos ao menos o silêncio divino diante de nossa
decadência, irreparável sem a graça, e multipliquemos nossas orações
impetrantes e nossas penitências reparadoras. Este é o testemunho indispensável
que cada um pode dar seguindo as devoções de Fátima a fim de que a mensagem de
Maria Santíssima seja conhecida por inteiro e assim divulgada, honrada,
cumprida e amada. Nisto está a vontade de Deus, que quer ver reconhecido o
triunfo do Imaculado coração de Maria.
Para reforçar este testemunho indispensável nos foi dado o
testamento de Fátima, que já em 1917 selava numa mensagem a descrição do estado
lamentável a que chegaríamos pela oposição e indiferença à vontade divina.
Merecemos hoje as palavras de Jesus aos fariseus que lhe
pediam um sinal: “Esta geração perversa e adúltera será condenada pelos
ninivitas no dia do juízo, porque eles se arrependeram com a pregação do
profeta Jonas, e aqui está quem é mais que Jonas.”
Tudo foi profetizado para o triunfo final da fé. Quando a
Igreja testemunhar isto, revelando e acolhendo integralmente o inestimável
testemunho de Fátima, poderemos merecer a atuação de Deus, que, por fim,
suscitará o papa, que fará a consagração pedida para enviar-nos então a estrela
da manhã, a luz nas trevas que cobrem a verdade pela impiedade e injustiça que
invadiram até a Igreja.
Neste testemunho fiel do Signum magnun de Fátima estaremos
participando do triunfo da Mãe que tudo restaurará no amor e na paz de Cristo
Rei.
OBRAS CITADAS e Abreviações
DOC
Documentos de Fátima, Pe. Antônio M. Martins S.J., Porto,
LE, 1976.
NDOC
Novos... mesmo autor, Livraria Apostolado da Imprensa,
Porto, 1984.
FGS
Fatima the
Great Sign, Francis Johnston, Augustine Publ. De-von, 1980.
LFV
La Verdad sobre Fátima, Pe. Federico Gutierrez CMF. Ed.
Coculsa, Madrid, 1966.
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Les Faits
de Paray — le Monial, Pe. Jean Ladame, Ed. Saint Paul, Paris Fribourg, 1970.
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Insegnamenti Pontifici, Coletânea dei Monaci di Solesmes,
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MM
Pio VII per un Mondo Migliore, Pe. Ricardo Lombardi S.J.,
Ed. Civiltá Cattolica, Roma, 1954, 2.ª Ed.
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Réclamation
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TF
Teologia de Fátima, vários autores, Ed. Coculsa, Madrid, 1961.
POT
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Toute Ia Verité sur Fátima, Frère Michel de la Sainte
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Sant’Atanasio e la Chiesa del Nostro Tempo, Mons. Rudolf
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MF
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PXI
Sa Sainteté Pie XI, Mons. R. Fontenelle, Ed. Spes (2n),
Paris, 1938.
Periódicos:
Approaches
Diretor
Hamish Fraser † (17/out/1986), Waverley Place, Saltcoats, Ayrshire, Scotland.
Chiesa Viva
Diretor Sacerdote Dr. Luigi Villa, Ed. Civiltà; via G.
Galilei 121, 25124 Brescia, Itália.
Si si No no
Roma 00049, Velletri, Diretor Sacerdote Francesco Putti †
(21 dez. 1984).
1 Os algarismos entre colchetes representam a paginação
original do livro.
2 Há indicações confirmando que o rei Luís XIV recebeu o
pedido do Sagrado Coração através — se não do padre La Chaise, provavelmente
contrário a devoções que solicitassem demais a fé de um rei pouco religioso —
da princesa Maria Beatriz d'Este, muito estimada por Luís XIV e que,
tornando-se religiosa visitandina, esteve em estreito contacto com Sta.
Margarida Maria. Note-se que o rei, que não atendeu ao pedido ao Sagrado
Coração, em 1696 apresentou à Santa Sé o pedido de uma missa ao Sagrado Coração
de Jesus, devoção que certamente provinha do convento de Paray-le-Monial e
provavelmente por intercessão da princesa d'Este.
3 Dia 4 de junho de 1951, por ocasião da consagração da
igreja romana de Santo Eugênio, realizada como oferecimento a Pio XII (Eugênio
Pacelli), e onde há um altar de Fátima doado pelos portugueses, peregrinos
vindos de Portugal saudaram o papa dizendo: "Viva o papa de Nossa Senhora
de Fátima!" A isto respondeu Pio XII, sorrindo: "Nós o somos!" (ref.
do padre G. da Fonseca, S.J. — TF, p.12).
4 Ano Santo de Fátima, 13 de outubro de 1951, em La verdad
sobre Fátima, p. 190-191. Observou-se que nos três dias do triduum, a estátua
peregrina de Fátima havia estado em Roma (MF, p. 29). Lembremos, porém, que os
sinais celestes se destinam a incentivar a ação fiel, mais que a premiá-la.
5 Tradução de Si si no no, ano IV, n.º 9.
6 O cardeal Villot, acusado de ser inscrito desde 6-8-1966
com o nome de Jeanni na loja 041/3, negou-o ao jornal La Croix, Paris. Do mesmo
modo, negou-o ao diretor da revista Lectures Françaises em 31-10-1976, depois
que esta publicou documentação a respeito.
7 Apontado como maçom, com início em 23/4/58.
8 Reproduzido de Si si no no, 1/11/1978.
9 Reproduzida de Si si no no, ano V, n.º 5, maio de 1979.
10 Reproduzido de Chiesa Viva, n.º 14.
11 Monsenhor Darboy, enquanto ia sendo arrastado para o muro
de fuzilamento, protestava dizendo que havia sempre defendido a liberdade.
"Cala-te!" disse um dos executores comunardos — "A tua liberdade
não é a nossa!" (La conjuration antichrétienne, monsenhor Henri Delassus,
nota do Vol. II, p. 491).
12 Bispo de Grenoble na época da aparição de La Salette, o
octogenário monsenhor Filiberto de Bruillard, há vinte anos no cargo, era
considerado uma das mais belas figuras do alto clero francês. Seu comportamento
aristocrático era temperado por grande generosidade e zelo pastoral, que o
tornavam amigo dos pobres e doutor de seus sacerdotes. Foi ordenado em setembro
de 1789 e logo depois colocado diante da escolha de prestar juramento à nova
constituição ou emigrar. Evitou a primeira, mas permaneceu na Paris sacudida
pela revolução. Havia escolhido uma missão heróica: embora procurado e ameaçado
pelo regime revolucionário, foi um daqueles capelães que, disfarçados e
misturados na multidão, seguiam os condenados à guilhotina esperando o momento
para uma furtiva absolvição sacramental.
Consta que o "Sr. Filiberto" conseguiu assistir à
morte de Luís XVI e conseguiu dar a absolvição à Maria Antonieta ao longo do
percurso feito pelo carro da condenada à morte. Mas, além dos reis dedicou-se
também à assistência religiosa dos doentes e moribundos.
Quanto a La Salette, já em dezembro de 1846 esse bispo
nomeou duas comissões de canônicos e de professores, para examinar a fundo o
evento. O resultado positivo foi aprovado pelo bispo em 19 de setembro de 1851
e lido do púlpito em toda a diocese de Grenoble.
Em maio de 1852, apesar de seus 87 anos, monsenhor de
Bruillard subiu a cavalo as alturas da montanha da aparição para colocar a
primeira pedra do santuário dedicado a Nossa Senhora de La Salette. Para
assisti-lo, fundou também uma casa de missionários. Roma já havia aprovado tudo
isto desde outubro de 1851.
Depois de ter-se assegurado do andamento dessa obra mariana
e do encaminhamento ao papa Pio IX do segredo dado aos videntes, que, aliás,
não quis conhecer antes do santo padre, apresentou sua demissão para retirar-se
ao silêncio da oração. Em 1856, 30.º aniversário de sua consagração episcopal,
subiu ainda Salette para rezar junto aos peregrinos de todo o mundo.
O venerável monsenhor de Bruillard morreu tranqüilamente em
12 de dezembro de 1860, com noventa e dois anos.
13 Reproduzido de Si si no no, nov. 1980.
14 Reproduzido de Si si no no, maio de 1981.
15 “Deus torna loucos aqueles que deseja perder”.
16 Reproduzido de Si si no no, n.º 8, ano X, jun-84.
17 Reproduzido de Si si no no, n.º 6, ano X, maio-84.
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