SEGUNDA PARTE
MATERIAIS PARA AS INSTRUÇÕES
PRIMEIRA INSTRUÇÃO,
Sobre a celebração da Missa
§ I
Importância do santo Sacrifício
e cuidado que ele exige do padre
Todo o pontífice eleito dentre
os homens é estabelecido a favor dos homens, para desempenhar as funções do
culto divino, e oferecer dons e sacrifícios em expiação dos pecados. Oferecer
sacrifícios, eis pois o fim para que Deus colocou o padre na sua Igreja; é
propriamente a função dos sacerdotes da lei da graça, aos atuais foi dado o
poder de oferecer o grande sacrifício do Corpo e Sangue do próprio Filho de
Deus; sacrifício supremo e perfeito, infinitamente acima dos sacrifícios
antigos, que outro mérito não tinha outrora senão o de serem desse a sombra e
figura. As vítimas que então se imolavam eram novilhos e bodes; hoje a nossa
Vítima é o Verbo eterno feito homem.
Por isso mesmo, os sacrifícios
da lei antiga não tinham poder algum; também o apóstolo os chama observâncias
defeituosas e incapazes; o nosso, ao contrário, tem o poder de operar a
remissão das penas temporais devidas ao pecado, e além disso - ao menos
mediatamente, - de aumentar a graça e obter socorros mais abundantes àqueles
por quem é oferecido. O padre que não está compenetrado da grandeza do
sacrifício da missa, jamais o oferecerá como deve. Nada fez de maior na terra
Jesus Cristo. É a missa a ação mais santa e mais agradável a Deus que se pode
realizar, tanto em razão da Vítima oferecida, que é Jesus Cristo, Vítima duma
dignidade infinita, como em razão do sacrificador principal, que é o mesmo
Jesus Cristo, a oferecer-se pela mão dos sacerdotes, como no-lo ensina o
Concílio de Trento.
E São João Crisóstomo diz
paralelamente: Quando virdes o sacerdote a oferecer o sacrifício, não penseis
no padre, representai-vos antes a mão de Jesus Cristo que obra dum modo invisível.
Todas as honras que têm prestado
a Deus os anjos com as suas homenagens, e os homens com as suas virtudes,
austeridades, martírios e santas obras, não podem render a Deus tanta glória
como uma só missa; porque todas as homenagens das criaturas são finitas, ao
passo que a que se presta a Deus com o sacrifício dos nossos altares, é dum
valor infinito, por lhe ser prestada por uma pessoa divina. Necessário é pois
reconhecer com o Concílio de Trento que a missa é de toda as obras a mais santa
e divina.
É pois o sacrifício da missa a
obra mais santa e agradável a Deus, como acabamos de ver; é a obra mais capaz
de aplacar a cólera de Deus contra os pecadores e abater as forças do inferno;
é a obra que obtém graças mais abundantes para os homens na terra, e maior
alívio para as almas do Purgatório; é finalmente a obra a que está ligada a
salvação do mundo inteiro, segundo o pensamento de Santo Odon, abade de Cluni.
E Timóteo de Jerusalém diz que é à missa que a terra deve a sua conservação; a
não ser ela, os pecados dos homens a teriam há muito aniquilado.
Segundo São Boaventura, em cada
missa faz o Senhor ao gênero humano um benefício não inferior ao que lhes
dispensou, fazendo-se homem. O que é conforme com a célebre exclamação de Santo
Agostinho: Ó dignidade venerável a dos sacerdotes, entre cujas mãos o Filho de
Deus encarna, como encarnou no seio da Virgem! De mais, não sendo o sacrifício
do altar senão a aplicação e renovação do sacrifício da cruz, Santo Tomás
ensina que, para o bem e salvação dos homens, tem cada missa toda a eficácia do
sacrifício da cruz. E São João Crisóstomo escreveu: A celebração da missa tem o
mesmo valor que a morte de Jesus Cristo na cruz. A Igreja plenamente confirma
esta verdade, quando diz nas suas orações: Cada vez que se celebra no altar a
memória deste sacrifício, renova-se a obra da nossa redenção. De fato, ajunta o
Concílio de Trento, o mesmo Redentor, que se ofereceu por nós na cruz, é quem
se oferece no altar por ministério dos sacerdotes.
Numa palavra, segundo a
expressão do profeta Zacarias, é a missa o que há de mais excelente e belo na
Igreja: Que há de bom, que há de belo, senão o pão dos escolhidos e o vinho que
gera virgens? No sacrifício da missa, dá-se Jesus Cristo a nós, mediante o
sacramento do altar, que é o fim e consumação de todos os outros sacramentos,
como ensina o Doutor angélico. Razão tem pois São Boaventura em chamar à missa
o resumo de todo o amor divino e de todos os benefícios de que o Senhor há
cumulado os homens. Eis por que o demônio sempre se tem esforçado por arrebatar
ao mundo a santa missa por meio dos hereges, como por tantos outros precursores
do Anticristo que, antes de tudo, cuidará de abolir e de fato abolirá, em
punição dos pecados dos homens, o sacrifício do altar, segundo esta profecia de
Daniel: Por causa dos pecados, ser-lhe-á dada força contra o sacrifício
perpétuo.
Grande razão tem pois o Concílio
de Trento para exigir que os padres ponham todo o seu cuidado, em celebrar a
missa com a máxima devoção e pureza de coração que seja possível. Como não
menos razão adverte no mesmo lugar, que é precisamente sobre os padres, que
celebram com negligência e sem devoção, que recai a maldição anunciada por
Jeremias: Maldito o que faz indignamente a obra do Senhor! Segundo São
Boaventura, celebra-se ou comunga-se indignamente, quando se chega ao altar com
pouco respeito e consideração. Assim, para evitarmos essa maldição, examinemos
o que deve fazer o padre antes, durante e depois da celebração da missa:
preparação, antes de celebrar; respeito e devoção, enquanto celebra; ação de
graças, depois de celebrar. São obrigações indispensáveis para o sacerdote.
Segundo o pensamento dum servo de Deus, deveria a vida dum padre ser apenas uma
preparação para a missa e uma ação de graças.
§ II
Preparação para a Missa
Em primeiro lugar, deve o padre
fazer a sua preparação antes de subir ao altar.
Antes de mais nada, pergunto a
mim mesmo como é que, havendo no mundo tantos padres, haja tão poucos santos? A
missa é chamada por São Francisco de Sales um mistério inefável, que encerra um
abismo de caridade divina. Além disto, São João Crisóstomo dizia que o
sacramento do altar contém o tesouro inteiro da bondade de Deus. Sem dúvida a
sagrada Eucaristia foi instituída para todos os fiéis, mas é um dom
especialmente feito aos padres. Não vades, diz o Senhor aos padres, dar a coisa
santa aos cães, nem lançar as vossas pérolas a suínos. Notem-se estas palavras:
As nossas pérolas. Dá-se em grego o nome de pérolas às espécies sacramentais; e
essas pérolas são apontadas aqui como pertença própria dos ministros do altar:
Margaritas vestras. Sendo assim, todos os padres deveriam, segundo São João
Crisóstomo, descer do altar com um coração todo abrasado do amor divino, a
ponto de serem um objeto de terror para o inferno.
Mas não é isso o que se vê:
observa-se que a maior parte descem do altar sempre mais tíbios, mais
impacientes, mais soberbos, mais invejosos, mais apegados às honras, ao
interesse e aos prazeres terrenos. Não é por falta do alimento que tomam no
altar, nota o cardeal Bona, porque, no dizer de Santa Maria Madalena de Pazi,
bastaria recebê-lo uma só vez para ficar santo; é pela falta de preparação para
celebrar a missa.
Há duas espécies de preparação:
uma remota e outra próxima.
A preparação remota consiste na
vida pura e virtuosa, que deve ter o padre para celebrar dignamente. Se dos
sacerdotes antigos Deus exigia a pureza, só porque deviam transportar os vasos
sagrados, - quanto não deverá ser mais puro e santo, observa Pedro de Blois, o
padre que deve trazer nas suas mãos e no seu coração o Verbo encarnado! Mas,
para ser puro e santo, não lhe basta estar livre das cadeias do pecado mortal,
é necessário que esteja isento de pecados veniais; (plenamente deliberados,
entende-se) de contrário, Jesus Cristo não o admitirá a ter parte consigo.
Guardemo-nos, diz São Bernardo, de fazer pouco caso dessas faltas; pois, como
foi dito a Pedro, se não formos purificados por Jesus Cristo, não teremos parte
com ele. Necessário é portanto que todas as ações e todas as palavras do padre,
que quer celebrar missa, sejam bastante santas, para lhe servirem de
preparação.
A preparação próxima exige
primeiramente a oração mental. Como quereis que celebre com devoção a santa
missa o sacerdote, que sobe ao altar sem primeiro ter feito a sua meditação?
Dizia o venerável João de Ávila que o padre deve fazer ao menos hora e meia de
oração mental antes da missa. Eu me contentaria com meia hora e, para alguns
até com um quarto de hora, ainda que um quarto de hora é muitíssimo pouco.
Há tão belos livros de
meditações preparatórias para a santa missa! A missa é uma representação da
paixão de Jesus Cristo. Por isso com razão o papa Alexandre I disse que sempre
nela se deve comemorar a paixão do Salvador. E foi o que prescreveu o Apóstolo:
Todas as vezes que comerdes esse pão e beberdes esse cálice, anunciareis a
morte do Senhor. Segundo Santo Tomás, o Redentor instituiu o sacramento do
altar, para conservar sempre viva em nós a lembrança do amor que nos
testemunhou, e do grande benefício que nos alcançou a sua imolação na cruz.
Ora, se todos os homens se devem lembrar continuamente da paixão de Jesus
Cristo, - com quanta mais razão o padre, quando vai renovar, ainda que dum modo
diferente, o mesmo sacrifício no altar!
Ao padre não lhe basta ter feito
a sua meditação; importa-lhe que antes de celebrar se recolha sempre ao menos
alguns instantes e considere bem o que vai fazer; foi o que ordenou a todos os
padres o primeiro Concílio de Milão, no tempo de São Carlos Borromeu.
Ao entrar na sacristia, deve o
celebrante despedir-se de todos os pensamentos do mundo e dizer com São
Bernardo: Cuidados, negócios, esperai por mim aqui; eu e o meu servo, isto é a
minha razão com a minha indigência, vamos ali adorar a Deus, e logo voltaremos
a ter convosco; pois voltaremos, ai!, e demasiado cedo. São Francisco de Sales
escrevia a Sta. Joana de Chantal: "Quando me volto para o altar para
começar a missa, perco de vista todas as coisas da terra". Postos de parte
pois todos os pensamentos do mundo, não deve o padre ocupar-se então senão da
grande obra, que vai fazer e do pão celeste, de que vai alimentar-se a essa
mesa divina: Quando estiveres sentado à mesa do príncipe, considera atentamente
as iguarias que te são servidas.
Pense o padre que vai chamar do
Céu à terra o Verbo feito homem, para se entreter familiarmente com ele no
altar, para o oferecer de novo ao Padre eterno, e para enfim se alimentar da
sua carne sagrada.
O venerável João de Ávila, antes
de subir ao altar, procurava excitar-se ao fervor, dizendo: "Eis que vou
consagrar o Filho de Deus, tê-lo nas minhas mãos, falar-lhe, tratar com ele e
recebê-lo no meio seio".
Deve também o padre considerar
que sobe ao altar na qualidade de mediador, para interceder por todos os
pecadores, como diz São Lourenço Justiniano. Se está colocado entre Deus e os
homens, de Deus obterá para estes as graças de que necessitam. É por essa
razão, observa Santo Tomás, que se dá o nome de missa ao sacrifício do altar.
Na Lei antiga, só ao sumo sacerdote era permitido entrar no Santo dos Santos, e
isso uma só vez por ano; mas hoje, diz São Lourenço Justiniano, a todos os
padres é dado oferecer cada dia o Cordeiro divino, para obterem para si
próprios e para todo o povo as graças de Deus. Donde São Boaventura conclui que
o celebrante se deve propor três fins: honrar a Deus, comemorar a paixão do
Salvador, e obter graças para toda a Igreja.
§ III
Respeito e devoção com que se
deve celebrar
Em segundo lugar, é necessário
que o sacerdote celebre a missa com respeito e devoção. Sabe-se que o uso do
manípulo foi introduzido, para que o padre enxugasse as lágrimas; porque
outrora tais sentimentos de devoção experimentavam os sacerdotes, ao celebrarem,
que não faziam senão chorar. Já dissemos que o padre ao altar é o representante
do próprio Jesus Cristo, como escreveu São Cipriano. É nesta qualidade que diz:
Hoc est corpus meum; hic est calix sanguinis mei. Mas, ó Céu! Que lágrimas, que
lágrimas de sangue se deveriam chorar, quando se pensa no modo como a máxima
parte dos padres celebram a missa! Causa pena, digamo-lo, ver o desprezo com
que Jesus Cristo é tratado por tantos padres, até religiosos, e pertencentes a
Ordens reformadas!
Ao ver-se a negligência com que
esses padres de ordinário dizem a missa, bem se lhes poderia fazer a censura
que Clemente de Alexandria dirigia aos sacerdotes pagãos: que faziam do Céu um teatro,
e de Deus o objeto da sua comédia.
E que direi? Uma comédia! Ó, se
eles tivessem um papel a representar no teatro, que cuidado empregariam! Ao
contrário, que fazem eles ao altar? Truncam palavras, fazem genuflexões que
mais parecem atos de desprezo e faltas de respeito; traçam bênçãos que não se
sabe o que são; esboçam gestos ridículos; falam às rubricas, antecipando
cerimônias e misturando-lhes palavras. E no entanto a verdade é que essas
rubricas todas são de preceito, por isso que São Pio V, na bula que pôs à
frente do missal, manda districte, in virtute sanctae obedientiae, que a missa
seja celebrada segundo as rubricas do missal. Donde resulta que quem transgride
as rubricas não pode eximir-se de pecado, que será grave desde que a matéria o
seja.
Tudo isso procede do desejo de
chegar de pressa ao fim da missa. Celebram-na como se a igreja estivesse a
desabar, ou como se os bandidos se avizinhasse e não restasse tempo para a
fuga.
Eis um padre que, depois de ter
dado horas inteiras a uma vida inútil, ou a negócios mundanos, lá vai a
celebrar a missa todo apressado!
Começa com precipitação,
prossegue do mesmo modo; chega à Consagração, toma Jesus Cristo nas suas mãos,
e comunga-o com tanta irreverência como se ali só houvesse um bocado de pão!
Seria necessário que tais padres sempre tivessem ao seu lado alguém, para lhes
dizer o que um dia o venerável João de Ávila, chegando-se ao altar em que
celebrava um desses, lhe disse: "Por piedade tratai-o melhor, que é o
filho dum pai respeitável".
Queria o Senhor que os
sacerdotes da Lei antiga tremessem de santo respeito ao aproximarem-se do
santuário. E um sacerdote da Lei nova, achando-se ao altar, em presença do
próprio Jesus Cristo, a falar-lhe, a tomá-lo nas suas mãos, a oferecê-lo a
Deus-Pai, a alimentar-se dele, - mostra-se tão irreverente! Na Lei antiga,
ameaçou o Senhor com muitas maldições os sacerdotes que fossem negligentes nas
cerimônias desses sacrifícios, que eram apenas uma mera figura do nosso: Se
cerrares os ouvidos à voz do Senhor teu Deus, que te manda guardar as
cerimônias, virão sobre ti todas estas maldições... Serás maldito na cidade e
maldito nos campos. Dizia Sta. Teresa: "Pela mínima cerimônia da Igreja,
daria eu mil vezes a minha vida". E o padre as despreza!
Ensina o Padre Suarez que a
omissão de qualquer cerimônia, na missa, não pode escusar-se de pecado. Muitos
doutores ajuntam que uma negligência notável nas cerimônias pode chegar a
pecado mortal.
Na nossa Teologia moral
demonstramos, com a autoridade de muitos doutores, que o que celebra em menos
de um quarto de hora não pode escusar-se de falta grave, e isto por duas
razões: primeira, por causa da irreverência contra o sacrifício, resultante da
sua precipitação; segunda, por causa do escândalo que dá ao povo.
Quanto ao respeito devido ao
divino sacrifício, já citamos o que diz o Concílio de Trento: que a missa deve
ser celebrada com a máxima devoção possível. E ajunta que a falta de respeito,
mesmo exterior, constitui uma irreverência, que de algum modo chega a ser
impiedade. Assim como as cerimônias, quando são bem feitas, infundem e
significam respeito; também quando são mal executadas denotam irreverência que,
em matéria grave, é um pecado mortal. Deve-se notar além disto que, para nas
cerimônias haver o testemunho de respeito, que convém a um tão grande
sacrifício, não basta fazê-las; porque uma pessoa qualquer poderia ter a língua
assás desembaraçada e os movimentos bastante livres para expedir tudo isso em
menos de um quarto de hora; mas é preciso que sempre sejam feitas com a
gravidade conveniente, que pertence também intrinsecamente ao respeito que se
deve ter pela missa.
Por outro lado, celebrar a missa
em tão pouco tempo é falta grave, em razão do escândalo que se dá aos fiéis que
assistem a ela. Sobre este ponto, é necessário considerar ainda o que noutro
lugar diz o Concílio de Trento: que as cerimônias da missa foram instituídas
pela Igreja, para inspirar aos fiéis uma alta ideia deste augusto sacrifício, e
toda a veneração devida aos divinos mistérios que encerra. Ora, quando estas
cerimônias são feitas muito à pressa, nenhuma veneração inculcam ao povo, antes
lhe fazem perder o respeito que merece um mistério tão santo. Observa Pedro de
Blois que os padres que celebram com pouco respeito, dão ocasião a que os fiéis
façam pouco caso do Santíssimo Sacramento. Não se pode dar um tal escândalo sem
se incorrer em pecado mortal.
Também o Concílio de Tours, em
1583, mandou que os sacerdotes fossem bem instruídos nas cerimônias da missa,
para não destruírem a devoção no coração das suas ovelhas, em vez de as levarem
à veneração pelos ministérios sagrados.
Celebrando sem devoção, - como
querem esses padres obter de Deus graças, sendo certo que ao oferecerem o santo
sacrifício, o ofendam e, quanto deles depende, mais o desonram do que o honram?
O padre que não acreditasse no Sacramento do altar, sem dúvida ofenderia a
Deus; mas quanto mais o ofende o que nele crê e não só lhe recusa o respeito
que lhe é devido, senão que ainda é causa de que outros, à vista da sua
conduta, lhe percam igualmente o respeito? Os judeus a princípio respeitaram
Jesus Cristo, mas, quando o viram desprezado pelos sacerdotes, perderam então a
alta idéia que tinham dele, e acabaram por gritar com os sacerdotes: Tolle,
tolle, crucifige eum! Do mesmo modo, para não sairmos do nosso assunto, os
seculares que hoje vêem os padres a celebrar com tanta irreverência, perdem
toda a estima e veneração por este divino mistério.
Uma missa, celebrada com
recolhimento, inspira devoção aos assistentes; pelo contrário, faz-lhes perder
a devoção e quase a fé também, quando celebrada sem piedade. Eis um fato
passado em Roma e que me foi contado por um religioso de todo o crédito. Tinha
um herege resolvido renunciar aos seus erros; mas, tendo visto celebrar a missa
sem devoção, foi ter com o papa e disse-lhe que não queria abjurar, porque
estava persuadido de que nem os padres nem o papa tinha na Igreja católica uma
fé verdadeira: "Se eu fosse papa, dizia ele, e soubesse que um padre
celebrava a missa com tão pouco respeito, mandava-o queimar vivo; ao ver porém
que os padres dizem assim a missa e não são castigados, persuado-me de que nem
o próprio papa acredita nela". Dito isto, retirou-se, e não consentiu que
lhe falassem mais em abjuração.
Mas objetam certos padres que os
leigos se queixam, quando a missa se prolonga. - O quê! Então, lhes respondo eu
de pronto, a pouca devoção dos seculares há de ser a regra do respeito devido
ao santo sacrifício! Ouçam mais: se os padres celebrassem a missa com o devido
respeito e gravidade, os seculares se compenetrariam da veneração a prestar a
tão grande mistério, e não lamentariam a meia hora que lhe devessem consagrar.
Como porém, de ordinário, a missa é tão breve e nenhuma devoção inspira, os
seculares à imitação dos padres, assistem a ela sem devoção, e com pouca fé;
quando vêem que ela dura mais de um quarto de hora, aborrecem-se e queixam-se,
em razão do mau hábito contraído.
Assim, os mesmos que sem
dificuldade passam muitas horas a uma mesa de jogo, ou numa praça pública,
desperdiçando o tempo, não podem sem tédio gastar uma meia hora a ouvir missa!
A causa de tudo isso são os padres: É convosco que falo, ó sacerdotes, que
desonrais o meu nome e dizeis: Como desonramos nós o vosso nome? Nisso que
dizeis: A mesa do Senhor é de pouca importância. O pouco que os padres se
importam do respeito devido à missa, faz que também os outros a desprezem.
Pobres padres! Ao saber que um
sacerdote acabava de morrer após a sua primeira missa, o venerável João de
Ávila exclamou: "Ó que terrível conta esse padre tem de prestar a Deus,
por essa primeira missa!" À vista disso, que se deverá dizer dos padres
que, no decurso de trinta ou quarenta anos, cada dia deram ao altar o escândalo
de que vimos falando! E, repito, - como poderão tais padres tornar o Senhor
propício e obter graças da sua misericórdia, celebrando a missa de modo antes a
ultrajá-lo que a honrá-lo? Todos os crimes são expiados pelo sacrifício, diz o
papa Júlio, mas por que oferenda se há de reparar a ofensa feita ao Senhor, se
é na mesma oblação do sacrifício que se peca? Pobres padres! E pobres bispos
que permitem a tais padres celebrarem! Segundo o decreto do Concílio de Trento,
são os bispos obrigados a impedir as missas celebradas com irreverência.
Notem-se estas expressões:
Prohibere curent ac teneantur; significam elas que os bispos estão obrigados a
suspender os que celebram sem respeito conveniente; e esta obrigação tanto
abrange os sacerdotes regulares como os outros, visto que os bispos a esse
respeito são constituídos pelo Concílio legados apostólicos, e por isso
obrigados a vigiar pelas missas que se dizem nas suas dioceses.
E nós, padres, irmãos meus,
cuidemos de nos corrigir: se no passado temos celebrado o santo sacrifício com
pouca devoção e respeito, atalhemos ao mal, ao menos daqui para o futuro. Antes
de celebrar, pensemos no que vamos fazer: é a ação maior e mais santa que um
homem pode realizar. Demais, que grande bem é uma missa celebrada com devoção,
grande bem para o celebrante, e para os ouvintes! - Eis como João Herolt, de
sobrenome o Discípulo, fala aos que assistem à missa: Quando fazeis a vossa
oração na igreja, na presença de Deus, mais seguramente ela é ouvida... porque
todo o sacerdote está obrigado a orar pelos assistentes em cada missa. Ora, se
a oração dum secular, quando feita em união com a do celebrante, é mais
prontamente ouvida de Deus, quanto mais ainda a do próprio sacerdote, se
celebra com devoção! Um padre que oferece todos os dias o santo sacrifício com
alguma devoção, há de receber sempre de Deus novas luzes e novas forças.
Jesus Cristo o instruirá, o
consolará, o animará cada vez mais, e lhe concederá as graças que deseja.
É sobretudo depois da
consagração que o padre pode estar seguro de conseguir do Senhor todas as
graças que pede. O venerável Padre Antônio Colelis dizia: "Quando celebro
e tenho o meu Jesus nas minhas mãos, consigo dele quanto quero". O
celebrante obtém o que quer para si e para os que assistem à missa. Lê-se na
Vida de São Pedro de Alcântara que as missas fervorosas que celebrava produziam
mais fruto, que todos os sermões dos pregadores da província em que estava.
Quer o Concílio de Rodez que os padres pronunciem as palavras e façam as
cerimônias com uma devoção, que dê testemunho da sua fé e amor para com Jesus
Cristo, presente no altar. A compostura exterior, diz São Boaventura, manifesta
as disposições interiores do celebrante.
Recorde-se aqui de passagem o
que ordenou Inocêncio III: Nós ordenamos também que os oratórios, os vasos,
corporais e alfaias sagradas se conservem em perfeita limpeza; porque é de todo
o ponto contrário ao bom senso abandonar as coisas santas a uma imundícia, que
não se sofria nem mesmo nas coisas profanas. Ai! Tinha o papa toda a razão para
assim falar, porque se encontram padres que não se envergonham de celebrar com
corporais, sanguinhos e cálices, de que não quereriam servir-se à sua mesa.
§ IV
Ação de graças
Em terceiro lugar, depois da
celebração do santo sacrifício, é necessário render graças a Deus. Esta ação de
graças deve estender-se ao dia inteiro. Exigem os homens que lhes sejamos
reconhecidos e correspondamos aos mínimos favores que nos fazem, nota São
Crisóstomo; quanto pois não devemos ser reconhecidos a Deus, que de nós espera,
não uma retribuição, mas um ato de agradecimento, e isso somente para nosso
bem! Se não podemos, ajunta ele, agradecer-lhe na medida da sua dignidade,
agradeçamoslhe ao menos quanto pudermos.
Mas que pena, que desordem ver
tantos padres que, depois da missa, apenas recitam algumas breves orações na
sacristia, sem atenção nem devoção, e logo falam de coisas inúteis ou de
negócios mundanos, ou até sai em da Igreja e vão levar Jesus Cristo ao meio das
ruas! Seria necessário proceder sempre com eles, como um dia o venerável João
de Ávila: ao ver que um padre saia da Igreja logo depois de celebrar, fê-lo
acompanhar de dois clérigos com círios acessos. Perguntou-lhes o padre o que
significava aquilo, e eles responderam: "Acompanhamos o Santíssimo
Sacramento, que levais ao vosso peito". Bem se podia dizer a tais padres o
que São Bernardo um dia escreveu ao arcedíago Foulques: Ai! Como tão depressa
vos enfastiais da companhia de Jesus Cristo, que tendes dentro de vós?
Há muitos livros de piedade que
recomendam a ação de graças depois da missa, mas quantos são os padres que
cumprem este dever? Poderiam apontar-se ao dedo. Fazem alguns a oração mental,
e recitam ainda muitas orações vocais; mas depois da missa poucos instantes se
entretém com Jesus Cristo, ou até se dispensam disso por completo. Se ao menos
o fizessem enquanto as espécies consagradas se conservam no seu estômago! Dizia
o venerável João de Ávila que se deve considerar comi infinitamente precioso o
tempo que se segue à missa; por isso ele de ordinário, a seguir à missa,
passava duas horas recolhido em piedosos entretenimentos com Deus.
Depois da comunhão, dispensa o
Senhor as suas graças em mais abundância. Dizia Santa Teresa que Jesus Cristo
está então na alma como num trono de graça e lhe diz: Quid vis ut tibi faciam?
Recordemos também o que ensinam Suarez, Gonet e outros doutores, - que a alma
aufere da comunhão tanto maior fruto, quanto melhor se dispuser por atos de
piedade, durante a permanência das espécies sacramentais. A razão é que este
divino Sacramento, tendo sido instituído à maneira de alimento, declara o
Concílio de Florença que, assim como os alimentos corpóreos sustentam o corpo
segundo o tempo que permanecem no estômago, também o Pão celestial continua a
alimentar de graças a alma, enquanto permanece no corpo, contanto que as boas
disposições do comungante prossigam.
Além disto, os atos de virtude
têm então mais valor e merecimento, em razão da alma estar mais unida com Jesus
Cristo, que assim o declara: Quem come a minha carne e bebe o meu sangue,
permanece em mim, e eu permaneço nele.
Então, diz São João Crisóstomo,
o comungante forma uma só e mesma coisa com Jesus Cristo. Deste modo, são mais
meritórios os atos, por serem praticados por uma alma unida a Jesus Cristo.
Mas, por outro lado, não quer o
Senhor que as suas graças se percam, prodigalizando-as a ingratos, segundo a
expressão de São Bernardo. Tenhamos pois cuidado de nos entretermos com Jesus
Cristo depois da missa, ao menos durante uma meia hora, ou o mínimo um quarto
de hora; mas, ai!, um quarto de hora é muitíssimo pouco. Devemos considerar que
o padre, desde o dia da sua ordenação, não é de si próprio, mas de Deus. E o
próprio Senhor disse: Hão de oferecer ao Senhor, seu Deus, o incenso e o pão; e
por conseqüência serão santos.
§ V
O padre que se abstém de
celebrar
Há padres que se abstém de
celebrar por humildade; uma palavra sobre este assunto. Abster-se de celebrar
por humildade é bom, mas não é o que há de melhor: os atos de humildade prestam
a Deus uma honra finita, o sacrifício da missa rende-lhe uma honra infinita,
que lhe é prestada por uma Pessoa divina. Ouçamos o que diz São Boaventura:
Quando o padre deixa de celebrar, sem impedimento legítimo, faz quanto pode
para privar a santíssima Trindade da glória que lhe é devida, os anjos de uma
grande alegria, os pecadores do perdão, os justos de auxílios, as almas do
Purgatório de alívio, a Igreja de um grande bem e a si próprio de remédio.
Achava-se São Caetano em
Nápoles, quando soube que em Roma, um seu amigo cardeal, que costumava celebrar
todos os dias, impedido por certos negócios, começava a descurar este dever.
Era na força do calor do estio, mas o santo, com risco da própria vida, deu-se
pressa em ir a Roma instar com o seu amigo, para que retomasse o antigo
costume; e só depois de conseguido o que desejava voltou para Nápoles. Eis o
que se lê na Vida do venerável João de Avila. Indo um dia a caminho para
celebrar num ermitério, sentiu-se tão enfraquecido, que temeu não chegar ao
lugar, donde estava ainda bastante distanciado; pensava já em suspender o passo
e desistir de celebrar, quando Jesus Cristo lhe apareceu em figura de viageiro
e, mostrando-lhe o seu peito, lhe fez ver as chagas, sobretudo a do sagrado
lado e lhe disse: "Quando eu estava coberto destas chagas, encontrava-se
mais fatigado e enfraquecido que tu"; e desapareceu.
Reanimando com esta visão, o
servo de Deus retomou a marcha e teve a felicidade de oferecer o santo
sacrifício.
SEGUNDA INSTRUÇÃO,
O bom exemplo que o Padre deve
dar
Estabeleceu Jesus Cristo na
santa Igreja duas ordens de fiéis, a dos leigos e a dos eclesiásticos, com a
diferença que aqueles são discípulos e ovelhas, estes mestres e pastores. Daqui
o preceito de São Paulo aos leigos: Obedecei aos vossos superiores e
sujeitai-vos a eles, porque vigiam por vós e em boa parte são responsáveis
pelas vossas almas. Por outra parte adverte aos eclesiásticos: Estai atentos a
vós mesmos e a todo o rebanho, de que o Espírito Santo vos constituiu bispos,
para governardes a Igreja de Deus. E do mesmo modo lhes fala São Pedro:
Apascentai o rebanho de Deus que vos está confiado.
Donde com razão conclui Santo
Agostinho que nada há nem mais difícil, nem mais arriscado que o ônus
sacerdotal; e isso precisamente em razão do dever, que incumbe ao padre de ser
um espelho de virtude, no interior e no exterior, para que os outros aprendam
dele a viver bem. Que bem não faz o exemplo dum santo padre! Diz-nos a
Escritura que se vivia santamente em Jerusalém, sob o pontificado de Onias, por
causa da sua virtude. O Concílio de Trento diz que a virtude dos chefes é a
salvação dos súditos. Que males ao contrário não resultam dos maus exemplos dum
padre! É do que o Senhor se lamenta pela boca de Jeremias: O meu povo é um
rebanho perdido; foram os pastores que o transviaram. Não, exclama São
Gregório, ninguém prejudica tanto os interesses de Deus como os padres, quando
estabelecidos para corrigirem os outros, lhes dão maus exemplos.
Segundo São Bernardino de Sena,
ao verem a vida dos maus padres, os seculares não pensam mais em se corrigirem;
chegam até a desprezar os Sacramentos, assim como os bens e penas da outra
vida. Respondem como o pecador de que fala Santo Agostinho: A quem me propondes
como exemplar? Quereis que faça o que nem os eclesiásticos fazem? Um dia dizia
o Senhor a Santa Brígida: Os maus exemplos dos padres são causa de que os
pecadores se obstinem no pecado; primeiro envergonham-se, mas depois fazem gala
do pecado.
Diz ainda São Gregório: São os
sacerdotes na Igreja, como os alicerces num templo. Quando os alicerces falham,
todo o edifício desaba. Por isso na ordenação dos padres a Igreja faz por eles
esta prece: Que neles resplandeça a justiça, a constância, a misericórdia, a
fortaleza e as outras virtudes; que a sua vida sirva de exemplo aos outros.
Devem os padres não só ser santos, mas parecê-lo, porque no dizer de Santo
Agostinho, se a boa consciência é necessária ao padre para se salvar, também
lhe é igualmente necessária a boa reputação, para salvar os outros. Sem esta,
embora fosse bom para si próprio, seria cruel para com os outros e,
perdendo-os, perder-se-ia com eles. Escolheu Deus os padres entre todos os
homens, não só para lhe oferecerem sacrifícios, mas para edificarem todos os
outros com o bom odor das suas virtudes.
São os padres o sal da terra.
São os padres, diz a Glosa, que devem condimentar de algum modo os outros
homens, para os tornarem agradáveis a Deus, formando-os na prática da virtude
por suas palavras, e ainda mais pelos seus exemplos.
São também os padres a luz do
mundo, devem pois, como o divino Mestre acrescenta, brilhar no meio de todos os
fiéis pelo resplendor das suas virtudes, e glorificar assim o Deus que tantas
distinções e honras lhes prodigaliza: Sois vós a luz do mundo. Mostre-se pois radiante
aos olhos dos homens a vossa luz, para que vejam as vossas boas obras e
glorifiquem o vosso Pai que está nos céus. Era o que São João Crisóstomo
recordava aos padres: Se nos escolheu, foi para que nos tornemos luzeiros. Por
sua vez, dizia o papa Nicolau, são os astros que devem irradiar ondas de luz
sobre todo o povo. Isto é conforme com as palavras de Davi: Os que formam a
muitos na santidade, hão de brilhar como estrelas por todos os séculos dos
séculos.
Mas, para alumiar os povos, não
basta que o padre brilhe pelos seus discursos; é necessário que lhes ajunte a
luz do bom exemplo; porque a vida do padre, no dizer de São Carlos Borromeu, é
o farol para o qual os simples levantam os olhos, do meio das vagas e trevas do
mar tempestuoso do mundo, para escaparem ao naufrágio. O mesmo dizia São João
Crisóstomo: Deve o padre levar uma vida edificante, para que todos vejam nele
um modelo excelente; visto que Deus nos escolheu para que sejamos como
luminárias, que mostrem aos outros o caminho a seguir. É a vida do padre a luz,
da qual diz Nosso Senhor que deve ser colocada no candelabro para alumiar todos
os homens: Não se acende uma luz para a meter debaixo do alqueire, mas para a
por no candelabro, para que alumie todos os que estão em casa.
Donde o Concílio de Bordeus
conclui: De tal modo estão os eclesiásticos expostos aos olhares de todos os
homens, que estes tomam, como regra os bons ou maus exemplos deles.
É pois o padre a luz do mundo;
mas, se a luz se demudar em trevas, o que se tornará o mundo?
São também os padres os pais dos
cristãos, como lhes chama São Jerônimo: Patres christianorum. Se são pais de
todos os fiéis, acrescenta São João Crisóstomo, necessário é que tomem cuidado
de todos os seus filhos, e se esforcem principalmente em levá-los para o bem,
primeiro pelo bom exemplo e depois por sábias instruções. De contrário, se o
padre der maus exemplos, diz Pedro de Blois, os seus filhos espirituais não
deixarão de o seguir.
Também os padres são mestres e
modelos de todas as virtudes. Disse o nosso Salvador aos seus discípulos: Assim
como meu Pai me enviou, também eu vos envio. Do mesmo modo portanto que o Padre
eterno enviou Jesus Cristo à terra, para servir de modelo aos homens, o próprio
Jesus Cristo estabeleceu os padres no mundo, para serem cá modelos de
santidade. É o que significa o nome de Sacerdote, como o explica Pedro
Comestor. O mesmo significado tem a palavra Presbítero, segundo Honório de
Autun. Também o Apóstolo escreveu a Tito: Apresenta-te como modelo em tudo...
para que os inimigos da nossa fé nos respeitem e nada tenham de que nos arguir.
Diz São Pedro Damião que o Senhor, ao estabelecer os padres, os separou do
povo, para que não vivam como o povo. Deve a vida deles ser uma regra que
ensine os fiéis a viverem bem. Por isso São Pedro Crisólogo chama ao padre a forma
das virtudes.
E São João Crisóstomo,
dirigindo-se ao padre, diz também: Que o espelho da vossa vida santa seja para
todos uma lição e um modelo de virtude. As próprias funções do ministério
sacerdotal exigem isto como escreve São Bernardo. Desejoso de ver os povos
santificados, Davi fazia a Deus esta súplica: Que os vossos sacerdotes sejam
revestidos da justiça, e exultem de alegria os vossos santos. Ser alguém
revestido de justiça, é dar exemplo de todas as virtudes: de zelo, humildade,
modéstia etc.
Numa palavra, diz o Apóstolo,
devemos mostrar, pela santidade da nossa vida, que somos verdadeiramente os
ministros dum Deus santo: Mostremo-nos em tudo verdadeiros ministros de Deus...
pela castidade, pela sabedoria, pela paciência. E é o que o próprio Jesus
Cristo diz: Se alguém quer ser ministro meu, siga os meus passos. O padre pois
deve reproduzir em si mesmo os exemplos de Jesus Cristo, de modo que, diz Santo
Ambrósio, se torne um objeto de edificação para os fiéis, e ao vê-lo cada um
possa dar testemunho da santidade da sua vida, e glorificar a Deus por tais
ministros. Foi o que fez dizer a Minúcio Felis que se devem reconhecer os
padres, não pela magnificência do trajo e elegância da cabeleira, mas pela
modéstia e inocência dos costumes. Colocado na terra para lavar as manchas dos
outros, observa São Gregório, é necessário que o padre seja santo, e faça ver
que o é.
São os padres os guias dos
povos, segundo São Pedro Damião. Mas, diz São Dionísio, que ninguém tenha a
audácia de se constituir diretor dos outros nas coisas divinas, se primeiro se
não tiver tornado mui semelhante a Deus. E o abade Filipe de Boa-Esperança
acrescenta: É a vida dos clérigos que serve de modelo aos leigos: aqueles
caminham na vanguarda como guias, estes seguem-nos como um rebanho. Santo
Agostinho chama aos padres Rectores terrae. Ora, quem é constituído para
corrigir os outros, deve estar a salvo de toda a censura, como diz o papa
Hormisdas. E no concílio de Pisa lê-se: Quanto os eclesiásticos estão acima dos
leigos pela sua dignidade, tanto devem edificá-los como o resplendor das suas
virtudes; deve ser tal a sua virtude que mova os outros à santidade. Como
escreveu São Leão: A vida exemplar dos governantes é a salvação dos súditos.
Por São Gregório de Nissa é o
padre chamado um mestre da santidade. Mas, se o mestre é orgulhoso, como há de
ensinar a humildade? Se é intemperante, como há de ensinar a mortificação? Se é
vingativo, como ensinará a doçura?
Quem está à frente do povo, para
o instruir e formar na virtude, diz Santo Isidoro, tem obrigação de ser santo,
sob todos os pontos de vista.
Se o Senhor disse a todos os
homens: Sê-de perfeitos, como o vosso Pai celeste é perfeito, como observa
Salviano, com quanto mais rigor há de exigir a perfeição dos padres, que estão
encarregados de formar na virtude os outros? Como poderá acender o amor de Deus
no coração dos outros, quem não mostra pelas suas obras que está abrasado desse
fogo sagrado? Nada pode incendiar uma luz apagada, diz São Gregório. E São
Bernardo acrescenta que a linguagem do amor, na boca de quem não ama a Deus, é
uma linguagem bárbara e estranha. Resultará, diz ainda São Gregório, que o
padre que não dá bom exemplo tornará desprezíveis os seus sermões, e até todas
as suas funções espirituais, ajunta Santo Tomás. Ordenou o Concílio de Trento
que só sejam admitidos ao sacerdócio os que de tal modo se tornarem conhecidos
pela sua piedade, e pureza de seus costumes, que se possam esperar deles
exemplos excelentes de boas obras e advertências salutares.
Veja a este respeito o que diz o
No Concílio de Direito Canônico, principalmente no § 3. do cânon. 973.
Assim, notai bem, o que primeiro
se deve esperar do padre é o bom exemplo, e depois os bons conselhos, porque
diz o Concílio, o bom exemplo é uma espécie de pregação contínua. Antes de
pregarem com a palavra, devem os padres pregar com o exemplo, como ensina Santo
Agostinho. E São João Crisóstomo diz: Nenhuma trombeta ressoa tão alto como os
bons exemplos.Tal era a razão desta advertência de São Jerônimo ao seu caro
Nepociano: Que a tua conduta não desminta as tuas instruções; de contrário, ao
pregares na igreja, cada ouvinte poderia dizer baixinho: Porque não fazes o que
pregas? A mesma linguagem emprega São Bernardo: Terão força as vossas palavras,
desde que os ouvintes estejam persuadidos de que muito primeiro começastes a
praticar o que pregais aos outros. Mais força tem o pregão das obras que a voz
da boca.
Para que um pregador persuada os
outros do que ensina, é necessário que ele próprio esteja e se mostre disso
convicto; mas, como poderá mostrar-se tal quando faz o contrário do que diz?
Quem faz o contrário do que ensina, a si próprio se condena, em vez de instruir
os outros, diz o autor da Obra imperfeita. Persuade e comove um sermão, diz São
Gregório, quando a vida do pregador o confirma. Mais se movem os homens pelo
que vêem do que pelo que ouvem; isto é, deixam-se persuadir antes pelos
exemplos que lhes falam aos olhos, do que pelos discursos que lhes ressoam aos
ouvidos. É o que fazem notar os padres dum Concílio, que por conseqüência
querem que o sacerdote dê bom exemplo, tanto no modo de trajar como de viver.
São os padres os espelhos do mundo, nos diz o Concílio de Trento; neles têm
fixos os olhos todos os fiéis e os tomam como modelos em toda a sua conduta.
No mesmo sentido, diz São
Gregório: "É justo que o sacerdote se imponha pelos seus costumes, de modo
que seja como um espelho em que o povo aprenda o que tem a fazer e a corrigir.
É o que o Apóstolo nos dá a entender nestas palavras: Somos dados em espetáculo
ao mundo, aos anjos e aos homens. Tudo reclama a santidade do padre, escreveu
São Jerônimo. Segundo Santo Euquério, suportam os padres o peso do mundo
inteiro, isto é, têm o dever de salvar todas as almas; mas como? Pelo poder da
santidade e pela força dos bons exemplos. Dali este decreto do III. Concílio de
Valença: "É necessário que o padre se esforce por se mostrar um modelo de
regularidade e modéstia, na sua apresentação grave, no seu rosto e nas suas
palavras. Notem-se estes três pontos: 1º. Habitus. Que exemplo de modéstia
podem dar os padres que, em vez de trazerem um casaco comprido e decente, usam
jaquetões impróprios, punhos com botões de ouro?... 2º. Vultus.
Para inculcar modéstia, quando
se aparece em público, é necessário conservar os olhos baixos, não só ao altar
e na igreja, mas por toda a parte em que se encontrem pessoas do outro sexo.
3º. Sermonis. Deve o padre tomar todo o cuidado para não repetir certas máximas
do mundo e certas chocarrices contrárias à modéstia. O IV. Concílio de Cartago
mandou suspender das suas funções todo o clérigo que descesse a gracejos
indecorosos. Mas que mal há em gracejar? Não, responde São Bernardo, essas
chocarrices entre seculares não passam de graçolas, mas na boca dum padre são
blasfêmias, que causam horror. E acrescenta: Vós consagrastes a vossa boca à
pregação do Evangelho; não podeis sem pecado abri-la a palavras tais, nem
acostumar-vos a elas sem vos tornardes culpado de sacrilégio. É sempre perigoso
dizer coisas que não edifiquem os que as ouvem.
E coisas há, diz Pedro de Blois,
que para os outros são leviandades e para o padre são um crime; porque da parte
dele todo o mau exemplo se lhe torna em falta grave, desde que seja ocasião de
queda para os outros. Lê-se em São Gregório de Nazianzo: As manchas num vestido
rico são mais sensíveis e causam maior impressão a quem as vê.
Deve também o sacerdote
abster-se de toda a maledicência. No dizer de São Jerônimo, há padres que se
resguardam dos outros vícios e parece que não podem resistir à murmuração.
Importa-lhes ainda não frequentar as pessoas do mundo, em cuja sociedade se
respira um ar viciado, que com o tempo arruína a saúde da alma; é a reflexão de
São Basílio. Deve finalmente o padre abster-se de certos divertimentos
seculares, em que não seria edificante ver-se um ministro dos altares, como em
comédias de todo profanas, bailes e reuniões, aonde afluem mulheres. É necessário,
ao contrário, que ele seja visto a orar na igreja, a dar a sua ação de graças
depois da missa, a visitar o Santíssimo, e a Mãe de Deus. Muitos há que cumprem
os seus deveres de piedade às ocultas, com receio de serem vistos; é bom que se
façam ver, não para atraírem louvores, mas para darem bom exemplo, e levarem os
outros a glorificar a Deus, imitando-os.
TERCEIRA INSTRUÇÃO,
Sobre a castidade do padre
§ I
Excelência desta virtude, e quanto
é necessária ao padre
Em comparação duma alma casta,
todas as grandezas e dignidades terrenas são de mui pouco valor.
A castidade é chamada por Santo
Efrém Vita spiritus; por São Pedro Damião, Regina virtutum; e por São Cipriano,
Acquisitio triumphorum. Quem triunfa do vício contrário à castidade, facilmente
triunfa de todos os outros; pelo contrário, quem se deixa dominar da impureza,
com facilidade escorrega em muitos outros, como são o ódio, a injustiça, o
sacrilégio etc.
A castidade faz do homem um
anjo: O castitas, exclama Santo Efrém, quae homines angelis similes reddis! São
Bernardo diz: Castitas angelum de homine facit. A mesma linguagem tem Santo
Ambrósio e acrescenta que quem a perdeu é um demônio. Também com razão são os
homens castos comparados aos anjos, que vivem estranhos a todos os prazeres da
carne. São os anjos puros de sua natureza; os homens são-no por virtude.
Segundo Cassiano, esta virtude iguala o homem ao anjo. Na opinião de São
Bernardo, é só a felicidade e não a virtude que distingue o anjo do homem
casto; e acrescenta, - se a castidade do anjo é mais feliz, a do homem é mais
gloriosa. São Basílio vai mais longe, dizendo que a castidade torna o homem
semelhante ao próprio Deus, que é um espírito puro.
Tanto a castidade é preciosa,
como necessária aos homens para se salvarem; mas é sobretudo indispensável aos
padres. Porque preceituou o Senhor aos sacerdotes da antiga Lei tantas vestes e
ornamentos brancos, e tantas purificações exteriores? Só por haverem de tocar
os vasos sagrados e por serem a figura dos sacerdotes da nova Lei, que haviam
de tocar e imolar no altar a carne sagrada do Verbo feito homem. Isto fez dizer
a Santo Ambrósio: Se tanto respeito exigiam as figuras, quanto não exigirá a
verdade! Além disto, mandou Deus afastar dos altares os sacerdotes habitualmente
infeccionados da lepra, símbolo do vício da impureza. É o que São Gregório
explica: Está dominado de lepra perpétua quem segue os vergonhosos instintos da
carne.
Conforme refere Plutarco, os
próprios pagãos exigiam a pureza aos sacerdotes das suas falsas divindades,
porque diziam: tudo quanto respeita ao culto dos deuses deve ser puro - Diis
omnia munda. E em Platão lemos que os sacerdotes de Atenas, para melhor
conservarem a castidade, habitavam em lugares separados do resto dos homens.
Sobre o que Santo Agostinho exclamava: Que vergonha para os cristãos receberem
dos pagãos lições tais!
Quanto aos sacerdotes do
verdadeiro Deus, segundo São Clemente de Alexandria, só são e se devem dizer
verdadeiramente padres os que passam uma vida casta. E. São Tomás de Vilanova
acrescenta: Seja muito embora o padre humilde e devoto, se não for casto, não é
nada. A todos os homens é necessária a castidade, diz Santo Agostinho, mas
principalmente aos padres. Devem os padres ao altar por-se em relação íntima
com o Cordeiro de Deus, com esse Cordeiro sem mancha, que tem o nome de Lírio e
só se apascenta entre os lírios. Por isso Jesus Cristo quis ter uma Mãe virgem,
um Pai adotivo virgem - São José - e um Precursor virgem. Foi ainda por causa
da sua pureza excelsa, afirma São Jerônimo, que João foi o discípulo predileto
de Jesus. Foi em consideração desta virtude da pureza que Jesus confiou a São
João sua divina Mãe, como confia ao padre a sua Igreja e a sua própria pessoa.
Isso fez dizer a Orígenes: O
padre que se aproxima dos santos altares, deve antes de tudo achar-se revestido
da castidade. E na opinião de São João Crisóstomo, deve o padre ser bastante
puro para merecer um lugar entre os anjos. - Então, dirá alguém, quem não for
virgem não poderá ser padre? - Responde São Bernardo: Reputa-se como virgindade
uma castidade antiga.
Nada há também que a Igreja
tanto se empenhe em conservar, como a pureza dos padres. Quantos Concílios e
cânones que tratam desta importante matéria! Eis o que diz Inocêncio III: Não
seja admitido a Ordens sacras quem não for virgem ou pelo menos de uma
castidade experimentada. E acrescenta: Quanto aos que estão ordenados, se não
forem castos, é necessário privá-los de todas as funções sagradas. E São
Gregório escreveu: Ninguém deve servir ao altar, sem primeiro ter dado provas
da sua castidade. São Paulo dá a razão do celibato imposto aos padres, quando
diz: O que está sem mulher dá toda a sua atenção às coisas do Senhor e pensa em
agradar a Deus; o que porém está casado preocupa-se com as coisas do mundo e
procura agradar a sua mulher; está dividido.
O que está livre dos laços do
matrimônio dá-se todo a Deus, porque só o domina o pensamento de agradar a
Deus; quem está ligado pelo matrimônio tem que pensar em agradar a sua esposa;
ocupa-se de seus filhos e do mundo: tem assim o coração dividido e não se pode
dar inteiramente a Deus. Com muita razão pois Santo Atanásio chamava à
castidade a morada do Espírito Santo, a vida dos anjos e a coroa dos santos.
Por sua vez São Jerônimo a chama - a honra da Igreja e a glória do sacerdócio.
Com efeito, como diz Santo Inácio mártir, deve o padre, que é casa de Deus,
templo de Jesus Cristo e órgão do Espírito Santo, conservar-se puro, visto ser
por seu intermédio que as almas se santificam.
§ II
Meios para conservar a castidade
Grande é pois o valor da
castidade, mas mui terrível a guerra que a carne move ao homem para lhe
arrebatar esta virtude. É a carne a mais poderosa arma que o demônio possui
para escravizar o homem. Por isso, diz Santo Agostinho, poucos saem vitoriosos
deste combate. Ó!, exclama com dor São Lourenço Justiniano, quantos
desgraçados, depois de muitos anos de solidão dum deserto, depois de orações,
jejuns e austeridades, se deixaram vencer dos apetites da carne, abandonaram o
retiro, perderam a castidade e o próprio Deus! Eis porque os padres - obrigados
a uma castidade perpétua - devem por todo o cuidado em a conservar. Não serás
casto, disse São Carlos Borromeu a um eclesiástico, se não vigiares
continuadamente sobre ti mesmo, porque a falta de vigilância faz perder a
castidade num instante.
Todo o cuidado a este respeito
consiste no emprego dos meios para conservar esta bela virtude, meios que se
reduzem a evitar tudo quanto possa acender o fogo impuro, e aplicar contra as
tentações os devidos remédios.
1º. A fuga da ocasião
O primeiro meio consiste em
fugir à ocasião. Eis o que diz São Jerônimo: O primeiro remédio contra este
vício é evitar os objetos, cuja presença nos leva para o mal. São Filipe de
Néri dizia que nesta guerra a vitória cabe aos poltrões, isto é, aos que fogem
à ocasião. No mesmo sentido se exprime Pedro de Blois: De nenhum modo se pode
vencer melhor a luxúria do que pela fuga.
Grande tesouro é a graça de
Deus, mas somos nós que o trazemos, em vasos mui frágeis e mui expostos a
perdê-lo. Não pode o homem adquirir a virtude da castidade, se o próprio Deus lha
não der. De nós mesmos não temos força para praticar nenhuma virtude, e muito
menos a castidade, porque temos naturalmente uma inclinação violenta para o
vício contrário.
Com o auxílio divino, pode o
homem conservar-se casto, mas esse auxílio não o dá Deus a quem se lança na
ocasião de pecar ou nela permanece por sua vontade: Quem ama o perigo há de
perecer nele.
Daí esta exortação de Santo
Agostinho: Se quereis vencer as revoltas da carne, tomai a fuga. Ó!, - dizia
São Jerônimo nos avisos que do leito da morte deu a seus discípulos, - quantos
desgraçados caíram no lodaçal da impureza, por terem a presunção de se
considerarem seguros! E acrescentava: ninguém se deve julgar seguro contra este
vício; embora seja um santo, está sempre sujeito a cair.
Não é possível, diz o Sábio,
caminhar sobre brasas e não se queimar. Eis as reflexões de São João
Crisóstomo: Sois vós de pedra? Sois de ferro? Sois homem, estais sujeito à
fraqueza comum de todos os homens; tomais fogo nas mãos e contais que não vos
queimareis? Aproximai da palha uma luz acesa e atrevei-vos depois a dizer que
não haverá incêndio. O homem é como a palha. Impossível é pois expor-se uma
pessoa voluntariamente à ocasião e não sucumbir.
Diz o Espírito Santo que é
necessário fugir à vista do pecado como à vista duma serpente. Não nos
contentamos com fugir à mordedura das serpentes; evitamos até o seu contato, e
nem as queremos ver de perto. Se há pessoas que nos podem ser ocasião de queda,
devemos evitar até a sua presença e as suas palavras. Observa Santo Ambrósio
que o casto José nem mesmo quis escutar o que a mulher de Putífar tinha
começado a dizer-lhe; fugiu logo, persuadido de que seria arriscadíssimo
demorar-se a ouvi-la. Mas, direis talvez, eu sei o que me convém. - Escutai
estas palavras de São Francisco de Assis: "Eu sei o que deveria fazer, mas
uma vez exposto à ocasião, não sei o que faria".
Examinemos as ocasiões
principais que um padre deve ter cuidado de evitar, para não perder a
castidade.
I.
Primeiro que tudo deve
guardar-se de demorar os olhos sobre objetos perigosos nesta matéria. A morte
entra pelas janelas; isto é penetra o pecado na alma pelos olhos, segundo a
explicação de São Jerônimo, São Gregório e outros; porque, assim como para
defender uma praça não basta fechar as portas, se se deixa aos inimigos uma
entrada pela janela, também serão inúteis todos os outros meios de conservar a
castidade, desde que não tome a precaução de fechar os olhos. Refere Tertuliano
que um filósofo pagão se arrancara voluntariamente os olhos para se conservar
casto. Este ato não é permitido a cristãos, mas, se queremos guardar a
castidade, não lancemos, e sobretudo não demoremos, os nossos olhares sobre
pessoas de diferente sexo. São Francisco de Sales nos adverte que o perigo não
consiste tanto em ver como em olhar com demora os objetos, que nos podem ser
ocasião de tentação.
E não basta isto, acrescenta São
João Crisóstomo; além de desviar os olhos das pessoas imodestas, é necessário
desviá-los também das mais modestas. Por isso Jó fez com os seus olhos o acordo
de não olhar nenhuma mulher, ainda que fosse uma virgem modesta, por saber que
os olhares dão origem a maus pensamentos. É também o aviso que nos dá o Eclesiástico:
Não olhes nenhuma jovem com receio de que a sua formosura te seja ocasião da
queda. Do olhar nasce o mau pensamento, diz Santo Agostinho; do mau pensamento
procede uma certa deleição carnal, embora involuntária; e a esta deleitação
indeliberada sucede muitas vezes o consentimento da vontade, - assim a alma se
perde. - Mandou o Apóstolo que a mulher na igreja esteja velada, por causa dos
anjos; o que o cardeal Hugues comenta nestes termos: Pelos anjos é necessário
que se entendam os padres, que poderiam à sua vista sentir tentações imodestas.
Vivia São Jerônimo na gruta de
Belém, em oração contínua, a macerar a sua carne com austeridades de toda a
espécie; e, apesar disso, era atormentado violentamente pela recordação das
damas, que muito tempo antes tinha visto em Roma. Guiado assim pela própria
experiência, escreveu ao seu caro Nepociano a dizer-lhe que se abstivesse de
olhar as mulheres e até de falar da beleza delas. Por ter olhado com
curiosidade a Betsabé, caiu Davi miseravelmente em três crimes enormes:
adultério, homicídio e escândalo. Dizia ainda São Jerônimo: Nostris tantum
initiis (diabolus) opus habet. Ao demônio só lhe basta que comecemos a
abrir-lhe a porta; em breve levará ele a sua obra até ao fim. Um olhar demorado
sobre o rosto duma jovem será uma faúla do inferno, que levará a ruína e a
morte à alma. Falando particularmente dos padres, dizia o mesmo Doutor que não
lhes basta evitar toda a ação impura; devem absterse até dum simples olhar.
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II.
Se, para conservar a castidade,
é necessário não demorar os olhares sobre pessoas de diferente sexo, mais
necessário ainda é evitar a sua sociedade. Guardai-vos de permanecer na
companhia de mulheres, diz o Espírito Santo, e dá a razão disso: é que do mesmo
modo que a traça se gera na roupa, assim a corrupção dos homens tem a sua origem
nas relações com as mulheres.
E assim como a tinha se produz
na roupa contra a vontade do que a tem, observa o Padre Cornélio, comentando
esta passagem, também da familiaridade com mulheres nascem, sem se querer, os
maus desejos. Além disto, ajunta ele, assim como a tinha se gera
insensivelmente na roupa e a rói, assim a convivência com mulheres acende
insensivelmente o fogo da concupiscência no coração dos homens, ainda mesmo nos
que se dão às coisas espirituais. Santo Agostinho ameaça com uma queda próxima
e inevitável nesta matéria quem não quiser evitar toda a familiaridade com
objetos perigosos. Conta São Gregório que o Padre Orsino, depois de se ter
separado da sua mulher e recebido com assentimento dela as santas Ordens,
quando estava para morrer, passados já quarenta anos, ao aproximar ela o ouvido
da sua boca, para conhecer se ainda respirava, lhe disse Orsino: Retira-te,
mulher, afasta daí essa palha, porque ainda há em mim uma centelha de vida, que
nos poderia consumir a ambos.
Para nos fazer tremer a todos,
que mais será preciso que o triste exemplo de Salomão? Depois de ter
experimentado os favores e a amizade íntima do seu Deus, depois de ter sido por
assim dizer a pena do Espírito Santo, ele na velhice se deixou corromper pela
influência das mulheres pagãs, chegando até a adorar os ídolos! Tornado velho,
deixou-se seduzir pelas mulheres, a ponto de se dar ao culto de deuses
estranhos.
Mas que admira isto? É
impossível, diz São Cipriano, estar no meio das chamas e não se queimar.
Segundo São Bernardo, seria menor milagre ressuscitar um morto, do que
conservar a castidade, vivendo em habitual familiaridade com uma mulher. Se
quereis pois estar seguros, escutai o que vos diz o Espírito Santo: Procedei de
modo que nem sequer passeis perto da casa daquela que o demônio toma como
instrumento para vos tentar; afastai-vos de lá. E, quando houver necessidade
verdadeira de falardes a uma mulher, fazei-o com brevidade em termos austeros,
conforme o conselho de Santo Agostinho. É também o aviso de São Cipriano:
Quando se houver de falar a mulheres, é necessário fazê-lo de passagem, sem
demora, e como que de fugida.
Mas, dir-se-á, esta pessoa é
feia; Deus me livre dela! - A isso responde São Cipriano que o demônio é
pintor; quando a concupiscência está em movimento, pode ele embelezar o rosto
mais disforme.
Mas essa pessoa é minha parenta.
- Eis o que responde São Jerônimo: Não consintais que permaneçam convosco nem
mesmo as que vos estão ligadas pelo parentesco. Por vezes o parentesco só
facilita e multiplica os pecados, ajuntando o incesto à impudicícia e ao
sacrilégio. Até se está mais exposto a pecar, acrescenta São Cipriano, quando a
mesma enormidade do crime afasta o temor de suspeitas. São Carlos Borromeu fez
um decreto, em que proibia aos seus padres que, sem permissão sua, tivessem consigo
mulheres, embora fossem suas parentas próximas.
Mas é minha penitente, e é uma
pessoa santa; nada há a temer. - Nada há a temer? Ilusão, diz Santo Tomás:
quanto mais santa é vossa penitente, mais deveis temer, e evitar toda a
familiaridade com ela; porque as mulheres, quanto mais piedosas e dadas à
espiritualidade, mais sedutoras são. Dizia o venerável Padre Sertório Caputo,
como lemos na sua Vida, que o demônio começa por inspirar apego à virtude e
procura assim afastar o temor do perigo; depois, faz conceber afeição pela
pessoa; por último, tenta e arremessa ao abismo. É o sentir de Santo Tomás:
"É sempre perigosa a afeição carnal, mas mais perniciosa quando tem por
objeto uma pessoa devota; podem os começos ser inocentes, mas a familiaridade é
um perigo de todos instantes; na medida em que essa familiaridade vai
aumentando, enfraquece-se a pureza do motivo principal, que lhe tinha dado
origem".
Acresce que o demônio sabe muito
bem esconder o perigo: a princípio não arremessas flechas que pareçam
envenenadas, mas que avivem a afeição, fazendo no coração pequenas feridas;
pouco depois essas pessoas assim dispostas já não procedem entre si como anjos,
como a princípio, mas como seres revestidos de carne; não são imodestos os
olhares, mas mais freqüentes de parte a parte; as palavras parecem espirituais,
mas são demasiado ternas; depois desejam encontrar-se muitas vezes. E é assim,
conclui o santo Doutor, que o apego espiritual se torna carnal. Aponta São
Boaventura cinco sinais pelos quais se pode reconhecer quando é que a afeição de
espiritual se torna carnal:
1º. - Quando há entretenimentos
longos e inúteis; e, desde que são longos, são sempre inúteis.
2º. - Quando há olhares e
elogios recíprocos.
3º. - Quando um desculpa os
defeitos do outro.
4º. - Quando se deixam perceber
pequeninos ciúmes.
5º. - Quando o afastamento causa
inquietação.
Tremamos; somos de carne. O
bem-aventurado Jurdano repreendeu fortemente um dia um dos seus religiosos, por
ter dado a mão a uma mulher, ainda que sem má intenção; e, tendo-lhe o
religioso observado que era uma pessoa virtuosa, respondeu-lhe: "A chuva é
boa e a terra também, mas misturadas fazem lama". Esta mulher é santa e
este homem é santo; mas, se se põem na ocasião, ambos se perdem. "Choca o
forte com o forte e ambos caem". É sabido o caso funesto de que fala a
História eclesiástica. Uma santa mulher, que tinha o costume de recolher os
cadáveres dos santos mártires, para lhes dar sepultura, encontrou certo dia um,
que tinham deixado por morto, mas que ainda conservava alguma vida. Fê-lo
transportar para sua casa, onde lhe restituiu a saúde, à custa dos seus
cuidados; mas que aconteceu? A convivência fez-lhes perder a castidade e a
graça de Deus.
Tais casos infelizmente não são
raros. Quantos padres, muito piedosos a princípio, acabaram por perder a
piedade e o próprio Deus, em razão de se terem deixado prender pouco a pouco de
afeições espirituais! Santo Agostinho nos afirma ter conhecido muitos e grandes
prelados, que ele não tinha em menor estima que a um São Jerônimo e a um Santo
Ambrósio, e haviam sucumbido em ocasião semelhantes. Assim, São Jerônimo
escreveu a Nepociano: Não te fies da tua castidade passada; quando te
encontrares a sós, sem testemunha, com uma mulher, não te demores de nenhum
modo. Santo Isidoro de Pelusa, exprime-se no mesmo sentido: Se a necessidade
vos obriga a falar, conservai os olhos baixos; dizei somente o preciso, e
apressai-vos a fugir. O Padre Pedro Consolini, do Oratório, dizia que com as
mulheres, mesmo comas mais virtuosas, se deve exercer a caridade como com as
almas do Purgatório: de longe e sem olhar para elas.
Dizia mais este bom padre, que é
muito útil aos sacerdotes, nas tentações contra a castidade, considerarem a sua
dignidade. Contava a este propósito que um Cardeal, ao ser assaltado de
pensamentos impuros, olhava o seu barrete, e refletia na dignidade de que se
achava revestido, dizendo: "Recomendo-me a ti, meu caro barrete".
Assim triunfava na da tentação.
III.
Além da companhia de mulheres,
quaisquer que elas sejam, deve evitar-se também a de homens que se comportem
mal. Torna-se o homem semelhante àqueles que frequenta, dizia São Jerônimo. É
escuro e escorregadio o caminho da vida presente - Lubricum in tenebris; - se
temos um mau companheiro que nos impele para o precipício, estamos perdidos.
Conta São Bernardino de Sena ter conhecido uma pessoa que vivera trinta e oito
anos na inocência e na virgindade; tendo então ouvido nomear uma certa
impureza, precipitou-se em desregramentos tais, que o demônio, diz o Santo, não
se entregaria a semelhantes torpezas, se tivesse corpo.
IV.
Necessitamos ainda evitar a
ociosidade, se queremos permanecer castos. Adverte-nos o Espírito Santo que a
ociosidade ensina a cometer muitos pecados. E o profeta Ezequiel diz que a
ociosidade foi a causa dos crimes abomináveis dos habitantes de Sodoma, e por
fim a sua total ruína. Como nota São Bernardo, foi também ela a causa da queda
de Salomão. Por isso São Jerônimo exortava Rústico a viver de modo que o
demônio, quando viesse a tentá-lo o encontrasse sempre ocupado. Quem se dá ao
trabalho, acrescenta São Boaventura, não será tentado senão por um demônio, ao
passo que quem se der à ociosidade será muitas vezes assaltado por um grande
número.
2º. A mortificação
Vimos acima quanto é necessário,
para conservar a castidade, fugir à ocasião e à ociosidade; vejamos agora o que
importa fazer.
Em primeiro lugar, deve-se
praticar a mortificação dos sentidos. É uma ilusão, diz São Jerônimo, tentar
viver no meio dos prazeres, sem cair nos vícios a que eles dão origem. Quando o
Apóstolo era atormentado pelo aguilhão da carne, encontrava auxílio e remédio
nas mortificasses do corpo: Castigo o meu corpo e faço dele um escravo. A carne
que não é mortificada só dificilmente se sujeita ao espírito. Conserva-se a
castidade no meio das mortificasses, como um lírio no meio dos espinhos.
Para permanecer casto, é
necessário principalmente evitar toda a intemperança na comida e na bebida.
Não deis vinho aos reis. Quem
beber em excesso, sem dúvida experimentará muitos movimentos sensuais. Assim
lhe será difícil dominar a sua carne e conservar a castidade, segundo o
doutrina de São Jerônimo: Dum estômago aquecido pelo vinho, levantam-se os
vapores impuros da luxúria; porque o vinho no dizer do profeta Oséas, faz
perder ao homem a razão e degrada-o à condição de bruto. O Anjo, ao contrário,
disse de São João Batista: Não beberá nem vinho, nem licores inebriantes e será
cheio do Espírito Santo. Alguém dirá talvez que precisa do vinho, por causa da
fraqueza do seu estômago; seja assim, mas beba com moderação que o Apóstolo
manda a Timóteo: Em razão da fraqueza do teu estômago e das tuas indisposições
freqüentes, usa dum pouco de vinho.
É também necessário evitar todo
o excesso de comida. Dizia São Jerônimo que a imoderação na comida é uma das
causas da impudicícia. Do mesmo modo São Boaventura: A luxúria alimenta-se da
glutoneria. Ao contrário, o jejum reprime os vícios e favorece as virtudes: é o
que a Igreja nos ensina. Segundo Santo Tomás, quando o demônio se vê vencido
numa tentação de gula, já desiste de tentar pela impureza.
3º. A humildade
É preciso mais praticar a
humildade. Segundo Cassiano, quem não é humilde, não pode ser casto. Não é raro
que Deus castigue os orgulhosos, permitindo que caiam nalguma falta vergonhosa;
tal foi a causa da queda de Davi, como ele próprio confessa: Pequei antes de
ser humilhado. É pela humildade que se obtém a castidade, diz São Bernardo. E
antes dele tinha dito Santo Agostinho: O guarda da pureza é o amor de Deus; mas
é humildade a morada em que este guarda habita. - Segundo São João Clímaco,
quem nos combates contra a carne quer vencer somente pela continência,
assemelha-se ao náufrago que tentasse salvar-se, nadando com uma só mão. É
necessário ajuntar a humildade à continência.
4º. A oração
Acima de tudo, para obter a
virtude da castidade, é preciso orar, e orar sempre. Já noutro lugar fica dito,
que não se pode adquirir nem conservar a castidade sem o socorro da graça, e
este não o concede o Senhor senão aos que lho pedem. Ensina-nos o Senhor que,
para os adultos, a oração é de necessidade de meio, segundo a linguagem das
Escrituras. Por isso o Doutor angélico diz: Depois do batismo, é necessária ao
homem a oração contínua. E se, para praticar qualquer virtude, é necessário o
auxílio do Céu, para conservar a castidade, requere-se um socorro mais
poderoso, em razão da propensão violenta que o homem tem para o vício
contrário. É impossível ao homem, diz Cassiano, manter-se na castidade por suas
próprias forças e sem a assistência divina. Neste combate pois, acrescenta
Abelly, precisa de solicitar com instância o socorro de Deus. Daí o aviso de
São Cipriano, - que o primeiro meio para obter a castidade é pedir a
assistência de Deus.
Foi o que o próprio Salomão
declarou: Sabendo eu que não podia possuir este tesouro se Deus mo não desse, -
e era já sabedoria o conhecer de quem me advém este dom, - apresentei-me diante
do Senhor, e roguei-lhe, e disse-lhe do íntimo do meu coração...
Apenas sentirmos pois os
primeiros estímulos da carne, que o demônio despertar em nós, é necessário, diz
São Cipriano, resistir logo, e não permitir que o reptilzinho se torne em
serpente, isto é, que a tentação aumente. O mesmo conselho dá São Jerônimo: Não
deixeis avolumar o pensamento perigoso; matai o inimigo enquanto é pequeno.
Quando o leão é grande, não é fácil matá-lo como em pequeno.
Tomemos pois cautela nesta
matéria, não nos demoremos a raciocinar com a tentação; apressemo-nos a
repeli-la sem exame. Como ensinam os mestres da vida espiritual, o melhor meio
de vencer as tentações da carne não é combatendo-as diretamente frente a
frente, com demora no mau pensamento, fazendo produzir à vontade atos
contrários; é antes indiretamente com atos de amor de Deus ou de contrição, ou
pelos menos fazendo derivar o pensamento para outra coisa.
O meio principal é recorrer
então a Deus pela oração: é bom, logo aos primeiros movimentos da impureza,
renovar o propósito firme de antes morrer do que pecar; e imediatamente depois
é necessário recorrer às chagas de Nosso Senhor Jesus Cristo. Assim o têm
praticado os santos que, sendo de carne como nós, estavam sujeitos às mesmas
tentações, e foi assim que as venceram. Quando um pensamento vergonhoso se me
apresenta ao espírito, dizia Santo Agostinho, recorro às chagas de Nosso Senhor
Jesus Cristo. Está-se em repouso e segurança nas chagas do Salvador. Também
Santo Tomás triunfou das provocações, duma mulher impudica, dizendo: Senhor
Jesus e santíssima Virgem Maria, não me abandoneis!
Demais, é então muito útil fazer
o sinal da cruz sobre o peito, invocar o Anjo da guarda e o próprio patrono.
Acima de tudo porém, importa não cessar de repetir os nomes santíssimos de
Jesus Cristo e de sua divina Mãe, até que a tentação seja vencida. Ó!, que
força a dos nomes de Jesus e Maria contra os assaltos da impudicícia!
Entre todas as devoções próprias
para conservar a castidade, a mais útil é a devoção à santíssima Virgem, que é
chamada a Mãe do belo amor e a Guarda da virgindade = Mater pulchrae
dilectionis et Custos virginitatis. É uma prática muito eficaz recitar todos os
dias, ao levar e ao deitar, três A, M. em honra da pureza de Maria.
Conta o Padre Segneri que um dia
um pecador, todo impureza, fora confessar-se ao Padre Nicolau Zucchi, da Cia.
de Jesus. Recomendou-lhe este, como remédio, que fosse pontual em rezar todos
os dias, de manhã e à noite, uma A, M. à pureza da santíssima Virgem. Muitos
anos depois, tendo esse penitente feito diversas viagens, voltou aos pés do
mesmo Padre e mostrou-se de todo corrigido. Perguntou-lhe o padre como se tinha
emendado: "Foi o fruto da pequena devoção que me ensinastes".
Com permissão do penitente, o
Padre Zucchi um dia narrou o fato da cadeira. Estava presente um militar, que
vivia em relações criminosas; ouviu e começou a praticar todos os dias a mesma
devoção; pouco depois, com socorro de Maria, teve coragem para se corrigir. Um
dia, movido por um falso zelo, foi procurar a cúmplice das suas desordens, no
intuito de a converter; mas, ao entrar na casa, sentiu-se fortemente repelido,
e encontrou-se num lugar muito distanciado. Deu então graças à sua Benfeitora,
reconhecendo que era por uma graça especial de Maria, que tinha sido impedido
de se encontrar com aquela mulher; porque facilmente teria recaído, desde que
se tivesse exposto à ocasião.
QUARTA INSTRUÇÃO,
A pregação e a administração do
sacramento da penitência
Se todos os pregadores e
confessores satisfizessem aos seus ministérios, como devem, estaria o mundo
cheio de santos. Os maus pregadores e os maus confessores são a ruína do mundo;
e por maus entendo os que não exercem o seu ministério como convém.
Falemos em primeiro lugar do modo
de anunciar a palavra de Deus; depois trataremos da administração do sacramento
da Penitência.
§ I
A pregação
É pela pregação que a fé se
propaga, e é também pela pregação que o Senhor quer que ela se conserve: Crê-se
porque se ouve, e ouve-se porque a palavra de Jesus Cristo é pregada. Mas não
basta que o cristão saiba o que tem a fazer; é necessário que se lhe recorde de
quando em quando a divina palavra, se lhe mostre a importância da sua salvação
eterna e os meios a empregar para a conseguir. Por isso o Apóstolo fazia a
Timóteo esta recomendação: Prega a palavra; insiste a tempo e contra tempo;
repreende, suplica, faze arguições; não cesses de ensinar com muita paciência.
E foi o que o próprio Deus
outrora mandou a Isaías e Jeremias: Clama, não cesses, faze retenir a tua voz
como uma trombeta, e lança em rosto ao meu povo os seus crimes. Eis que ponho
as minhas palavras na tua boca. Hoje te constituo sobre as nações e sobre os
reinos, para que arranques e destruas... edifiques e plantes. A mesma obrigação
impôs o Senhor aos padres, por ser a pregação uma das suas principais funções:
Ide pois, ensinai todos os povos... a observar os mandamentos que vos dei. E se
algum pecador vier a perder-se, por não ter tido ninguém que lhe anuncie a
palavra de Deus, o Senhor pedirá contas da sua alma ao padre, que lha podia
anunciar: Quando eu digo ao ímpio: Tu morrerás; se tu não o advertires, ele
morrerá na sua iniquidade, mas eu te pedirei contas do seu sangue.
Para salvar, porém as almas, não
basta pregar; é necessário, como no princípio dissemos, pregar
convenientemente. Ora, a primeira condição para bem pregar é a ciência,
acompanhada do estudo; quem prega ao acaso e sem preparação, faz de ordinário
às almas mais mal do que bem. A segunda condição é uma conduta exemplar.
Despreza-se a palavra do pregador, quando se lhe despreza a vida, diz São
Gregório. Lemos na Obra imperfeita: Desmentís com as vossas obras o que
afirmais com as vossas palavras. Como persuadir por palavras aos outros o que
se lhes dissuade pelas ações? Tudo quanto o pregador possa então dizer, só
servirá para o condenar. Como diz São Paulo, a si próprio se condena quem dá
exemplo do mal que censura nos outros: Não tens desculpa, ó tu, que julgas os
outros! Porque, ao julgá-los, a ti mesmo te condenas.
Daí a bela resposta do venerável
João de Ávila, a quem lhe perguntava qual a regra melhor a seguir para bem
pregar: "Amar muito a Jesus Cristo".
Um facho apagado não pode
incendiar, dizia também São Gregório. É necessário que o pregador primeiro se
incenda do divino amor, para poder depois afervorar os outros. Dizia São
Francisco de Sales: "Fala o coração ao coração". Queria significar
que as palavras só por si ressoam aos ouvidos, mas não penetram no coração; só
aquele que prega do coração, isto é, que sente o que diz, só esse pode falar ao
coração dos outros e movê-los a amar o Deus. Eis por que um pregador deve amar
muito a oração, para dela haurir os sentimentos que deve comunicar aos outros,
conforme as palavras do Redentor: O que vos digo ao ouvido, pregai-o em
público. É a oração a ditosa fornalha, em que os oradores se inflamam no amor
divino: Na minha meditação se ateará o fogo. Ali se preparam os dardos de fogo
que penetram os corações dos ouvintes.
Além disto, é preciso que na
pregação se tenha em vista um fim reto: que se pregue, não sob o impulso de
algum interesse temporal, mas para glória de Deus; não para conseguir aplausos
efêmeros, mas para salvar as almas. Neste intuito, procurará o pregador
acomodar-se à capacidade dos ouvintes, como ordena o Concílio de Trento: Por si
próprios, ou por outros pregadores idôneos, cuidarão os arciprestes de
apascentar as almas que lhes estão confiadas, fazendo-lhes ouvir palavras
salutares e amoldadas à sua capacidade. "É necessário evitar os quamquam e
os longos períodos dos pedantes, dizia São Francisco de Sales; tudo isso é a
peste da pregação. Assim é de fato, primeiramente, porque Deus não presta o seu
concurso a esta maneira balofa de pregar; e em segundo lugar porque os ouvintes
de ordinário são pessoas pouco instruídas, que não compreendem uma linguagem
arrebicada.
Que pena causa ver por vezes
tanta pobre gente afluir a um sermão, sem colher dele nenhum fruto! Ei-los a
sair da igreja, tristes e desanimados, por não terem compreendido o que lhes
pregaram! O venerável João de Ávila, falando dos que pregam em estilo sublime,
e ininteligível para seus ouvintes, dizia com razão que são traidores a Jesus
Cristo esses que, enviados a procurar-lhe a glória, só se aplicam a pregar-se a
si próprios. Com não menos razão que são traidores a Jesus Cristos esses que,
enviados a procurar-lhe a glória, só se aplicam a pregar-se a si próprios. Com
não menos razão, o Padre Gaspar Sanzio lhes chama os maiores perseguidores
hodiernos da Igreja, porque se tornam causa da perda de muitas almas, que uma
pregação simples e verdadeiramente apostólica teria salvado.
O Apóstolo, que pregava animado
do verdadeiro espírito de Deus, escrevia aos Coríntios: Ao pregar-vos, não me
tenho servido dos discursos persuasivos da sabedoria humana, mas antes dos
efeitos sensíveis do espírito e da virtude de Deus. Ao ler as vidas dos santos
que trabalharam na salvação das almas, encontro muitos que foram louvados por
terem pregado duma maneira simples e popular; não tenho encontrado nenhum que o
fosso por haver pregado em estilo elegante e florido.
A este propósito, convirá
referir aqui resumidamente o que escreveu o sábio e célebre Luís Muratori no
seu livro de ouro - Da Eloqüência popular. Eis o que ele diz: Há duas espécies
de eloqüência: uma sublime, outra popular. Com a eloqüência sublime, compõem-se
discursos cheios de pensamentos profundos, de argumentos engenhosos, expressões
brilhantes e períodos arredondados; com a eloqüência popular, expõe-se
simplesmente as verdades eternas, e ensinam-se coisas ao alcance de todos os
auditórios, em estilo simples e familiar, de tal modo que cada um possa
compreender tudo quanto lhe é anunciado. Nos sermões, não se fala somente a
pessoas instruídas, mas a ignorantes, que de ordinário compõem a maior parte
dos auditórios. Eis por que sempre convém pregar dum modo simples e popular,
não só nas missões e exercícios espirituais, mas em todos os sermões feitos ao
povo.
Diante de Deus, tão preciosas
são as almas dos sábios como as dos ignorantes, e o pregador é obrigado a
procurar a vantagem duns e doutros, indistintamente, conforme a palavra do
Apóstolo: Sou devedor aos sábios e aos ignorantes. Por outro lado, mesmo aos
sábios, os sermões em estilo simples e familiar são mais proveitosos, que em
estilo sublime e florido; porque, quando se assiste a esses discursos
brilhantes e elevados, facilmente o espírito se detém a admirá-los, ou a
criticá-los, - o que as mais das vezes acontece; e pela sua parte a vontade,
privada do seu alimento, pouco fruto colhe deles. O Padre Paulo Segneri le
Jeune, pregando duma maneira popular, arrebatava, diz Muratori, o coração dos
próprios sábios. Outro tanto acontecia com os sermões de São João Francisco
Regis.
Assim, quem quer pregar, não
para ser louvado, mas para ganhar almas para Deus, não deve desejar que digam
dele: Ó que belos pensamentos! que orador brilhante! que grande talento! - Deve
proceder de modo que todos os seus ouvintes se retirem cabisbaixos, a chorar os
seus pecados, decididos a mudar de vida e a dar-se a Deus. Tal é o fim da verdadeira
retórica: persuadir, tocar os ouvintes, e movê-los à prática das exortações que
se lhes dirigem. De resto, a eloquência popular não esquece os segredos da arte
oratória: admite as figuras, a ordem das razões, o colorido, a peroração, mas
sempre com simplicidade, sem afetação, no intuito único de fazer fruto, e não
de conquistar aplausos. Se em tais sermões os ouvintes não gozam o prazer de
admirar a beleza da elocução e a sutileza das reflexões, colhem como fruto
luzes e motivos, para trabalharem com ardor no único negócio importante, que é
a sua salvação eterna.
Tudo isso, segundo Muratori, tem
aplicação aos sermões pregados nas cidades, onde o auditório é composto de
ignorantes e pessoas instruídas; mas acrescenta que, quando se prega apenas ao
povo humilde e aos habitantes dos campos, se deve usar da eloquência mais
popular e chã, para acomodar a linguagem à curta inteligência dos pobres
aldeões. É necessário que o pregador se considere como um dentre eles, que
quisesse ensinar outro, ou persuadi-lo a cumprir algum dever. Devem portanto as
expressões ser populares e usuais, os períodos curtos e desembaraçados,
conforme o costume de raciocinar dessas pessoas. Numa palavra, todo o cuidado do
pregador deve ter por objeto fazer compreender aos ouvintes o que lhes diz, e
inspirar-lhes a resolução de praticarem as exortações; neste empenho deve
empregar a forma mais própria para os impressionar.
De acordo com o estilo, devem
também os pensamentos ser simples e fáceis, evitando pontos discutidos pelos
escolásticos, assim como interpretações engenhosas da Escritura que, embora bem
compreendidas, seriam inúteis para essa gente. Consiste o talento do pregador
em lhes expôr com simplicidade as verdades eternas, a importância da salvação,
os artifícios do demônio, e os perigos em que se podem perder; indiquem-se-lhes
os meios a empregar nos casos particulares, que lhes possam ocorrer, mas tudo
isso de modo que nada exceda a sua capacidade. É assim que se parte o pão,
conforme o Senhor manda aos pregadores, queixando-se dos que não cumprem o seu
dever: Pediram pão os pequeninos, e não havia quem lho repartisse. É também
muito conveniente, quando se prega a pessoas ignorantes, entre miar por vezes
perguntas e respostas no sermão. Convém ainda citar-lhes os exemplos dos santos
e pôr-lhes diante dos olhos os castigos, que Deus há infligido aos pecadores.
Acima de tudo, importa
insinuar-lhes coisas práticas, e repetir-lhas muitas vezes, para que lhe fiquem
gravadas na memória.
Foi isto o que Muratori
escreveu, mas com maior desenvolvimento. Quis apresentar aqui um resumo, para
fazer compreender a todos os pregadores que, em vez de colherem aplausos,
provocam até as censuras das pessoas instruídas, quando falam em linguagem
alevantada ao pobre povo, de que se compõe ordinariamente o auditório nas
igrejas.
Nada mais diremos aqui sobre a
pregação. Ao falarmos dos exercícios nas missões, esperamos acrescentar outras
reflexões, sobre o modo de pregar em missão, e acerca da ordem a observar nos
sermões. Vamos falar agora da administração do sacramento da Penitência.
§ II
Administração do Sacramento da
Penitência
1º. Grave
responsabilidade dos confessores
O grande Papa São Pio V disse:
Haja confessores capazes, e veremos uma reforma completa em toda a cristandade.
Quer isto dizer que um bom hábil confessor deve antes de tudo olhar o seu
ministério como uma função cheia de espinhos e perigos; razão por que o
Concílio de Trento lhe chamou uma carga terrível, até para ombros de anjos. De
fato, que coisa mais arriscada, diz São Lourenço Justiniano, do que assumir a
pesada obrigação de prestar contas da vida dos outros? Não há matéria, diz São
Gregório, em que o erro seja mais funesto. Certo é que, se uma alma se perder
por culpa do confessor, o Senhor lhe exigirá contas dela: Eu lhes perguntarei o
que fizeram das minhas ovelhas. É o que o Apóstolo nos declara: Obedecei aos
vossos superiores e sujeitai-vos a eles; porque superintendem em vós, como quem
há de responder pelas vossas almas diante de Deus.
Donde conclui São Gregório que o
confessor tem por assim dizer tantas almas, como penitentes, e de todas essas
há de dar contas a Deus. E São João Crisóstomo ajunta esta reflexão: Se o
termos de dar conta dos nossos pecados é pensamento que nos faz tremer, em que
há de confiar o que tem de responder por muitas pessoas?
Não tem isto aplicação aos bons
padres que, compenetrados dum santo temor, se preparam convenientemente para o
cabal desempenho deste terrível ministério, e só o exercem no intuito de
levarem as almas para Deus. Fala-se aqui dos que se atrevem a ouvir confissões
com vistas mundanas, quer por interesse temporal, quer por amor próprio, e
algumas vezes sem a ciência suficiente.
2º. Ciência requerida
para bem ouvir as confissões
Quem intenta ressuscitar as
almas dos outros, necessita de muita graça e duma ciência não medíocre. É São
Lourenço Justiniano quem assim fala. Para ser bom confessor, é preciso em
primeiro lugar ter muita ciência. Há quem olhe a ciência moral como muito
fácil; mas Gerson afirma com razão que é a mais difícil de todas as ciências.
Antes dele disse São Gregório Magno: A direção das almas é a arte das artes. E
São Gregório de Nazianzo: A meu ver, dirigir os homens é a ciência das
ciências. São Francisco de Sales dizia igualmente que o ministério de confessor
é o mais importante e difícil de todos os ministérios; e tinha razão: é o mais
importante, porque dele depende a salvação eterna, que é o fim de todas as
ciências. É também o mais difícil porque a ciência moral exige o conhecimento
de muitas outras ciências, e abrange uma multidão de matérias diferentes.
O que a torna sobremaneira
difícil é a necessidade de variar as decisões, conforme as circunstâncias
múltiplas e os casos diversos, que se apresentam. O princípio, por exemplo, que
aplica a um caso, acompanhado de certa circunstância, não poderá aplicar-se a
outro revestido duma circunstância diferente.
Há sacerdotes que desprezam a
leitura dos moralistas e imaginam que, para confessar, basta conhecer os
princípios gerais da moral, mediante os quais dizem, se resolvem facilmente os
casos particulares. - Eis a minha resposta: É certo que todos os casos se devem
resolver por meio de princípios; mas a dificuldade está em aplicar com precisão
aos diferentes casos os princípios que lhes convém, e é o que têm feito os
moralistas: têm procurado fazer ver segundo que princípios se deve resolver um
grande número de casos particulares. Além disto, sem falar do antigos cânones,
há hoje, em bulas e decretos, tantas leis positivas que o confessor é obrigado
a conhecer! Mui difícil lhe será ter um conhecimento suficiente dessas leis,
sem ler os autores de moral. O sábio autor da Instrução para os novos
confessores diz com razão - que não é raro encontrar teólogos tão ignorantes em
moral, como profundos nas ciências especulativas.
No entanto, segundo Sperelli, os
confessores que só se entregam ao estudo da escolástica, e olham como perdido o
tempo dado ao estudo da moral, laboram em grande erro; acontece-lhes, como ele
diz, não saberem distinguir entre lepra e lepra. E ajunta: Este erro leva à
perdição eterna confessores e penitentes.
Devemos pois persuadir-nos de
que a administração do sacramento da Penitência exige muita ciência, e ao mesmo
tempo muita prudência; porque um confessor, sem prudência, por sábio que seja,
pouco fruto tirará do seu ministério, e até por vezes fará mais mal do que bem.
3º. Caridade e firmeza
que deve ter o confessor
Acima de tudo, necessita o
confessor da santidade, para se manter com firmeza no exercício de seu
ministério. Se não estiver adiantado na santidade, dizia São Lourenço Justiano,
não poderá trabalhar na salvação do próximo, sem prejudicar a sua.
I.
Precisa ele, primeiro que tudo,
dum grande fundo de caridade, para acolher todos os que o procurem: pobres,
ignorantes e pecadores. Padres há que não confessam senão pessoas devotas; se
lhes aparece um pobre aldeão, de consciência embrulhada, ouvem-no com
impaciência e despendem-no com dureza. Assim, esse desgraçado que se fez uma
grande violência para se vir confessar, ao ver-se repelido, ganha horror ao
sacramento, não ousa aproximar-se, e entrega-se desesperado a uma vida
dissoluta. O Redentor divino, que veio para salvar os pecadores, e sempre foi
cheio de caridade para com eles, dirige a tais confessores a censura que um dia
fez a seus discípulos: Vós não sabeis de que espírito deveis estar animados.
Não procedem assim os confessores caridosos, que observam a exortação do
Apóstolo: Como eleitos de Deus, como santos e queridos dele, tomai entranhas de
misericórdia.
Quanto maior é um pecador que se
lhes depara, e mais graves as suas iniquidades, tanto mais se esforçam por
ajudá-lo, redobrando de caridade para com ele. Não sois encarregados de
castigar como juízes de criminosos, mas de curar, diz Hugo de São Vitor, como
juízes de doentes. É necessário, sim, advertir o pecador, para lhe fazer
conhecer o estado miserável, em que se encontra de se condenar; mas sempre com
caridade, exortando-o a não perder a confiança na misericórdia divina, e
fornecendo-lhe os meios para se corrigir.
Ainda mesmo que o confessor se
veja na necessidade de diferir a absolvição, deve contudo despedir sempre o seu
penitente com doçura, marcando-lhe o tempo em que deve voltar, e apontando-lhe
os remédios, de que deve fazer uso, a fim de se dispôr para a absolvição. É
deste modo que se salvam os pecadores, e não exacerbando-os com censuras, que
poderiam lançá-los na desesperação. Dizia São Francisco de Sales que se caçam
mais moscas com uma gota de mel, do que com abundantes aloes. - Mas dir-seá que
para tudo isso, é necessário muito tempo; e então os que esperam não podem
confessar-se. - A isso respondo que mais vale confessar um só pecador, que um
grande número imperfeitamente. A melhor resposta porém, é que o confessor não
tem que prestar contas a Deus dos que estão à espera, mas só daquele a quem
começou a ouvir de confissão.
II.
Em segundo lugar, precisa o
confessor de uma grande firmeza, e em particular para ouvir as confissões das
mulheres. Quantos padres, em ocasiões tais, têm perdido a sua alma! Acham-se em
relação com meninas, ou moças solteiras, ouvem a confissão das suas tentações e
muitas vezes das suas quedas; porque também elas são de carne. A própria
natureza nos faz afeiçoar às mulheres, principalmente quando elas vem com tanta
confiança revelar-nos as suas misérias; e quando são pessoas piedosas, dadas à
espiritualidade, o perigo do apego é ainda maior, como diz o Doutor angélico,
por que então exercer maior atrativo sobre o nosso coração. No entender do
mesmo santo, de parte a parte cresce a afeição, e à proporção dela crescerá o
apego, sob a aparência de piedade, a princípio; mas depois o demônio facilmente
conseguirá que a afeição espiritual se torne carnal.
Precisa também de muita firmeza
para repreender os penitentes e recusar-lhes até a absolvição, quando se
apresentarem mal dispostos, e isto apesar da nobreza e poderio deles, embora
corra perigo de ser taxado de indiscreto ou ignorante. Não procureis ser juiz,
se não vos reconheceis com coragem para reprimirdes as iniqüidades: não
aconteça que vos acabardes diante dos poderosos. Um padre da nossa Congregação,
tendo uma vez recusado com justiça a absolvição a um sacerdote, a quem
confessava na sacristia, este desgraçado levantou-se orgulhoso e não se
envergonhou de lhe dizer de cara: "Seja, não passas de uma besta".
Não há remédio; estão expostos a
estas aventuras os pobres confessores, obrigados a recusar ou diferir a
absolvição aos penitentes indispostos dalgum modo: ou porque não querem
sujeitar-se às justas obrigações que lhes impõem, ou porque são recidivos, ou
se encontram em ocasião próxima de pecado.
Devemos deter-nos aqui, a
examinar a conduta que o confessor tem a seguir a respeito dos ocasionários e
recidivos, assunto que exige dele o máximo cuidado, desde que queira salvar os
seus penitentes. Mas é preciso que comecemos por observar que são igualmente
perigosos para o confessor os dois extremos: o excessivo rigor e a demasiada
indulgência para com os penitentes.
A demasiada indulgência, diz São
Boaventura, gera a presunção; o demasiado rigor leva ao desespero. Sabido que é
que muitos confessores pecam por demasiada indulgência, e assim causam um mal,
que chamaremos não só grande, mas grandíssimo; porque os libertinos, - que são
o maior número, - correm de preferência a estes confessores relaxados, e neles
encontram a sua perda. Mas é igualmente certo que o excessivo rigor é ainda
mais funesto às almas: Vós os governáveis com severidade e altivez, e as milhas
ovelhas se dispersaram. Assegura Gerson que o demasiado rigor só serve para
lançar as almas no desespero, e do desespero em desenfreamentos extremos.
Depois acrescenta: Não devem os teólogos precipitar-se a afirmar que certa ação
ou omissão é um pecado grave, sobretudo quando a matéria é controversa e não
certa. É também o sentir de São Raimundo.
A mesma linguagem emprega Santo
Antonino: É muito perigoso decidir se um determinado ato é pecado mortal ou
somente venial, a não ser que haja fundamento expresso na autoridade da sagrada
Escritura, nalgum cânon, numa decisão da Igreja, ou numa razão evidente. Com
efeito, acrescenta ele, aquele que, sem se firmar nalgum desses fundamentos,
decide que determinada ação é mortal, aedificat ad gehennam, isto é, coloca as
almas em perigo de se condenarem. Noutra parte, ao falar dos vão adornos das
mulheres, o santo arcebispo exprime-se nestes termos: Quando o confessor vir
claramente, de modo a não poder duvidar, que tal pessoa peca gravemente nesta
matéria, não a absolva enquanto se não emendar. No caso porém de não poder
determinar, duma maneira certa, se a culpa é mortal ou venial, não precipite o
seu juízo, não recuse a absolvição; não diga à penitente: É um pecado mortal.
No caso contrário, se ela em
seguida procedesse de encontra a esta decisão, pecaria mortalmente, embora a
matéria em si não fosse grave; porque tudo o que é contrário à consciência
condena ao inferno. (desde que se apreenda como grave) E como é mais próprio
das leis desligar do que ligar, e vale mais, segundo São João Crisóstomo, ter
de responder diante de Deus por uma excessiva misericórdia, do que por um
exagerado rigor, o melhor partido a tomar nestes casos duvidosos parece que é
absolver, deixando a Deus o cuidado de os julgar. Silvestre professa a mesma
doutrina. Tal é também o sentir de João Nider que, depois de apontar a opinião
de Guilherme, acrescenta: A nossa opinião concorda com a de Bernardo Clermont
que diz: Quando uma opinião é discutida entre autores de peso, dos quais uns
pensam que uma tal ação é pecado e outros negam, deve o confessor consultar
alguns homens que lhe inspirem confiança e seguir a opinião deles.
Pois, quando uma coisa é
controvertida entre os sábios, e a Igreja ainda não decidiu, põe cada um optar
pela opinião que lhe aprouver, contanto que se funde no parecer dos que julga
mais autorizados.
E isto está de acordo com a
doutrina de Santo Tomás: Não pode escusar-se de erro quem segue a opinião de
qualquer mestre, em oposição com o ensino claro da Escritura, ou contra o
sentir comum e aprovado pela Igreja. Portanto, em sentido contrário, segundo o
Doutor angélico, é lícito tomar como regra uma opinião autorizada, que não se
opõe ao texto formal da Escritura, nem a decisão alguma da Igreja. Em
confirmação desta doutrina, citemos enfim uma passagem cheia de força, de
Gabriel Biel, que florescia pelos fins do século quinze: A primeira opinião
parece mais provável, porque não se deve avançar que uma certa falta é mortal,
sem haver uma razão evidente ou um texto claro da Escritura.
4º. Regra a praticar
com os ocasionários e recidivos
Examinemos agora em particular
qual deve ser, na prática, a conduta do confessor a respeito dos penitentes,
que estão em ocasião próxima do pecado, e dos que recai em habitualmente nalgum
vício.
I.
Quanto aos primeiros, é
necessário distinguir muitas espécies e ocasiões:
1º. Divide-se a ocasião em
remota e próxima: remota aquela em que as quedas têm sido raras, e ainda aquele
em que os homens, geralmente falando, só raras vezes caem; próxima per se é
aquela em que os homens têm o costume de cair sempre ou quase sempre; e ocasião
próxima per acidentes, ou ocasião relativa, é aquele em que o pecador cai
freqüentes vezes, conforme o sentir mais verdadeiro e comum, contra os teólogos
que não reconhecem como próxima senão a ocasião, em que se cai sempre ou quase
sempre.
2º. Há mais a ocasião
voluntária, e a ocasião necessária: voluntária a que se pode facilmente
remover; necessária a que não se pode evitar, sem grande detrimento, ou sem dar
grande escândalo a outrem.
Posto isto, grande número de
doutores ensinam que se pode absolver primeira e segunda vez o penitente que
está em ocasião próxima, mesmo voluntária, contanto que tenha a firme resolução
de a remover logo que possa. Mas é necessário distinguir, com São Carlos
Borromeu na Instrução aos confessores, as ocasiões chamadas in esse, como ter
uma concubina na sua companhia, das que não são in esse, como seria, por
exemplo, o jogo ou certa sociedade com pessoa habituada a blasfemar, maldizer
etc.
Quanto às ocasiões que não são
in esse, São Carlos ensina que, quando o penitente promete firmemente
abandoná-las, pode-se absolvê-lo duas ou três vezes; mas, se depois se não vir
emenda, é necessário diferir-lhe a absolvição até que de todo remova a ocasião.
É quando as ocasiões in esse,
diz o Santo que não se pode conceder a absolvição ao penitente, sem que ele
afasta primeiro a ocasião; a simples promessa não basta. Falando em geral, deve
seguir-se esta opinião, conforme o provamos na nossa Teologia moral, pela
autoridade dum grande número de doutores. A razão é que o penitente não estaria
bem disposto para receber a absolvição, se pretendesse obtê-la antes de ter
afastado a ocasião; por causa do perigo próximo em que se encontraria de faltar
à sua resolução, e à obrigação grave, em que já estava de remover essa ocasião.
Afastar uma ocasião próxima é
coisa muita dura e difícil, que exige grande violência; ora, tal violência
dificilmente se fará quando já se houver recebido a absolvição; passado o temor
de não ser absolvido, de bom grado se lisonjeará o penitente de poder resistir
à tentação, sem afastar a ocasião, e, permanecendo assim exposto ao mesmo
perigo, certamente recairá; é o que nos mostra a experiência de tantos
desgraçados que, recebida a absolvição de confessores demasiado indulgentes,
não se tendo dado ao trabalho de remover a ocasião, recaíram e se tornaram
piores que antes! Visto pois o perigo em que o penitente está de faltar à
promessa, que fez de remover a ocasião, não tem as disposições requeridas para
ser absolvido, desde que o quer ser antes de remover a ocasião; o confessor que
neste estado o absolve certamente peca.
É necessário notar aqui que,
geralmente falando, quando se trata do perigo de pecados formais, e sobretudo
de pecados vergonhosos, quanto mais o confessor usar de severidade para com os
meus penitentes, melhor contribuirá para a salvação da sua alma. Pelo contrário
quanto mais indulgente se mostrar, mais duro se lhes tornará. Dos confessores
demasiado indulgentes dizia São Tomás de Vilanova, que são deshumanamente
humanos - Impie pios. Tal caridade é contra a caridade.
Dissemos acima ordinariamente
falando, porque, em alguns casos raros, poderia o confessor dar a absolvição,
antes de se haver afastado a ocasião, por exemplo, se o penitente já tivesse testemunhado
uma firme resolução de se corrigir, junta com uma viva compunção, e por outro
lado não pudesse remover senão longo tempo depois, ou não pudesse voltar mais
ao mesmo confessor; ou enfim se ocorressem outras circunstâncias extraordinárias,
que obrigassem o confessor a absolver. Estes casos porém são muitíssimos raros,
tornando-se por isso difícil poder absolver os que estão em ocasião próxima, se
não a removerem antes, sobretudo se já prometeram fazê-lo e não o fizeram.
E não venha dizer-se que o
penitente disposto tem direito estrito à absolvição, desde que confessou os
seus pecados; porque os doutores ensinam comumente que ele não tem direito a
recebê-la logo depois da confissão, e que o confessor pode e até deve, como
médico espiritual, diferir-lha, quando entender que a dilação possa ser útil
para a emenda do seu penitente.
Isto quanto à ocasião
voluntária, mas, se a ocasião é necessária, por via de regra, não há obrigação
precisa de a remover; porque então, como o penitente não quer essa ocasião,
antes a sofre e permite a pesar seu, há motivo para que o Senhor lhe conceda
maiores socorros para resistir à tentação. Assim, por via de regra, pode-se dar
a absolvição a quem está em ocasião necessária, contanto que esse esteja
resolvido a empregar todos os meios para não recair.
Os meios principais que ao
pecador se devem inculcar para se corrigir, quando se encontrar em ocasiões
necessárias, são três:
I. - A fuga da ocasião, evitando
quanto possível, encontrar-se de frente a frente com a pessoa sua cúmplice,
entreter-se confidencialmente com ela, e mesmo olhar para ela.
II. - A oração, implorando
continuamente o socorro de Deus e da santíssima Virgem para poder resistir.
III. - A freqüência da confissão
e da comunhão, em que se recebem as forças para vencer o inimigo.
Disse - por via de regra - porque
se o penitente, apesar de todos os meios empregados, recair sempre, sem nenhuma
emenda, então o sentir comum mais verdadeiro, e que se deve seguir, é que se
recuse a absolvição, se não remover a ocasião, ainda mesmo que isso lhe
custasse a vida, (etiam cum jactura vitae, segundo a linguagem dos doutores)
porque a vida eterna deve ser preferida à temporal. De mais, embora na ocasião
necessária se possa, sem faltar às regras da moral, absolver o penitente
disposto, contudo, quando se trata de pecados carnais, será sempre bom,
ordinariamente falando, diferir a absolvição, até que se tenha visto por uma
experiência conveniente e assás longa, de vinte ou trinta dias, que o penitente
pôs fielmente em prática os meios que lhe foram sugeridos e não recaiu mais.
Acrescentarei que, quando o
confessor vir que é vantajoso diferir a absolvição, é obrigado a fazê-lo;
porque um confessor é obrigado a empregar os remédios mais próprios para operar
a cura do seu penitente. Além disto, em matéria de pecados sensuais, se o
penitente está habituado de longe a viver na impudicícia, não lhe bastará
evitar as ocasiões próximas; terá mesmo de fugir a certas ocasiões, em si
mesmas remotas, mas que para ele se devem considerar próximas, em razão da
fraqueza extrema, a que as suas recaídas o têm reduzido, e da propensão que
contraiu para um tal vício.
II. Falemos em segundo lugar dos
recidivos, que é necessário distinguir dos habitudinários.
Chamam-se habitudinários os que
cometem habitualmente algum pecado, mas que ainda não confessaram o seu mau
hábito. Se estes pecadores estão bem dispostos, isto é, sinceramente
arrependidos e no propósito de empregar os meios para destruírem o hábito
contraído, podem absolver-se a primeira vez que se confessem, assim como quando
se confessarem depois de haverem por espaço notável renunciado ao seu mau
hábito. É necessário contudo notar que, quando o mau hábito já está contraído,
e principalmente se é inveterado, pode o confessor diferir a absolvição para
experimentar o penitente, e ver como ele se aplica a praticar os meios que lhe
são prescritos.
Os recidivos são os que, depois
da confissão, recaíram no mesmo hábito mau, sem nenhuma emenda. Não podem ser
absolvidos, se só derem os sinais ordinários, isto é, se se contentarem com
confessar os seus pecados, dizendo que se arrependem e estão no propósito de
não recair.
Com justiça, Inocêncio XI
condenou esta proposição: "Quando um penitente tem um pecado habitual
contra a lei de Deus, contra a lei natural ou contra a lei da Igreja, ainda
mesmo que não dê nenhuma esperança de emenda, não se lhe deve recusar nem
diferir a absolvição, contanto que ele diga de boca que se arrepende e forma o
propósito de se emendar. Eis por que esta proposição foi condenado. É verdade
que a própria confissão, com a afirmação do penitente, de que está arrependido
e disposto a emendar-se, dá ao confessor uma certeza moral das suas boas
disposições, contanto que não haja a presunção em contrário; mas, uma vez
contraído o mau hábito e tendo o penitente recaído depois de recebida a
absolvição, sem mostrar nenhuma emenda, essas recaídas então fazem suspeitar
com fundamento que a dor e o propósito não são verdadeiros.
Eis a razão por que neste caso
se deve diferir a absolvição, até que a emenda, por algum tempo, e a prática
dos meios prescritos demonstrem as boas disposições do penitente.
Importa observar aqui, que esta
regra se aplica não só aos recidivos em pecados mortais, mas até aos recidivos
em pecados veniais, muitos dos quais se confessam por costume, mas sem dor nem
propósito. Se estes querem receber a absolvição, deve o confessor ao menos
exigir que lhe apresentem matéria certa para o sacramento, acusando alguma
falta mais grave da sua vida passada, que mais lhes pese e que estejam na
resolução de não tornar a cometer.
Assim, para absolver tais
recidivos, exige-se a prova do tempo, ou pelo menos sinais extraordinários de
boas disposições que, - ao contrário do que dizia a proposição condenada - façam
transparecer alguma esperança fundada de emenda.
Eis, segundo o sentir dos
doutores, quais são os sinais:
1º. - Uma grande compunção,
manifestada em lágrimas ou por palavras saídas, não da boca, mas do coração,
palavras que algumas vezes mostram melhor que as lágrimas a disposição do
penitente.
2º. - Uma diminuição notável no
número dos pecados, todas as vezes que o penitente se encontra nas mesmas
ocasiões e tentações.
3º. - Precauções tomadas para
não recair, evitando as ocasiões e pondo em prática os meios que lhe haviam
sido prescritos; ou até uma grande resistência à tentação antes de sucumbir de
novo.
4º. - Pedir o penitente
remédios, ou novos meios para sair do pecado, com verdadeiro desejo de se
corrigir.
5º. - Procurar ele o confessor,
não por um piedoso costume estabelecido, como pelo Natal ou em certa festa, não
por obediência a pais, mestres ou superiores, mas guiado por uma inspiração
divina, para se congraçar com Deus, sobretudo se isso se lhe tornou custoso,
fazendo uma longa viagem, ou se para vir teve de vencer grandes dificuldades e
fazer-se dura violência.
6º. - Se foi movido a
confessar-se por um sermão que ouviu, ou por uma morte repentina, ou por uma
desgraça iminente, ou por algum outro motivo espiritual extraordinário.
7º. - Se acusa pecados que a
vergonha lhe tinha feito calar nas suas confissões passadas.
8º. - Se, em seguida às
advertências, que o confessor lhe dirige, mostra que recebeu um notável
acréscimo de luz, e concebeu novo horror do seu estado e do perigo de se
condenar.
9º. - Alguns doutores dão também
como sinal extraordinário a promessa firme de empregar os remédios prescritos
pelo confessor; mas é raro que se possa confiar bastante nessas promessas, não
havendo outro sinal; porque os penitentes, para conseguirem a absolvição,
prometem facilmente muitas coisas que talvez, nem mesmo então, estejam na
resolução de cumprir.
Com esses sinais
extraordinários, pode o confessor absolver o recidivo; mas pode também
diferir-lhe a absolvição por algum tempo, quando isso lhe possa aproveitar.
Quanto a saber se é sempre conveniente, em casos tais, diferir a absolvição ao
penitente disposto, - é uma questão discutida entre os doutores; uns negam,
outros afirmam, contanto que a dilação não ofenda a reputação do penitente, por
exemplo: se, não se aproximando da sagrada Mesa, houvesse de dar aos outros
suspeita positiva do pecado cometido Quanto a mim, como disse na minha
Instrução aos confessores, entendo que, quando não há ocasião extrínseca e se
trata de pecados cometidos por fragilidade intrínseca, tais como blasfêmias,
ódios, poluções, deleitações morosas etc., raras vezes há vantagem em diferir a
absolvição, porque sempre se poderá esperar mais do socorro da graça, que o
penitente recebe pela absolvição, que da demora que lhe impusesse.
Quando houver porém uma ocasião
extrínseca, embora necessária, penso, como anteriormente disse, que sempre será
útil, e as mais das vezes indispensável para a emenda do penitente, ainda que
disposto, diferir-lhe a absolvição.
QUINTA INSTRUÇÃO,
Sobre a oração mental e ofício
divino
§ I
Necessidade da oração mental
para os padres
Se, moralmente falando, a oração
mental é necessária para todos os fiéis, como observa o eminente sábio Padre
Suarez, mais necessária ainda o é aos padres; por isso que necessitam de graças
e socorros mais abundantes, obrigados como estão a aspirar a mais alta
perfeição. O seu estado exigelhes maior santidade, e estão obrigados a
trabalhar na salvação das almas: assim se encontram na necessidade de tomar um
duplo alimento espiritual, à semelhança das mães que precisam de alimentos
corporais mais abundantes, para se sustentarem a si próprias, e aos seus
filhos.
O nosso salvador, diz Santo
Ambrósio, nenhuma necessidade tinha de se acolher à solidão para orar, por isso
que a sua alma santíssima, gozando continuamente da visão intuitiva de Deus, o
contemplava em todo o lugar e a todos os momentos, e orava por nós sem
interrupção; no entanto, para nos fazer sentir a necessidade da oração mental,
separava-se da multidão como refere São Mateus, e retirava-se a sós para o
monte a fim de orar: E, deixada a multidão, subiu para o monte a orar isolado.
E São Lucas nos diz que ele passava as noites inteiras em oração. Sobre este
texto, faz Santo Ambrósio esta reflexão: Se Jesus Cristo passou as noites a
orar pela tua salvação, com quanta mais razão deves tu orar para te salvares! E
noutro lugar acrescenta: Devemos orar dia e noite pelo povo que nos está confiado.
O venerável João de Ávila punha na mesma linha as duas funções do padre:
oferecer sacrifícios e oferecer incenso a Deus.
Ora, sabe-se que o incenso é o
símbolo da oração: Que a minha oração suba à vossa presença como o fumo do
incenso. São João viu os anjos a levar taças de ouro cheias de perfumes, que
são as orações dos santos. ajunta ele. Ó! quanto agradam a Deus as orações dos
bons padres! São Carlos Borromeu, considerando a necessidade, que têm os
eclesiásticos de praticar a oração mental, fez decretar no Concílio de Milão
que, nos exames dos ordinandos, se lhes perguntasse em especial se sabiam fazer
a meditação, se de fato a faziam, e quais os pontos das suas meditações. E o
venerável João de Ávila dissuadia de entrarem no sacerdócio os que não tivesse
o hábito de se darem muito à oração.
Não quero alongar-me aqui sobre
os motivos, que tornam moralmente necessária a todo o padre, o exercício da
oração mental; basta dizer que, sem oração, tem o padre falta de luzes, porque
aprecia pouco o grande negócio da salvação, e pensa pouco nos obstáculos que
lhe põe, assim como nas obrigações que tem a cumprir para se salvar. Por isso o
Salvador disse a seus discípulos: Tende cingidos os rins, e lâmpadas acesas nas
vossas mãos. Estas lâmpadas, diz São Boaventura, são as piedosas meditações, em
que o Senhor nos alumia: chegai-vos a ele e sereis alumiados. Quem não faz
oração tem pouca luz e pouca força. É no repouso da oração, diz São Bernardo,
que se adquirem as forças necessárias, para resistir aos inimigos e praticar as
virtudes. Quando se levou a noite sem dormir, de manhã não se pode uma pessoa
ter de pé e cambaleia a cada passo.
Tomai tempo para considerar que
Eu sou Deus. Se ao menos de quando em quando se não deixam os pensamentos do
mundo, se não se busca o retiro para tratar com Deus, mal se conhecem, e pouca
luz se tem das coisas eternas. Um dia dizia Jesus Cristo aos seus discípulos,
que se tinham ocupado muito tempo a trabalhar na salvação do próximo: Vinde,
acolhei-vos a um lugar solitário, e tomai um pouco de repouso. Não falava o
Senhor do repouso do corpo, mas do da alma; porque, se a alma se não retirar de
tempos a tempos ao silêncio da oração, para só se entreter com Deus, não terá
força para prosseguir no bem; em breve cairá no desalento e depois nas ocasiões
fatais. Toda a nossa força está no socorro da graça: Tudo posso naquele que me
conforta. Mas esse não o dá Deus senão aos que o pedem. Tem ele o maior desejo
de nos conceder as graças, mas quer, como diz São Gregório, ser instado por
nós, e dalgum modo forçado pelas nossas súplicas.
Quem nunca pratica a oração
mental conhece mal os próprios defeitos, assim como os perigos em que se
encontra de perder a graça de Deus, e os meios para vencer as tentações. Por
conseqüência mal conhecerá a necessidade em que está de orar, e negligenciará
fazê-lo; e, se não orar, certamente se perderá. Por isso Santa Teresa, grande
mestra de oração, dizia que quem despreza a oração mental não precisa que os
demônios o levem para o inferno; por si próprio se lança nele.
Pessoas há que recitam muitas
orações vocais, mas essas orações, quando se não pratica a oração mental,
dificilmente se fazem com atenção: dizem-se com o espírito distraído, e o
Senhor pouco as escuta. Sobre o texto - Voce mea ad Dominum clamavi - faz Santo
Agostinho esta reflexão: Muitos há que clamam, não com a sua voz, mas com a voz
do corpo. O vosso apelo ao Senhor é o vosso pensamento. Clamai no interior,
onde Deus escuta. Não basta pois orar com os lábios; é preciso orar em
espírito, se se querem conseguir de Deus as graças que se pedem, conforme a
expressão do Apóstolo: Orando a toda a hora em espírito. É o que a experiência
demonstra:: vêem-se muitos que fazem diversas orações vocais, recitam o ofício,
o rosário, e contudo caem no pecado e continuam a viver nele.
Pelo contrário, quem pratica a
oração mental dificilmente cai no pecado, e se alguma vez tem a desgraça de
cair, não se deixa permanecer nesse miserável estado: ou abandona a oração, ou
deixa o pecado. Oração e pecado não podem subsistir juntos. "Por muito
relaxada que se ache uma alma, dizia Sta. Teresa, se ela perseverar na oração,
o Senhor acabará por conduzi-la ao porto da salvação". É pela oração
mental que todos os santos se elevam à santidade. Segundo São Lourenço
Justiniano, a oração afugenta as tentações, dissipa a tristeza, repara as
forças da alma, desperta-lhe o fervor e inflama-lhe a caridade divina. Afirmava
Santo Inácio de Loyola que não lhe sobrevinha nenhuma amargura, que ele não
pudesse adoçar com um quarto de hora de oração. A meditação, dizia São
Bernardo, rege os afetos, governa as ações e corrige os excessos. São João
Crisóstomo olha como morta uma alma que não ora. No sentir de Rufino, é da
meditação que está dependente o progresso espiritual duma alma.
E Gerson chega a dizer que quem
não medita só por milagre pode viver como cristão. São Luís de Gonzaga, falando
da perfeição, a que todo o padre está especialmente obrigado, tinha razão para
dizer que, o que não se aplicar muito à oração mental jamais atingirá um alto
grau de virtude.
§ II
Responde-se às desculpas
Nada mais direi aqui sobre a
necessidade da oração mental; apenas me demorei a responder a três desculpas,
que de ordinário costumam apresentar os padres avessos a este exercício.
I.
Quanto a mim, diz um, não faço
meditação, porque só experimento nela desolação, distração e tentação; o meu
espírito, sempre vagabundo, não sabe fixar-se a meditar; é por isso que a ponto
de parte.
A isto responde São Francisco de
Sales que ainda que o que medita só cuidasse de repelir continuamente as
distrações e as tentações, não deixaria a meditação de ser bem feita, contanto
que as distrações não fossem voluntárias. Vê o Senhor com prazer a boa intenção
que se tem, e o trabalho que se emprega para perseverar até ao fim, nada
diminuindo ao tempo marcado; não deixa ele de recompensar os esforços com
graças abundantes. Não se deve ir à meditação para encontrar nela prazer, mas
para dar prazer a Deus. Também as almas santas experimentam securas na oração,
mas o Senhor as enriquece dos seus dons, porque são perseverantes. Dizia São
Francisco de Sales que uma onça de oração, feita no meio de desolações, pesa
mais diante do Deus, do que cem arráteis no meio de consolações.
As estátuas imóveis, que adornam
as galerias dum palácio, não deixam de prestar honra ao príncipe,;e o Senhor
pois quer que sejamos como estátuas na sua presença, contentemo-nos em o honrar
como estátuas; então nos bastará dizer-lhe: Senhor, estou aqui para vos
agradar!
Santo Isidoro nos assegura que
nunca o demônio faz maiores esforços para nos tentar e distrair, do que quando
fazemos oração. Por quê? Porque, ao ver o grande fruto que se tira da oração,
quer que a abandonemos: deixála pois, por causa da aridez que nos causa, é dar
grande prazer ao demônio. Nesses momentos de secura, o que a alma deve fazer é
humilhar-se e suplicar. Humilhar-se: nunca estamos em melhor situação para
conhecermos a nossa miséria e insuficiência, do que no tempo de secura e
desolação espiritual. Então vemos bem que de nós mesmos não podemos nada, e o
que temos a fazer em tal estado é unirmo-nos a Jesus desolado na cruz,
humilharmo-nos e implorar a misericórdia divina, repetindo sempre: Senhor,
ajudai-me! Senhor, tende compaixão de mim! Meu Jesus, misericórdia! - Uma
oração assim feita será mais vantajosa que todas as outras, porque Deus abre os
tesouros das suas graças aos humildes.
Nessas ocasiões mais que nunca,
apliquemo-nos a pedir misericórdia para nós e para os pecadores. Dum modo
especial exige Deus dos padres que orem pelos pecadores: Os sacerdotes, os
ministros do Senhor, estarão em lágrimas e clamarão: Perdoai, ó Senhor, perdoai
ao vosso povo! - Para satisfazer a isso, dir-se-á, basta recitar o ofício
divino. - Mas Santo Agostinho nos declara que o ladrar dos cães é mais
agradável a Deus, do que as orações dos maus sacerdotes, como o são de
ordinário os que nunca praticam a oração mental. De fato, sem a oração mental é
muito difícil ter o espírito eclesiástico.
II.
Pela minha parte, diz um
segundo, se não faço a oração mental, nem por isso perco o meu tempo, porque o
consagro ao estudo.
Mais eis o que o Apóstolo,
escrevia a Timóteo: Atende a ti e à doutrina. E primeiramente diz Tibi, isto é,
aplica-te à oração, na qual o padre trabalha para si. Em segundo lugar diz
Doctrinae, isto é, aplica-te ao estudo, para conseguires a salvação do próximo.
- Como poderemos santificar os outros, se não formos santos? "Ditoso, ó
Senhor, o que vos conhece, embora ignore tudo o mais"! Assim fala Santo
Agostinho. Nada nos aproveitaria para a salvação eterna, possuir todas as
ciências, se não soubéramos amar a Jesus Cristo; se pelo contrário soubermos
amá-lo, saberemos tudo e gozaremos duma felicidade sem fim. Felizes pois
aqueles a quem é dada a ciência dos santos, que consiste em saber amar a Deus.
Além disto, uma só palavra, saída da boca dum padre que ama a Deus
verdadeiramente, fará maior bem aos outros que mil sermões de sacerdotes
sábios, que lhe têm pouco amor.
Ora, esta ciência dos santos não
se adquire pelo estudo dos livros, mas pela oração, em que o crucifixo é ao
mesmo tempo o mestre que ensina, e o livro que se lê. Um dia perguntava a São
Boaventura Santo Tomás em que livro tinha haurido tantos conhecimentos; o
Doutor Seráfico apontou-lhe o crucifixo, dizendo-lhe que era o livro em que
havia aprendido tudo quanto sabia. Por vezes se aprenderá mais num instante, na
oração, do que em dez anos de estudo nos livros. É o que afirma São Boaventura:
Os anseios de amor divino, diz ele, deixam na alma uma ciência mais perfeita
que tudo o que se pode conseguir pelo estudo.
Para adquirir as ciências
humanas, precisa-se de muita inteligência; para a ciência dos santos, basta a
boa vontade. Quem mais ama a Deus, melhor o conhece, conforme esta máxima de
São Gregório: O próprio amor é ciência. E o mesmo disse Santo Agostinho: Amar é
ver. Por isso Davi exortava assim todos os homens: Gostai e vêde como o Senhor
é doce.
Quanto mais se toma o gosto a
Deus pelo amor, melhor se vê, melhor se conhece a grandeza da sua bondade. Quem
saboreia o mel conhece-o melhor que os filósofos, que estudam e explicam a sua
natureza. Daqui a sentença de Santo Agostinho: É Deus a própria sabedoria;
donde se segue que o verdadeiro filósofos, ou amigo da sabedoria, é o que ama a
Deus verdadeiramente.
Para aprender as ciências do
mundo, é preciso muito tempo e trabalho; para aprender a ciência dos santos,
basta pedi-la. Eis como fala o Sábio: "A sabedoria divina facilmente se
deixa encontrar, mesmo antes de ser procurada. Quem a procura com diligência,
não terá dificuldade em a encontrar; porque a verá sentada à sua porta, à
espera". Depois de ter assim encontrado a verdadeira sabedoria, que é o
amor de Deus, dizia Salomão que todos os bens lhe tinham advindo com ela.
Tal é a ciência dos santos. Ó!
Quanto São Filipe de Néri aprendeu nas catacumbas de São Sebastião, onde
passava noites inteiras em oração! Encontrou lá a que não tinha encontrado na
leitura dos livros. Quanto mais aprendeu São Jerônimo na gruta de Belém, do que
em todos os estudos que havia feito! Dizia o Padre Suarez que antes quereria
perder toda a sua ciência do que uma hora de oração. Que os sábios do mundo se
gloriem de sua sabedoria, dizia São Paulino, os ricos das suas riquezas, os
reis dos seus reinos; quanto a nós, que a nossa sabedoria, riqueza e reino seja
Jesus Cristo! Digamos com São Francisco de Assis: Meu Deus e meu tudo! É pois
esta a verdadeira sabedoria que principalmente devemos pedir a Deus, que não
deixa de a conceder a quem lha pede.
Que o estudo seja útil e até
necessário aos padres, não se nega; mas o estudo mais necessário é o do
crucifixo. Dava-se com ardor ao estudo dos livros filosóficos um certo Jovio, e
pouco se importava da vida espiritual, sob o pretexto da falta de tempo. São
Paulino, numa carta, repreendo-o assim: Tens tempo para ser filósofo e não o
tens para ser cristão! Há sacerdotes que gastam muito tempo a estuar
matemática, geometria, astronomia e história profana. - Se ao menos se
aplicassem a estudos próprios do seu estado! E depois disto desculpam-se,
dizendo que não têm tempo para a oração! Seria a propósito fazer-lhes esta
censura: Vacat tibi ut eruditus sis; non vacat ut sacerdos sis? Como diz
Sêneca, se temos pouco tempo, é porque perdemos muito. E mais: Ignoramos as
coisas necessárias, porque aprendemos coisas inúteis.
III.
Um terceiro dirá: Eu bem queria
fazer oração, mas o confessionário, e os sermões não me deixam um instante
livre.
Respondo-lhe: Visto que sois
padre, é muito louvável que trabalheis na salvação das almas, mas não posso
aprovar que, para serdes útil aos outros, vos esqueçais de vós mesmo. É preciso
que nos ocupemos de nós mesmos, fazendo oração; depois cuidaremos de socorrer o
próximo.
Foram os apóstolos, sem
contestação, os obreiros mais infatigáveis do Evangelho; apesar disso, ao verem
que os cuidados prodigalizados ao próximo lhes não deixavam tempo para se darem
à oração, instituíram diáconos que os ajudassem nas obras exteriores, para se
poderem aplicar à oração e à pregação. Irmãos, disseram eles, escolhei homens,
em quem possamos delegar este cuidado; pela nossa parte, temos que dar-nos por
inteiro à oração e ao ministério da palavra.
Note-se bem: quem eles dar-se
primeiro à oração e depois à pregação, porque os discursos sem a oração
produzem pouco fruto. Foi precisamente o que Sta. Teresa escreveu ao bispo de
Osma, que trabalhava com zelo no bem das suas ovelhas, mas descurava a oração:
"Nosso Senhor me fez conhecer, lhe diz ela, que nos falta o mais
necessário, o que é basilar, e desde que os alicerces faltam o edifício desaba.
Ora, o que vos falta é a oração e a perseverança na oração; daí procede a
aridez que a alma experimenta. São Bernardo advertiu igualmente o papa Eugênio
III: que não abandonasse a oração por causa dos negócios exteriores; que os que
abandonam a oração podem cair numa tal dureza de coração, que percam os
remorsos dos seus pecados e não sintam horror de os haverem cometido.
"Temo, ó Eugênio, que a
multidão dos negócios te impeça de te dares à oração e à meditação, e te leve a
uma tal dureza de coração, que não tenhas horror ao teu estado, por não o
sentires.
Sem a doce contemplação de
Maria, diz São Lourenço Justiniano, não poderiam as obras de Marta atingir a
perfeição. Engana-se, acrescenta ele, quem pensa em levar a bom termo o negócio
da salvação, sem o socorro da oração. Quanto mais uma empresa é nobre, tanto
mais arriscada é; quem não cuidar de se alimentar da oração, cairá a meio de
caminho. A seus discípulos mandou nosso Senhor que pregassem o que tivessem
aprendido na oração: O que vos digo ao ouvido, publicai-o dos telhados.
Trata-se aqui do ouvido do coração, ao qual Deus promete falar no retiro da
oração: Levála-ei ao retiro e lhe falarei ao coração. É na oração, escrevia São
Paulino, que se recebe o espírito que se tem de comunicar aos outros. Assim,
gemia São Bernardo ao ver nos padres tantos canais e tão poucos reservatórios,
devendo o padre ser primeiramente reservatório, que se encha de santas luzes e
piedosos afetos, bebidos na oração, para depois ser canal benéfico do seu
próximo.
É necessário, diz São Lourenço
Justiniano, que o padre antes de trabalhar na salvação do próximo se aplique à
oração. São Bernardo parafraseando esta passagem dos Cânticos - Dignai-vos
atrair-me; atrás de vós correremos, ao odor dos vossos perfumes - faz assim
falar a Esposa sagrada, ou a Igreja: Não serei só eu a correr, comigo correrão
também as jovens; correremos ao mesmo tempo, eu movida pelo odor dos vossos perfumes,
elas excitadas pelo meu exemplo. Tal é a linguagem que deve ter um padre zeloso
da salvação das almas, dirigindo-se a Deus: Atraí-me a vós, Senhor, e eu
correrei para vós, e os outros correrão comigo: eu correrei atraído pelo odor
dos vossos perfumes, isto é, pelas inspirações e graças que de vós receber na
oração, e os outros correrão ao impulso do meu bom exemplo.
Para poder pois atrair muitas
almas a Deus, é necessário que o padre comece por se fazer atrair de Deus.
Assim o têm feito os santos obreiros do Evangelho, tais como São Domingos, São
Filipe de Néri, São Francisco Xavier, São João Francisco Regis, que gastavam o
dia inteiro a trabalhar para o povo, e consagravam a noite à oração, até que
fossem acabrunhados pelo sono. Um só padre mediocremente instruído, mas
possuído dum grande zelo, ganhará mais almas para Deus, que muitos outros
superiores em sabedoria, mas tíbios. Um só abrasado em zelo, diz São João
Crisóstomo, basta para reformar um povo inteiro. Uma palavra dum pregador,
inflamado no santo amor, fará mais efeito que cem sermões cuidadosamente
preparados por um teólogo, que ame pouco a Deus. Diz São Tomás de Vilanova que,
para ferir os corações e abrasá-lo no amor divino, se requerem palavras ardentes,
que sejam como dardos de fogo.
Mas, ajunta ele, - como poderão
sair dum coração de gelo esses dardos de fogo? É a oração que abrasa os
corações dos santos padres, e de gelados os torna ardentes. Ao falar especialmente
do amor que Jesus Cristo nos testemunhou, o Apóstolo exclama: O amor de Jesus
Cristo insta conosco. Assim nos faz compreender que é impossível meditar os
sofrimentos e ignomínias, que o nosso Redentor suportou por nosso amor, e não
nos sentirmos animados a procurar que todos se abrasem no seu amor. Foi o que o
profeta Isaías predisse no seu Cântico: Haveis de ir cheios de alegria beber
nas fontes do Salvador, e direis naquele dia: Louvai ao Senhor e invocai o seu
nome. As fontes do Salvador são os exemplos da vida de Jesus Cristo.
Ó! que fontes de luz e de santos
afetos encontram neles as almas que os contemplam! Acende-se nos seus corações
o fogo do amor divino, que elas depois comunicam aos outros, exortando-os a
reconhecer, amar e louvar a bondade do nosso Deus.
§ III
Sobre a recitação do Ofício
divino
Convém ajuntar aqui algumas
palavras sobre a recitação do ofício divino.
Eis os frutos do ofício divino:
honrar a Deus, resistir ao furor dos nossos inimigos e obter misericórdia para
os pecadores; mas, para isso, é necessário que se recite como convém, e como o
exige o V. Concílio de Latrão, isto é, studiose et devote. Explicam-se assim
estas duas palavras studiose, quer dizer pronunciar bem; devote, com atenção,
segundo a palavra de Santo Agostinho, - que o vosso coração se ocupe do que os
vossos lábios proferem. Como quereis vós, pergunta São Cipriano, que Deus vos
ouça se a vós mesmos vos não ouvis?
Feita com atenção, é a oração
esse incenso de suave odor que tanto agrada a Deus e nos obtém tesouros de
graças; ao contrário, se for feita com distrações voluntárias, torna-se como um
fumo infecto, que irrita o Senhor e atrai castigos. Por isso, ao recitarmos o
ofício, o demônio se empenha em nos tentar com distrações e defeitos. Então nos
importa redobrar de esforços para o recitarmos dum modo conveniente. Eis para
isto alguns avisos práticos:
I. - Avivemos então a nossa fé,
com a lembrança de que a vossa voz se une à dos anjos para louvar a Deus. Diz
Tertuliano: Estamos a fazer ensaio do que havemos de praticar na glória;
fazemos na terra o que fazem os bem-aventurados na pátria celeste, onde cantam
sem cessar e cantarão eternamente os louvores do Senhor. Assim, antes de
entrarmos na igreja, ou de lançarmos mão do breviário, devemos deixar à porta e
despedir todos os pensamentos do mundo, segundo o aviso de São João Crisóstomo:
Ninguém entre no templo com o fardo dos cuidados terrenos; tais coisas
deixam-se à porta.
II. - É necessário que os afetos
do nosso coração acompanhem os sentimentos que à nossa boca exprime, segundo o
que ensina Santo Agostinho: Se o salmo ora, orai; se geme, gemei; se inculca
esperança, esperai.
III. - É bom que renovemos a
nossa intenção de tempos a tempos, por exemplo no começo de cada salmo.
IV. - Finalmente, deve-se evitar
tudo quanto possa ocasionar distração ao nosso espírito. Que atenção e devoção
poderia ter no ofício quem o recitasse num lugar transitado, ou em presença de
pessoas que soltassem risadas e grilos?
Ó! quanto aproveitam os que
todos os dias recitam o ofício com devoção! Implentur Spirictu Sancto, diz São
João Crisóstomo. Os que, ao contrário, o rezam com negligência, perdem muitos
merecimentos, e hão de prestar a Deus rigorosas contas.
SEXTA INSTRUÇÃO,
Sobre a humildade
Aprendei de mim que sou manso e
humilde do coração. A humildade e a doçura foram as duas virtudes favoritas de
Jesus Cristo, virtudes em que, dum modo muito especial, quis ser imitado por
seus discípulos. Falemos primeiro da humildade, depois falaremos da doçura.
§ I
Necessidade da humildade
Segundo São Bernardo, quanto
mais alta é a dignidade do padre, tanto mais ele deve ser humilde; de
contrário, se cair no pecado, a da queda será a medida da sua elevação. Donde
conclui São Lourenço Justiniano que a jóia mais brilhante e preciosa do padre
deve ser a humildade. No mesmo sentido diz Alcuino: Visto que estás colocado na
mais sublime dignidade, necessária te é a mais excelente humildade. E antes
deles tinha dito o divino Mestre: O maior dentre vós faça-se o mais pequeno de
todos. A humildade é a verdade; por isso o Espírito Santo nos adverte que, - se
soubermos distinguir o precioso do vil, isto é, o que é de Deus do que é nosso,
- seremos como que a sua boca, que sempre diz a verdade. Devemos pois repetir
sempre esta súplica de Santo Agostinho: Que eu me conheça a mim e vos conheça a
vós.
É também o que continuamente
dizia a Deus São Francisco de Assis, por estas palavras: "Quem sois vós e
quem sou eu?" Estava tão compenetrado a um tempo, da grandeza e bondade
que via em Deus, como da indignidade e miséria que descobria em sim mesmo. É
assim que, à vista do Bem infinito, os santos se abatem até ao centro da terra;
quanto melhor conhecem a Deus, tanto mais pobres e cheios de defeitos se
reconhecem. Os orgulhosos, ao contrário, mal conheceu o seu nada, porque estão
às escuras.
Separemos portanto o que nos
pertence a nós do que pertence a Deus. Da nossa parte só temos miséria e
pecado. De fato, o que somos nós senão um pouco de pó manchado de iniquidades?
E podemos orgulhar-nos? Porque se encheu de orgulho o que é terra e cinza? A
nobreza, a riqueza, os talentos e os outros dons da natureza são apenas um
manto lançado sobre os ombros dum pobre mendigo. Acaso não olharíeis como um
louco o pedinte que se orgulhasse com sua cobertura bordada a ouro, que lhe
houvessem emprestado? Que tendes vós que não hajais recebido? E se o
recebestes, porque vos gloriais, como se o devêsseis a vós mesmos? Que possuís
vós que não tenhais recebido de Deus, e que ele não possa tirar-nos, quando lhe
aprouver?
Mais ainda, dispensa-nos Deus os
dons preciosos da sua graça, e nós misturamos-lhes inumeráveis faltas,
distrações, fins desordenados e impaciências. Todas as nossas boas obras são
como um tecido repleto de manchas.
Deste modo, quando talvez nos
cremos mais alumiados e ricos de merecimentos, - depois das nossas missas,
ofícios e orações, - é que mais nos quadra a censura dirigida a um bispo no
Apocalipse: Dizes tu: Sou rico; e não sabes que és pobre, miserável, cego e nu?
Pelo menos, desde que aos olhos de Deus conheçamos a nossa pobreza e
imperfeições, cuidemos de lhe endereçar as nossas súplicas, humilhando-nos e
confessando as nossas misérias, conforme ensina São Bernardo: Suprireis com a
humildade da vossa confissão o que falta ao vosso fervor. Estava ainda no mundo
São Francisco de Borja, quando um santo homem lhe aconselhou que, se queria
fazer grandes progressos na virtude, não deixasse passar nenhum dia sem
considerar a sua miséria. Dócil a este aviso, consagrava ele cada dia as duas
primeiras horas da sua oração ao conhecimento e desprezo de si mesmo.
Foi assim que chegou à santidade
e nos deixou tão belos exemplos de humildade.
Diz Santo Agostinho: Deus está
alto; se te elevas, foge de ti; se te abaixas, desce para ti. Aos humildes
une-se o Senhor de boa vontade, e enriquece-os das suas graças; dos orgulhosos,
afasta-se, e foge deles com horror. Ouve as preces dos humildes: A oração do
que se humilha atravessará as nuvens... e não se retirará sem que o Altíssimo a
tenha atendido. Repele ao contrário as orações dos soberbos: Resiste Deus aos
soberbos e dá a sua graça aos humildes. Aos orgulhosos não quer vê-los senão de
longe: Está Deus muitíssimo alto e olha com benevolência as coisas baixas; as
altas olha-as de longe. As pessoas que vemos ao longe não as conhecemos; assim
de certo modo parece que Deus não conhece nem ouve os orgulhosos que lhe pedem.
Quando esses o invocam, responde-lhes: Em verdade vos digo que não vos conheço.
Numa palavra, os orgulhosos são abomináveis a Deus e aos homens.
Por vezes se vêem os homens
obrigados a prestar homenagem aos soberbos; mas no seu coração detestam-nos e
desprezam-nos, até em presença dos outros: Onde reina a soberba, lá reinará
também o desprezo.
Falando da humildade de Santa
Paula, São Jerônimo tece-lhes este elogio: Obtinha a glória, fugindo dela;
porque, assim como a sombra segue o homem que a evita, e parece fugir do que
corre atrás dela, assim a glória se liga ao homem que a despreza, e se afasta
de quem a procura. Quem se exalta será humilhado, e quem se humilha será
exaltado. Se um padre, por exemplo, fizer uma boa obra e não falar dela, os que
vierem a conhecê-la todos lhe darão louvores; se ele a publicar, para ser
aplaudido, colherá desprezos em vez de louvores. Que vergonha, exclama São
Gregório, ver os que devem ensinar a humildade, tornarem-se pelo mau exemplo
doutores do orgulho! Desnecessário será dizer que não se fala dos benfeitores
senão para manifestar o bem e dar por ele glória a Deus. Falar da obra, diz
Sêneca, é louvar o obreiro.
Quem vos ouvir publicar o bem
que tendes feito, há de acreditar que o fazeis para serdes louvado; assim
perdereis a estima dos homens e o merecimento diante de Deus que, ao ver-vos
procurar os louvores do mundo, vos aplicará esta sentença do Evangelho: Na
verdade, na verdade vos digo, já receberam o seu salário. Declara o Senhor que
abomina, dum modo especial, três espécies de pecadores: O pobre soberbo, o rico
mentiroso e o velho insensato. Vê-se que o primeiro na aversão de Deus é o
pobre soberbo.
§ II
Prática da humildade
Vamos agora à prática: vejamos o
que temos a fazer para sermos verdadeiramente humildes, não de nome mas de
fato.
1º. Ter horror ao
orgulho
Primeiro que tudo, devemos
conceber um grande horror pelo orgulho, porque Deus, como acima vimos, resiste
aos orgulhosos e priva-os das suas graças. Um padre, sobretudo para se
conservar casto, necessita duma assistência particular de Deus; como pois, se
for orgulhoso, poderá guardar a castidade, quando o Senhor lhe retirar o
auxílio, em castigo do seu orgulho?
O orgulho, diz o Sábio, é o
sinal duma ruína próxima. Por isso Santo Agostinho chega a dizer que, de certo
modo, é proveitoso aos orgulhosos caírem nalgum pecado manifesto, para que
aprendam a humilhar-se e a desprezar-se a si próprios. Assim Davi caiu em
adultério, por falta de humildade, como depois confessou nestes termos: Pequei
antes de ser humilhado. Diz São Gregório que o orgulho produz a impudicícia;
porque a carne precipita no inferno os que se deixam enfatuar pelo espírito de
orgulho. Está no meio deles o espírito de fornicação... E a arrogância de
Israel se ostenta no seu rosto. Perguntai a um impudico porque recai sempre nas
mesmas torpezas: Respondebit arrogantia: responderá por ele o orgulho,
apresentando-se como causa; porque o Senhor castiga a audácia presunçosa do
orgulhoso, permitindo-lhe que se afunde nas suas baixezas.
Como diz o Apóstolo, foi o castigo
infligido outrora ao orgulho dos sábios do mundo: Por isso os entregou Deus aos
desejos do seu coração, à impureza, para que desonrassem o seu próprio corpo. O
demônio não teme os orgulhosos. Refere Cesário que um dia um possesso, tendo
sido levado a um mosteiro de Citeaux, o abade chamou para junto de si um jovem
religioso, com grande fama de virtude, e disse ao demônio: Se este religioso te
mandasse sair, ousarias tu resistir? - "Desse não tenho eu medo, porque é
orgulhoso, respondeu o espírito maligno". - São José Calasâncio dizia que
um padre orgulhoso é nas mãos do demônio como uma péla de jogar, que ele
arremessa e faz cair onde lhe apraz.
Sempre os santos têm temido mais
o orgulho e a vanglória que todo os males temporais. Conta Súrio que um santo
homem, a quem os seus milagres atraíam a estima e veneração de todo o mundo,
pediu ao Senhor que o tornasse possesso do demônio, para se pôr a salvo das
freqüentes tentações de vanglória, que o assaltavam; foi ouvido, e permaneceu
possesso durante cinco meses, passados os quais foi livre do espírito infernal,
e ao mesmo tempo do espírito de vaidade que o atormentava. Neste intuito
permite Deus que os próprios santos estejam expostos às tentações de impureza
e, apesar das suas súplicas, persistam no combate. Foi o que aconteceu a São
Paulo, como ele escreveu: Para que a grandeza destas revelações me não fizesse
orgulhar, foi-me dado o aguilhão da carne, um anjo de Satanás que me prega
bofetadas.
Por essa causa três vezes pedi a
Deus que me livrasse dele; e respondeu-me: Basta-te a minha graça; porque a
virtude aperfeiçoa-se na fraqueza.
Assim, diz São Jerônimo, foi
dado a São Paulo o aguilhão da carne, como despertador para o conservar na
humildade. Donde São Gregório conclui que, para se conservar a castidade em
toda a sua integridade, é necessário confiá-la à guarda da humildade.
Façamos aqui uma reflexão: Para
humilhar o orgulho do povo egípcio, mandou-lhe o Senhor como tormento, não
ursos ou leões, mas rãs. Que quer isto significar? Que algumas vezes permite
Deus que sejamos atormentados por certas palavras insignificantes que ouvimos,
por pequenas aversões, por coisas de nada, para que reconheçamos a nossa
miséria e nos humilhemos.
2º. Não se gloriar do
bem praticado
Em segundo lugar é necessário
que estejamos prevenidos contra a vaidade, por qualquer bem de que sejamos
instrumentos, - nós principalmente que nos achamos erguidos à sublime dignidade
do sacerdócio. Como são altos os nossos ministérios! Foi-nos confiada a augusta
função de oferecer a Deus o seu próprio Filho. Como diz São Paulo, foi-nos
conferida a missão de reconciliar os pecadores com Deus, pela pregação e
administração dos sacramentos. Somos os embaixadores e vigários de Jesus
Cristo, órgãos de Espírito Santo. São as mais altas montanhas, diz São
Jerônimo, que estão mais expostas aos ventos impetuosos; assim, quanto mais
sublime é o nosso ministério, tanto mais sujeitos estamos aos assaltos da
vanglória. Todos nos estimam, e nos olham como sábios e santos; facilmente se
perturba a cabeça dos que estão em grandes alturas.
Quantos padres, por falta de
humildade, caíram no precipício! Montano chegou a fazer milagres, e depois a
ambição fez dele um heresiarca.
Taciano compôs muitos e belos
escritos contra os idólatras, e o orgulho fê-lo cair também na heresia. O irmão
Justino, franciscano, foi precipitado pelo orgulho, dos mais altos graus da
contemplação, na apostasia, e morreu como réprobo. Na Vida de São Palemon se lê
que um monge, caminhando sobre carvões ardentes se gloriava e dizia: "Qual
de vós pode caminhar sobre brasas, sem se queimar?" São Palemon
repreendeuo, mas o desgraçado encheu-se de orgulho, caiu num pecado e morreu em
mau estado.
Dominado pelo orgulho, o homem
espiritual é o mais culpado de todos os bandidos, porque o que ele arrebata não
são bens de terra, é a glória do Céu. São Francisco tinha o costume de fazer
esta súplica: "Senhor! guardai vós mesmo os bens que me derdes; de
contrário, eu vo-los roubaria". Tal é a oração que também nós, os padres
devemos fazer. Digamos sempre com São Paulo: Tudo quanto sou, à graça de Deus o
devo. De fato, segundo o mesmo Apóstolo, somos incapazes, não só de boas obras,
mas até de termos de nós mesmos um bom pensamento. Daí a advertência que o
Senhor nos faz: Uma vez cumprido o que vos é prescrito, dizei: Somos servos
inúteis; só fizemos o que era do nosso dever. Que podem aproveitar a Deus todas
as nossas obras? que necessidade pode ele ter dos nossos bens? Sois vós o meu
Deus, dizia Davi, não careceis dos meus bens.
Em Jó lê-se: Se fizerdes o bem,
o que é que lhe dais? Que dádiva podeis oferecer a Deus, que o torne mais rico?
Somos ainda servos inúteis, porque tudo quanto fazemos nada é, para um Deus que
merece um amor infinito e tanto sofreu por nosso amor. Razão por que o Apóstolo
dizia de si mesmo: Se pregar o Evangelho, não tenho que me gloriar disso,
porque é dever meu fazê-lo. Por dever e também por gratidão estamos obrigados a
fazer por Deus o que pudermos, e tanto mais que tudo o que fazemos é mais obra
sua do que nossa. "Quem não mofaria das nuvens, se elas se gloriassem da
chuva que nos dão?" É São Bernardo quem assim fala, e acrescenta que nas
obras dos santos os louvores devem ir menos para os que as fazem, do que para
Deus, que se serve deles para as fazer. No mesmo sentido diz Santo Agostinho,
dirigindo-se a Deus: Se algum bem há, grande ou pequeno, é de vós que ele
promana; da nossa parte só há mal.
E noutro lugar: Quem vos
apresentar como seus alguns merecimentos, que vos apresentará senão os vossos
dons?
Assim, quando fazemos algum bem,
devemos dizer ao Senhor: O que das vossas mãos temos recebido, é o que vos
retribuímos. Quando Sta. Teresa fazia ou via fazer alguma obra boa, louvava a
Deus, dizendo que dele derivava todo o bem. Dali esta advertência de Santo
Agostinho, - que, se a humildade não caminhar na vanguarda, tudo quanto
fizermos de bem se tornará presa do orgulho. Está o orgulho como de emboscada
para fazer perecer as nossas boas obras. É o que fazia dizer a São José
Calasâncio: quanto mais Deus nos favorece com graças particulares, tanto mais
nos devemos humilhar, se não queremos perder tudo.
Por um pouco de estima própria
se compromete tudo. Multiplicar atos de virtude, sem a humildade, é o mesmo que
lançar poeira ao vento, diz São Gregório. E Tritêmio ajunta: Se desprezais os
outros, tornais-vos piores que todos.
Nunca os santos se gloriam das
suas vantagens, antes procuram fazer conhecer aos outros o que pode redundar em
confusão sua. O Padre Vilanova, da Companhia de Jesus, não tinha nenhuma
repugnância em dizer a toda a gente que o seu irmão era um pobre artista. O
Padre Sacchini, da mesma Companhia, encontrando em público seu pai, que era um
pobre almocreve, correu logo a abraçá-lo, exclamando: "Ó! eis o meu
pai!" Cuidemos de ler as Vidas dos santos, e perderemos o orgulho: nelas
encontramos atos heroicos, e cuja vista coraremos de tão pouco havermos feito.
3º. Manter-se na
desconfiança de si mesmo
Em terceiro lugar, é necessário
que vivamos numa contínua desconfiança de nós mesmos. Se Deus nos não assistir,
não poderemos conservar-nos na sua graça: Se Deus não guardar a cidade, debalde
vigiará o que a guarda. Há santos que, com pouca ciência, converteram povos
inteiros. Santo Inácio de Loyola fazia em Roma discursos familiares, e até
cheios de expressões impróprias; apesar disso, como eram palavras que saíam dum
coração humilde e abrasado do amor de Deus, produziam um tal fruto, que os
ouvintes iam logo confessar-se com tantas lágrimas que mal podiam falar. Pelo
contrário, há sábios que pregam e, com toda a sua ciência e eloquência, não
convertem uma só alma. É sobre eles que recai esta palavra de Oséas: Dá-lhes um
seio estéril e peitos sem leite. Inchados com o seu saber, tais pregadores são
mães estéreis, mães apenas de nome e sem filhos.
E, se os filhos dos outros vem
pedir-lhes leite, morrerão à míngua, porque os orgulhosos só estão cheios de
vento e fumo; só têm a ciência que incha. Tal a desgraça a que os sábios estão
expostos. É difícil, como escrevia o cardeal Belarmino a seu sobrinho, que um
sábio seja muito humilde, que não despreze os outros, que não critique as suas
ações; que não se apegue ao seu próprio juízo, e se sujeite de boa vontade ao
pensar dos outros e às suas correções.
Sem dúvida, quem prega não deve
falar ao acaso; é necessário que tenha meditado e estudado; mas, depois de
termos preparado o nosso discurso, e depois de o pronunciarmos com clareza e
facilidade, devemos dizer: Servi inutiles sumus. O fruto dele não devemos
esperá-lo do nosso trabalho, mas da graça de Deus. Com efeito, que proporção
pode haver entre as nossas palavras e a conversão dos pecadores? Poderá
gloriar-se o machado, em detrimento de quem se serve dele? Terá direito a
dizer-lhe: Fui eu que cortei esta árvore; não foste tu? Somos como bocados de
ferro incapazes de nos movermos, se o próprio Deus nos não imprimir o
movimento. Disse o divino Mestre: Sem mim, nada podeis; o que Santo Agostinho
comenta assim: Não diz: Sem mim pouco podeis; mas diz: Nada podeis.
E de si mesmo diz o Apóstolo:
Por nós mesmos, nem um bom pensamento podemos formas.
Se nem um bom pensamento podemos
ter, quanto menos fazer uma boa obra! Nem o que planta, nem o que rega é coisa
alguma, só é tudo Deus, que dá o crescimento. Não são o pregador e o confessor
que por suas palavras fazem crescer as almas na virtude; é Deus quem faz tudo.
Donde São João Crisóstomo conclui: Reconheçamos a nossa inutilidade, para que
nos tornemos úteis. Assim, quando nos louvarem, devolvamos logo a honra para
Deus, único a quem ela pertence e digamos: Só a Deus a honra e a glória! E,
quando a obediência nos impuser algum cargo, ou mandar alguma ação, não nos
deixemos ir à desconfiança, considerando a nossa incapacidade; confiemos em
Deus que, falando-nos pela boca do superior nos diz: Eu estarei na vossa boca.
O Apóstolo dizia: De bom grado
me gloriarei nas minhas enfermidades, para que a virtude de Jesus Cristo habite
em mim. É o que nós devemos também dizer: devemos gloriar-nos no conhecimento
da nossa fraqueza, para adquirirmos a virtude de Jesus Cristo, a santa
humildade. Ó! que grandes coisas podem levar a cabo os humildes! Nada lhes é
difícil, diz São Leão. De fato, os humildes, confiando em Deus, operam com o
braço de Deus e conseguem quanto querem. Os que operam no Senhor crescerão em
força. São José Calasâncio dizia: "Quem quer que Deus se sirva dele para
grandes coisas, deve procurar ser o mais humilde de todos". Só ao humilde
pertence dizer: Posso tudo naquele que me conforta. Esse, à vista duma empresa
difícil, não perde a coragem, antes diz confiado: Com o auxílio de Deus faremos
grandes coisas.
Para converter o mundo, não quis
Jesus Cristo escolher homens poderosos e sábios, mas pescadores pobres e
ignorantes, porque eram humildes e não confiavam nas suas próprias forças:
Escolheu Deus as coisas fracas do mundo, para confundir os fortes... para que
nenhuma carne se glorie na sua presença.
Não nos deve lançar no desalento
a consideração dos nossos defeitos. Por dolorosa que seja a facilidade com que
recaímos nas mesmas faltas, apesar das resoluções tomadas e das promessas que
fazemos a Deus, não nos abandonemos à desconfiança, como o demônio nos insinua,
para nos precipitar em pecados mais graves. Então mais que nunca devemos avivar
a nossa confiança em Deus, servindo-nos dos próprios defeitos para mais
confiarmos na misericórdia divina, conforme a palavra do Apóstolo: Todas as
coisas concorrem para o nosso bem. A Glosa acrescenta: "Até os nossos
pecados". Por vezes permite o Senhor que se caia, ou se recaia em certa
falta, para que se aprenda a não confiar nas próprias forças, mas sim no
socorro divino. Era o que fazia dizer a Davi: Senhor, permitiste as minhas
quedas para meu bem.
4º. Aceitar as
humilhações
Em quarto lugar, para adquirir a
humildade, é necessário acima de tudo que aceitemos as humilhações, que nos
advierem, ou de Deus ou dos homens, dizendo então com sinceridade: Tenho
pecado, sou verdadeiramente culpado, e não tenho sido castigado como merecia.
Pessoas há, nota São Gregório, que se dizem pecadoras e dignas de todo o
desprezo, mas não se crêem tais; porque apenas são desprezadas ou repreendidas
logo se irritam. São muitos os que têm as aparências da humildade, diz
igualmente Santo Ambrósio, mas sem terem dela a realidade. Fala Cassiano dum
certo monge que protestava em altas vozes que era um grande pecador, indigno de
permanecer sobre a terra. Na mesma ocasião foi repreendido duma falta
considerável pelo abade Serapion: era de andar ocioso pelas celas dos outros,
em vez de estar na sua, conforme o preceito da regra. Mas logo esse monge se
perturbou, dando sinais exteriores de sua agitação.
Então lhe disse o abade:
"Como é isso, meu filho! Acabaste de te declarares digno de todos os
opróbrios, e dás-te por magoado com a advertência caridosa que te fiz?" O
mesmo acontece a muitos que desejariam ser tidos por humildes, mas que não
querem sofrer nenhuma humilhação. Homem há, diz o Sábio, que se humilha com
vistas humanas, mas tem o coração cheio de malícia. Procurar ser louvado pela
sua humildade, dizia São Bernardo, não é efeito, mas ruína da humildade. É isso
alimentar o orgulho com a ambição de ser humilde. Quem é verdadeiramente
humilde, não contente com ter de si mesmo uma baixa ideia, quer ainda que os
outros a tenham também. É humilde, diz São Bernardo, quem muda a humilhação em
humildade. Quer isto dizer que o homem verdadeiramente humilde, ao receber
desprezos, se humilha ainda mais, dizendo que bem os mereceu.
Pensemos enfim que, se não
formos humildes, não só não faremos nenhum bem, mas nem mesmo chegaremos a
salvar-nos: Se não vos converterdes, e não vos tornardes como pequeninos, não
entrareis no reino dos céus. É necessário portanto, para entrarmos no Céu,
fazermo-mos como criancinhas, não pela idade, mas pela humildade. Segundo São
Gregório, assim como o orgulho é um sinal da reprovação, a humildade é um sinal
de predestinação. E São Tiago nos dá estes aviso: Resiste Deus aos soberbos,
mas dá a sua graça aos humildes. Para os orgulhosos fecha o Senhor a sua mão e
retém as suas graças; mas abre-as para os humildes. - Sê humilde, diz o mesmo
Eclesiástico, e espera da mão de Deus todas as graças que desejares. E o nosso
Salvador diz: Na verdade, na verdade vos digo, se o grão de trigo não cair na
terra e não morrer nela, permanecerá só e estéril; mas se morrer produzirá
muito fruto.
O padre que morre ao orgulho, há
de fazer muito fruto; o que não morre a si mesmo, o que é sensível aos
desprezos, ou confia nos seus talentos, ipsum solum manet, esse permanecerá só,
e nenhum fruto produzirá, nem para si, nem para os outros.
SÉTIMA INSTRUÇÃO,
Sobre a doçura
Aprendei de mim que sou doce e
humilde do coração. A doçura é chamada a virtude do Cordeiro, isto é, de Jesus
Cristo, que sob este nome quis ser designado: Eis o Cordeiro de Deus. Enviai, ó
Senhor, o Cordeiro dominador da terra. E foi predito que ele na sua paixão se
comportaria como um cordeiro: Permanecerá mudo como um cordeiro diante do
tosquiador, e não abrirá a boca. Sou como um cordeiro cheio de mansidão, que
levam a imolar no altar. Assim a doçura foi a virtude predileta do nosso
Salvador. Mostrou ele quanto era doce, beneficiando os ingratos, respondendo
com bondade aos seus contraditores, e suportando sem se queixar os que o
injuriavam e maltratavam: Quando o maldiziam, não amaldiçoava; quando o
maltratavam, não fazia ameaças. Tendo sido flagelado, coroado de espinhos,
cuspido, pregado na cruz e coberto de opróbrios, tudo esqueceu, e orou pelos
que o tinham tratado tão indignamente.
É propondo-nos um tal exemplo
que nos exorta sobretudo à prática da humildade e da doçura.
De todas as virtudes, diz São
João Crisóstomo, é a doçura que nos torna mais semelhantes a Deus. Na verdade,
é próprio de Deus tornar bem por mal, conforme a palavra do Redentor: Fazei bem
aos que vos odeiam... para serdes verdadeiros filhos do vosso Pai que está nos
céus, e faz nascer o sol sobre os bons e os maus. E é o que ainda faz dizer a
São João Crisóstomo que são apenas os homens doces, que Jesus Cristo apelida
imitadores de Deus.
Aos que são doces é prometido o
Paraíso. "A doçura, diz São Francisco de Sales, é a flor da
caridade". E o Eclesiástico declara que um coração doce e fiel faz as
delícias do Senhor. Os que são doces não sabe Deus repeli-los. Sempre lhe são
extremamente agradáveis as orações dos humildes e doces.
Ora, a virtude da doçura
consiste em duas coisas: 1.ª em reprimir os movimentos de cólera contra os que
os provocam; 2.ª em suportar os desprezos.
§ I
É necessário reprimir a cólera
Diz Santo Ambrósio que a cólera
é uma paixão que se deve prevenir ou reprimir. Quem se sente inclinado a este
vício deve ser diligente em fugir às ocasiões; e, se tiver de encontrar-se
nelas, deve estar na firme resolução de se calar, ou de responder com doçura, e
prevenir-se com a oração, pedindo ao Senhor a força para resistir e conter-se.
Alguns, para se desculparem, dizem que tal pessoal é insuportável, que ninguém
a satisfaz... A virtude da doçura, observa São João Crisóstomo, não consiste em
usar de doçura com os doces; exige que se seja doce com os que não sabem o que
é a doçura. Em especial, quando o próximo está irritado, não há melhor meio
para o acalmar, do que responder-lhe com doçura: Uma resposta doce quebrando a
cólera. Assim como a água apaga o fogo, assim, diz São João Crisóstomo, uma
resposta doce abranda a cólera dum nosso irmão, por muito exasperado que ele
esteja.
Isto está de acordo está de
acordo com o dizer do Eclesiástico: A linguagem doce concilia muitos amigos, e
pacifica os inimigos. E o santo Doutor acrescenta: Nem o fogo se apaga com
fogo, nem o furor com furor. Mesmo com os pecadores mais pervertidos,
obstinados e insolentes, é necessário que nós, os padres, usemos da máxima
doçura possível, para os atrairmos a Deus. Não estais constituídos juízes de
crimes, para castigardes, diz Hugo de São Vitor, mas de enfermos para os
curardes.
Quando nos sentimos agitados por
algum impulso de cólera, o único remédio é calarmo-nos e pedir ao Senhor que
nos dê força para não respondermos. O melhor remédio para a cólera, diz Sêneca,
é esperar. De fato, se falarmos no fogo da paixão, o que dissermos nos parecerá
justo, embora seja de todo o ponto injusto e censurável; porque a paixão é como
um véu diante dos olhos; impede-nos de ver o alcance das nossas palavras,
conforme o pensamento de São Bernardo: O olho perturbado pela cólera vê claro.
Por vezes nos parece justo,
necessário até, reprimir a audácia dum insolvente, dum inferior, por exemplo,
que nos falta ao respeito. Então, sem dúvida, rigorosamente falando, conviria
entrar numa cólera moderada, como ensina o Doutor angélico, mas seria
necessário que isso se fizesse sem pecar, como diz Davi: Irai-vos, mas não
pequeis. Eis a dificuldade. É muito arriscado o estado de cólera: é como que
montar um cavalo fogoso, que não obedece ao freio; não se sabe até onde ele nos
levará. Por isso mesmo São Francisco de Sales nos assegura que é sempre
conveniente reprimir os movimentos da cólera, por mais justa que nos pareça a
causa dela: "Mais vale, acrescenta ele, que digam de vós que nunca vos
irais, do que dizerem que vos irais com justiça".
E, segundo Santo Agostinho,
desde que se deixa entrar a cólera na alma, com dificuldade se consegue lançá-la
fora; por isso nos aconselha que de todo lhe fechemos a porta, logo que ela se
apresente.
De mais, se o repreendido vir
que o seu superior está irado, pouco proveito colherá da correção, olhando-a
antes como efeito da cólera que da caridade. Uma repreensão feita com doçura e
rosto sereno é mais útil que mil censuras, por justas que sejam, em estado de
arrebatamento.
De resto, não exige a virtude da
doçura que, para usarmos de indulgência e não desagradarmos ao próximo,
deixemos de repreender com severidade, quando é necessário; não seria isso
virtude, antes uma falta, uma negligência indesculpável. Ali daquele, diz o
profeta que reclina os pecadores em almofadas, para que adormeçam em paz num
sono mortal! Esta complacência culpável, diz Santo Agostinho, não é caridade
nem doçura, mas negligência. Proceder assim é ser cruel para com essas pobres
almas, que se perdem à falta de quem as avise da sua desgraça. Ao tempo de ser
operado, observa São Cipriano, queixa-se um doente do cirurgião; mas depois de
curado dá-lhe os seus agradecimentos. Quer pois a doçura que, quando o dever
nos obriga a repreender o próximo, o façamos sempre com firmeza, sim, mas
também com mansidão.
Para chegarmos a este resultado,
o Apóstolo nos previne de que, antes de repreendermos os outros, consideremos
os nossos próprios defeitos, para concebermos pelo próximo toda a compaixão,
que temos para conosco: Meus irmãos, se algum pecar, vós que sois espirituais
repreendei-o com espírito de doçura, atendendo a vós mesmos, para não serdes
tentados. No dizer de Paulo de Blois, é uma coisa vergonhosa ver um superior a
corrigir com ira e azedume. Tão vil é a cólera, diz Sêneca, que até os rostos
mais belos torna horríveis. Necessário é pois que neste ponto nos conformemos
sempre com a máxima de São Gregório: Que o amor nada tenha de mole; que o rigor
não vá até exasperar o culpado; que a doçura seja indulgente, mas não
ultrapasse os limites da conveniência.
Não devem os médicos, diz São
Basílio, irritar os doentes; o que devem é curar-lhes as doenças. Conta
Cassiano que um jovem religioso, assaltado por tentações violentas contra a
castidade, foi ter com outro religioso de avançada idade, para que lhe
prestasse algum auxílio; mas este, em vez de o ajudar e reanimar, mais o
afligiu, fazendo-lhe censuras. Que aconteceu porém? O Senhor permitiu que esse
velho de tal modo fosse atormentado pelo espírito impuro, que andasse pelo
mosteiro a correr como um louco. O abade Santo Apolônio, informado do seu
procedimento indiscreto, disse-lhe então: "Fica sabendo, irmão meu, que
Deus te permitiu esta prova, para que aprendas a ter compaixão dos
outros".
Quando pois virmos as fraquezas
e quedas dos outros, longe de os invectivarmos com assomos de vaidade pessoal,
devemos ajudá-los quanto possível e humilharmo-nos. De contrário, Deus
permitirá que caiamos nas mesmas faltas que lhes censuramos. Sobre este assunto,
refere ainda Cassiano que um abade chamado Macheta confessava ter caído
miseravelmente em três faltas, que primeiro tinha condenado em seus irmãos.
Razão por que Santo Agostinho ensina que a correção sempre deve ser precedida,
não de indignação, mas de compaixão para com o próximo. E São Gregório ajunta
que a consideração dos nossos próprios defeitos não deixará de nos tornar
compassivos e indulgentes com as faltas dos outros.
Nada aproveitamos pois, nem para
nós nem para os outros, com a cólera; ou melhor, sempre ela nos prejudica;
quando nos não cause outros danos, pelo menos tira-nos a paz. Ao saber que
tinha perdido uma parte dos seus bens, o filósofo Agripino contentou-se com
dizer: "Se perdi a minha propriedade, não quero perder também a paz".
Como dizia Sêneca, as injúrias por si mesmo não nos podem causar tamanho mal,
como a cólera em que caímos ao recebê-las. Quem se irrita com os ultrajes que o
recebe, a si próprio se atormenta, segundo o pensamento de Santo Agostinho, que
assim fala ao Senhor: Vós ordenastes que toda a alma que sai da ordem seja o
algoz de si mesma.
O mestre da doçura, São
Francisco de Sales, ensina que devemos ser doces não só com os outros, mas conosco
próprios. Pessoas há que, tendo cometido alguma falta, se irritam contra si
mesmas, caiem na inquietação e depois em mil outras faltas. O demônio, dizia
São Luís de Gonzaga, pesca sempre nas águas turvas. Não devemos perturbar-nos à
vista dos nossos defeitos, porque a perturbação nesse caso é efeito do nosso
orgulho e da alta ideia que tínhamos da nossa virtude. O que então temos a
fazer é humilharmo-nos, e detestar em paz o pecado cometido, recorrendo ao
mesmo tempo a Deus, e esperando dele a força para não mais recairmos.
Em resumo: os que são
verdadeiramente humildes e doces vivem sempre em paz, e sempre conservam a
tranqüilidade no coração, aconteça o que acontecer. Foi o que Jesus Cristo lhes
prometeu: Aprendei de mim que sou doce e humilde do coração e encontrareis a
paz para as vossas almas.
E Davi tinha dito: Os que são
doces possuirão a terra, e gozarão duma paz deliciosa e profunda. Assim, São
Leão nos dá esta segurança: Não há injúria, nem perda, nem desgosto, qualquer
que seja, que perturbe a paz dum coração, em que reine a doçura. Se por
desgraça nos acontecer cair em estado de cólera, esforcemo-nos então, conforme
o conselho de São Francisco de Sales, por conter os nossos ímpetos, de pronto,
sem nos demorarmos a deliberar se convirá ou não fazê-lo. E depois de termos
tido qualquer contestação com alguém, não deixemos prolongar a perturbação dela
resultante; pratiquemos o ensino do Apóstolo: Que o sol se não ponha sobre o
vosso ressentimento; não abrais a porta ao demônio. Cuidemos primeiro de nos
pormos em paz conosco, e reconciliemo-nos depois com a pessoa contra quem nos
iramos, para que o demônio não possa com essa centelha acender em nós alguma
chama mortal, que nos faça perecer.
§ II
É necessário suportar os
desprezos
A segunda coisa, em que
principalmente consiste a doçura, é na paciência em sofrer os desprezos. Dizia
São Francisco de Assis que muitas pessoas fazem consistir a sua perfeição em
recitar muitas orações, ou fazer muitas mortificasses corporais, ao passo que
não podem suportar uma palavra injuriosa. Não compreendem elas, ajuntava o
santo, quanto lhes é mais proveitoso suportar as afrontas. Maior mérito haverá
em receber em paz uma injúria, que em jejuar dez dias a pão e água.
Segundo São Bernardo, há três
graus de virtude a que deve aspirar quem quer santificar-se: o primeiro é não
querer dominar sobre os outros; o segundo querer estar sujeito a todos; o
terceiro sofrer com paciência as injúrias. Vereis, por exemplo, que se concede
aos outros o que a vós se recusa; que o que os outros dizem é escutado; e o que
vós dizeis escarnecido; que os outros são louvados, escolhidos para empregos
honrosos e negócios importantes, e que de vós se não faz caso. Tudo quanto
fazeis vos atrai censuras e remoques; então, diz São Doroteu, sereis
verdadeiramente humildes, se aceitardes em paz todas estas humilhações, e se
recomendardes a Deus, como vossos maiores benfeitores, os que assim vos tratam,
curando o vosso orgulho, - a mais perigosa moléstia, capaz de vos dar a morte.
Sê-de pacientes na humilhação.
Eis o que nessas circunstâncias é necessário fazer: não se irritar nem se
queixar, mas receber esses desprezos como justos castigos dos próprios pecados.
Maiores humilhações se mereciam, ofendendo a Deus: merecia-se estar sob os pés
dos demônios. São Francisco de Borja, numa viagem, teve de se deitar no mesmo
leito com o seu companheiro, o Padre Bustamanto, que sofria de asma, e levou a
noite a tossir e a escarrar; julgava porém que escarrava para o lado da parede,
e era sobre o santo que o fazia, e por vezes até sobre o seu rosto. Chegado o
dia, ficou muito aflito ao ver que tinha feito, mas São Francisco disse-lhe
tranquilamente: "Meu padre, não vos aflijais com isso; porque em todo este
quarto não havia por certo lugar mais próprio para receber os vossos escarros
que o meu rosto".
Os orgulhosos crêem-se dignos de
todas as honras, e as humilhações que recebem fazem-nos exasperar na sua
soberba; os humildes, ao contrário, julgam-se dignos de todas as ignomínias, e
aproveitam-nas para mais se humilharem. É-se humilde, diz São Bernardo, quando
se demuda a humilhação em humildade. Nota o Padre Rodrigues que os orgulhosos,
ao serem repreendidos, fazem como o ouriço cacheiro: tornam-se espinhos em todo
o exterior, isto é, irritam-se, irrompem em queixas, censuras e murmurações
contra os outros. Repreendei porém um homem humilde, e ele se humilhará ainda
mais, confessará os seus erros e vos agradecerá sem se perturbar. Perturbar-se
uma pessoa ao receber uma correção, é dar sinal de que ainda está sob o jugo do
orgulho. Assim, o que em tal caso se sente perturbado, deve humilhar-se mais
profundamente diante de Deus, e suplicar-lhe que o liberte do orgulho, que
ainda reina no seu coração.
O meu nardo exalou o seu odor. É
o nardo uma pequena planta odorífera, mas que só derrama o seu perfume quando
se aperta ou esmaga. Ó! que suave perfume derrama diante de Deus uma alma
humilde, quando sofre em paz nas humilhações, folgando de se ver desprezada e
maltratada pelos outros! Interrogado o monge Zacarias sobre o que era
necessário fazer para adquirir a verdadeira humildade, tomou o seu capuz,
lançou-o ao chão, calcou-o aos pés e disse: "Quem se compraz em ser
tratado como este farrapo, é verdadeiramente humilde". Dizia o Padre
Alvarez que o tempo das humilhações é o de sairmos das nossas misérias e
fazermos larga colheita de merecimentos. Tanto o Senhor é avaro com os
orgulhosos, diz São Tiago, como liberal com os humildes.
As palavras lisonjeiras de quem
louva, diz Santo Agostinho, podem curar uma consciência culpada, e as palavras
grosseiras de quem insulta não podem ferir uma boa consciência. Tal era também
o pensamento de São Francisco de Assis, quando dizia: "Só somos de fato o
que somos diante de Deus". Pouco importa pois que os homens nos louvem ou
nos censurem, contanto que Deus nos aprove, - e certamente aprova de bom grado
os que por seu amor sofrem injúrias.
Os que são doces são queridos de
Deus e dos homens. Nada há mais edificante para o próximo, nem mais próprio
para ganhar corações para Deus, do que a doçura duma pessoa que, desprezada,
escarnecida e injuriada, se não irrita, antes recebe tudo com rosto calmo e
sereno. Nada torna os domésticos, diz São João Crisóstomo, tão amantes do seu
senhor, como veremno sempre doce e afável. Segundo Santo Ambrósio, era Moisés mais
amado dos hebreus por causa da doçura, que havia mostrado no meio dos ultrajes,
do que pelos prodígios que tinha operado. Quem possui a doçura, diz ainda São
João Crisóstomo, é útil a si próprio e aos outros. Refere o Padre Mafei que um
religioso da Cia. de Jesus, pregando no Japão, recebeu da parte dum insolente
um escarro no rosto; enxugou-o com o lenço e continuou o seu discurso, como se
nada lhe tivesse acontecido.
Ao ver isto, um dos assistentes
converteu-se à Fé: "Uma religião que ensina uma tal humildade, disse ele,
não pode deixar de ser verdadeira e divina".
Do mesmo modo, converteu grande
número de hereges a doçura de São Francisco de Sales que, sem se perturbar,
sofria todas as afrontas que lhe faziam. A doçura é uma pedra de toque: segundo
São João Crisóstomo, o meio mais seguro para se conhecer se há virtude numa
alma, é ver se ela conserva a doçura nas contrariedades. O Padre Crasset também
conta, na sua História da Igreja do Japão, que, durante a última perseguição,
um missionário agostinho, que viajava disfarçado, recebera uma bofetada sem se
abalar. Ao verem isso, reconheceram que era cristão e prenderam-no, porque os
idólatras julgaram que uma tal virtude só num cristão podia existir.
Ó! como à vista de Jesus
desprezado é fácil suportar todos os desprezos! A bem-aventurada Maria da
Encarnação, ao contemplar um dia o seu crucifixo, disse às suas religiosas:
"É possível, minhas irmãs, que nos recusemos a abraçar os desprezos, vendo
Jesus Cristo tão desprezado?" Quando Santo Inácio Mártir foi levado a Roma
para ser lançado as feras, ao ser maltratado pelos soldados, estava cheio de
consolação: É agora, dizia ele, que começo a ser discípulo de Jesus Cristo.
Pois! Que sabe fazer um cristão, se não sabe suportar alguma humilhação por
amor de Jesus Cristo? Sem dúvida, ser desprezado e injuriado, sem se mostrar
magoado e sem responder, é uma coisa muito dura para o nosso orgulho; mas é em
nos fazermos violência que está o nosso mérito, como ensina Tomás de Kempis:
"Segundo a violência que vos fizerdes assim adiantareis".
Tinha de costume uma boa
religiosa, quando lhe faziam alguma afronta, ir à presença ao Santíssimo
Sacramento e dizer: "Senhor, sou demasiado pobre para ter alguma coisa
preciosa a oferecer-vos, mas ofereço-vos este pequeno presente que acabo de
receber". Ó! Como Jesus Cristo acolhe com amor uma alma na humilhação!
Como se apressa a consolá-la e a enchê-la de graças!
Uma alma verdadeiramente amante
de Jesus Cristo sofre os ultrajes, não só com resignação, mas com prazer e
alegria. Vêde os santos apóstolos: Retiravam-se da presença do Conselho, cheios
de alegria por serem julgados dignos de sofrer desprezos pelo nome de Jesus
Cristo. A segunda parte deste texto, dizia São José Calasâncio, tem aplicação a
um grande número: "São julgados dignos de sofrer pelo nome de Jesus";
mas o mesmo não acontece com a primeira parte: "Iam cheios de
alegria". No entanto, quem se quer santificar deve pelos menos aspirar a
esta perfeição. Não é humilde, dizia o mesmo santo, quem não deseja os
desprezos. O venerável Luís du Pont não compreendia a princípio, como pudesse
um homem encontrar prazer em se ver desprezado; mas, desde que chegou a maior
perfeição, compreendeu muito bem e fez a experiência disso.
Foi o que Santo Inácio de
Loyola, descendo do Céu depois da sua morte, veio ensinar a Santa Maria
Madalena de Pazi, dizendo-lhe que a verdadeira humildade consiste em encontrar
um prazer contínuo em tudo quanto nos possa levar ao desprezo de nós mesmos.
Não gozam tanto os mundanos em serem honrados, como os santos em serem
desprezados. Quando o irmão Junípero, franciscano, recebia injúrias, estendia a
sua túnica, como para recolher pérolas. São Francisco Régis, na sua
conversação, era por vezes objeto de riso para os seus companheiros, e não só
tomava nisso prazer, mas até provocava as zombarias deles. Um dia apareceu
nosso Senhor a São João da Cruz e disse-lhe: João pede-me o que desejas. E o
santo respondeu: Senhor, sofrer e ser desprezado por amor de vós. Era o mesmo
que dizer: Senhor, ao ver que tanto sofrestes e tão desprezado fostes por meu
amor, que posso eu pedir-vos senão sofrimentos e desprezos?
Numa palavra, para concluirmos:
quem quer ser todo de Deus, e tornarse semelhante a Jesus Cristo, deve gostar
de ser desconhecido e tido por nada. Este grande preceito de São Boaventura,
sem cessar o repetia São Filipe de Néri aos seus filhos espirituais. Quer Jesus
Cristo que nos julguemos felizes e exultemos de alegria quando por seu amor nos
virmos odiados, repelidos e ridicularizados dos homens. Dá-nos a segurança duma
recompensa do Céu, proporcionada aos desprezos que tivermos levado com alegria:
Bem-aventurados sereis quando os homens vos aborrecerem, repelirem, carregarem
de afrontas, e abominarem o vosso nome, por causa do Filho do homem. - Regozijai-vos
nesse dia e exultai de alegria, porque é grande a vossa recompensa no Céu.
Que maior alegria pode ter uma
alma, do que ver-se desprezada por amor de Jesus Cristo? Então, diz São Pedro,
obtém ela a maior honra a que pode aspirar, por isso que Deus a trata como
tratou o seu próprio Filho: Se fordes injuriados por causa do nome de Jesus
Cristo, sereis ditosos, porque então repousarão sobre vós a verdadeira honra, a
verdadeira glória e a verdadeira virtude que vem de Deus, assim como o seu
Espírito.
OITAVA INSTRUÇÃO,
Sobre a mortificação, e
especialmente sobre a mortificação interior
§ I
Necessidade da mortificação em
geral
Deus criou o homem reto e justo,
de modo que a carne obedecia sem repugnância ao espírito e o espírito a Deus.
Sobreveio o pecado, e transtornou esta bela ordem. Desde esse momento, começou
a vida do homem a ser uma guerra contínua: Porque a carne tem apetites
contrários ao espírito, e o espírito tem desejos contrários à carne. Era o que
arrancava gemidos ao Apóstolo: Sinto nos meus membros uma outra lei, que está
em oposição com a lei do meu espírito, e me sujeita à lei do pecado.
Donde deriva que há no homem
duas vidas: a dos anjos que só aspiram a fazer a vontade de Deus, e a dos
irracionais, que só tendem a satisfazer os seus apetites. Se o homem cuida de
fazer a vontade de Deus, torna-se anjo; se procura lisonjear os sentidos,
brutaliza-se. Por isso o Senhor incumbiu a Jeremias esta missão: Eu te
estabeleci para que arranques e destruas, para que edifiques e plantes. É o que
temos a praticar: devemos plantar em nós a virtudes; mas é necessário que
primeiro arranquemos as ervas más. Para isso precisamos de ter sempre na mão a
foice da mortificação, para cortar os apetites desordenados, que as raízes
corrompidas da concupiscência, sem cessar fazem nascer em nós. Sem isso, a
nossa alma se tornará um matagal de vícios.
Devemos purificar o nosso
coração, se queremos ter a luz necessária para conhecer o Bem supremo que é
Deus: Felizes os de coração puro, porque eles verão a Deus. Eis por que Santo
Agostinho disse: Quereis ver a Deus? Pensai primeiro em purificar o vosso
coração. Isaías faz esta pergunta: A quem ensinará Deus a ciência? E responde:
Aos ablatados e que já se não alimentam de leite. Não dá Deus a ciência dos
santos, - que consiste em conhecê-lo e amá-lo, - senão aos que estão
divorciados e desapegados dos prazeres do mundo. Quanto ao homem animal, esse
não compreende as coisas do Espírito de Deus. Aquele que, à semelhança do
bruto, só pensa em abarrotar-se de prazeres sensuais, esse não é capaz de
compreender a excelência dos bens espirituais.
Diz São Francisco de Sales que
assim como o sal preserva a carne da corrupção, assim a mortificação preserva o
homem do pecado. Na alma em que reina a mortificação, reinarão as outras
virtudes. Lê-se nos Salmos: Dos vossos vestidos se exala um odor de mirra, de
aloes e de âmbar. Palavras que o abade Gueric comenta assim: Se começardes por
derramar um odor de mirra, mediante a mortificação das paixões, derramareis
também o odor de todas as virtudes. É precisamente o que exprime a Esposa dos
Cânticos: Colhi a minha mirra com os outros aromas.
Toda a nossa santidade e a
própria salvação consistem na imitação de Jesus Cristo: Os que escolheu também
os predestinou para serem retratos fiéis do seu Filho. Jamais porém poderemos
seguir a Jesus Cristo, se não começarmos por renunciar a nós mesmos, e não
abraçarmos a mortificação, - a cruz que ele nos convida a levar: Se alguém
quiser vir atrás de mim, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me. A vida
do nosso Redentor foi toda cheia de dores, sofrimentos e humilhações. É o que
dele diz Isaías: Um homem desprezado, o último dos homens, um homem de dores. À
semelhança duma mãe que aleita o seu filho doente, e para o curar toma remédios
amargos, assim o nosso Salvador, dizia Sta. Catarina de Sena, quis tomar sobre
si todas estas penas para nos curar a nós, pobres doentes. Se Jesus Cristo
porém tanto sofreu por nosso amor, justo é que nós soframos por amor dele.
É pois para nós um dever
fazermo-nos tais quais São Paulo nos quer: Trazendo sempre nos nossos corpos a
imolação de Jesus, para que também a vida de Jesus se manifeste nos nossos
corpos. E assim nós faremos, diz Santo Anselmo sobre esta passagem, se à
imitação do Apóstolo mortificarmos assiduamente a nossa carne. Este dever
particularmente nos incumbe a nós padres, que de contínuo celebramos os
mistérios da paixão de nosso Senhor. É a reflexão de Hugo de São Vítor.
Os meios principais para
adquirir a santidade são a oração e a mortificação, representadas nas sagradas
Escrituras pelo incenso e a mirra: Quem é aquela que sobe do deserto, como uma
coluna de fumo odorífero de mirra e incenso? O texto ajunta: E de todos os
polvilhos aromáticos; o que significa que a oração e a mortificação conduzem a
todas as virtudes. Ambas portanto são necessárias para santificar uma alma, mas
a mortificação deve preceder a oração. O Senhor primeiro convida as almas a
segui-lo ao monte da mirra, depois à colina do incenso. Segundo São Francisco
de Borja, é a oração que introduz no coração o amor divino; mas é a
mortificação que prepara a morada, retirando a terra que impediria o amor de
entrar lá. Se se vai à fonte colher água com um vaso cheio de terra, só se
trará lama; é necessário despejar a terra antes de colher a água.
"A oração sem a
mortificação, dizia o Padre Baltasar Alvarez, é uma ilusão ou dura pouco".
E segundo Santo Inácio de
Loyola, uma alma mortificada une-se mais a Deus, num quarto de hora de oração,
do que outra em muitas horas. Por isso mesmo, tendo ele ouvido louvar uma
pessoa como muito adiantada em oração, disse: "É um sinal de que há de ser
duma grande mortificação".
§ II
Necessidade da mortificação
interior
Temos uma alma e um corpo. A
mortificação exterior é necessária para reprimir os apetites desordenados do
corpo; a mortificação interior, para refrear as afeições desordenadas da alma.
Tudo isto está compreendido nestas palavras do nosso Salvador: Se alguém quer
seguir-me, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz... A mortificação exterior
é-nos necessária, como veremos mais tarde. Mas a principal e mais necessária é
a mortificação interior, expressa nestes termos: Renuncie a si mesmo. Esta
consiste em sujeitar à razão as paixões desordenadas: a ambição, a cólera, a
vaidade, o apego ao interesse, à opinião própria, à própria vontade etc. Temos
a levar duas cruzes, diz Santo Agostinho, uma corpórea e outra espiritual. Esta
última é a mais sublime e consiste em governar os movimentos da alma.
A mortificação tem por objeto
resistir aos apetites da carne, para a submeter ao espírito; a mortificação
interior tem de resistir às afeições do coração, para as sujeitar à razão e a
Deus, motivo por que o Apóstolo o apelida - circuncisão do coração. Por si
mesmas não são más as paixões, são indiferentes; mais ainda, quando
convenientemente dirigidas pela razão, volvem-se úteis, porque aproveitam à
conservação do nosso ser; quando se opõem à razão, tornam-se a ruína da alma.
Desgraçada a alma que Deus abandona aos seus próprios caprichos! É o castigo
mais terrível que o Senhor lhe pode infligir, como ele próprio declara:
Entreguei-os aos desejos dos seus corações; seguirão os seus caprichos.
Precisamos portanto de fazer incessantemente a Deus esta súplica de Salomão:
Senhor, não me abandoneis à mercê das minhas paixões.
O nosso principal cuidado deve
ser o de nos vencermos a nós mesmos: Vince te ipsum. Parece que Santo Inácio de
Loyola não sabia dar aos outros ensino mais importante que este: vencer o amor
próprio, quebrar a própria vontade, tal era o assunto ordinário dos seus
discursos familiares; porque dizia que, de cem pessoas que fazem oração,
noventa permanecem presas aos seus modos particulares de sentir. Um ato de
mortificação da própria vontade valia mais a seus olhos que muitas horas de
oração, abundantes em consolações espirituais. Retirava-se um irmão da
companhia dos outros, para se corrigir de certo defeito; o santo lhe disse que
alguns atos de mortificação em tal caso lhe seriam mais proveitosos, que um ano
de silêncio numa gruta. Não é coisa pequena, diz Tomás de Kempis, renunciar a
si próprio em coisas pequenas. E São Pedro Damião afirma que de nada servirá
ter uma pessoa deixado tudo, se não se deixar a si mesma.
Daí a advertência de São
Bernardo a quem deseja renunciar a tudo, para se dar a Deus: Vós que pensais em
deixar tudo, lembrai-vos de vos deixardes a vós mesmos, no número das coisas a
deixar. Jamais poderá seguir a Jesus Cristo, acrescenta ele, quem não renunciar
a si próprio. O nosso Salvador lançou-se como um gigante para percorrer a sua
via. Trilhar de perto as pisadas de Jesus Cristo, que corre, diz ainda São
Bernardo, é impossível a quem o quer seguir, carregado com o peso das suas
paixões e afeições terrenas.
É sobretudo necessário cuidar de
vencer a paixão predominante. Alguns há que se mortificam em muitas coisas, mas
descuidam-se de domar a paixão a que são mais inclinados; esses não podem
adiantar no caminho de Deus. Quem se deixa dominar de qualquer paixão, estão em
grande perigo de se perder. Pelo contrário, quem chega a vencer a sua paixão
predominante, triunfará facilmente de todas as outras. Quando o inimigo mais
poderoso é derrubado, torna-se fácil a vitória sobre os outros, que dispõem de
menores forças. Além disto, a honra e merecimento da vitória, medem-se pela
magnanimidade, que ela demandava.
Tal homem, por exemplo, não será
apaixonado pelo dinheiro, mas será demasiado cioso da sua reputação; outro não
se importará de honras, mas será idólatra das riquezas: se o primeiro não
trabalhar em se mortificar, ao ver-se desprezado dos outros, de pouco lhe
aproveitará desprezar o dinheiro; do mesmo modo, se o segundo não cuidar de
reprimir a sua avareza, de pouco lhe servirá desprezar as honras. Numa palavra,
quanto maior violência cada um se fizer para se vencer, tanto maior mérito e
proveito alcançará, como diz Tomás de Kempis: Adiantareis à proporção da
violência que vos fizerdes. Santo Inácio era dum caráter violento e arrebatado,
mas a virtude tornou-o tão doce, que parecia dum natural brando e calmo. São
Francisco de Sales era também muito propenso à ira; mas, pela violência que se
fez, tornou-se, como se lê na sua Vida, um modelo de paciência e doçura, no
meio das injúrias e calúnias, com que foi perseguido.
Sem a mortificação interior,
pouco aproveita a exterior. De que serve a uma pessoa extenuar-se com jejuns, e
encher-se de orgulho? Que lhe aproveita abster-se de vinho, e embriagar-se de
raiva? No dizer do Apóstolo, é necessário que nos despojemos do homem velho,
isto é, do amor próprio, e nos revistamos do homem novo, isto é, de Jesus
Cristo, que nunca teve complacência em si, como nota São Paulo. Era o que fazia
gemer São Bernardo, sobre o estado desgraçado dalguns monges que, mostrando nos
seus hábitos aparências de humildade, conservavam no interior as suas paixões.
Estes religiosos, dizia, não se despojam dos seus vícios: o que fazem é
cobrir-se com sinais postiços de penitência. Quem permanecer apegado a si mesmo
e às suas coisas, pouco ou nenhum fruto colherá dos seus jejuns, vigílias,
cilícios e disciplinas.
§ III
Prática da mortificação interior
Quem quer ser todo de Deus, diz
São João Clímaco, deve desapegar-se principalmente de quatro coisas: bens,
honras, parentes, e sobretudo da própria vontade.
1º. Dos bens
Em primeiro lugar, é necessário
cortar todo o apego aos bens e ao dinheiro. Diz São Bernardo que as riquezas
carregam o que as possui, mancham o que as ama, e afligem o que as perde. Deve
o padre lembrar-se que, desde a sua entrada para a Igreja, protestou que não
queria nenhuns outros bens além de Deus, dizendo: É o Senhor a herança que me
coube em partilha; sois vós que me pondes de posse da minha herança. Assim,
segundo São Pedro Damião, o clérigo que primeiro escolheu a Deus para sua
herança e depois se enriquece, faz uma grande injúria ao seu Criador: "Se
pois Deus é a sua herança, diz ele, parece fazer uma afronta não medíocre ao
seu Criador, quem, não contente com este tesouro incomparável, ainda cobiça
dinheiro e bens terrenos". Com efeito, esse dá a entender que não lhe
basta Deus para o contentar. Afirma São Bernardo, e é verdade, que os piores
avarentos são os eclesiásticos apegados às riquezas.
Quantos padres que nunca diriam
missa, sem a miserável retribuição! E prouvera a Deus que tais padres nunca
celebrassem! No dizer de Santo Agostinho não buscam esse dinheiro para servirem
a Deus, antes servem a Deus para ajuntarem dinheiro. Que vergonha, exclama São
Jerônimo, ver um padre ocupado a entesourar!
Mas, ponhamos de lado esta
vergonha, e falemos do grande perigo, que corre a salvação dum padre, que quer
ajuntar dinheiro e bens. Sim, exclama Santo Hilário, colocam-se num grande
perigo os padres que se afadigam a encher os seus cofres e a aumentar a sua
fortuna. Foi o que o Apóstolo nos advertiu, dizendo que os escravos da avareza,
além de serem atormentados por muitos cuidados e inquietações, que lhes impedem
todo o proveito espiritual, caem em tentações e desejos que os conduzem à
ruína. De fato, a que excessos não arrasta a cobiça certos padres? Roubos,
injustiças, simonias, sacrilégios! Quem amontoa ouro, desperdiça a graça, diz
Santo Ambrósio. São Paulo compara o avarento ao idólatra, e com razão, porque o
avarento faz do dinheiro o seu Deus, isto é, o seu último fim.
Tirai a paixão do dinheiro, diz
São Crisóstomo, e tereis posto fim a todos os males. Se queremos pois possuir a
Deus, despojemo-nos de todo o apego aos bens da terra, dizia São Filipe de
Néri: "Quem deseja riquezas nunca será santo". Para nós padres não
consistem as riquezas nos bens temporais, mas sim nas virtudes; estas farão a
nossa grandeza no Céu, depois de nos terem feitos vitoriosos na terra, contra
os inimigos da nossa salvação. É o pensamento de São Próspero: As nossas
riquezas são a castidade, a piedade, a humildade, a doçura; nelas estão os bens
que devemos ambicionar, e que farão a um tempo a nossa honra e a nossa força.
Dóceis à exortação do Apóstolo, contentemo-nos com um pouco de alimento para
nos sustentarmos e com um modesto vestido para nos cobrirmos. Ponhamos todos os
nossos cuidados em nos santificarmos; é o que mais nos importa.
De que servem os bens desta
terra, que um dia se têm de deixar, e ao presente são incapazes de satisfazer o
nosso coração! Cuidemos de adquirir os bens que havemos de levar conosco, e nos
hão de fazer felizes no Paraíso, conforme a palavra do nosso Salvador: Não
ajunteis tesouros na terra, onde a ferrugem e os vermes os roeriam... Amontoai
tesouros no Céu. Daqui a recomendação do Concílio de Milão aos padres:
Thesaurisate, non thesauros in terra, sed bonorum operum et animarum in coelis.
As boas obras e as almas conquistadas para Jesus Cristo, tais devem ser os
tesouros do padre.
Por isso se a Igreja proibiu com
tanto rigor, e até sob censura o comércio aos eclesiásticos, conforme o
preceito do Apóstolo: O que está alistado na milícia de Deus, não se embebe nos
negócios do século; só pensa em agradar ao senhor a quem serve. O padre
consagrou-se a Deus; só deve pois ocupar-se dos interesses da sua glória. Não
aceita o Senhor sacrifícios vazios, destituídos de substância; assim, Davi lhe
dizia: Eu vos oferecerei holocaustos cheios de medula. Quando um padre se
dissipa no meio dos negócios do mundo, diz São Pedro Damião, os sacrifícios que
oferece a Deus, - como a missa, o ofício e os exercícios de piedade, - são
sacrifícios vazios, porque lhes tira a substância, isto é, a atenção e a
devoção, e só oferece a pele da vítima, a aparência exterior.
Que tristeza ver um padre, que
tem o poder de salvar almas e fazer grandes coisas para glória de Deus, ocupado
a comprar e a vender animais ou grãos, empenhado em associações mercantis de
lucros e perdas! Estais adidos a coisas demasiado altas para descerdes a coisas
tão vis, diz Pedro de Blois.
Entregar-se um padre a negócios
terrenos, que outra coisa é que trabalhar em tecer teias de aranha? Do mesmo
que a aranha se esgota a fazer a sua teia, para caçar uma mosca, assim, ó Céu!,
um padre se esgota perdendo o seu tempo e o fruto das suas obras espirituais, -
para quê? Para adquirir um pouco de pó! Afagida-se, diz ainda São Boaventura, e
mirra-se por ninharias, podendo possuir a Deus, soberano Senhor do universo!
Mas, dir-se-á talvez: eu faço as
coisas com probidade; negocio, é verdade, mas sem faltar à minha consciência. -
Respondo, em primeiro lugar, que o negócio, por justo que seja, é proibido aos
eclesiásticos, como acima se viu; donde se segue que, fazendo-o, embora se não
peque contra a justiça, peca-se pelo menos contra a lei da Igreja. Além disto,
responde São Bernardo: Assim como um rio escava as terras que atravessa, assim
o cuidado dos negócios arranha a consciência, isto é, sempre a fere em alguma
coisa. Quando nisso não houvesse outro mal, ajunta São Gregório, a multidão
turbulenta dos pensamentos terrenos fecha o ouvido do coração, e não lhe
permite ouvir a voz de Deus. Afastai-vos do amor divino, na medida em que vos
dais aos negócios temporais. É verdade que os padres algumas vezes são
obrigados por caridade a tratar dos negócios da sua família, mas isso não se
deve permitir, diz Gregório, senão no caso de pura necessidade.
O que se vê é que é que alguns,
sem necessidade, se ingerem nos negócios da família, e até impedem os seus
parentes de assumirem essa gerência. Mas, se queriam trabalhar para a sua
própria casa, para que se consagraram ao serviço da casa de Deus?
Também é muitíssimo arriscado
para os padres o servirem na corte dos grandes. Diz Pedro de Blois que assim
como os justos de salvam através de muitas tribulações, também os que se fixam
nas cortes se condenam por muitas tribulações. Igualmente se expõe a grande
perigo o padre, quando se faz advogado de causas. Não é na praça que se
encontra a Jesus Cristo, diz Santo Ambrósio. Faço apenas esta pergunta: que
fundo de espiritualidade se poderá encontrar num padre que exerça a advocacia?
Com que devoção poderá ele recitar o ofício divino, celebrar a santa missa,
quando as dificuldades dos processos lhes absorverem o espírito, e o impedirem
de pensar em Deus? As causas que o padre deve advogar são as dos pobres
pecadores; são eles os clientes que deve livrar da escravidão do demônio e da
morte eterna, pelos seus sermões e confissões, ou ao menos por seus bons
conselhos e orações. Deve evitar os processos alheios e até quanto possível os
seus.
Todos os processos relativos a
coisas temporais são uma fonte de inquietações, ódios e pecados. Por isso o
divino Mestre disse: A quem quiser litigar para vos despojar da túnica,
cedei-lhe também a capa. Sabe-se que isto é apenas um conselho; no entanto
procuremos evitar ao menos os processos de somenos importância. Creio bem que
uma miserável vantagem temporal, que alcanceis, vos fará perder muito mais do
repouso da vossa alma e do vosso corpo. Resignai-vos a perder alguma coisa, diz
Santo Agostinho, para poderdes pensar antes em Deus do que em processos; perdei
dinheiro, para comprardes sossego. Segundo São Francisco de Sales, pleitear sem
cair em loucuras, é somente privilégio dos santos; por isso São João Crisóstomo
condenava os pleiteantes.
Que diremos do jogo? É certo, à
face dos Cânones, que jogar, com freqüência e por tempo considerável, jogos de
azar, em que se arrisquem grossas quantias, é pelo menos, quando houver
escândalo, um pecado mortal. Quanto aos outros jogos, chamados de passatempo,
não me proponho a decidir aqui, se por si mesmo, são lícitos ou ilícitos: digo
apenas que tais divertimentos por certo convém pouco a um ministro de Deus, que
não tem tempo de sobra para se dar ao jogo, desde que queira cumprir as suas
obrigações, para consigo próprio e para com o próximo. Leio Em São João
Crisóstomo: Foi o demônio que dos jogos fez uma arte. E eis o pensar de Santo
Ambrósio: Entendo que devemos evitar, não só o abuso do jogo, mas todo e
qualquer jogo. No mesmo lugar diz que é muito lícito o recreio, mas o que não
perturbar a boa ordem da vida, nem repugnar ao nosso estado.
2º. As honras
Em segundo lugar, deve o padre
afastar do seu coração o apego às honras do mundo. Diz Pedro de Blois que a
ambição causa a ruína das almas. Transtorna ela com efeito toda a ordem duma
vida boa, e destrói o amor para com Deus. O mesmo autor acrescenta que a
ambição macaqueia a caridade, mas ao inverso: A caridade sofre tudo, mas pelos
bens eternos; a ambição sofre tudo, pelos bens caducos. A caridade é cheia de
doçura para com os pobres, a ambição o é também, mas para com os ricos. A
caridade suporta tudo para agradar a Deus; a ambição suporta tudo para
contentar a sua vaidade. A caridade crê e espera tudo o que se refere à vida
eterna, e a ambição tudo quanto respeita à glória desta vida.
Ó! que espinhos, que temores,
censuras, recusas e ultrajes, não tem a sofrer o ambicioso para conseguir uma
dignidade, um emprego, exclama Santo Agostinho! E que obtém afinal? Apenas um
pouco de fumo, cuja posse o não satisfaz, e que a morte em breve dissipa! Vi o
ímpio exaltado e erguido como os cedros do Líbano; passei além, e ele já não
existia. Diz ainda a Escritura que a honra se demuda em ignomínia para quem a
procura. E quanto mais alta é a honra, ajunta São Bernardo, tanto mais
desprezado é dos outros o indigno que a procurou. De fato, quanto mais a
dignidade é elevada, tanto mais o sujeito indigno que a ambiciona faz conhecer
a sua indignidade, como nota Cassiodoro.
A isto importa ajuntar o grande
perigo, a quem os empregos vistosos expõem a salvação eterna. Visitava o Padre
Vicente Carafa um seu amigo enfermo, a quem acabava de ser conferido um emprego
muito rendoso, mas muito arriscado, e como o doente lhe pedia que lhe obtivesse
de Deus a saúde, respondeu-lhe: "Não, meu amigo, não quero trair a amizade
que vos consagro: agora chama-vos Deus para a outra vida, porque vos quer
salvar; se vos prolongasse a vida na terra, não sei se com este emprego vos
salvaríeis". Com efeito, o seu amigo morreu, e morreu cheio de consolação.
São para temer sobretudo os
cargos relativos à salvação das almas. Diz-nos Santo Agostinho que muitos lhe
tinham inveja por ser bispo, ao passo que ele se afligia, por causa do perigo a
que a sua dignidade o expunha. Quando São João Crisóstomo se viu elevado ao
episcopado, ficou possuído dum terror tal, como ele próprio escreveu, que
sentia a sua alma como que a arrancar-se-lhe do corpo: tanto lhe parecia
duvidosa, dizia, a salvação dum pastor de almas. Ora, se os santos, erguidos
mau grado seu às dignidades eclesiásticas, tremem com o pensamento das contas
que hão de dar a Deus, - como não tremerá quem por ambição se ingere num cargo
de almas? Deve um encargo ser proporcionado às forças de quem o tem, diz Santo
Ambrósio; de contrário, o deixará cair por fraqueza e o quebrará. O homem fraco
que mete os ombros a um fardo pesado, em vez de o transportar será esmagado por
ele.
Segundo Santo Anselmo, o que
procura cargos eclesiásticos por todos os meios, justos e injustos, não os
recebe, arrebata-os. Os que vemos que por si mesmos se intrometem na cultura da
vinha do Senhor, não são obreiros, mas sim ladrões. É o que está de acordo com
o que o próprio Deus outrora declarou pela boca de Oséas: Reinam eles, mas não
por escolha minha. Donde resulta, como dizia São Leão, que a Igreja, governada
por esses ministros ambiciosos, em vez de ser servida e honrada, é antes
vilipendiada e manchada por eles.
Observemos pois este belo
preceito de Jesus Cristo: Procura sentar-te no último lugar. Quem está sentado
no chão não tem medo de cair. Não somos senão pó e cinza. Ora, não convém à
cinza estar em lugar alto, nota o Doutor angélico, - onde estaria exposta a ser
dissipada pelo vento. Feliz o padre que pode dizer: Antes quero ocupar o último
lugar na casa do meu Deus, do que habitar nos aposentos dos pecadores.
3º. Os pais
Em terceiro lugar, é necessário
que o padre se despoje do apego a seus pais. Disse Jesus Cristo: Quem não
aborrece seu pai e sua mãe... não pode ser meu discípulo. Mas como havemos de
aborrecer nossos progenitores? Devemos deixar de os atender todas as vezes que
eles se oponham ao nosso bom espírito, conforme a explicação dum sábio autor:
Se eles obstam a que o seu filho padre acomode a sua vida à disciplina da Igreja,
e tentam obrigá-lo a ocupar-se dos seus negócios temporais, deve evitá-los como
inimigos que o afastam dos caminhos de Deus. O mesmo diz São Gregório: Os que
nos embargam de trilhar o caminho de Deus, devemos olhá-los como estranhos, e
até aborrecê-los (aborrecer-lhes o procedimento) e fugir deles. E Pedro de
Blois: Só é eleito para ser sacerdote na casa do Senhor o que diz a seu pai e
sua mãe: Não sei quem sois. Quem quer servir a Deus, diz Santo Ambrósio, deve
separar-se da sua família.
Devem-se honrar os pais; mas é
necessário antes de tudo obedecer a Deus, diz Santo Agostinho. E, segundo São
Jerônimo, deixar de obedecer a Deus para testemunhar aos seus uma grande
afeição, não é piedade filial; é antes impiedade para com Deus.
Declarou o nosso Redentor que
tinha vindo ao mundo para nos separar dos nossos pais. E porque? Porque no
negócio da salvação os nossos pais são (podem ser) os nossos maiores inimigos:
Et inimici hominis, domestici ejus. São Basílio nos adverte, por conseqüência,
que evitemos como uma tentação diabólica o tomarmos encargo dos bens do nosso
próximo.
Que pena ver um padre, que podia
salvar almas, ocupado a governar uma casa, a cuidar de animais e doutras coisas
semelhantes! Como! exclama São Jerônimo, abandonará um padre o serviço do seu
Pai celeste, para comprazer com o seu pai da terra? Quando se trata, acrescenta
ele, de ir aonde o serviço de Deus chama, deve o filho saltar, se preciso for,
por cima do corpo do seu pai: "Desertarei eu das bandeiras do Cristo por
causa de meu pai? Que fazes tu na casa paterna, ó soldado efeminado? Porque não
estás no campo e nas trincheiras? Ainda mesmo que visses o teu pai estendido
sobre o limiar da porta, seria necessário que passasses por cima dele, para
voares de olhos enxutos para o estandarte da Cruz. O único modo de mostrar
piedade neste caso é ser cruel".
De Santo Antônio abade refere
Santo Agostinho que queimava as cartas recebidas de seus pais, dizendo: Para
que me não queimeis, é que eu vos queimo. Deve desprender-se de seus pais, quem
quer estar unido a Deus. De contrário, ajunta Pedro de Blois, o amor do sangue
em breve sufocará o amor de Deus.
É difícil encontrar Jesus Cristo
no meio dos parentes; por isso São Boaventura dizia: Ó meu bom Jesus, se vós
não pudestes ser encontrado entre os vossos parentes, poderei eu encontrar-vos
entre os meus? Quando Maria tornou a encontrar Jesus no Templo e lhe disse - Meu
filho, porque procedeste assim conosco? o nosso Salvador tornou-lhe como
resposta: Porque me procuráreis? não sabíeis que me devo ocupar do que respeita
ao serviço de meu Pai? Tal a resposta que o padre deve dar a seus pais, quando
eles o quiserem encarregar dos seus negócios domésticos: Sou padre, só me posso
ocupar das coisas de Deus; a vós, que sois seculares, é que vos pertence cuidar
dos negócios do século.
É precisamente este o sentido
das palavras, que o Senhor dirigiu ao jovem, que convidou para seu discípulo, e
lhe pediu permissão para ir fazer o enterro a seu pai: Deixa lá os mortos a
sepultarem os seus mortos.
4º. A vontade própria
Finalmente, acima de tudo, é
necessário o desapego da própria vontade. Dizia São Filipe de Néri que a
santidade consiste em quatro dedos de testa, isto é, na mortificação da própria
vontade. Mortificar a própria vontade, dizia Luís de Blois, é fazer uma coisa
mais agradável a Deus, do que ressuscitar mortos. Eis por que muitos
sacerdotes, curas de almas e até bispos, não contentes com passarem uma vida
exemplar e apostólica, quiseram entrar em algum instituto religioso para
viverem debaixo da obediência, persuadidos e com razão de que se não pode fazer
a Deus sacrifício mais agradável, que o da própria vontade. Nem todos somos
chamados ao estado religioso, mas quem quiser trilhar o caminho da perfeição,
além da obediência devida ao seu prelado, deve ao menos sujeitar a sua vontade
à autoridade dum pai espiritual, que o dirija em todos os exercícios de
piedade, e mesmo nos negócios temporais de maior importância, quando esses
interessem ao bem da sua alma.
O que se faz por gosto ou não
aproveita, ou aproveita pouco: Até no vosso jejum se encontra a vossa vontade.
Donde São Bernardo conclui: Grande mal é a vontade própria, que faz que as
vossas boas obras não sejam boas para vós. Não há para nós inimigo maior que a
vontade própria. Tirai a vontade própria, dizia ainda São Bernardo, e não
haverá mais inferno. Está o inferno cheio de vontades próprias. Qual é com
efeito a causa dos nossos pecados, senão a própria vontade? O próprio Santo
Agostinho confessa que, quando vivia no pecado, se sentia instado pela graça a
deixá-lo, mas resistia pela sua parte, retido por uma só cadeia, - a sua
vontade própria. Segundo São Bernardo, tão oposta é a Deus a vontade própria,
que até o destruiria, se Deus pudesse ser destruído. Escrevia além disto que
fazer-se discípulo de si mesmo, é querer aprender dum louco.
Importa-nos saber que todo o
nosso bem consiste em nos unirmos à vontade de Deus: Na sua vontade está a
vida.
O Senhor, porém, ordinariamente
falando, não nos faz conhecer a sua vontade senão por meio dos nossos
superiores, isto é, dos prelados e diretores, a quem diz: Quem vos escuta, a
mim escuta; e acrescenta: E quem vos despreza, a mim despreza. Assim, na
Eucaristia se diz que é uma espécie de idolatria não obedecer aos superiores.
Por outro lado, São Bernardo nos assegura que, embora as prescrições do nosso
pai espiritual não impliquem um pecado manifesto, devemos recebê-las com
inteira confiança, como se derivassem do próprio Deus.
Feliz quem, no momento da morte,
pudesse dizer como o abade João: Nunca fiz a minha vontade, e nunca ensinei
nada aos outros, que primeiro não tivesse praticado. Cassiano, que cita este
exemplo, ensina que mortificar a vontade própria, é cortar a raiz de todos os
vícios. Também lemos nos Provérbios: O homem obediente será vitorioso nas suas
palavras; e noutro lugar: Mais vale a obediência que os sacrifícios. Na verdade,
oferecer a Deus esmolas, jejuns e penitências, é oferecer-lhe apenas uma parte
da vítima; dar-lhe a própria vontade, render-lhe obediência, é dar-lhe tudo
quando se possui. Então se lhe pode dizer: Senhor, depois do sacrifício da
minha vontade, nada me resta a oferecer-vos. - Por esta razão São Lourenço
Justiniano afirma que quem faz a Deus o sacrifício da própria vontade obterá
quanto quiser.
O mesmo Senhor promete, ao que
renuncia à própria vontade para lhe agradar, elevá-lo acima da terra e torná-lo
um homem todo celestial.
Meios para se vencer a si mesmo
Quanto aos meios a empregar para
se vencer a si mesmo e domar todas as paixões desordenadas, ei-los aqui.
I. - A oração: quem ora consegue
tudo. Oratio, cum sit una, omnia potest, diz São Boaventura. E o próprio Jesus
Cristo disse: Pedi tudo quanto desejardes e ser-vos-á concedido.
II. - Fazer-se violência com uma
resolução firme; uma vontade forte triunfa de tudo.
III. - Examinar-se sobre a
paixão que tem a combater, impondo-se alguma penitência cada vez que sucumbir.
IV. - Reprimir os desejos
desregrados. Dizia São Francisco de Sales: "Quero poucas coisas; e o que
quero, com muita moderação o quero".
V. - Mortificar-se nas pequenas
coisas, e mesmo nas permitidas. É assim que se ganha disposição para triunfar
nas ocasiões mais importantes. Convirá por exemplo: privar-se de dizer certo
gracejo, reprimir certa curiosidade, não colher determinada flor, não abrir
logo uma carta, renunciar a certa empresa, fazendo um sacrifício a Deus, sem se
inquietar com o desaire que lhe advier. Que fruto temos colhido nós de tantos
gostos que havemos procurado e de tantas empresas coroadas de bom êxito? Se em
ocasiões tais nos houvéramos mortificado, quantos merecimentos teríamos
ajuntado diante de Deus! Procuremos de futuro ganhar alguma coisa para a
eternidade, considerando que cada dia nos aproximamos mais da morte. À
proporção que nos mortificarmos, diminuiremos os sofrimentos no Purgatório, e
aumentaremos a glória eterna no Paraíso. Neste mundo estamos de passagem; em
breve nos encontraremos na eternidade.
Em conclusão, dir-vos-ei com São
Filipe de Néri: "Insensato, quem não se santifica".
NONA INSTRUÇÃO,
Sobre a mortificação exterior
§ I
Necessidade da mortificação
exterior
Ensina São Gregório de Nazianzo
que ninguém é digno de ser ministro de Deus e de oferecer o sacrifício do
altar, se não começar por se sacrifica a Deus por completo. Tal é também a
linguagem de Santo Ambrósio: É verdadeiramente agradável a Deus o sacrifício,
quando começamos por nos oferecermos como hóstias, para depois sermos dignos de
apresentar as nossas oferendas. E o próprio Redentor disse: Se o grão de trigo
não cair na terra e nela não morrer, permanecerá só; mas, se morrer, produzirá
muito fruto. Assim, quem quer produzir frutos de vida eterna, deve morrer a si
próprio, isto é, nada desejar para sua própria satisfação, e aceitar tudo
quanto mortifique a carne. Quem está morto para si mesmo, diz Lansperge, deve
viver neste mundo como se não visse nem ouvisse nada, como se nada lhe pudesse
causar dor ou prazer, senão Deus.
Quem quiser salvar a sua vida,
perdê-la-á; mas quem a perder por mim, tornará a readquiri-la. Ó ditosa perda,
exclama Santo Hilário, perder todos os bens deste mundo, e até a vida para
seguir a Jesus Cristo e alcançar a vida eterna! No sentir de São Bernardo, se
outra razão não tivéramos para nos darmos inteiramente a Deus, deveria
bastar-nos o saber que ele se deu todo a nós. Ora, para nos darmos por completo
a Deus, temos que desapegar-nos de todas as afeições terrenas. Quanto menos desejarmos
os bens da terra, diz Santo Agostinho, mais amaremos a Deus; ama-o
perfeitamente quem nada deseja.
Na instrução procedente, falamos
da mortificação interior; falaremos agora da exterior que consiste na mortificação
dos sentidos. Também esta é necessária, porque, em conseqüência do pecado,
temos conosco uma carne inimiga, que combate contra a razão. Era dessa luta que
o Apóstolo se lamentava: Sinto nos meus membros outra lei contrária à lei do meu
espírito; quer dizer, segundo Santo Tomás: a concupiscência da carne, que
contraria a razão. Se a alma não dominar o corpo, será dominada por ele.
Deu-nos Deus os sentidos para que nos sirvamos deles, não segundo os nossos
caprichos, mas segundo a sua vontade. Devemos pois mortificar os nossos
apetites, que são contrários à lei de Deus.
Os que pertencem a Jesus Cristo,
têm crucificado a sua carne com os seus vícios e concupiscências. Tal a razão
por que os santos se têm dado com tanto ardor a macerar a sua carne. São Pedro
de Alcântara tomou a resolução de jamais conceder ao seu corpo satisfação
alguma, e cumpriu-a até à morte. São Bernardo de tal modo, maltratava o seu,
que lhe pediu perdão ao expirar. "É um erro pensar, dizia Sta. Teresa, que
Deus admita na sua amizade pessoas que procuram as suas comodidades. - As almas
que amam verdadeiramente a Deus, não sabem pedir-lhe descanso". E segundo
Santo Ambrósio, quem não renuncia à satisfação do seu corpo, não pode agradar a
Deus. Quem sujeita o espírito à carne, diz Santo Agostinho, é um monstro que
caminha com a cabeça para baixo e os pés para cima. Nascemos para coisas mais
altas, do que para sermos escravos da nossa carne; era Sêneca, um pagão, que
assim falava.
Quanta mais razão temos nós para
falar esta linguagem, nós que, alumiados pela fé, sabemos que fomos criados
para gozar de Deus eternamente! São Gregório diz que transigir com os apetites
da carne, outra coisa não é que alimentar inimigos.
Santo Ambrósio deplora a
desgraça de Salomão, que teve a glória de edificar o templo de Deus, mas melhor
tinha feito se conservasse para Deus o templo do seu corpo; porque deixou
perder o seu corpo, a sua alma e o seu Deus, para contentar as suas
inclinações. Devemos tratar o nosso corpo como um cavalo fogoso, ao qual nunca
se afrouxa o freio. De mais, segundo São Bernardo, devemos opor-nos aos
apetites do nosso corpo, como o médico aos desejos do doente, quando este lhe
pede o que não convém, e recusa fazer o que lhe é útil para a saúde. Não seria
cruel o médico se, por condescendência com o doente, lhe permitisse arriscar a
vida? Do mesmo modo, não é lisonjeando a nossa carne que temos caridade com
ela; entendamos bem que nunca fomos tão cruéis para conosco próprios como
quando, por um momento de prazer, dado aos sentidos, condenamos a nossa alma a
um suplício eterno; é assim que fala São Bernardo.
Numa palavra, é necessário que
mudemos de gostos e pratiquemos o que Nosso Senhor dizia um dia a São Francisco
de Assis: "Se me desejas, toma as coisas amargas por doces, e as doces por
amargas".
Vejamos os frutos da mortificação
exterior.
Em primeiro lugar, livra-nos das
penas devidas aos nossos prazeres culposos, penas que nesta vida são muito mais
leves que na outra. Conta Santo Antonino que um anjo dera a escolher a um
doente ou três dias de purgatório, ou dois anos no seu leito, com a moléstia
que estava sofrendo. O doente escolheu os dias de purgatório; mas, passada
apenas uma hora, logo se queixou ao anjo de o ter feito sofrer tantos anos
naqueles momentos, tendo-lhe anunciado somente três dias. O anjo respondeu-lhe:
"Que dizeis? Ainda o vosso corpo está quente no leite mortuário, e já
falais em anos!" Quereis escapar ao castigo, pergunta São João Crisóstomo?
Sê-de o vosso próprio juiz: arrependei-vos e corrigi-vos.
Em segundo lugar, a mortificação
desapega a alma das afeições terrenas, e fá-la entrar nas disposições
necessárias para se unir a Deus. Dizia São Francisco de Sales, que jamais a
alma poderá elevar-se para Deus, se a carne não for mortificada e dominada. Foi
também o que disse São Jerônimo.
Em terceiro lugar, a penitência
faz-nos adquirir os bens eternos, como São Pedro de Alcântara e revelou do alto
do Céu a Sta. Teresa, por estas palavras: Ó feliz penitência que me valeu
tamanha glória!
Por isso os santos trabalharam
de contínuo em macerar a sua carne, o mais possível. São Francisco de Borja
dizia que morreria sem consolação, no dia em que não tivesse mortificado o seu
corpo com alguma penitência. Uma vida de prazeres adocicados não pode ser a dum
cristão.
§ II
Prática da mortificação exterior
Se não tivermos coragem para
mortificar o nosso corpo com grandes austeridades, pratiquemos ao menos algumas
pequenas mortificasses. Suportemos com paciência as penas que nos advierem, por
exemplo: este incômodo, esta vigília, este cheio desagradável, quando
assistimos aos dentes, que vamos confessar nas prisões, quando ouvimos de
confissão os pobres, e outras coisas semelhantes. Ao menos privemo-nos, de
tempos a tempos, de algum prazer permitido. O que se permitem tudo que é
lícito, diz Clemente de Alexandria, em breve passam ao que lhes não é lícito. É
difícil que permaneça por muito tempo sem abraçar as coisas más, quem se
entrega a todas as satisfações permitidas por si mesmas. - Um grande servo de
Deus, o Padre Vicente Carafa, da Cia. de Jesus, dizia que o Senhor nos dera as
delícias deste mundo, não para gozarmos delas, mas para nos tornarmos
agradáveis aos seus olhos, pela oferenda dos seus próprios dons, privando-nos
deles para lhe testemunharmos o nosso amor.
Por outro lado, como nota São
Gregório, não temos dificuldade em nos abstermos dos prazeres proibidos, quando
estamos habituados a privarmo-nos dos permitidos.
Mas falemos das mortificasses
particulares, que podemos impor aos nossos sentidos, principalmente à vista, ao
gosto e ao tato.
1º. Da vista e de todo
o exterior
Primeiro que tudo, devemos
mortificar a vista. Os primeiros dardos que ferem uma alma casta, e por vezes
lhe dão a morte, entram pelos olhos, nota São Bernardo. E um profeta disse: Foi
o meu olhar que assolou a minha alma. É por meio dos olhos que os pensamentos
culposos são excitados no espírito. Dizia São Francisco de Sales: "O que
não se vê não se deseja". Assim, o demônio move primeiro a tentação de
olhar, depois de desejar, e enfim de consentir. Tal foi o processo que seguiu
até com o nosso Salvador; depois de lhe ter mostrado os reinos do mundo,
tentou-o dizendo-lhe: Todas estas coisas te darei, se te prostrardes diante de
mim e me adorares. O que Satanás não conseguiu com Jesus Cristo, tinha-o obtido
com Eva: Viu a mulher que o fruto era bom para comer, agradável aos olhos e de
aspecto atraente; colheu o fruto e comeu-o.
Diz Tertuliano que certos
olhares furtivos são o princípio das maiores desordens. E São Jerônimo ajunta
que os olhos são como ladrões, que quase nos arrastam à força para o pecado.
Devem-se fechar pois as portas da praça se se quer que o inimigo não entre
nela. O abade Pastor, por ter olhado uma mulher, foi atormentado de maus
pensamentos durante quarenta anos. Do mesmo modo São Bento, por ter levantado
os olhos para uma mulher, quando ainda estava no mundo, a tal ponto foi tentado
que, para vencer mesmo no deserto, se arremessou entre espinhos; só por esse
meio conseguiu triunfar.
O mesmo São Jerônimo, no seu
retiro de Belém, foi por longo tempo assaltado de pensamentos impuros, ao
recordar-se de certas mulheres que tinha visto em Roma. Permaneceram vitoriosos
os grandes santos, graças ao socorro de Deus que, por suas orações e
penitências alcançaram; mas quantos outros a quem os olhos fizeram cair
miseravelmente! Foram os olhos que causaram a queda de Davi e também de
Salomão.
Fica-se tomado de horror ao ler
o que Santo Agostinho refere de Alípio: foi ao teatro com a resolução de não
olhar: Adero absens, dizia ele; mas depois, tentado a olhar; não só pecou, como
até provocou outros para o pecado.
Sêneca pois tinha razão para
dizer que o ser cego é grande auxílio para conservar a inocência. Não nos é
lícito arrancar os olhos para nos privarmos da vista, mas devemos tornar-nos
cegos fechando-os, para não vermos o que nos pode levar para o mal: Quem fecha
os olhos para não ter maus olhares, há de habitar em lugares elevados. Assim Jó
tinha feito um acordo com os seus olhos, para não olhar nenhuma mulher, com
receito de que alguns maus pensamentos o não viessem atormentar. São Luís de
Gonzaga não ousava erguer os olhos para sua mãe. São Pedro de Alcântara
abstinha-se de olhar até os seus irmãos de religião, que conhecia pela voz e
não pela vista.
O Concílio de Tours diz que os
padres se devem resguardar de tudo quanto possa ferir-lhes os olhos ou os
ouvidos. Esta advertência dirige-se especialmente aos padres seculares, que
muitas vezes têm de exercer as suas funções em públicas e nas casas dos leigos.
Se derem a seus olhos a liberdade de olharem todos os objetos que se lhes apresentarem,
dificilmente se conservarão castos. É o Espírito Santo quem nos adverte: Desvia
os teus olhos da mulher enfeitada, e não procures ver os atrativos estranhos; a
beleza deste sexo tem sido a ruína de muitos homens. E se por vezes os olhos se
distraírem, diz Santo Agostinho, guardemo-nos ao menos de os fixar sobre
objetos perigosos. Não assistamos por tanto nem a bailes, nem a comédias
profanas, ou outras reuniões mundanas, em que se encontrem homens e mulheres.
Se a necessidade exigir a nossa presença onde houver mulheres, devemos ter lá
particular cuidado em conservar a modéstia dos olhos.
Assistia um dia o Padre Alvarez
à degradação pública dum padre; como ali estavam mulheres, tomou ele nas suas
mãos uma imagem da santíssima Virgem e nela conservou fixos os olhos, durante
as muitas horas que a cerimônia durou, com receito de que os olhos lhe não
caíssem sobre alguma mulher. Logo de manhã ao despertarmos, digamos a nosso
Senhor com Davi: Preservai os meus olhos de toda a vaidade.
Ó! quanto é proveitoso para nós
e edificante para os outros termos os olhos baixos! Vem a propósito aqui um
episódio de São Francisco de Assis, muito conhecido. Disse ele um dia ao seu
companheiro que queria ir pregar, e saíram do convento; deram um passeio,
sempre com os olhos baixos, e voltaram. - 'E quando fazeis o vosso sermão, lhe
perguntou o companheiro?" - o santo respondeu: "O nosso sermão está
feito: consistiu na modéstia dos olhos, de que demos exemplo a este povo".
Conforme nota um autor, dizem os evangelistas, em muitos lugares, que o nosso
Salvador, em certas ocasiões ergueu os olhos para olhar: Levantou os olhos para
os seus discípulos. Tendo Jesus elevado os olhos.... Dá-se a entender que de
ordinário os conservava baixos. Assim São Paulo punha em relevo a modéstia do
seu divino Mestre, quando escrevia: Eu vos conjuro pela doçura e modéstia de
Jesus Cristo.
Diz São Basílio que é necessário
ter os olhos voltados para a terra e a alma elevada ara o céu. Segundo São
Jerônimo, é o rosto o espelho da alma, e os olhares têm uma linguagem
silenciosa, que deixa escapar os segredos do coração. E no dizer de Santo
Agostinho, olhos que não sabem conservar-se baixos revelam uma coração impuro.
Santo Ambrósio ajunta que bastam os movimentos do corpo para denunciarem o bom
ou mau estado da alma. Conta a este propósito que ajuizara mal de dois homens,
só por ver a imodéstia do seu andar, e que o seu juízo se confirmara: veio a
saber que um era ímpio e o outro herege.
Falando em particular dos homens
consagrados a Deus, diz São Jerônimo que todas as suas ações, discursos,
exterior e andar, são um ensinamento para os fiéis. Daí esta recomendação do
Concílio de Trento: De tal modo devem os eclesiásticos ordenar a sua vida e
costumes, que no seu modo de vestir, nos seus gestos e no seu andar, só revelem
gravidade e espírito religioso. O mesmo pensamento exprime São João Crisóstomo,
dizendo: É preciso que a alma do padre seja toda resplandecente, para que
alumie os que nele põem os olhos. A todos e em tudo deve o padre dar exemplo de
modéstia: nos olhares, no andar, nas palavras, nomeadamente falando pouco e
como convém.
O padre deve falar pouco. Quem
fala muito com os homens, mostra que fala pouco com Deus. As almas de oração
são avaras de palavras; quando se abre a boca do forno, escapa-se o calor.
Tomás de Kempis diz: É no silêncio que a alma faz progressos. E São Pedro
Damião: O silêncio é o guarda da justiça. O mesmo nos ensina o Espírito Santo:
No silêncio e na esperança estará a vossa força. Está no silêncio a nossa
força, porque nunca se fala muito sem algum pecado.
Deve o padre falar dum modo
conveniente. A vossa boca, diz Santo Ambrósio, é a boca de Jesus Cristo; guardai-vos
de a abrir, não digo só à maledicência e à mentira, mas até às palavras
ociosas. Quando se ama uma pessoa, parece que não se sabe falar senão dela;
assim, quem ama a Deus, está sempre disposto a falar de Deus. Lembrai-vos,
exclama o abade Gilberto, que a vossa boca está consagrada aos oráculos
celestes; olhai como um sacrilégio proferir palavra, que não se refira a Deus.
Santo Ambrósio nos adverte que se falta à modéstia, até falando em tom
demasiado alto: Seja a modéstia o regulador da vossa voz, para que não ofendais
os ouvidos com um tom demasiado estridente. Ainda mais, exige a modéstia que
nos abstenhamos não só de dizer, mas de escutar qualquer palavra imodesta:
Resguardai os vossos ouvidos com uma sebe de espinhos, não escuteis palavras
más.
A par disto, é necessário que o
padre seja modesto no vestir. Vêem-se alguns, diz Santo Agostinho, que para se
mostrarem bem vestidos no exterior, se despojam da modéstia interior. Um vestido
de luxo, um casaco curto, botões de ouro nos punhos... e outras coisas
semelhantes indicam falta de virtude na alma. Ouçamos São Bernardo: Os que
andam quase nus erguem a sua voz e vos gritam: os bens que desperdiçais
pertencem-nos; o que tomais para enfeitardes a vossa vaidade, é às nossas
necessidades que o arrebatais. Sobre este ponto ordenou o II. Concílio de
Nicéia: Deve o padre contentarse com um vestuário modesto de pouco valor; tudo
quanto é inútil e só visa à ostentação, expõe-no à murmuração e à crítica.
Deve-se observar a modéstia no
cabelo. O papa Martinho proibiu aos clérigos o exercício das suas funções na
igreja, desde que não tivessem o cabelo cortado a ponto de conservarem as
orelhas descobertas. À vista disto, que pensaremos daqueles a quem Clemente de
Alexandria acusa de serem avaros do seu cabelo, a ponto de o não deixarem
cortar senão com reserva? Que vergonha, diz São Cipriano, ver eclesiásticos que
trazem uma cabeleira anafada como a das mulheres? O próprio Apóstolo censurou
este abuso, dizendo que o cuidado do cabelo assim como é uma glória para as
mulheres, é uma ignomínia para um homem. E falava assim de qualquer homem,
mesmo secular. Que ideia se há de fazer pois dum eclesiástico, que ostenta uma
cabeleira artisticamente cuidada, que frisa o cabelo e porventura até o
pulvilha?
Dizia Minúcio Felis que nós, os
eclesiásticos, nos devemos dar a conhecer como tais, não pelos adornos do
corpo, mas pelos exemplos de modéstia. Santo Ambrósio diz também que o exterior
do sacerdote deve ser tal, que à sua vista o povo se sinta penetrado de
respeito para com Deus, de quem ele é ministro.
2º. Do gosto
Falemos em segundo lugar da
mortificação do gosto, isto é, da boca. O Padre Rogacci ensina, no seu Único
Necessário, que a máxima parte da mortificação exterior consiste na
mortificação da boca. Por isso Santo André Avelino dizia, que quem aspira à
perfeição, deve começar por mortificar a sua boca. Segundo o testemunho de São
Leão, tal há sido a prática dos santos: "Os seus primeiros combates na
milícia cristã consistiram em santos jejuns". Dizia São Filipe de Néri a
um seu penitente, que era pouco mortificado neste ponto: "Se te não
corrigires deste defeito, jamais chegarás à vida espiritual". Assim, todos
os santos têm sido muito atentos em se mortificarem na comida. São Francisco
Xavier não comia senão um pouco de arroz tostado, e São Francisco Regis um
pouco de faria cozida em água. São Francisco de Borja, sendo ainda secular e
vice-rei da Catalunha, só se alimentava de pão e ervas. São Pedro de Alcântara
contentava-se com uma tigela de sopa.
"É necessário comer para
viver, dizia São Francisco de Sales, e não viver para comer". Pessoas há
que parecem viver para comer, fazendo como diz São Paulo, da sua barriga o seu
deus. Segundo Tertuliano, o vício da gula ou dá a morte, ou pelos menos,
obscurece muito todas as virtudes. Foi a gula que causou a ruína do mundo: pelo
prazer de saborear um fruto, Adão se deu à morte a si próprio, e arrastou na
sua queda todo o gênero humano.
Dum modo particular, por causa
do seu voto de castidade, devem os sacerdotes mortificar o gosto. São
Boaventura diz que a intemperança na comida alimenta a impudicícia. E Santo
Agostinho: Se a alma for como que sufocada pelo excesso da comida, a
inteligência se embotará, e a terra do nosso corpo se cobrirá com os espinhos
da luxuria. Daí esta prescrição dos Cânones apostólicos: Os padres que comem
demais devem ser depostos. Quem habitua o seu escravo a viver delicadamente,
diz o Sábio, há-de encontrá-lo depois rebelde às suas ordens. Conforme o aviso
de Santo Agostinho, guardemo-nos de dar à carne forças contra o espírito.
Refere Paládio que São Macário de Alexandria praticava duras penitências e,
como lhe perguntassem porque tratava tão cruelmente o seu corpo, deu esta sábia
resposta: Atormento quem me atormenta.
A mesma coisa fazia e dizia São
Paulo: Castigo o meu corpo e o reduzo à escravidão. Quando a carne não é
mortificada, dificilmente obedece à razão.
E Santo Tomás diz que o demônio,
quando é vencido nas tentações da gula, cessa de tentar pela impureza:
Diabolus, victus de gula, non tentat de libidine. O Padre Cornélio acrescenta
que, vencida a gula, é fácil triunfar de todos os outros vícios. De ordinário
porém, nota Luís de Blois, o grande número vence mais facilmente os outros
vícios que a gula.
Mas objeta-se: Deus criou os
alimentos para que gozássemos deles. - Respondo: Criou-os Deus para que sirvam
à conservação da nossa vida, segundo as necessidades, e não para que abusemos
deles pela intemperança. E quanto a certas iguarias delicadas, que não são
necessárias à sustentação da vida, também o Senhor as criou, para que nos
mortifiquemos algumas vezes pela privação delas. O fruto que Deus proibiu a
Adão, tinha sido criado para que Adão se abstivesse dele. Preservemo-nos da
intemperança ao menos.
Para observarmos a temperança,
diz São Boaventura, temos quatro coisas a evitar: I. - comer fora do tempo; II.
- comer com demasiada sofreguidão; III. - comer em excesso; IV. - comer
iguarias delicadas. Que vergonha ver um padre habituado a procurar tais ou tais
comidas, preparadas de tal ou tal modo, e quando não as encontra ao gosto da
sua sensualidade, incomodar criados e parentes, pôr a casa toda em revolução!
Os padres virtuosos contentam-se com o que lhes servem.
Notemos ainda o que diz São
Jerônimo: Um eclesiástico torna-se desprezível, desde que aceite com freqüência
convites para jantar. Os padres exemplares evitam os grandes jantares, em que
de ordinário se não observa nem a modéstia nem a temperança. É necessário,
ajunta o mesmo santo, que os leigos encontrem em nós antes consoladores nas
suas penas, que convivas nos dias de prosperidade.
3º. Do tato
Em terceiro lugar, quanto ao
sentido do tato, é necessário, primeiro que tudo, que evitemos toda a
familiaridade com pessoas do outro sexo, embora parentas. - São minhas irmãs,
minhas sobrinhas. - Sim, mas são mulheres. Os confessores prudentes têm razão
em proibir às suas penitentes que lhes beijem mesmo a mão.
Com respeito a este sentido,
importa ainda notar que o sacerdote corre maior perigo, se não usar consigo de
toda a cautela e modéstia. Eis o que o Apóstolo nos recomenda: Saiba cada um de
vós guardar o vaso da sua carne na santidade a sua honra, e abster-se de
satisfazer aos apelidos desordenados.
Costumam também os padres
fervorosos impor-se algumas penitências, como tomar a disciplina ou trazer
algum cilício. Alguns há que desprezam estes meios, sob o pretexto de que a
santidade consiste na mortificação da vontade. O que eu vejo é que todos os
santos têm sido ávidos de penitências, e atentos quanto possível a mortificar a
sua carne. São Pedro de Alcântara trazia aos seus ombros uma grande placa de
ferro esfuracado que lhe dilacerava a carne. São João da Cruz usava uma
camisola, armada de pontas de ferro, com uma cadeia de ferro, que no momento da
morte lhe não puderam tirar, e lhe arrancava bocados de carne. E dizia:
"Se alguém ensinar uma doutrina, que leve ao relaxamento na mortificação
da carne, não se lhe deve dar crédito, ainda mesmo que a confirme com
milagres".
Verdade é que a mortificação
interior é a mais necessária, mas a exterior também o é. Quando tentavam
dissuadir São Luís Gonzaga das suas austeridades, dizendo-lhe que a santidade
consiste em vencer a própria vontade, deu uma sábia resposta, servindo-se das
palavras do Evangelho: É necessário praticar uma sem desprezar a outra. À
teresiana Maria de Jesus disse o Senhor: "Foi pelos prazeres que o mundo
se perdeu, e não pelas penitências".
Mortificai o vosso corpo,
escrevia Santo Agostinho, e vencereis o demônio. É sobretudo contra as
tentações impura que os santos têm empregado como remédio as macerações da
carne. São Bento e São Francisco, assaltados por essas tentações, rolaram-se em
espinhos. Eis uma comparação que nos oferece o Padre Rodriguez: "Imaginai
um homem que se encontrasse envolvido nas roscas duma serpente, que procurasse
sem cessar dar-lhe a morte, com as suas mordeduras envenenadas; se ele não
pudesse tirar a vida a esse réptil, forcejaria ao menos por lhe fazer perder
sangue e enfraquecê-la, para a tornar incapaz de grandes malefícios".
Diz Jó que a sabedoria não se
encontra no meio dos prazeres terrenos: Não lhe conhece o homem o valor, nem
ela se encontra nas regiões dos que vivem nas delícias. Num lugar diz o Esposo
dos Cânticos que habita no monte da mirra, e noutro que vive no meio dos
lírios. O abade Gilberto concilia estas duas passagens, dizendo que o monte da
mirra, onde se mortifica a carne, é precisamente o lugar em que nascem e se
conservam os lírios da pureza. E, se alguma vez se ofendeu a castidade, a razão
exige que depois se castigue a carne: Assim como pusestes os vossos membros a
serviço das inclinações impuras, para praticardes a iniqüidade, assim agora
ponde os vossos membros ao serviço da justiça, para fazerdes obras de
santidade.
4º. Das penas que
sobrevêm naturalmente
Se não temos coragem para nos
impormos mortificasses voluntárias, cuidemos ao menos de receber com resignação
as que Deus nos enviar, como as moléstias, o calor e o frio.
Tendo chegado muito tarde a um
colégio da Companhia, foi obrigado São Francisco de Borja a permanecer ao ar
livre, durante a noite, exposto a um frio intenso e à neve que caía. Chegada a
manhã, ficaram aflitos os Padres do colégio, mas o santo lhes disse que toda a
noite tinha gozado duma grande consolação, por se lembrar que era Deus que se
comprazia em lhe enviar aquele vento gelado e aqueles flocos de neve.
"Correi, Senhor, correi,
exclama São Boaventura, correi e feri os vossos servos com feridas sagradas,
para os pordes ao abrigo das feridas da morte". A seu exemplo, nas nossas
doenças e aflições, devemos igualmente dizer: Feri-nos, Senhor, com golpes
salutares, para que, escapemos aos golpes mortais da carne. - Ou também com São
Bernardo: "Seja torturado este corpo, que desprezou a Deus! Se sois
discreto, deveis exclamar: Ele mereceu a morte, que seja crucificado!"
Sim, meu Deus, é justo que seja afligido quem vos afligiu! Mereço a morte
eterna; quero pois ser crucificado nesta vida, para não ser atormentado
eternamente na outra!
Suportemos assim ao menos as
penas que Deus nos enviar. Com razão porém nota um autor que dificilmente se
sofrem com perfeita resignação as penas inevitáveis, quando nenhumas se tomam
voluntárias. Por outro lado, diz Santo Anselmo que Deus deixará de castigar o
pecador, que a si próprio se castiga, em expiação dos pecados.
§ III
Vantagens duma vida mortificada
Há quem imagine que uma vida
mortificada é uma vida infeliz; mas não, a vida infeliz; mas não, a vida
infeliz não é a dos que se mortificam; é antes a dos que cedem aos seus
apetites, ofendendo a Deus. Quem houve já que tivesse paz resistindo-lhe? Uma
alma em pecado é um mar tempestuoso. Quem não está em paz com Deus, diz Santo
Agostinho, é inimigo de si mesmo e a si próprio se faz guerra. O que nos põe em
guerra conosco mesmos e nos torna desgraçados são as satisfações que damos ao
nosso corpo: Donde nascem as vossas guerras e discórdias? Não está a origem
delas nas paixões que se debatem na vossa carne.
Escutemos ao contrário esta
promessa do Senhor: Hei de dar ao vencedor um maná escondido. Aos amantes da
mortificação faz Deus saborear as doçuras duma paz, desconhecida dos sensuais,
e que excede todos os prazeres dos sentidos. Por isso são proclamados felizes
os que estão mortos para os gozos terrenos. Olham os mundanos como desditosos
os que vivem estranhos aos prazeres sensuais, mas, no dizer de São Bernardo,
esses apenas fixam os olhos nas mortificasses deles, e não atingem as
consolações interiores com que Deus os favorece já nesta vida. As promessas de
Deus são infalíveis: Tomai o meu jugo sobre os vossos ombros... e encontrareis
a paz para as vossas almas.
Ó! não, para uma alma que ama a
Deus, diz Santo Agostinho, mortificar-se não é uma pena. Nada acha difícil quem
ama, ajunta São Lourenço Justiniano; esse coraria de falar em dificuldades. O
amor é forte como a morte: assim como nada resiste à morte, nada resiste ao
amor.
Se queremos gozar das delícias
da eternidade, temos que privar-nos dos prazeres do tempo: Quem quiser salvar a
sua vida, perdê-la-á; o que faz dizer a Santo Agostinho: Guardai-vos de vos
amardes a vós mesmos nesta vida, com receio de vos perderdes na vida eterna.
São João viu todos os bem-aventurados com palmas na mão. Para nos salvarmos,
precisamos de ser todos mártires, ou ao ferro dos tiranos, ou pelas
mortificasses que nos infligirmos. Persuadamo-nos bem de que tudo o que
sofrermos não é nada em comparação da glória eterna que nos espera. As penas
dum momento hão de valer-nos uma felicidade eterna: Porque estas tribulações
momentâneas e leves do presente nos alcançam um galardão eterno de ventura, sem
medida. Tal o fundamento Tal o fundamento da reflexão do Judeu Filon, que as
satisfações que damos ao nosso corpo, em prejuízo da nossa alma, são outros
tantos roubos que a nós mesmos fazemos quanto à felicidade do Paraíso.
Por sua vez diz São João
Crisóstomo que, quando Deus nos dá ocasião para sofrermos, dispensa-nos uma
graça maior do que se nos concedesse poder para ressuscitar mortos:
"Fazendo um milagre contraio uma dívida para com Deus; sofrendo com
paciência, torno a Jesus Cristo meu devedor". São os santos as pedras
vivas de que é construída a celeste Jerusalém. Ora, antes de serem colocadas no
seu lugar, devem essas pedras ser polidas com o cinzel da mortificação, como a
Igreja o exprime nos seus cânticos:
Scalpri salubris ictibus,
Et tunsione plurima
Fabri polita malleo,
Hanc saxa molem
construunt.
Todo o ato de mortificação é
pois uma obra para o Paraíso; deve este pensamento tornar-nos doce tudo quanto
na mortificação encontramos de amargo. Para bem vivermos e nos salvarmos,
precisamos de viver da fé, isto é, com os olhos na eternidade que nos espera.
Pensemos, diz Santo Agostinho, que o Senhor ao mesmo tempo que nos exorta a
combater as tentações, dá-nos o seu socorro e nos prepara a coroa. Ora,
conforme nota o Apóstolo, se os atletas se abstinham de tudo quanto podia
estorvá-los de alcançar uma miserável coroa temporal, com quanta mais razão não
devemos nós morrer a tudo para adquirirmos uma coroa imensa e eterna?
DÉCIMA INSTRUÇÃO,
Sobre o amor para com Deus
§ I
O padre deve ser todo de Deus
Sem amardes a Deus, diz Pedro de
Blois, bem podereis dizer-vos padre, mas não o sois. Desde o dia da sua
ordenação, o padre não é mais seu, mas de Deus, diz Santo Ambrósio. É o que o
próprio Senhor declara na antiga Lei: Oferecerão o incenso do Senhor e o pão do
seu Deus, e por isso mesmo serão santos. Assim o padre é chamado por Orígenes,
"Um espírito consagrado a Deus". Ao pôr o pé no santuário, o padre
protestou que não queria outra herança senão Deus, dizendo: Domius pars
hereditatis meae. Se pois o padre tem a Deus por sua herança, ajunta Santo
Ambrósio, não deve viver senão para Deus. Por isso disse o Apóstolo que o que
se devotou ao serviço da Majestade divina, não deve ingerir-se nos negócios do
mundo, mas aplicar-se por completo a fazer o beneplácito do Senhor, a quem se
consagrou.
Respondendo a um jovem que o
queria seguir, Jesus Cristo nem ao menos lhe permitiu que voltasse a sua casa,
para dar sepultura a seu pai: Segue-me e deixa aos mortos o cuidado de
enterrarem os seus mortos.
Segundo a reflexão de Santo
Ambrósio foi uma lição dada a todos os eclesiásticos: mostrava-lhes assim que
também eles devem antepor os interesses da glória de Deus a todas as coisas
humanas, que os possam impedir de se darem a ele por inteiro.
Já na antiga Lei, dizia Deus aos
sacerdotes que os tinha escolhido dentre todos, para que fossem dele por
completo. Nesse sentido lhes declarou que não teriam entre os seculares nem
bens nem patrimônio: que ele próprio era sua propriedade e herança. Oleastro
faz esta reflexão: Ó padre, grande é esse benefício, se o o compreendes: Deus
quer fazer-te herança sua! Que te poderá faltar, se possuíres a Deus? Deve pois
o padre dizer com Santo Agostinho: Que os outros escolham entre os bens
terrenos os que mais lhes aprazem, a partilha dos santos é o Senhor, que é
eterno; que os outros bebam da taça dos prazeres envenenados; a fonte em que
quero saciar-me é o Senhor.
Que queremos nós amar, se não
amamos a Deus? Assim fala Santo Anselmo, dirigindo-se ao Senhor. Fez o
imperador Dioclesiano apresentar diante de Clemente de Ancira ouro, prata e
pedras preciosas, para o mover a abjurar a fé; mas o santo soltou um gemido de
dor, ao ver que os homens punham o seu Deus em confronto com um pouco de barro.
Ter tudo sem Deus é nada ter; mas ter Deus é ter tudo, embora nenhuma coisa se
tenha. Assim pensava com razão São Francisco, que passou uma noite inteira a
repetir estas palavras: Deus meus, et omnia! Ditoso pois o que pode dizer com
Davi: Meu Deus, só a vós vejo no Céu e na terra; sois e sempre sereis o único
Senhor do meu coração e o meu único tesouro.
Por isso mesmo merece Deus ser
amado, - porque é objeto digno dum amor infinito; mas nós devemos amá-lo, ao
menos por motivo de reconhecimento, em razão do amor imenso que nos testemunhou
no benefício da redenção. Que mais poderia fazer um Deus do que fazer-se homem
e morrer por nós? Ninguém pode mostrar mais amor do que dando a vida pelos seus
amigos. Antes da redenção, podia o homem duvidar se Deus o amava com ternura;
mas poderá restar-lhe alguma dúvida, depois de o ter visto numa cruz, morto por
seu amor? Conforme a expressão de Moisés e Elias no Tabor, foi isso um excesso
de amor, que nem os anjos todos poderão compreender por toda a eternidade. Quem
dentre os homens, pergunta Santo Anselmo, podia merecer que um Deus morresse
por ele? E contudo é certo que o Filho de Deus morreu por cada um de nós. O
Apóstolo no-lo assegura, e ajunta que a morte do nosso Salvador, pregada aos
Gentios, lhes parecia uma loucura.
E por certo não era nem uma
loucura nem uma mentira: era uma verdade de fé, verdade tal que, no dizer de
São Lourenço Justiniano, nos faz ver Deus - que é a própria Sabedoria - tornado
como que louco por amor do homem. Ai! Se Jesus Cristo tivesse querido
testemunhar o seu amor a seu eterno Pai, teria podido dar-lhe uma prova mais
certa do que morrer crucificado, como morreu por cada um de nós? Vou mais
longe: se um dos nossos servos tivesse morrido por nós, poderíamos não o amar?
Apesar de tudo, onde está o nosso amor e reconhecimento para com Jesus Cristo?
Se ao menos recordássemos muitas
vezes o que o nosso divino Redentor fez e sofreu por nós! Dá-se muito gosto a
Jesus Cristo, quando se pensa com freqüência na sua paixão. Se uma pessoa
tivesse sofrido ultrajes, blasfêmias, cadeias por um amigo, quanto não gostaria
que esse amigo se lembrasse dele e pensasse muitas vezes em tais sacrifícios!
Desde que uma alma pense muitas vezes na paixão de Jesus Cristo, e no amor que
este Deus tão bom nos há testemunhado, é impossível que não se sinta impelida
por uma força irresistível a amá-lo: O amor de Jesus Cristo, insta conosco,
exclama o Apóstolo. Mas, se todos os homens devem arder em amor por Jesus
Cristo, dum modo mais especial nós os padres, porque ele morreu especialmente
para nos fazer sacerdotes. De fato, como ponderamos no princípio, sem a morte
de Jesus Cristo, não teríamos a Vítima santa e sem mancha, que agora oferecemos
a Deus.
É o que nota com razão Santo
Ambrósio e ajunta: Quem mais recebe, mais deve; demos-lhe portanto o nosso amor
em troca do seu sangue.
Cuidemos de compreender o amor
que Jesus Cristo nos mostrou na sua paixão, e desse modo por certo se
extinguirá no nosso coração o amor das criaturas. Ó! si scires mysterium
crucis! exclamava o apóstolo Santo André, dirigindo-se ao tirano, que tentava
forçá-lo a renegar a Jesus Cristo! Queria dizer: Ó tirano! Se soubesses até
onde chegou o amor do teu Deus para te salvar, é certo que, longe de me
quereres tentar, te devotarias a amá-lo, para lhe testemunhares o teu
reconhecimento, por um tal extremo de amor.
Ditosos pois os que sempre têm
presentes a seus olhos as chagas de Jesus Cristo! Caminhareis radiantes de
alegria, a colher água nas fontes do Salvador. Ó! que preciosa abundância de
luzes e sentimentos de devoção colhem os santos nesses mananciais salutares!
Dizia o Padre Alvarez que a desgraça dos cristãos está em ignorarem os tesouros
que temos em Jesus Cristo. Gloriam-se os sábios da sua ciência; o Apóstolo só
se gloriava de saber Jesus crucificado. De que servem todas as ciências quando
se não sabe amar a Jesus Cristo? Ainda que eu possuísse todas as ciências,
dizia o Apóstolo, se não tivesse caridade, não seria nada. Noutro lugar
escreveu que, para ganhar a Jesus Cristo, olharia como nada todos os outros
bens. E gloriava-se de estar na prisão por amor de Jesus Cristo.
Ó! feliz o padre que, ligado por
tão doces cadeias, se dá todo a Jesus Cristo! Mais vale para Deus uma só alma,
que se lhe dá por completo, do que cem outras que permanecem imperfeitas. Se um
príncipe tivesse cem criados, dos quais noventa e nove o servissem com pouca
dedicação e sempre lhe causassem alguns desgostos, ao passo que um só o
servisse unicamente por amor, atento em lhe fazer sempre e em tudo a vontade,
por certo esse príncipe amaria mais este único servo fiel, do que a todos os
outros juntos. São inumeráveis as donzelas; a minha pomba, a minha perfeita é
uma só.
A tal ponto ama o Senhor uma
alma que o serve perfeitamente, que não a amaria mais, ainda mesmo que não
tivesse nenhum outro objeto a amar. Daí este aviso de São Bernardo: Aprendei de
Jesus como deveis amar a Jesus. Jesus Cristo deu-se todo a nós desde o seu
nascimento: Nasceu para nós um menino, foi-nos dado um filho. Ele próprio se
nos deu por amor: Amou-nos a ponto de se entregar por nós. É portanto justo que
também por amor nos demos inteiramente a Jesus Cristo. Deu-se-nos sem reserva
este divino Salvador, diz São João Crisóstomo: Totum tibi dedit, nihil sibi
reliquit. Deu-vos o seu sangue, a sua vida, os seus merecimentos; exige a
justiça que também vos entregueis a ele sem reserva. Dai-lhe tudo quanto sois,
diz São Bernardo, visto que ele se entregou todo para vos salvar.
Se esta obrigação porém incumbe
a todos os homens, com melhoria de razão aos padres. Por isso São Francisco de
Assis, reconhecendo o dever especial que tem um padre de ser todo de Jesus
Cristo, escrevia aos sacerdotes da sua Ordem: Nada retenhais para vós do que é
vosso; que Jesus Cristo vos receba por inteiro, como inteiro se deu a vós. Por
todos morreu o Redentor, para que todos vivam, não para si mesmos, mas
unicamente para aquele Deus, que por eles deu a sua vida. Ó! Como não teremos
sempre com Deus a mesma linguagem de Santo Agostinho: Morra eu a mim, para que
só vos vivais em mim! Mas, para sermos de Deus por inteiro, é necessário que
lhe demos o nosso coração, sem o repartirmos. Ama-vos pouco, dizia ainda Santo
Agostinho, quem ama algum outro objeto e não o ama por vós.
Não se pode ser todo de Deus,
quando se ama alguma coisa que não é Deus, e não se ama por Deus. Anima,
exclama São Bernardo, sola esto, ut soli te serves. Ó alma resgatada por Jesus
Cristo! Não repartas o teu coração pelas criaturas; conserva-te só, desprendida
de tudo, para seres toda desse Deus, que é o único que merece todo o amor. - Tal
é também o sentido do bem-aventurado Gilles: Una uni. Esta alma única que temos
devemos dá-la, não em parte, mas por inteiro, a esse Deus que nos ama mais ele
só, e merece ser mais amado, que todas as criaturas juntas.
§ II
Meios a empregar para ser todo
de Deus
1º. Desejo da
perfeição
O padre que aspira a dar-se todo
a Deus, deve começar a conceber um grande desejo da santidade. Os santos
desejos são como asas, que alevantam as almas para Deus; Porque o começo da
sabedoria é um desejo muito sincero de a possuir. Conforme o Sábio, o progresso
dos justos é como a luz do sol, que desde a manhã vai subindo mais e mais à
medida que avança. A luz dos pecadores, ao contrário, é esse crepúsculo da
tarde, que vai decrescendo até de todo se desvanecer, de modo que os
desgraçados não vêem mais para onde caminham: É tenebrosa a via dos ímpios, que
não sabem onde irão parar.
Desgraçado pois o que está
satisfeito com a sua vida e não procura torná-la melhor! Não adiantar é recuar,
diz Santo Agostinho. Quem se encontra no meio dum rio, ajunta São Gregório, e
não se esforça por vencer a corrente, infalivelmente será levado por ela. Daqui
a censura que São Bernardo dirige ao tíbio: Se não queres adiantar, queres
então retroceder. - Não, responde o tíbio: quero permanecer tal qual estou, nem
melhor nem pior. Mas isso é impossível, replica o santo. Não pode dar-se esse
caso, porque o homem nunca permanece no mesmo estado. Para ganhar o prêmio,
isto é, a coroa eterna, é necessário, diz o Apóstolo, não afrouxar o passo até
que se consiga atingi-la. O que cessa de correr perde a coroa e tudo quanto
tinha feito.
Bem-aventurados os que têm fome
e sede de justiça. Com efeito, como a divina Mãe disse no seu Cântico, cumula
Deus de graças os que desejam santificar-se: Esurientes implevit bonis. Note-se
porém esta expressão: Esuriunt, esurientes; significa ela que para nos
santificarmos não basta um simples desejo; requere-se um grande desejo, uma
certa fome de santidade. Aquele que tem esta fome ditosa, não caminha, corre na
estrada da virtude, diz o Salmista, como a chama da lenha seca. Quem se
santificará pois? Quem quiser santificar-se: Se queres ser perfeito, vai... Mas
é necessário querer com uma vontade resoluta: o tíbio, no dizer do Sábio,
também quer, mas não com uma vontade eficaz; deseja, deseja sempre, e os seus
desejos o perdem, porque se contenta com eles, e vai caminhando de mal a pior:
O preguiçoso quer e não quer... Os seus próprios desejos o matam.
A sabedoria, ou a santidade,
facilmente se deixa encontrar por quem a procura. Mas não basta desejá-la para
a encontrar; é preciso desejá-la com uma resolução firme de a adquirir: Se a
procurais, procurai-a. Quem deseja a santidade com a resolução de chegar a ela,
há-de possuí-la. Diz São Bernardo que não é com os pés, mas com os desejos do
coração que se procura a Deus. E Sta. Teresa escreveu: "Sejam grandes os
nossos pensamentos, que deles nos advirá o bem". - "Não devemos pôr
limites aos nossos desejos; devemos ao contrário esperar que, apoiando-nos em
Deus, poderemos com a sua graça chegar pouco a pouco aonde muitos santos
chegaram".
Abre a boca, nos diz o Salvador,
e eu a encherei. Não pode a mãe alimentar o seu filho, se ele não abrir os
lábios para lhe sugar o leite. Abre a boca, isto é, segundo a expressão de
Santo Atanásio: dá largas aos teus desejos. Assim, mediante os bons desejos,
alguns santos chegaram em pouco tempo à perfeição: Consumado em pouco tempo,
efetuou uma longa carreira. Em São Luís de Gonzaga encontramos um exemplo a
propósito: em poucos anos chegou a uma santidade tal, que Sta. Maria Madalena
de Pazi, tendo-o visto na glória, lhe parecia, dizia ela, que não havia no Céu
nenhum santo, que se avantajasse a Luís em felicidade. Soube ela que esse alto
grau de glória lhe fôra devido pelo desejo ardente, que tinha alimentado
durante a sua vida, de chegar a amar a Deus tanto quanto ele o merece ser.
O desejo, diz São Lourenço
Justiniano, dá forças e adoça a pena. Por isso acrescentava que desejar vencer
é quase ter já vencido. E Santo Agostinho exprime assim o mesmo pensamento:
Quem ama pouco a santidade, acha o caminho apertado, e não o trilha senão a
muito custo; quem ama verdadeiramente, encontra-o largo e percorre-o sem
dificuldade. A largura do caminho pois não está no próprio caminho, mas no
coração, isto é, na vontade firme de agradar a Deus: Desde que me dilatastes o
coração, caminhei a passos largos na via dos vossos mandamentos. E Luís de
Blois afirma que os santos desejos não são menos agradáveis ao Senhor, que um
amor ardente.
O que não tem desejo de se
santificar, peça-o ao menos a Deus, e Deus lho dará. Persuadamo-nos bem de que
a santificação não é obra difícil para quem a quer. No mundo é difícil a um
súdito conseguir a amizade do seu príncipe, quando a deseja; mas - dizia um
cortesão dum imperador, de quem fala Santo Agostinho - se eu quero a amizade de
Deus, esta vontade me basta para me tornar amigo seu. E São Bernardo assegura
que se não pode ter nenhuma prova mais certa da amizade de Deus e da sua graça,
que o desejo duma graça maior, para mais lhe agradar. E acrescenta que pouco
importa o caso de no passado se ter sido pecador; porque Deus não examina o que
o homem foi no passado, mas o que quer ser de futuro.
2º. Intenção de
agradar a Deus em tudo
Em segundo lugar, o padre que se
quer santificar, deve fazer todas as suas ações no intuito de agradar a Deus.
Todas as suas palavras, todos os seus pensamentos, todos os seus desejos, todos
os seus atos, devem ser apenas um exercício de amor para com Deus. A Esposa dos
Cânticos umas vezes se fazia caçadora ou guerreira; outras se aplicava à
cultura da vinha ou dos jardins; mas sempre, nesses diversos exercícios, se
mostrava amante fiel, porque tudo fazia por amor do seu Esposo. Tal é o modelo
do padre: quanto diz, quanto pensa, quanto sofre e opera, ou celebre, ou
confesse ou pregue, se assiste aos enfermos, faz oração e se mortifica, faça o
que fizer, tudo deve derivar do mesmo princípio, porque deve fazer tudo para
agradar a Deus.
Jesus Cristo disse: Se o vosso
olhar for simples, todo o vosso corpo será alumiado. Por olhar, entendem os
santos Padres a intenção. Assim, diz Santo Agostinho, é a intenção que torna
boa a obra. A Samuel fez o Senhor ouvir esta palavra: Vê o homem as coisas
quanto ao exterior, mas o Senhor penetra o coração. Contentam-se os homens, com
as obras exteriores que vêm; mas Deus, que vê o coração, não se contenta com a
obra, se ela não for praticada com a reta intenção de lhe agradar. Eu vos
oferecerei holocaustos cheios de medula, dizia Davi. As ações feitas, sem uma
intenção reta, são vítimas sem substância, que Deus rejeita. Nas oferendas que
se lhe apresentam, diz Salviano, não é o valor da coisa que ele aprecia, mas a
afeição do coração. Com razão está escrito do nosso Salvador: Ele fez bem todas
as coisas. De fato, em tudo quanto fez, só procurou o beneplácito de seu eterno
Pai, como ele próprio declarou.
Mas, ai! Poucas obras são
plenamente agradáveis a Deus, porque poucas há que nós façamos sem algum desejo
da nossa própria glória! No dia do juízo, quantos padres dirão a Jesus Cristo:
Senhor, não é verdade que em vosso nome profetizamos, em vosso nome expulsamos
os demônios, e em vosso nome fizemos muitas coisas prodigiosas! Senhor, nós
pregamos, celebramos missas, ouvimos confissões, convertemos almas, assistimos
a moribundos! - Mas o Senhor lhes dirá: Retirai-vos; nunca vos conheci como
ministros meus, porque não foi por mim que trabalhastes; foi antes pela vossa
glória, pelo vosso interesse!
Tal a razão por que Jesus Cristo
nos adverte que conservemos em segredo as boas obras que fizermos. Segundo
Santo Agostinho, é para que a vaidade não venha destruir o que temos feito por
Deus. Tem Deus horror ao roubo no holocausto. Roubo quer aqui dizer a procura
da própria glória, ou do interesse nas obras de Deus. Quem ama a Deus
verdadeiramente, diz São Bernardo, merece bem a recompensa, mas não a procura;
a recompensa única que ambiciona é agradar a Deus, a quem ama. Numa palavra,
ajunta ele, o amor verdadeiro contenta-se com ser amor, com amar, e nada quer.
Por que sinais se poderá reconhecer se um padre obra com intenção reta? - Ei-los:
I. - Se ama as obras que mais
lhe custam e menos brilho têm.
II. - Se fica em paz, quando os
seus projetos fracassam; porque o que trabalha por Deus consegue sempre o seu
fim, que é agradar a Deus. Se não se perturba, quando se vê mal sucedido,
mostra que só trabalha com os olhos em Deus.
III. - Se se alegra com o bem
que os outros fazem, como se fosse ele mesmo, e vê sem inveja que outros
abracem empresas como a sua, desejando que todas sejam para glória de Deus e
dizendo com Moisés: Prouvera a Deus que todo o povo fosse composto de profetas.
O padre que faz tudo por Deus
tem dias cheios. Não acontece o mesmo com os que trabalham por interesse
pessoa; desses se diz que nem chegam a meio nos seus dias. Nesse sentido,
segundo Santo Euquério de Lion, devemos dizer que não temos vivido senão os
dias, em que temos renunciado à nossa própria vontade. Uma pequena lembrança
que nos é dada por amizade, dizia Sêneca, penhora-nos mais do que ricos
presentes dados por interesse. Certamente fica o Senhor mais satisfeito com uma
pequena obra feita em seu beneplácito, que com todas as ações mais brilhantes
efetuadas por gosto próprio. Da pobre viúva que no gazofilácio do templo
lançara apenas duas pequenas moedas, disse o Senhor que tinha dado mais que
todos os outros; o que São Cipriano comenta assim: Considerava o Senhor, não o
valor da moeda, mas o amor com que era oferecida.
Ao ver passar uma dama
luxuosamente vestida, começou o abade Pambon a derramar lágrimas; e, perguntado
porque chorava, respondeu: "Ai! Quanto mais faz esta mulher para agradar
aos homens, do que eu para agradar a Deus!" Lê-se na Vida do Rei São Luís
que em certa ocasião se vira uma mulher, que numa mão levava uma tocha acesa e
na outra um vaso cheio de água. Um padre dominicano, que exercia o seu
ministério na corte do piedoso monarca, aproximou-se dela e perguntou-lhe o que
queria fazer; ela respondeu: "Com o fogo quero queimar o Paraíso, e com a
água apagar o inferno, para que Deus seja amado só porque o merece". Ó!
Feliz padre que não procura em tudo senão agradar a Deus! É imitar as almas
santas do Paraíso, que, como diz o Doutor angélico, sentem mais alegria da
felicidade de Deus, que da sua própria, porque amam mais a Deus do que se amam
a si mesmos.
3º. Paciência nas
dores e humilhações
Em terceiro lugar, o padre que
se quer santificar, deve estar pronto a sofrer em paz por Deus todos os males
desta vida: pobreza, humilhações, doenças e morte. O Apóstolo diz: Glorificai e
trazei a Deus no vosso corpo. Gilberto comenta assim estas palavras: Quer São
Paulo que tragamos Jesus Cristo de bom grado e com alegria; quem o traz
descontente ou com lamentações, não o traz, antes o arrasta como que à força. -
Não é a receber consolações que uma alma prova a Deus o seu amor; é abraçando
os desprezos e as penas. Foi o nosso próprio Salvador que o disse, quando
caminhou ao encontro dos soldados, que vinham prendê-lo para o conduzirem à
morte: Para que o mundo saiba que amo meu Pai... levantai-vos, vamo-nos daqui.
Também, a exemplo de Jesus Cristo, iam os santos com alegria ao encontro dos
tormentos e da morte.
Tendo São José de Leonissa de
sofrer certo dia uma operação muito dolorosa, queriam ligá-lo com cordas, mas
ele tomando o seu crucifixo exclamou: "Como! Cordas, cordas!...À! eis os
meus laços: o meu Senhor, atravessado de cravos por meu amor, me prende e
obriga a suportar todas as penas por seu amor". Sofreu assim a operação
sem se lamentar. Quem poderia, dizia Santa Teresa, considerar o Salvador
coberto de chagas, aflito e perseguido, sem aceitar como ele os sofrimentos, ou
até desejá-los?" E São Bernardo: Para quem ama a Jesus crucificado, nada
há mais caro que os desprezos e as penas.
O Apóstolo diz - dum modo
especial para nós padres - que é pela paciência que devemos fazer-nos
reconhecer como verdadeiros ministros de Jesus Cristo: Mostremos que somos
ministros de Deus pela nossa paciência nas tribulações, nas necessidades, nas
angústias... nos trabalhos. E Tomás de Kempis faz esta reflexão: No dia do
juízo, não teremos que prestar contas do que lemos, mas do que fizemos. Muitas
coisas sabem os homens de ciência, mas não sabem ver quanto a sua falta de
paciência os prejudica. Que aproveita a ciência sem a caridade. Ainda que eu
conhecesse todos os mistérios e toda a ciência, diz São Paulo, sem a caridade
nada sou. E ajunta: a caridade sofre tudo. Todo aquele que se quer santificar,
deve ser perseguido. Foi o que o nosso Salvador declarou: Perseguiram-me a mim,
também vos perseguirão a vós.
A vida dos santos, escreveu
Santo Hilário, não podia ser tranqüila; é necessário que seja enredada de
contradições e provada pela paciência.
Aflige o Senhor os que admite no
número dos seus filhos. - Aqueles a quem amo, repreendo-os e castigo-os. E
porquê? Porque a prova do amor e da perfeita fidelidade duma alma é a
paciência. A Tobias disse o arcanjo Rafael: Era necessário que fosses provado
pela tentação, porque eras agradável a Deus.
Que importa, diz Santo
Agostinho, que por vezes soframos o castigo por uma falta que não cometemos?
Devemos aceitar essa mortificação, ao menos para expiarmos outras culpas de que
somos réus. Estejamos persuadidos do aviso que nos dá Judite: que se Deus nos
castiga neste mundo, não é para nos perder, mas para nos corrigir e preservar
do castigo eterno. Desde que, pelos nossos pecados passados, somos devedores à
Justiça divina, importa-nos suportar com paciência as tribulações que nos
advierem, e dizer até ao Senhor, com Santo Agostinho: Queimai, cortai, não me
poupeis neste mundo, para me poupardes na eternidade.
Jó dizia: Se temos recebido das
mãos de Deus os bens, porque não havemos de receber os males? Falava assim,
porque sabia bem que, nos males, isto é, nas tribulações desta vida, levadas
com paciência, há muito mais a ganhar, que nas vantagens temporais. Demais, as
penas da vida presente, têm de se sofrer ou por vontade ou por força:
sofrendo-as com paciência, adquirem-se merecimentos para o Céu; levando-as
contra vontade, não se sofre menos e trabalha-se para o inferno. Os mesmos
golpes, diz Santo Agostinho, que servem para fazer bons vasos de glória,
reduzem os maus a cinza. Falando do bom e do mau ladrão, diz o santo Doutor:
Unidos no mesmo suplício, estavam separados pelo modo de sofrer. Ambos sofriam
a morte, mas um, aceitando-a com resignação, salvou-se; o outro ao sofrê-la
blasfemou e condenou-se.
Na visão que o apóstolo São João
teve da felicidade dos eleitos, viu ele que os que gozavam assim da vista de
Deus não vinham do meio das delícias da terra, mas do seio das tribulações:
Vieram de grande tribulação... por isso estão diante do trono de Deus.
4º. Conformidade com a
vontade de Deus
Enfim, quem deseja
santificar-se, só deve querer o que Deus quiser. Todo o nosso bem consiste em
nos unirmos à vontade de Deus. Dizia Sta. Teresa: "O que é preciso
procurar no exercício da oração, é conformar a própria vontade com a de Deus; e
deve-se estar bem persuadido de que é nisso que consiste a mais alta
perfeição". Tudo quanto o Senhor pede de nós é que lhe entreguemos o nosso
coração, ou a nossa vontade. E no dizer de Santo Anselmo, é como que mendigando
que Deus nos pede o nosso coração; ainda que repelido, não desiste, redobra de
instâncias: "Não sois vós, Deus meu, que tantas vezes bateis à nossa
porta, mendigando e dizendo: Meu filho, dá-me o teu coração; e ainda que muitas
vezes vo-lo recusemos, sempre voltais de novo!"
Nenhuma coisa, pois, podemos
oferecer a Deus, que lhe seja mais agradável que a nossa vontade, dizendo-lhe
com o Apóstolo: Senhor, que quereis que eu faça? Daqui este pensamento de Santo
Agostinho: Nada podemos fazer mais agradável a Deus do que dizer-lhe: Tomai
posse de nós. Falando de Davi, disse o Senhor, que tinha encontrado um homem
segundo o seu coração. E porquê? Porque Davi estava disposto a fazer por
inteiro as divinas vontades. Cuidemos pois de dizer sempre com Davi:
Ensinai-me, Senhor, a fazer em tudo a vossa vontade. Neste intuito nos devemos
oferecer muitas vezes a Deus, repetindo com o Rei-Profeta: O meu coração está
preparado, ó Deus, o meu coração está preparado.
Importa porém observar que o
mérito para nós consiste em nos conformarmos com a vontade de Deus, não nas
coisas que nos agradam, mas nas que repugnam ao nosso amor próprio; é esta a
pedra de toque do nosso amor para com Deus. O venerável João de Ávila dizia:
"Um Deus seja louvado! nas contrariedades, vale mais que mil ações de graças,
quando as coisas nos sorriem". Estejamos bem persuadidos, diz Santo
Agostinho, de que tudo quanto cá nos acontecer contra a nossa vontade, nos
acontece por vontade de Deus. Tal é o sentido das palavras do Eclesiástico: Os
bens e os males, a vida e a morte, a pobreza e a riqueza vem de Deus. Assim,
quando recebemos uma injúria, não quer Deus o pecado de quem no-la faz, mas
quer que soframos essa ofensa.
Quando pois nos despojam da
nossa reputação ou dos nossos bens, devemos dizer com Jó: O Senhor me deu, o
Senhor me tirou; fez-se como aprouve ao Senhor; seja bendito o nome do Senhor!
Quem ama a vontade de Deus, goza
duma paz constante, mesmo neste mundo. Ponde a vossa alegria no Senhor, nos diz
Davi, e ele satisfará os desejos do vosso coração. Como o nosso coração foi
criado para um bem infinito, nem todas as criaturas juntas, por isso que são
finitas e limitadas, poderiam satisfazê-lo. Podemos possuir muitos bens, se não
possuirmos a Deus, o nosso coração não se aquietará e sempre desejará mais.
Desde que encontra a Deus, encontra tudo, e Deus satisfaz todos os seus
desejos. É a palavra do Salvador à Samaritana: Quem beber da água que eu lhe
der, não terá mais sede. E ainda noutro lugar: Bem-aventurados os que têm fome
e sede de justiça, porque eles serão saciados. Por isso quem ama a Deus, nunca
se deixa cair no desalento, aconteça o que acontecer. É que o justo sabe que
tudo quando acontece é efeito da vontade de Deus.
Quando os santos são humilhados,
diz Salviano, têm o que desejam: se sofrem a pobreza, alegram-se por serem
pobres; só querem o que Deus quer, e assim gozam duma paz inalterável. É-nos
permitido, nas angústias, pedir ao Senhor que nos livre delas, como o fez Jesus
Cristo no jardim das Oliveiras: Meu Pai, se é possível, afaste-se de mim este
cálice; mas é necessário ajuntar logo com o divino Mestre: Contudo, não se faça
a minha vontade, mas sim a vossa.
É certo que Deus quer, é o que
há de melhor para nós. A um padre enfermo escrevia o venerável João de Ávila:
"Meu amigo, não vos detenhais a pensar no que faríeis em estado de saúde;
contentai-vos com estar doente o tempo que aprouver a Deus. Se quereis fazer a
vontade de Deus, que vos importa estar de saúde ou doente?". É preciso que
nos resignemos a tudo, até a ser assaltados de tentações, que nos excitem a
ofender a Deus. Pedia o Apóstolo ao Senhor que o livrasse duma multidão de
tentações impuras que o atormentavam: Tenho estado entregue aos insultos do
demônio da minha carne... em razão disso, por três vezes pedi ao Senhor que me
livrasse dele. E que lhe respondeu Deus? A minha graça te basta. Estejamos
certos de que Deus, não só deseja, mas toma cuidado do nosso bem. Visto pois
que tanto se interessa por nós, entreguemo-nos nas suas mãos.
E na morte, ó! que felicidade para
uma alma encontrar-se então em perfeita conformidade com a vontade de Deus!
Quem deseja porém morrer neste ditoso estado, deve primeiro durante a sua vida
conformar-se em tudo com a vontade divina. Procuremos pois acostumar-nos à
resignação em tudo quanto nos contrariar, e a repetir sempre esta grande
palavra dos santos, que Jesus Cristo nos ensinou: Seja feita a vossa vontade!
ou a dizer como o nosso Salvador: Seja assim, Pai, visto que assim vos aprouve.
Ofereçamo-nos também continuamente a Deus, dizendo-lhe com a divina Mãe:
Senhor! eis aqui o vosso servo: disponde de mim e de tudo quanto me pertence
como vos aprouver; sou todo vosso. - Santa Teresa oferecia-se a Deus cinqüenta
vezes por dia.
Digamos-lhe ainda com o
Apóstolo: Senhor, que quereis que eu faça? Meu Deus, fazei-me conhecer o que
quereis de mim: estou pronto para tudo.
Grandes coisas fizeram os
santos, para cumprirem a vontade de Deus: uns refugiaram-se nos desertos,
outros encerram-se nos claustros; outros sacrificaram a sua vida no meio dos
tormentos. Nós que somos padres e temos maior obrigação de nos sacrificarmos,
unamo-nos também à vontade de Deus, para chegarmos à santidade. Não nos
desanimemos com as nossas faltas passadas; recordemos as palavras de São
Bernardo acima citadas: "Não examina Deus o que o homem fez no passado,
mas o que quer ser de futuro". Uma vontade firme, com o auxílio de Deus,
triunfa de tudo.
Oremos sempre: quem pede recebe.
Conseguiremos quando pedirmos pela oração. Amemos dum modo particular e não
cessemos de repetir a oração de Santo Inácio: Senhor! dai-me o vosso amor e a
vossa graça; nada mais desejo. Mas, este dom do amor divino é necessário que o
peçamos continuamente e com instância, como o pedia Santo Agostinho nesta oração:
Ouvi-me, ouvi-me, meu Deus, meu Rei, meu Pai, vós que sois a minha honra, a
minha salvação, a minha luz, a minha vida! ouvi-me, ouvi-me, ouvi-me. Ao
presente só a vós amo, só a vós procuro. Curai e abri os meus olhos. Recebei um
escravo que tinha fugido da vossa casa; já bastante servi aos vossos inimigos.
Fazei que me torne um puro e perfeito amante da vossa sabedoria.
E quanto pedirmos graças - ajuntarei
com São Bernardo - peçamo-las sempre por intercessão de Maria, que obtém para
os seus servos tudo quanto pede a Deus. Procuremos a graça, e procuremo-la por
Maria; porque ela encontra o que procura, e não pode sofrer nenhuma recusa.
DÉCIMA PRIMEIRA
INSTRUÇÃO,
Sobre a devoção à Virgem
Santíssima
Pode este assunto ser tratado
nos sermões ou nas instruções, conforme se julgar preferível. Em todo o caso,
quem dá os exercícios a sacerdotes, não deve passar em silêncio este ponto;
porque este discurso é talvez mais útil que todos os outros. Sem a devoção a
Maria, é moralmente impossível ser-se um bom padre.
Vamos considerar, em primeiro
lugar, que a intercessão da santíssima Virgem é moralmente necessária aos
padres; veremos depois a confiança que eles devem ter na intercessão desta
divina Mãe.
§ I
Necessidade moral da intercessão
da santíssima Virgem
Quanto à necessidade da
intercessão da Mãe de Deus, é verdade que o Concílio de Trento, declarou
solenemente que a intercessão dos santos é útil, sem dizer que seja necessária.
No entanto, a esta pergunta: "Somos nós obrigados a pedir aos santos que
intercedam por nós?" Santo Tomás responde afirmativamente, porque a ordem
da lei divina exige que, na condição de viadores, nos salvemos por meio dos
santos, obtendo por sua mediação as graças necessárias à salvação. Eis as suas
palavras: "Segundo São Dionísio, a ordem dos seres exige que os últimos
regressem a Deus por intermédio dos que estão mais próximos dele. E, como os
santos que estão na pátria se acham muito próximos de Deus, exige a ordem da
lei divina que nós, retidos longe do Senhor pelos laços do corpo, regressemos a
ele por meio dos santos".
Depois ajunta: "Assim como
os benefícios de Deus nos advém por meio dos sufrágios dos santos, assim também
é necessário que por meio dos santos nos voltemos para Deus, para recebermos
dele novos benefícios".
O mesmo pensamento se encontra
expresso noutros autores e especialmente no continuador de Tournely, que diz
com Sílvio: Somos obrigados pela lei natural a observar a ordem estabelecida
por Deus; ora Deus estabeleceu que os inferiores cheguem à salvação implorando
o socorro dos superiores.
Mas, se isso é verdade de
intercessão dos santos, muito mais da intercessão de Maria, cujas preces diante
de Deus são mais poderosas que as de todos os santos. Diz o Doutor angélico que
os santos, em razão da graça abundante que Deus lhes dá, podem salvar um número
mais ou menos considerável de outras almas, mas a Virgem bendita mereceu uma
graça tal, que pode salvar todos os homens. E, segundo São Bernardo, assim como
temos acesso a Deus por meio do seu Filho, Jesus Cristo, assim temos acesso ao
Filho por meio da Mãe: "Que por vós tenhamos acesso junto do vosso Filho,
ó Mãe da Salvação, ó vós que encontrastes a graça, para que por vós nos receba
o que por vós nos foi dado.
Donde conclui que todas as
graças de Deus nos advém por meio de Maria: "Deus constituiu Maria
depositária de todos os bens, de modo que, se alguma esperança de graça e de
salvação existe para nós, devemos reconhecer que é como uma emanação da
superabundância daquela, que se eleva cumulada de delícias, para difundir por
toda a parte os perfumes da graça".
Dá o santo a razão desta
disposição: "Tal é, diz ele, a vontade daquele que dispôs que todo o bem
nos adviesse por Maria. É o que também significam todos os textos da Escritura
que a Igreja aplica a Maria: Quem me encontrar, encontrará a vida e salvar-se-á
no Senhor. Em mim está toda a graça da vida e da verdade; em mim toda a
esperança da vida e da virtude... Os que trabalham para mim não pecarão. Os que
me fazem conhecer terão a vida eterna.
Mas o que a Igreja nos faz dizer
na Salve Regina, basta para nos confirmar a todos neste sentimento: ensina-nos
a invocar a santíssima Virgem, chamando-lhe a vossa Vida e a nossa Esperança.
São Bernardo nos exorta a
recorrer a Maria com uma confiança segura de obtermos as graças que lhe
pedirmos, porque o Filho de Deus nada sabe recusar a sua Mãe. E acrescenta que
era ela o fundamento da sua esperança. Conclui por dizer: todas as graças que
desejarmos, devemos pedi-las pela intercessão de Maria, que obtém tudo quanto
quer, e não pode encontrar recusa nas suas súplicas. Antes de São Bernardo, já
Santo Efrém tinha dito igualmente: Toda a nossa confiança está em vós, ó Virgem
puríssima. E Santo Ildefonso: Todos os bens que a divina Majestade resolveu
conceder-nos, quis depositá-los nas vossas mãos; sim, confiou-vos todos os seus
tesouros e todas as jóias das suas graças. São Pedro Damião tem a mesma
linguagem: Nas vossas mãos estão os tesouros das misericórdias do Senhor. E São
Bernardino de Sena: Sois vós a dispensadora de todas as graças; em vossas mãos
está a nossa salvação.
Tal foi também o sentir de São
João Damasceno, São Germano, Santo Anselmo, Santo Antonino, Idiota, e muitos
outros autores graves, como Segneri, Paciucchelli, Crasset, Vega, Mendozza
etc., com o sábio Padre Natal Alexandre, que se exprime assim: Quer Deus que
esperemos dele todos os bens pela intercessão poderosíssima da Virgem Maria,
contanto que a invoquemos como convém. O mesmo escreveu o Padre Contenson, ao
explicar as palavras que Jesus Cristo dirigiu no alto da cruz a São João: Ecce
Mater tua. Eis como ele comenta este texto: É como se dissera: Ninguém terá
parte nos merecimentos do meu sangue, senão por intercessão da minha Mãe. São
as minhas chagas as fontes das graças, mas elas não correm sobre ninguém, senão
pelo canal de Maria. João, meu discípulo, tu serás amado de mim na medida em
que a amares.
Se todos devem ser devotos da
Mãe de Deus, em razão da necessidade moral da sua intercessão, mais instante é
esse dever para os padres que, tendo de cumprir grandes obrigações, carecem de
graças mais abundantes para se salvarem. Nós padres deveríamos permanecer
continuamente aos pés de Maria, a implorar o seu socorro. São Francisco de
Borja temia muito pela perseverança e salvação das pessoas, que não consagravam
uma devoção especial à santíssima Virgem; porque, segundo a expressão de Santo
Antonino, quem pretende obter as graças, sem a intercessão de Maria, tenta voar
sem asas. E Santo Anselmo chega a dizer, dirigindo-se a ela: Todo aquele que
vos abandona, perecerá necessariamente. São Boaventura assegura a mesma coisa:
Quem negligenciar honrá-la, morrerá nos seus pecados. O bem-aventurado Alberto
Magno: Quem vos não servir perecerá.
Finalmente, Ricardo de São
Lourenço diz também, falando de Maria: O mar do mundo engolirá todos aqueles
que não se refugiarem nesta arca.
Ao contrário, o servo fiel da
santíssima Virgem certamente se salvará. "Sim, ó Mãe de Deus! exclamava
São João Damasceno, se eu puser a minha confiança em vós, serei salvo; desde
que esteja sob a vossa proteção, nada terei a temer; porque os vossos servos
têm armas que asseguram a vitória, armas que Deus só concede aos que quer
salvar".
§ II
Confiança que se deve ter na
intercessão da mãe de Deus
Vejamos agora a confiança que devemos
ter na intercessão de Maria, considerando o seu poder e a sua bondade
misericordiosa.
I.
Quanto ao seu poder, Cosme de
Jerusalém chamava à intercessão da nossa Rainha, não só poderosa, mas
onipotente. E Ricardo de São Lourenço diz: O Filho onipotente comunicou a sua
onipotência a sua Mãe. O Filho é onipotente por natureza, e a Mãe por graça;
porque ela obtém de Deus tudo quanto pede, e isto por duas razões: a primeira é
que ela excede todas as criaturas em fidelidade e amor para com Deus; o que
faz, como diz o Padre Soares, que o Senhor ame mais a Maria, que a todos os
bem-aventurados juntos. Um dia Sta. Brígida ouviu Jesus dizer a sua Mãe: Minha
Mãe, pedi-me o que quiserdes, porque nenhuma das vossas súplicas pode ficar sem
efeito. Depois ajunta: Assim como nada me recusastes na terra, também eu nada
vos recusarei no Céu. A segunda razão é que ela é Mãe. Diz Santo Antonino que
as súplicas de Maria têm o caráter dum mandamento, porque são as orações duma
Mãe, e assim é impossível que ela não seja ouvida.
Daí estas palavras que lhe
endereça São Germano: "Ó minha Soberana! Vós sois onipotente para
salvardes os pecadores, não necessitais de nenhuma recomendação junto de Deus,
porque sois a sua Mãe". São Jorge de Nicomédia acrescenta que é de certo
modo em desempenho das suas obrigações para com Maria, de quem recebeu a vida
humana, que Jesus Cristo lhe concede tudo quanto ela pede. Eis por que São
Pedro Damião, admirando igualmente a autoridade desta augusta Rainha, quando
quer obter de meu Filho alguma graça para seus piedosos servos, não teme
dizer-lhe: Aproximais-vos desse Altar, em que se opera a reconciliação dos homens,
não só pedindo, mas mandando na qualidade de Rainha e não de serva, porque o
vosso Filho vos honra, nada vos recusando.
Ainda Maria estava na terra e já
gozava do privilégio de ver todas as suas súplicas ouvidas pelo seu divino
Filho. Nas bodas de Caná, desejando que ele provesse à falta de vinho,
contentou-se com lhe dizer: Não têm vinho. Mas Jesus Cristo respondeu-lhe: Quid
mihi et tibi est, mulier? nondum venit hora mea. Podia parecer que, respondendo
assim, lhe recusava a graça desejada, não deixou contudo de se render à súplica
da sua Mãe, como observa São João Crisóstomo.
As preces de Maria, diz São
Germano, obtém graças insignes, até aos maiores pecadores, porque as sustenta a
autoridade materna. Numa palavra, não há homem, por ímpio que seja, que Maria
não salve por sua intercessão, quando lhe apraz. É a razão da linguagem de São
Jorge de Nicomédia: Tendes um poder inexcedível: por numerosos que sejam os pecados,
não vencem a vossa clemência. Nada resiste ao vosso poder, porque o Criador
olha como própria a vossa glória. Nada vos é impossível, ó minha Rainha,
exclama São Pedro Damião, pois até os desesperados podeis socorrer e salvar.
II.
Tanto Maria é poderosa para nos
salvar pela sua intercessão, como é misericordiosa para conosco e interessada
na nossa salvação. É o que nota São Bernardo. É chamada Mãe de misericórdia,
porque a sua terna bondade para conosco faz que nos ame e socorra, como uma mãe
ama e socorre seu filho doente. Segundo o Padre Nieremberg, o amor de todas as
mães reunidas não iguala o de Maria, por um só de seus servos que a ela se
recomenda.
Por isso é comparada à bela
oliveira na amplidão dos campos. Dos campos, comenta o cardeal Hugues, para que
todos venham e se refugiem junto dela. E assim como a oliveira, dá o azeite,
símbolo da misericórdia, a quem a preme, assim Maria derrama as suas
misericórdias sobre quem recorre a ela.
O bem-aventurado Amadeu e São
Beda afirmam que a nossa Rainha, no Céu, está sempre ocupada a orar por nós.
Ai! exclama São Bernardo, o que é que poderia brotar duma fonte de misericórdia
senão misericórdia? Um dia ouviu Sta. Brígida que o nosso Salvador dizia a sua
Mãe: Mater, pete quod vis a me. E Maria respondeu: Misericordiam pelo miseriss.
É como se tivesse dito: Meu Filho, visto que me constituístes Mãe de
Misericórdia, - que posso eu pedir-vos senão que useis de misericórdia com os
miseráveis pecadores? - A caridade imensa de que está abrasado o coração de
Maria para com todos os homens, diz São Bernardo, como que a obriga a difundir
por todos a sua misericórdia.
Dizia São Boaventura que, em
presença de Maria, lhe parecia perder de vista a terrível justiça de Deus, e
ver apenas a misericórdia divina, que o Senhor deposita nas mãos desta boa Mãe,
para socorrer os miseráveis.
E, segundo São Leão, tão cheia
de misericórdia é ela, que deve ser chamada a própria misericórdia. De fato, ó
Mãe de misericórdia, exclama São Germano, - quem, depois de Jesus Cristo, tem
como vós tanto cuidado da nossa felicidade? Quem como vós nos socorre das nossas
aflições? Quem se interessa assim pelos pecadores? Não nos é dado compreender
em toda a sua extensão a vossa solicitude para conosco. Ao falar também de
Maria, Santo Agostinho exprime-se assim: Sabemos, ó Maria, que o vosso
interesse pelo bem da santa Igreja excede ao de todos os santos juntos.
É como se dissera: Ó Mãe de
Deus! É bem verdade que os santos desejam a nossa salvação, mas o zelo que
pondes em nos assistirdes do alto dos céus, o amor que nos mostrais em nos
obterdes sem cessar tantas graças que sobre nós espalhais a mãos cheias, - obriga-nos
a confessar que só vós amais verdadeiramente, e só vós sois em verdade cheia de
solicitude pelo nosso bem.
E São Germano ajunta: Maria
intercede sempre por nós, reiterando de contínuo as suas instâncias, de modo
que jamais se sacia de tomar a nossa defesa.
Segundo Bernardino de Bustis,
com mais ardor deseja Maria dispensar-nos as graças, do que nós recebê-las. O
mesmo autor ajunta esta reflexão: Assim como o demônio procura sempre dar a
morte a quantos pode, como São Pedro nos adverte, assim Maria procura sempre
salvar quantos desgraçados possa. Agora pergunto: Quem é que recebe os
benefícios de Maria? - e respondo: Quem os quer. - Basta pedir as graças a
Maria, dizia uma santa alma, para as receber Guilherme de Paris contentava-se
com suplicar à bem-aventurada Virgem que orasse por ele, tendo confiança que
ela lhe obteria graças mais abundantes, do que as que ele tivesse ousado
pedir-lhe. Porque razão há tantas pessoas que não recebem graças de Maria?
Porque não as querem.
Quem se acha escravizado por
alguma paixão, - de interesse, ambição, ou impureza - não deseja ser libertado,
e por conseqüência não faz oração; se pedisse a sua salvação a Maria, havia de
obtê-la.
Mas, desgraçado - disse a mesma
ditosa Virgem a Sta. Brígida desgraçado aquele que, podendo recorrer a mim
nesta vida, permanece por sua culpa sepultado no abismo do pecado. Tempo virá
em que queira e não possa.
Ai! Não nos exponhamos a um tal
perigo; recorramos sempre a esta divina Mãe, que a ninguém despede descontente,
conforme as palavras que o devoto Lansperge põe na boca de Nosso Senhor: Eu a
fiz tão terna, que ela não pode deixar ninguém sem consolação. Quem a invoca
sempre a encontra disposta a prestar-lhe auxílio, diz Ricardo de São Lourenço.
Ainda mais, segundo Ricardo de São Vítor, a terna bondade de Maria previne as
nossas súplicas, e assiste-nos ainda antes de termos implorado o seu auxílio. E
isso provém, ajunta o mesmo autor, de Maria ser tão misericordiosa, que não
pode ver as nossas misérias sem nos socorrer.
Quem houve já, exclama Inocêncio
III, que recorresse a Maria e não fosse ouvido? Quem implorou já a sua
assistência, diz também o beato Eutiquiano, e foi dela abandonado? Ó Virgem,
ajunta São Bernardo, se alguém se lembrar de vos ter invocado, sem ser
socorrido, consinto que esse deixe de louvar a vossa misericórdia. Ó! por certo
nunca tal se viu nem se verá; porque Maria, diz São Boaventura, assim como não
ignora as penas dos desgraçados e se compadece deles, também não pode deixar de
os socorrer. E o mesmo santo Doutor conclui daí que esta Mãe de misericórdia,
que tanto deseja socorrer-nos e ver-nos salvos - se dá por ofendida, não só
quando lhe fazemos alguma injúria positiva, mas até quando nos descuidamos de
lhe pedir as graças.
Recorramos pois a Maria e
confiemos na sua misericórdia, por mais indignos que nos reconheçamos de ser
ouvidos, em razão dos nossos pecados. A Sta. Brígida revelou o Senhor que o
próprio Lúcifer se teria salvado por Maria, se esse espírito soberbo pudesse
humilhar-se e implorar o seu socorro. Ouviu a santa que o nosso Salvador falava
assim a sua Mãe: Etiam diabolo exhiberes misericordiam, si humiliter peteret. E
a própria Virgem disse a Sta. Brígida que, quando um pecador vem a seus pés,
não considera ela já os pecados de que está manchado, mas a intenção que os
anima; se vem com a resolução de mudar de vida, cura-o e salva-o. Também São
Boaventura chamava a Maria a salvação dos que a invocam. Basta recorrer a Maria
para ser salvo.
§ III
Prática de devoção à santíssima
Virgem
Repito pois, recorramos sempre a
esta augusta Mãe de Deus, rogandolhe que nos proteja; mas, para melhor
merecermos a sua proteção, tenhamos o cuidado de a honrar quanto possível. Um
grande servo de Maria, o irmão João Berchmans, da Cia. de Jesus, estava em
artigo de morte, quando os seus irmãos lhe perguntaram o que tinha a fazer para
cativarem as boas graças desta poderosa Rainha. Ele respondeu: Quidquid
minimum, dummodo sit constans. Uma leve homenagem basta, para assegurar a
proteção da Mãe de Deus; contenta-se com o mínimo dos nossos esforços, contanto
que seja perseverante; porque é tão generosa, diz Santo André de Creta, que
recompensa habitualmente com graças abundantes as mais pequenas coisas que se
façam em sua honra.
Quanto a nós, não nos devemos
limitar a isso; ofereçamos-lhe ao menos todas as homenagens, que de ordinário
lhe rendem os seus devotos servos: rezar o terço todos os dias, fazer as suas novenas,
jejuar aos sábados, trazer o seu escapulário, (ou a respectiva medalha) visitar
diariamente alguma das suas imagens, pedindo-lhe qualquer graça especial, ler
cada dia um pouco nalgum livro que trate dos seus louvores, saudá-la ao sair de
casa e ao regressar, pôr-se na sua presença; de manhã ao levantar e à noite ao
deitar, rezar três A, M. em honra da sua pureza.
Estas devoções sabem praticá-las
os próprios leigos; mas nós, que somos padres, devemos levar mais longe as
nossas homenagens à Mãe de Deus, pregando as suas glórias e levando os outros a
honrá-la. A quem procurar neste mundo fazê-la conhecer a amar, promete ela a
vida eterna. O bem-aventurado bispo Heming começava todos os seus sermões pelos
louvores de Maria; assim mereceu que ela dissesse um dia a Sta. Brígida:
"Participai a esse prelado que eu quero servir-lhe de mãe, e à sua
alma". Ó! quanto agradaria à santíssima Virgem o padre que todos os sábados,
numa igreja ou capela, fizesse ao povo uma curta instrução sobre as
prerrogativas desta terna Mãe, falando-lhe especialmente da sua misericórdia, e
do desejo que tem de socorrer os que a invocam! Como diz São Bernardo, a
misericórdia de Maria é o mais poderoso atrativo para afeiçoar os povos ao seu
culto.
Ao menos, que o pregador tenha
cuidado em todas as suas instruções, antes de terminar, de mover os fiéis a
recorrer à bem-aventurada Virgem, pedindo-lhe alguma graça.
Em suma, quem honra a Maria, diz
Ricardo de São Lourenço, ajunta tesouros para a vida eterna. Foi com este fim
que há anos publiquei o meu livro - As Glórias de Maria. Dei-me a enriquecê-lo
com passagens da Escritura e dos santos padres, exemplos e práticas de devoção,
não só para oferecer a todos os fiéis assuntos de leitura, mas até para dum
modo particular servirem aos padres, fornecendo-lhes matéria abundante para
pregarem os louvores da Mãe de Deus, e inspirarem ao povo uma fervorosa devoção
para com ela.
NOTA DO TRADUTOR PORTUGUÊS.
Temos presente uma edição
francesa das Glória de Maria, em cujo prefácio encontramos o seguinte:
"O próprio Santo Afonso,
sem o querer, fez a um tempo o elogio da sua obra e da sua virtude, numa
ocasião tocante, que o Padre Panzuti refere. Quando já contava quase noventa
anos, fazia-lhe a leitura espiritual o irmão que o servia. Um dia, arrebatado
pelo que ouvia, e tendo a memória enfraquecida, perguntou-lhe por fim: 'Meu
irmão, quem foi que compôs esse belo livro, que está tão bem escrito? Que
suavidade! Dizei-me: quem é o seu autor?' O irmão, em resposta, leulhe o
título: 'Glórias de Maria, por Afonso de Ligório'. A estas palavras, o
venerando ancião ficou confuso e guardou silêncio. A sua humildade fora colhida de surpresa".