A SELVA POR SANTO AFONSO
MARIA DE LIGÓRIO
TRADUÇÃO de Padre MARINHO
PREFÁCIO
Há uns vinte anos que nos vimos dedicando
principalmente à formação eclesiástica, para a qual temos publicado alguns opúsculos,
a que a tradução da Selva vem agora por o remate. Em conseqüência da revolução de
cinco de outubro de 1910, tivemos de emigrar em maio de 1911 e só regressamos a
27 de fevereiro de 1912. Assim a Providência nos deparou ensejo de preparar lá fora
as Considerações Íntimas, que logo ao regressar cuidamos de fazer imprimir. Escrevíamos
então no prefácio:
"Diante dos montões de ruínas,
que ora se deparam a nossos olhos, devemos confessar que não sentimos a menor tentação
de desânimo, antes que cada vez mais nos firmamos na convicção de que a Providência
nos reserva enormes bens, sob a perspectiva dolorosa de grandes males. Estava a
cair de carunchoso o edifício da sociedade portuguesa, e tinha-se aluido com a conivência,
por vezes escandalosa, daqueles que mais deviam trabalhar pela sua conservação.
Sem dúvida, foi por isso mesmo que ele caiu quase sem ruído: mal se lhe sentiu o
baque final, e, após um momento de surpresa, ouviu-se o ressoar de muitas palmas,
-- não poucas de príncipes da Igreja. Era a condenação do passado, o entusiasmo
pelo presente e a esperança no futuro? Fosse o que fosse, não vem para aqui dizê-lo,
porque a índole desta obra o não permite. O que agora importa é delinear o novo
edifício e assentar-lhe sólidos alicerces: eis o assunto que aqui tratamos.
Três são, nas circunstâncias atuais,
os apostolados a que os católicos portugueses se devem consagrar de alma e coração:
1º., a formação e disciplina do clero; 2º.,
o ensino do catecismo; 3º., o desenvolvimento
e boa orientação da imprensa.
A primeira, a maior e a mais meritória
de todas as obras sociais é a formação de bons sacerdotes. A ela pois, mais que
a nenhuma outra, devemos dedicar os nossos esforços. Quanto a nós, de boa vontade
lhe prestamos a nossa humilde cooperação. Anima-nos a convicção profunda de que
é esta, em especial, a tarefa que nos incumbe na hora presente...
Damos graças a Deus por vermos confirmado
o vago pressentimento, com que então encarávamos o futuro: o vendaval passou, nas
ruínas do velho edifício ficou sepultada a simonia, e todos os príncipes da Igreja
se acham hoje compenetrados da sua alta missão. Há muito a fazer, mas a orientação
está traçada e é segura: os fiéis com os bispos, os bispos com o Papa. A grande
obra será sempre a formação de bom clero;
e nela todos podem e devem cooperar, ao menos pela oração. Conforme se verá
no prefácio seguinte, do tradutor francês, a Selva é o livro clássico da formação
e santificação do clero. A nosso ver, se há livro que deva ser obrigatório para
um ordinando, está este em primeiro lugar;
por isso o apresentamos em português, ao darmos por terminada a nossa missão
de diretor espiritual interino, do Seminário do Porto.
Foz do Douro, 13/10/1928. Padre Marinho
PREFÁCIO DO TRADUTOR FRANCÊS
Mês de Maria de 1869.
Começamos a série das obras destinadas
especialmente ao clero. A que vem agora, em primeiro lugar, apareceu em 1760, depois
da Verdadeira Esposa de Jesus Cristo, quando o santo Autor tinha atingido a idade
de sessenta e quatro anos. É o fruto das suas investigações e estudos, de cerca
de quarenta anos, tanto para regular a sua própria conduta, como para dirigir os
retiros eclesiásticos, que pregou pela primeira vez ao clero de Nápoles, por ordem
do arcebispo, em 1732, quando apenas contava seis anos de sacerdócio. Era já olhado
como um modelo e um mestre, para ser encarregado de formar outros ministros do santuário,
em todos os degraus.
Foi este livro um dos que obteve maior
êxito, o que nos dá uma alta idéia dos frutos produzidos. Em breve apareceu traduzido
nas principais línguas da Europa. Conhecemos pelo menos cinco traduções francesas; entre elas avulta pelo seu mérito a de Mgr. Gaume,
de que muitas vezes nos temos aproveitado.
Na sua Advertência, previne-nos o
Autor de que não se preocupou com a ligação das idéias próprias de cada assunto; ver-se há contudo que não falta ali a ordem conveniente.
Para a salientar quanto possível, segundo o nosso método ordinário, dividimos cada
assunto em diversos parágrafos. Graças a esta disposição, não só se tornará mais
fácil apreender e reter as matérias, mas até se poderá utilizar o livro tanto para
meditação, como para leitura espiritual.
Aqui dum modo muito particular, convém
recordar o que noutro lugar já dissemos: é que todas as citações de autores, notadas
à margem, foram cuidadosamente verificadas, e por vezes corrigidas. Santo Afonso
nem sempre pôde recorrer às fontes; teve
de se contentar muitas vezes com o que lhe ofereciam os autores que tinha à mão,
e que se limitavam a reproduzir as inexatidões dos seus predecessores, aumentadas
com os copistas e tipógrafos. Daí a necessidade de rever os textos originais, para
tornar exatas as citações. Foi um grande trabalho, sobretudo numa obra como esta; mas, graças às investigações do Reverendo Padre
de Fooz, conseguimos fazer um bom número de correções importantes.
Quanto ao valor e utilidade desta
Compilação, de bom grado citamos a seguinte passagem de Mgr. Gaume:
"Tendes lido Massillon, Sevoy,
o Espelho do clero; que tendes vós? Três
autoridades sem dúvida muito respeitáveis;
mas enfim são autoridades particulares, e a vossa razão tantas vezes iludida
com autoridades deste gênero e com nomes próprios, hesita, desconfia, e, usando
do seu direito, julga, aceita, rejeita, e não se eleva acima de uma fé filosófica.
Úteis em todos os tempos, estas obras, monumentos de eloquência ou de piedade, são
hoje insuficientes: às amplas expansões do erro, era preciso opor o desenvolvimento
análogo da verdade; à invasão do espírito
particular, a imposição autorizada do espírito católico. Lede a Selva e dizei se
é possível atingir este fim: não é o pensamento dum homem que aqui vos é dado, como
regra do vosso, é o pensamento dos séculos;
não é o do bispo de Santa Ágatha;
é a tradição inteira que prega, que instrui, que proíbe, que manda, que reanima,
que espanta.
"É este livro como uma tribuna
sagrada do alto da qual falam por sua vez os Profetas, os Apóstolos, os homens apostólicos,
os mártires, os solitários, os pontífices mais ilustres do Oriente e do Ocidente,
os doutores mais afamados, os mestres mais hábeis na ciência dos santos, os sucessores
de Pedro e os concílios, os órgãos do Espírito Santo, numa palavra, a antigüidade,
a idade média, os tempos modernos da Igreja inteira.
"No meio desta augusta assembléia,
que faz o santo Bispo? Quase sempre se limita ao modesto papel de relator; muitas vezes deixa ao vosso cuidado deduzirdes
as conclusões. Nada de longos raciocínios, induções, interpretações particulares.
Está nisso o mérito próprio e o caráter providencial da Selva: mais que noutra qualquer
época o mundo, e o clero que deve salvar o mundo, tinham necessidade do pensamento
católico, e o Santo dá-lho puro e íntegro;
teve receito de o enfraquecer, misturando-lhe o seu.
"O resultado para o livro é torná-lo
mais imponente. Não há margem para discussões: que poderá de fato alegar contra
este concerto unânime a razão do leitor, colocada dum extremo a outro na alternativa,
ou de subscrever a tudo para permanecer católica, ou de se isolar, de se suicidar
no isolamento? Poderia a lógica com todo o seu rigor ter levado o pensamento até
este ponto?
"Mas que força dá ao clero esta
vasta revelação dos seus deveres! Viva muito embora o padre no meio da indiferença
e da incredulidade, persuadalhe o mundo corrompido e relaxação, façam coro secreto
com as máximas do mundo as suas próprias paixões, cúmplices de todos os erros, --
não lhe é possível descer das alturas da santidade, em que a sua vocação o fixou
e permanecer surdo a esta voz imperiosa dos séculos: "Sê santo!"
Assim fala Mgr. Gaume, e há de reconhecer-se
que de fato é tal a força do livro, força igualada pela unção que a acompanha, como
nas outras obras do Autor, e ambas apoiadas pelo exemplo da sua vida. Até certo
ponto se pode dizer dele como do divino Mestre: Coepit facere, et docere. Eis as
regras de vida que ele se traçou, desde a sua entrada para as Santa Ordens, quando
permanecia no seio da sua família, depois de recebido o hábito eclesiástico e a
prima tonsura:
1º. Freqüentar sempre santos sacerdotes,
para me edificar com seus exemplos.
2º. Fazer todos os dias pelo menos
uma hora de oração mental, para alimentar o recolhimento e o fervor.
3º. Visitar assiduamente o Santíssimo
Sacramento, sobretudo nos templos onde estiver exposto.
4º. Ler a vida dos santos eclesiásticos,
para neles encontrar modelos a imitar.
5º. Ter uma devoção especial à santíssima
Virgem, Mãe e Rainha do clero, e devotar-me particularmente ao seu serviço.
6º. Honrar o estado eclesiástico,
e por isso nada fazer que possa acarretar a mais ligeira mancha à sua reputação.
7º. Ser sempre respeitoso para com
as pessoas do mundo, sem as freqüentar; não
me familiarizar com os seculares, sobretudo com as pessoas do outro sexo.
8º. Ver a vontade de Deus nas ordens
dos superiores e obedecer-lhes como ao próprio Deus.
9º. Trazer o hábito eclesiástico e
a tonsura clerical; mostrar-me sempre modesto,
sem afetação, singularidade ou pretensão.
10º. Viver em paz no seio da família; estar atento às lições do professor na aula; ser exemplar no templo, sobretudo no desempenho
dalguma função.
11º. Confessar-me ao menos de oito
em oito dias e comungar ainda mais vezes.
12º. Afastar-me de todo o mal, e exercitar-me
na prática de todo o bem. O jovem levita, que já se tinha feito admirar noutra carreira,
( na de advogado ) edificou toda a cidade
de Nápoles pelo seu fervor sempre crescente, subindo aos diversos degraus do sacerdócio; e ao cabo de três anos duma preparação tão perfeita,
foi julgado digno de ser elevado com dispensa ao Sacerdócio, em 21 de dezembro de
1726. Escreveu então as resoluções seguintes:
1º. Sou sacerdote, a minha dignidade
está acima da dos anjos; deve ser pois a
minha vida duma pureza angélica, para a qual sou obrigado a tender por todos os
meios possíveis.
2º. Um Deus digna-se obedecer à minha
voz; com melhoria de razão devo eu obedecer
à sua, obedecer à graça e aos meus superiores.
3º. A santa Igreja honrou-me; é necessário que por minha vez eu a honre, com
a santidade da minha vida, com o meu zelo, com os meus trabalhos etc.
4º. Eu ofereço ao Padre eterno Jesus
Cristo, seu Filho; logo é do meu dever revestir-me
das virtudes de Jesus Cristo, e tornar-me capaz de tratar o mais santo dos mistérios.
5º. O povo cristão vê em mim um ministro
de reconciliação, um mediador entre Deus e os homens; logo é necessário que eu me conserve sempre na
graça e amizade de Deus.
6º. Querem os fiéis ver em mim um
modelo das virtudes a que aspiram; devo portanto
edificá-los a todos e sempre.
7º. Os pobres pecadores, que perderam
a vida das graça, esperam de mim a sua ressurreição espiritual; é necessário pois que eu trabalhe nela, pelas
minhas orações, exemplos, palavras e conduta.
8º. Preciso de coragem para triunfar
do demônio, da carne, e do mundo; logo devo
corresponder à graça divina, para os combater vitoriosamente. 9. Preciso de ciência
para me tornar capaz de defender a religião, combater o erro e a impiedade; devo pois aproveitar-me de todos os meios possíveis
para adquirir essa ciência.
10º. O respeito humano e as amizades
mundanas desonram o sacerdócio: logo devo ter-lhes horror.
11º. Nos padres, a ambição e o espírito
de interesse conduzem as mais das vezes à perda da fé; devo pois abominar esses vícios como origens de
reprovação.
12º. Em mim a gravidade e a caridade
devem ser inseparáveis: serei portanto prudente e reservado, principalmente a respeito
das pessoas do outro sexo, sem ser altivo, grosseiro ou desdenhador.
13º. Só posso agradar a Deus pelo
recolhimento, fervor e virtudes sólidas, que o santo exercício da oração alimenta; nada pois devo descurar para as adquirir.
14º. Só devo procurar a glória de
Deus, a minha santificação e a salvação do meu próximo; a isso pois me devo dedicar, até com sacrifício
da minha vida, se tanto for necessário.
15º. Sou padre: o meu dever é inspirar
a virtude, e glorificar a Jesus Cristo, Sacerdote eterno. Eis a aurora desse astro,
que devia percorrer uma tão longa órbita e elevar-se a tão alta perfeição: Quasi
lux splendens, procedit, et crescil usque ad perfectam diem! O nosso Santo é já
reconhecido como um dos mais puros luminares, que Deus enviou para alumiar o mundo:
Quasi sol refulgens, sic ille effulsit in templo Dei. Esperamos que um novo decreto,
ajuntando ainda novo raio à sua glória, para bem do povo cristão, em breve o proclamará
doutor da Igreja. Nesta expectativa, não deixaremos de nos aproveitar dos seus ensinamentos
e de imitar as suas virtudes, para irmos um dia partilhar da sua eterna felicidade.
Ao terminarmos este trabalho, cremos
poder afirmar que a nenhum cuidado nos poupamos, para o tornar o mais útil possível
aos nossos irmãos no sacerdócio, e aos jovens discípulos do santuário; se tivermos a felicidade de contribuir para o
bem espiritual de alguns, rogamos-lhes que se lembrem de nós, principalmente no
santo altar, e prometemos retribuir-lhes na mesma moeda.
VIVA JESUS, MARIA, JOSÉ E AFONSO!
Advertência necessária a quem dá exercícios
espirituais a sacerdotes
Dá-se a este livro o título de Compilação
de materiais, e não de discursos ou Exercícios espirituais, porque, embora se tenha
tido o cuidado de reunir o que pertence propriamente a cada um dos assuntos propostos,
não se lhe imprimiu a ordem que em regra exige um discurso sobre a matéria.
Não se desenvolvem as idéias; expõem-se sem coordenação e com brevidade; mas é de propósito, para que o leitor escolha
as autoridades, os ensinamentos e pensamentos, que mais lhe agradarem; depois os ordene e desenvolva à sua vontade, compondo
assim um discurso seu. A experiência de monstra que é difícil a um pregador exprimir
com calor e energia idéias, de que primeiro se não tenha apropriado, escolhendo-as
ao menos entre muitas outras, ou dando-lhes a ordem e desenvolvimento convenientes,
na composição do seu discurso. Foi ainda nesse intuito que se citaram muitas passagens
de diversos autores, a exprimirem o mesmo pensamento, para que o leitor escolha
as que forem mais do seu gosto.
Falamos assim, para que se compreenda
o fim da obra. Vão agora alguns avisos, a que deve atender quem dá os exercícios
espirituais a sacerdotes:
1º.
Antes de tudo, que se proponha nos
seus discursos um fim reto, que deve ser, não adquirir a reputação de sábio, de
grande gênio, de homem eloqüente, mas unicamente dar glória a Deus, fazendo bem
aos ouvintes.
2º.
Que não procure adornar os seus discursos
com coisas estranhas, pensamentos novos e sublimes, que apenas levam o espírito
dos ouvintes a refletir na beleza das idéias, ao passo que a vontade permanece árida
e estéril; mas que se aplique a dizer as
coisas que julgar mais próprias, para mover os ouvintes a boas resoluções.
3º.
Para este fim, que recorde muitas
vezes as verdades eternas; porque é pela
meditação delas que se obtém a perseverança, conforme a máxima do Espírito Santo:
Memorare novissima tua, et in aeternum non peccabis.
É verdade que alguns eclesiásticos
não gostam dos sermões sobre os novíssimos, e ofendem-se de se verem tratados à
maneira dos seculares, como se não houvessem de morrer e ser julgados como eles!
Nem por isso quem lhes dá os exercícios deixará de lhes falar muitas vezes da morte,
do juízo e da eternidade: são verdades capazes de levar a uma mudança de vida quem
as considerar atentamente.
4º.
Não se esqueça de insinuar, sempre
que possa, alguma coisa prática, por exemplo: o modo de fazer a oração mental, de
dar graças depois da missa, de corrigir os pecadores, e sobretudo de ouvir as confissões,
particularmente dos recidivos e dos que estão em ocasião próxima; porque muitos confessores pecam neste ponto, uns
por demasiado rigor, outros por demasiada facilidade em darem a absolvição, -- o
que é mais freqüente, e assim são causa da condenação de muitas almas. Os textos
latinos ouvem-se e logo se esquecem; só as
coisas práticas ficam na memória.
5º.
Não se esqueça de tratar com respeito
e doçura os sacerdotes que o escutam. Com respeito, digo, mostrando veneração por
eles, por isso os chamará -- senhores e santos. Se verberar algum vício, falará
em geral, protestando que as suas palavras se não dirigem a nenhum dos presentes.
Ponha cuidado sobretudo em não repreender em particular a nenhum qualquer falta,
bem como em não tomar tom de autoridade. Tratará de falar com familiaridade, que
é o modo mais próprio para persuadir e comover. Com doçura: não se deixe ir à cólera
nos seus discursos; não deixe escapar palavras
injuriosas, mais próprias para azedar os ânimos, que para mover à piedade.
6º.
Quando os assuntos forem terríveis,
não lance na alma dos seus ouvintes a desesperação de se salvarem ou emendarem; por fim, deixe a todos, mesmo aos mais relaxados,
a porta aberta para se animarem a mudar de vida: exorte-os a porem a sua confiança
nos merecimentos de Jesus Cristo e na intercessão da divina Mãe; que recorram pela oração a estas duas grandes
âncoras da esperança. Em quase todos os seus discursos, recomendará com instância
o exercício da oração, que é o meio único de se obterem as graças necessárias à
salvação.
7º.
Enfim, e acima de tudo, quem prega
a padres espere o fruto que deseja produzir, não dos seus talentos e esforços, mas
da misericórdia divina e das suas orações, pedindo ao Salvador que dê força às suas
palavras; porque é sabido que, de ordinário,
os sermões a padres permanecem quase inteiramente sem efeito, e que para um padre
exercitante se decidir a mudar de vida, se é pecador, ou a tornar-se melhor, se
é tíbio, é necessária uma espécie de milagre, que raras vezes se dá; donde deriva que, para converter padres, é mais
necessária a oração que o estudo.
PRIMEIRA PARTE MATERIAIS PARA OS
SERMÕES
CAPÍTULO, 1. A dignidade do Padre
§ 1º Idéia da dignidade
sacerdotal
Diz Santo Inácio mártir que a dignidade sacerdotal tem a supremacia entre todas
as dignidades criadas. Santo Efrém exclama: "É um prodígio espantoso a dignidade do
sacerdócio, é grande, imensa, infinita. Segundo São João Crisóstomo, o
sacerdócio, embora se exerça na terra, deve ser contado no número das coisas
celestes. Citando Santo Agostinho, diz Bartolomeu Chassing que o sacerdote,
alevantado acima de todos os poderes da terra e de todas as grandezas do Céu,
só é inferior a Deus. e Inocêncio 3º assegura que o sacerdote está colocado
entre Deus e o homem; é inferior a Deus,
mas maior que o homem.
Segundo São Dionísio, o sacerdócio é uma dignidade angélica, ou antes divina; por isso chama ao padre um homem divino. Numa
palavra, concluí Santo Efrém, a dignidade sacerdotal sobreleva a tudo quanto se
pode conceber. Basta saber-se que, no dizer do próprio Jesus Cristo, os padres
devem ser tratados como a sua pessoa: Quem vos escuta, a mim escuta; e quem vos despreza, a mim despreza. Foi o que
fez dizer ao autor da Obra imperfeita: Honrar o sacerdote de Cristo, é honrar o
Cristo; e fazer injúria ao sacerdote de
Cristo, é fazê-la a Cristo". Considerando a dignidade dos sacerdotes,
Maria d'Oignies beijava a terra em que eles punham os pés.
§ 2º Importância das funções
sacerdotais
Mede-se a dignidade do padre pelas altas funções que ele exerce. São os padres
escolhidos por Deus, para tratarem na terra de todos os seus negócios e
interesses; é uma classe inteiramente
consagrada ao serviço do divino Mestre, diz São Cirilo de Alexandria. Também
Santo Ambrósio chama ao ministério sacerdotal uma "profissão divina".
O sacerdote é o ministro, que o próprio Deus estabeleceu, como embaixador
público de toda a Igreja junto dele, para o honrar, e obter da sua bondade as
graças necessárias a todos os fiéis.
Não pode a Igreja inteira, sem os padres, prestar a Deus tanta honra, nem obter
dele tantas graças, como um só padre que celebra uma missa. Com efeito, sem os
padres, não poderia a Igreja oferecer a Deus sacrifício mais honroso que o da
vida de todos os homens: mas o que era a
vida de todos os homens, comparada com a de Jesus Cristo, cujo sacrifício tem
um valor infinito? O que são todos os
homens diante de Deus senão um pouco de pó, ou antes um nada? Isaías diz: São como uma gota de água... e todas as nações
são diante dele, como se não fossem.
Assim, o sacerdote que celebra uma missa rende a Deus uma honra infinitamente
maior, sacrificando-lhe Jesus Cristo, do que se todos os homens, morrendo por
ele, lhe fizessem o sacrifício das suas vidas. Mais ainda, por uma só missa, dá
o sacerdote a Deus maior glória, do que lhe têm dado e hão de dar todos os
anjos e santos do Paraíso, incluindo também a Virgem santíssima; porque não lhe podem dar um culto infinito,
como o faz um sacerdote celebrando no altar.
Além disso, o padre que celebra oferece a Deus um tributo de reconhecimento
condigno da sua bondade infinita, por todas as graças que ele há sempre
concedido, mesmo aos bem-aventurados que estão no Céu. Este reconhecimento
condigno nem todos os bem-aventurados juntos o poderiam prestar; de modo que, ainda sob este ponto de vista, a
dignidade do padre está acima de todas as dignidades, sem exceptuar as do Céu.
Mais, o padre é um embaixador enviado pelo universo inteiro, como intercessor
junto de Deus, para obter as suas graças para todas as criaturas; assim fala São João Crisóstomo. Santo Efrém
ajunta que o padre trata familiarmente com Deus. Para o padre, numa palavra,
não há nenhuma porta fechada.
Jesus Cristo morreu para fazer um padre. Não era necessário que o Redentor
morresse para salvar o mundo: uma gota
de sangue, uma lágrima, uma prece lhe bastava para salvar todos os homens; porque, sendo esta prece dum valor infinito,
era suficiente para salvar, não um mundo, mas milhares de mundos.
Pelo contrário, foi necessária a morte de Jesus Cristo para fazer um padre: pois, doutro modo, - onde se encontraria a
Vítima que os padres da lei nova oferecem hoje a Deus, Vítima santíssima, sem
mancha, só por si suficiente para honrar a Deus duma maneira condigna de Deus? O sacrifício da vida de todos os anjos e de
todos os homens não seria capaz, como acabamos de dizer, de prestar a Deus a
honra infinita, que lhe presta um padre com uma só missa.
§ 3º Excelência do poder
sacerdotal
Mede-se também a dignidade do padre pelo poder que ele exerce sobre o corpo
real e o corpo místico de Jesus Cristo.
Quanto ao corpo real, é de fé que no momento em que o padre consagra, o Verbo
encarnado se obrigou a obedecer-lhe, vindo às suas mãos sob as espécies
sacramentais. Causou espanto que Deus obedecesse a Josué, e mandasse ao sol que
se detivesse à sua voz, quando ele disse: Sol! fica-te imóvel diante de Gabaon... E o sol
deteve-se no meio do Céu.
Mas é muito maior prodígio que Deus, em obediência a poucas palavras do padre,
desça sobre o altar, ou a qualquer parte em que o sacerdote o chame, quantas
vezes o chamar, e se ponha entre as suas mãos, embora esse sacerdote seja seu
inimigo! Aí permanece inteiramente à
disposição do padre, que pode transportá-lo à sua vontade dum lugar para outro,
encerrálo no tabernáculo, expô-lo no altar, ou ministrá-lo aos outros. É o que
exprime com admiração São Lourenço Justiniano, falando dos padre: "Bem alto é o poder que lhes é dado! Quando querem, demudam o pão em corpo de
Cristo: o Verbo encarnado desde do Céu e
desce verdadeiramente à mesa do altar! É-lhes dado um poder que nunca foi outorgado
aos anjos. Estes conservam-se junto do trono de Deus; os sacerdotes têm-no nas mãos, dão-no ao povo
e eles próprios o comungam".
Quando ao corpo místico de Jesus Cristo, que se compõe de todos os fiéis, tem o
sacerdote o poder das chaves: pode
livrar do inferno o pecador, torná-lo digno do Paraíso, e, de escravo do
demônio, fazê-lo filho de Deus. O próprio Jesus Cristo se obrigou a estar pela
sentença do padre, em recusar ou conceder o perdão, conforme o padre recusar ou
dar a absolvição, contanto que o penitente seja digno dela.
De modo que o juízo de Deus está na mão do padre, diz São Máximo de Turim. A
sentença do padre precede, ajuda São Pedro Damião, e Deus a subscreve. Assim,
conclui São João Crisóstomo, o Senhor supremo do universo não faz senão seguir
o seu servo, confirmando no Céu tudo quanto ele decide na terra.
Os padres, diz Santo Inácio mártir, são os dispensadores das graças divinas e
os consócios de Deus. E, segundo São Próspero, são a honra e as colunas da
Igreja, portas e porteiros do Céu.
Se Jesus Cristo descesse a uma igreja, e se sentasse num confessionário para
administrar o sacramento da Penitência, ao mesmo tempo que um padre sentado no
outro, o divino Redentor diria: Ego te
absolvo o padre diria o mesmo: Ego te
absolvo; e os penitentes ficariam
igualmente absolvidos, tanto por um como pelo outro.
Que honra para um súdito, se o seu rei lhe desse poder para livrar da prisão
quem lhe aprouvesse! Mas muito maior é o
poder dado pelo Padre Eterno a Jesus Cristo, e por Jesus Cristo aos padres,
para livrarem do inferno, não só os corpos, mas até as almas; esta reflexão é de São João Crisóstomo.
§ 4º A dignidade do padre excede
todas as dignidades criadas
A dignidade sacerdotal é pois neste mundo a mais alta de todas as dignidades,
nota Santo Ambrósio. Ela excede, diz São Bernardo, todas as dignidades dos
imperadores e dos anjos. Santo Ambrósio ajunta que a dignidade do padre
sobreleva à dos reis como o ouro ao chumbo. A razão disso, segundo São João
Crisóstomo, é que o poder dos reis só se estendem aos bens temporais e aos
corpos, ao passo que o dos padres abrange os bens espirituais e as almas. Donde
se conclui, em conformidade com o que fica exposto, que o poder ou a dignidade
do padre é tão superior à dos príncipes como a alma ao corpo; era o que já tinha dito o Papa São Clemente.
É uma glória para os reis da terra honrar os padres; é isso próprio dum bom príncipe, diz o Papa
Marcelo. Os reis, diz Pedro de Blois, apressam-se a dobrar o joelho diante do
sacerdote, a beijar-te a mão, e a abaixar humildemente a cabeça para receberem
a sua bênção.
Reconhecem assim a superioridade do sacerdócio, diz São João Crisóstomo. Conta
Barónio que Leôncio, bispo de Trípoli, tendo sido chamado à côrte pela
imperatriz Eusébia, lhe mandara dizer que, se queria a visita dele, era
necessário que primeiro aceitasse as seguintes condições: que à sua chegada a imperatriz desceria do seu
trono, viria inclinar a cabeça sob as suas mãos, pedir-lhe e receber dele a
bênção; depois ele se assentaria, e ela
só o poderia fazer com permissão sua. Terminava por dizer-lhe que, a não se
darem essas condições, jamais poria os pés na sua côrte.
Convidado para a mesa do imperador Máximo, São Martinho brindou primeiro o seu
capelão e só depois o imperador. No Concílio de Nicéia, quis Constantino Magno
ocupar o último lugar, depois de todos os sacerdotes, num assento menos
elevado; e ainda se não quis assentar
sem permissão deles. O santo rei Boleslau tinha pelos sacerdotes uma tal
veneração que não se assentava na presença deles.
A dignidade sacerdotal ultrapassa até a dos anjos, razão por que também estes a
veneram. Velam os anjos da guarda pelas almas que lhe estão confiadas, de modo
que, se elas se encontram em estado de pecado mortal, excitam-nas a recorrer
aos sacerdotes, esperando que eles pronunciem a sentença de absolvição; assim fala São Pedro Damião.
Se um moribundo pedir a assistência de São Miguel, bem poderá, é verdade, este
glorioso arcanjo expulsar os demônios que o cercarem, mas não quebrar-lhes as
cadeias, se não vier um padre que o absolva. Acabando São Francisco de Sales de
conferir a ordem de presbítero a um digno clérigo, notou à saída que ele
trocava algumas palavras com outra pessoa, a quem queria ceder a passo.
Interrogado pelo Santo, respondeu ao jovem sacerdote que o Senhor o tinha
honrado com a presença visível do seu anjo da guarda. Este antes da sua
elevação ao sacerdócio caminhava à sua direita e precedia-o, mas agora tomava a
esquerda e recusava caminhar diante; por
isso ele se tinha ficado à porta, numa santa contenda com o anjo. São Francisco
de Assis dizia: "Se eu visse um
padre, primeiro ajoelharia diante do padre, e depois diante do anjo".
Mais ainda, o poder do padre excede até o da santíssima Virgem; porque a Mãe de Deus pode pedir por uma alma e
obter-lhe quanto quiser pelas suas súplicas, mas não pode absolvê-la da menor
falta. Escutemos Inocêncio 3º: "Embora a santíssima Virgem esteja
elevada acima dos apóstolos, não foi contudo a ela, mas a eles que o Senhor
confiou as chaves do reino dos céus".
Por outro lado, São Bernardino de Sena, dirigindo-se a Maria, diz igualmente
que Deus elevou o sacerdócio acima dela; e eis a razão que dá: Maria concebeu Jesus Cristo uma só vez; o padre pela consagração concebe-o, por assim
dizer, quantas vezes quer; de modo que,
se a pessoa do Redentor ainda não existisse no mundo, o padre, pronunciando as
palavras das consagração, produziria realmente esta pessoa sublime do
Homem-Deus.
Daqui esta bela exclamação de Santo Agostinho: "Ó venerável dignidade a dos sacerdotes,
entre cujas mãos o Filho de Deus encarna como encarnou no seio da
Virgem!". Por isso São Bernardo, entre muitos outros, chama aos padres
pais de Jesus Cristo. De fato, são causa da existência real da pessoa de Jesus
Cristo na Hóstia consagrada.
De certo modo, pode o padre dizer-se criador do seu Criador, porque
pronunciando as palavras da consagração, cria Jesus Cristo sobre o altar, onde
lhe dá o ser sacramental, e o produz como vítima para o oferecer a Padre
eterno. Para criar o mundo, Deus só disse uma palavra: Disse, e tudo foi feito; do mesmo modo, basta que o sacerdote diga
sobre o pão: Isto é o meu corpo; = Hoc est corpus meum; e eis que o pão deixou de ser pão: é o corpo de Jesus Cristo. São Bernardino de
Sena vê nesta maravilha um poder igual ao que criou o universo. E Santo
Agostinho exclama de assombro: "Ó
venerável e sagrado poder o das mãos do padre! Ó glorioso ministério! Aquele que me criou a mim, deu-me, se ouso
dizê-lo, o poder de o criar a ele; e ele
que me criou sem mim, criou-se a si por meio de mim!"
Assim como a palavra de Deus criou o céu e a terra, assim também, diz São
Jerônimo, as palavras do padre criam Jesus Cristo. Tão alta é a dignidade do
padre que vai até abençoar sobre o altar o próprio Jesus, como Vítima para
oferecer ao Padre eterno. Segundo nota o Padre Mansi, no sacrifício da Missa,
Jesus Cristo é considerado como Sacrificador principal e como Vítima: como Sacrificador abençoa o padre; mas, como Vítima, é abençoado pelo padre.
§ 5º O alto posto ocupado pelo
padre
A excelência da dignidade sacerdotal mede-se também pelo alto posto que o padre
ocupa. No sínodo de Chartres, celebrado em 1550, é chamado "a morada dos
santos". Dá-se aos padres o título de vigários de Jesus Cristo, e assim os
chama Santo Agostinho, porque fazem as suas vezes na terra. Tal é também a
linguagem empregada por São Carlos Borromeu no sínodo de Milão: Somos nós os embaixadores de Jesus Cristo; é Deus quem pela nossa boca vos exorta. Foi o
que o próprio Apóstolo declarou.
Subindo ao Céu, o divino Redentor deixou os sacerdotes para serem na terra os
mediadores entre Deus e os homens, particularmente ao altar, como diz São
Lourenço Justiniano: "Deve o padre
aproximar-se do altar como o próprio Jesus Cristo". São Cipriano diz: "O padre ocupa verdadeiramente o lugar e
desempenha o ofício do Salvador; e São
Crisóstomo: Quando virdes o sacerdote a
oferecer o sacrifício, vêde a mão de Jesus Cristo estendida dum modo
invisível".
Ocupa também o padre o lugar do Salvador, quando remite os pecados, dizendo: Ego te absolvo. O grande poder que o Padre
eterno deu o seu divino Filho, comunica-o Jesus Cristo aos padres, De suo
vestiens sacerdotes, segundo a expressão de Tertualiano.
Para perdoar um pecado, é necessário o poder do Altíssimo, como a Igreja o faz
ouvir nas suas orações.
Tinham pois razão os judeus, quando, ao verem que Jesus Cristo perdoava os
pecados ao paralítico, disseram: "Quem senão Deus pode perdoar os
pecados?" Mas esta graça que só Deus pode fazer pela sua onipotência, o
padre a pode também dispensar por estas palavras: Ego te absolvo a peccatis tuis; porque a forma, ou, se o quiserem, as palavras
da forma, pronunciadas pelo padre nos sacramentos, operam imediatamente o que
significam.
Qual seria o nosso espanto, se víssemos um homem que, mediante algumas
palavras, tinha a virtude de tornar branca a pele dum negro! O padre faz mais, quando diz: Eu te absolvo, - porque no mesmo instante
demuda em amigo um inimigo de Deus, e um escravo do inferno num herdeiro do Céu.
O cardeal Hugues põe na boca do Senhor estas palavras, que representa dirigidas
a um sacerdote ao absolver um pecador: Eu fiz o céu e a terra, mas dou-te o poder
para fazeres uma criação mais nobre e melhor: duma alma manchada pelo pecado, faze uma alma
nova. (Faze uma alma nova, quer dizer, faze que uma alma pecadora e escrava de
Lúcifer se torne minha filha) Mandei à
terra que produza os seus frutos; dou-te
um poder melhor, o de produzires frutos nas almas.
Privada da graça, é a alma como uma árvore seca, que não pode produzir nenhum
fruto; mas, recobrando a graça pelo
ministério do padre, produz frutos de vida eterna. Santo Agostinho ajunta que a
justificação dum pecador é uma obra maior que a de criar o céu e a terra. O
Senhor diz a Jó: Tendes vós um braço
como o de Deus, e uma voz trovejante como a sua? Ora, quem é que tem um braço semelhante ao de
Deus e como Deus faz trovejar a sua voz? É o padre que, dando a absolvição, se serve do
braço e da voz do próprio Deus, para livrar do inferno as almas.
Lemos em Santo Ambrósio que o padre, quando absolve, opera o mesmo que faz o
Espírito Santo, quando justifica as almas. Eis por que o divino Redentor, ao
conferir aos padres o poder de absolver, lhes deu o seu Espírito: Soprou sobre eles e disse-lhes: Recebei o Espírito Santo: aqueles a quem perdoardes os pecados,
ser-lhes-ão perdoados, e a quem os retiverdes ser-lhes-ão retidos. Deu-lhes o
seu Espírito que santifica as almas, e estabeleceu-os cooperadores seus,
conforme a expressão do Apóstolo. E São Gregório ajunta: "Receberam o poder judicial supremo, para
em nome de Deus remitirem ou reterem os pecados aos outros". Razão tem
pois São Clemente de chamar ao padre um Deus na terra. Davi disse: Veio Deus à assembléia dos deuses. Segundo a
explicação de Santo Agostinho, os deuses de que fala são os sacerdotes. E eis o
que diz Inocêncio 3º: "Os padres se
chamam deuses, por causa da dignidade do seu ofício".
§ 6º Conclusão
Mas, que horror ver, numa mesma pessoa, uma dignidade sublime e uma vida
vergonhosa, uma profissão divina e obras de iniqüidade! Para longe de nós esta desordem, exclama Santo
Ambrósio; que as nossas obras estejam de
acordo com o nosso nome! O que é uma
alta dignidade num indigno, senão uma pérola caída na lama, pergunta Salviano?.
O Apóstolo nos adverte que ninguém deve ser tão audacioso que se eleve ao
sacerdócio, sem a vocação divina de Aarão, pois que nem Jesus Cristo se quis
arrogar a honra do sacerdócio, mas esperou que seu Pai o chamasse a essa
dignidade.
Aprendamos daqui quanto é alta a dignidade do padre; mas quanto mais alta é, mais devemos temê-la.
"É grande a dignidade dos padres, diz São Jerônimo; mas também a sua ruína, se vierem a pecar.
Regozijemo-nos com a nossa elevação, mas temamos de cair". São Gregório
exclama gemendo: "Purificados pelas
mãos dos sacerdotes entram na pátria os eleitos; e os próprios padres se precipitam de cabeça
para baixo nos suplícios do inferno!" E ajunta: é o que acontece com a água batismal, que
purifica do pecado os que a recebem, e os envia para o Céu, ao passo que ela
cai e perdese.
CAPÍTULO, 2. O fim do Sacerdócio
§ 1º O Sacerdócio, aos olhos dos
santos, é um encargo terrível
Dizia São Clemente de Alexandria que os que estavam verdadeiramente animados do
Espírito de Deus, se encontravam possuídos de temor ao receberem o sacerdócio,
como um homem que treme à vista dum fardo enorme, que lhe vão lançar sobre os
ombros, com perigo de ele ficar esmagado. Santo Efrém nos diz que não
encontrava ninguém que quisesse ser ordenado de presbítero. Um concílio de
Cartago decretou que os que fossem julgados dignos do sacerdócio e o
recusassem, podiam ser obrigados a deixar-se ordenar. "Ninguém, dizia São
Gregório de Nazianzo, recebe de boa vontade o sacerdócio". Refere o
diácono Pôncio que São Cipriano, ao saber que o queriam ordenar sacerdote,
correra a esconder-se por humildade: Humiliter secessit. O mesmo fez, por igual
motivo, São Fulgêncio. Prevendo que ia ser eleito, correu a esconder-se num
lugar desconhecido. Refere Sozomeno que também Santo Atanásio fugira para não
ser elevado ao sacerdócio. Santo Ambrósio fez grandes resistências, como ele
próprio afirma.
São Gregório procurou disfarçar-se em trajo de negociante para escapar à
ordenação, apesar de Deus ter mostrado por milagres que o chamava à ordenação.
Para não ser ordenado, Santo Efrém se apresentou como insensato e São Marco
cortou o dedo polegar. O mesmo motivo levou Santo Amon a cortar as orelhas e o
nariz; e, como apesar disso o povo
insistia em o fazer ordenar, fez-lhe a ameaça de cortar também a língua; então cessaram de o perseguir.
É sabido que São Francisco, ordenado diácono, não quis receber o presbiterato,
porque uma visão lhe tinha revelado que a alma do padre deve ser pura como a
água, que lhe fôra mostrada num vaso de cristal. Do mesmo modo o abade Teodoro
não era senão diácono, e todavia nunca quis exercer as funções da sua Ordem,
porque um dia ao fazer a oração viu uma coluna de fogo e foi-lhe dito: "Se tens o coração inflamado como esta
chama, então exerce a tua Ordem". O abade Motuès era sacerdote, mas não
quis celebrar, porque se julgava indigno disso.
Antigamente, entre os monges, cuja vida era tão austera, poucos se encontravam
que fossem sacerdotes. Aos olhos deles, aspirar ao sacerdócio era presunção.
Por isso São Basílio, querendo experimentar a obediência dum monge, mandou-lhe
que pedisse publicamente o presbiterato; o que foi olhado como um ato de obediência; porque, fazendo um tal pedido, o religioso
expunha-se a passar por um grande orgulhoso.
Mas, enquanto os santos, que só vivem para Deus, têm tanta repugnância em
receber as Ordens e se crêem indignos delas, - como é que tantos correm às
cegas para o sacerdócio e não descansam até que lá cheguem, por caminhos
direitos ou tortos? Ai, exclama São
Bernardo, esses são para lamentar; porque, para eles, o estarem no número dos
sacerdotes será o mesmo que estarem inscritos na lista dos condenados!
Porquê? Porque de todos esses padres
apenas haverá algum que tenha sido chamado por Deus. O que os impediu para o
santuário foi o interesse, a ambição, a influência dos pais, e assim não se
ordenam para o fim que o sacerdote deve ter em vista, mas para os fins
perversos do mundo. Por isso os povos permanecem ao abandono e a Igreja
desonrada. Tantas almas se perdem, ao mesmo tempo que tais padres se afundam na
ignomínia!
§ 2º O fim do sacerdócio
Quer Deus que todos os homens cheguem a salvar-se, mas nem todos pelos mesmos
caminhos: assim como no Céu há diversos
graus de glória, também na terra há diversos estados, que assinalam outros
tantos caminhos diferentes para ir para o Céu. Entre esses estados, o mais
nobre, o mais sublime, que se pode chamar o estado por excelência, é o estado
sacerdotal, em razão dos fins altíssimos para que foi estabelecido.
Quais esses fins? Só celebrar missa,
recitar o ofício, e viver depois como os seculares? Não, por certo; o fim que Deus se propôs foi estabelecer na
terra pessoas públicas, encarregadas de tudo quanto respeita à honra da sua
divina majestade e à salvação das almas: Porque todo o Pontífice, escolhido dentre os
homens, é estabelecido o favor dos homens, para exercer as funções do culto
para com Deus, e oferecer dons e sacrifícios pelos pecados; deve saber compadecer-se dos que pecam por
ignorância. Assim fala São Paulo, e o Sábio diz de Aarão que ele fôra
escolhido, para desempenhar funções sacerdotais e louvor ao nome de Deus. Foi
assim que o cardeal Hugues aplicou as palavras: Habere laudem. E Cornélio A-Lápide ajunta: Assim como o ofício dos anjos é louvar
incessantemente a Deus no Céu, assim o dos sacerdotes é louvá-lo constantemente
na terra.
Estabeleceu Jesus Cristo os padres como cooperadores seus para glória de seu
eterno Pai e salvação das almas; por
isso ao subir ao Céu declarou que os deixava em seu lugar, para continuarem a
obra da redenção, que tinha empreendido e consumado. Conforme a expressão de
Santo Ambrósio, assim que os constituiu delegados do seu amor. O Salvador disse
a seus discípulos: Conforme meu Pai me
enviou, assim Eu vos envio a vós; deixovos, para que façais o que eu próprio vim
fazer à terra, isto é, para que manifesteis aos homens o nome de meu Pai.
Dirigindo-se a seu Padre eterno, tinha Ele dito: Glorifiquei-vos na terra; a minha obra está consumada... fiz conhecer o
vosso nome aos homens. Depois tinha orado pelos seus sacerdotes nestes termos: Confiei-lhes a vossa palavra... Santificai-os
na verdade!... Assim como vós me enviastes ao mundo, assim Eu os enviei.
Portanto os padres estão colocados neste mundo para fazerem conhecer a Deus: as suas perfeições, a sua justiça, a sua
misericórdia, os seus preceitos, e para lhe conciliarem o respeito, obediência
e amor que lhe são devidos. Estão encarregados de procurar as ovelhas
desgarradas, e dar a vida por elas, se necessário for. Tal o fim para que Jesus
Cristo veio à terra, e instituiu os sacerdotes.
§ 3º Principais deveres do padre
O próprio Jesus Cristo diz que viera ao mundo para acender o fogo do amor
divino. Eis ao que o padre deve consagrar toda a sua vida e todas as suas
forças. Não tem que trabalhar em adquirir tesouros, honras e bens terrenos, mas
unicamente em ver a Deus amado de todos os homens. Somos chamadas por Jesus
Cristo, diz o autor da Obra imperfeita, não a procurar os nossos próprios
interesses, mas a glória de Deus... O amor verdadeiro não se procura a si
próprio; deseja em tudo andar à vontade
do amado. Na antiga Lei disse o Senhor: Separei vos de todos os povos, para que
fôsseis meus. Considerai estas palavras como dirigidas aos padres: Para que sejais meus, inteiramente aplicados
aos meus louvores, ao meu serviço e ao meu amor; e, segundo São Pedro Damião, para que sejais
os cooperadores e dispensadores dos meus sacramentos; e segundo Santo Ambrósio: Para serdes os guias e pastores do rebanho de
Jesus Cristo.
Acrescenta o santo Doutor que o ministro dos altares não é mais seu mas de
Deus. O próprio Senhor diz que separa dos outros homens os padres, para os ter
inteiramente unidos a si.
O divino Mestre disse: Se alguém me está
associado, que me siga; = Si quis mihi
ministrat, me sequatur. Para seguir a Jesus Cristo, deve o padre fugir do
mundo, socorrer as almas, fazer amar a Deus, declarar guerra ao pecado. Deve
olhar como feitas a si as injúrias contra Deus: Caíram sobre mim os ultrajes dos que vos
ofendem. Entregues aos negócios do mundo, não podem os leigos render a Deus o
tributo de homenagem e reconhecimento que lhe é devido; por isso, diz um sábio autor, o Padre Frassen,
é necessário escolher dentre os outros homens alguns que, pelo seu próprio
estado, sejam obrigados a prestar ao Senhor a honra que lhe pertence.
Em todas as cortes dos soberanos, há ministros encarregados de fazer observar
as leis, remover os escândalos, reprimir os sediciosos e defender a honra do
rei. Foi para os mesmos fins que o Senhor estabeleceu os sacerdotes: são oficiais da sua corte. Isto fez dizer a
São Paulo: Mostremo-nos verdadeiros
ministros de Deus. Estão os ministros sempre atentos a conciliar ao seu
soberano o respeito que lhe é devido, e engrandecer a sua glória. Falam dele
com veneração; se alguém o censura, logo
o defendem com zelo; procuram
adivinhar-lhe os desejos, e até expõem a vida para lhe agradar.
É assim que procedem os padres para com Deus? Não há dúvida que são ministros seus; é pelas suas mãos que passam e são tratados os
negócios que interessam à sua glória. É por intermédio deles que devem ser
tirados do mundo os pecados, - fim para que que Jesus Cristo quis morrer, diz
São Paulo. Mas, no dia do juízo, como serão reconhecidos por verdadeiros
ministros de Jesus Cristo esses padres que, longe de impedirem os pecados dos
outros, eles próprios são os primeiros a conjurar-se contra Jesus Cristo?
Que se diria dum ministro que se recusasse a vigiar pelos interesses do seu
rei, e se afastasse quando ele reclamasse o seu serviço? É que se diria se este ministro falasse até
contra o rei, e conspirasse para o destronar, coligando-se com os seus
inimigos?
Segundo o Apóstolo, são os sacerdotes embaixadores de Deus; são os cooperadores de Deus na salvação das
almas. Deu-lhes Jesus Cristo o Espírito Santo, para que possam salvar as almas,
absolvendo-as dos pecados. Donde conclui o teólogo Habert que o espírito
sacerdotal consiste essencialmente num zelo ardente, primeiro pela glória de
Deus, e depois pela salvação das almas.
Não tem pois o padre que se ocupar das coisas do mundo, mas unicamente dos
interesses de Deus: = Constituitur in
iis quae sunt ad Deum.
Por esta razão, quis São Silvestre que, para os eclesiásticos, os dias da
semana tivessem o nome de Férias, que quer dizer dias feriados, em que não se
cuida dos trabalhos ordinários. Assim nos adverte que nós os padres nos devemos
empregar exclusivamente em servir a Deus e ganhar-lhe almas, ocupação que São
Dionísio Areopagita chama o mais divino dos ministérios: "Será perfeito o sacerdote se imitar a
Deus, se se fizer cooperador de Deus, que é a mais divina de todas as
ocupações".
Segundo Santo Antonino, sacerdos significa sacra docens; e segundo Honório d'Autun, presbyter significa
praebens iter. Assim, Santo Ambrósio dá aos padres o título de guias e pastores
do rebanho de Jesus Cristo. Por São Pedro é chamado o clero um sacerdócio real,
uma nação santa, um povo de conquista, povo destinado a conquistar, - o quê? Almas e não riquezas, conforme a reflexão de
Santo Ambrósio. Os próprios pagãos não queriam que os seus sacerdotes se
ocupassem senão do culto dos seus deuses; por isso lhes era vedado o exercício de
qualquer magistratura.
Este pensamento fazia gemer São Gregório, que dizia, falando dos padres: "Devemos pôr de parte todos os negócios
da terra, para só nos darmos à causa de Deus; mas procedemos ao contrário: deixamos a causa de Deus e só vivemos para os
interesses terrenos". Moisés, estabelecido por Deus para só cuidar das
coisas da sua glória, aplicava-se a decidir pleitos, mas Jetro advertiu-o e
disse-lhe: Estás a gastar-te loucamente;
deixa esse trabalho para cuidares do
povo e das coisas relativas a Deus.
Que diria Jetro se visse os nossos padres feitos negociantes, servos dos
seculares, medianeiros de casamentos, e sem se importarem das obras de Deus? Se os tivesse visto, como observa São
Próspero, empenhados em se fazerem ricos, mas não melhores; em adquirirem mais honras, mas não mais
santidade?
Ó, exclamava a este respeito o venerável João de Ávila, que abuso subordinar o
Céu à terra! Que miséria, ajunta São
Gregório, ver tantos padres que procuram adquirir, não os merecimentos duma
vida virtuosa, mas as vantagens da vida presente! É porque, nas funções do seu ministério, não
intentam a glória de Deus, mas somente o lucro que auferem delas, diz Santo
Isodoro de Pelusa.
CAPÍTULO, 3. Santidade exigida no
Padre
§ 1º Em razão da sua dignidade
É grande a dignidade dos padres; mas não
são menores as obrigações que lhe andam inerentes. Erguem-se os padres a uma
grande altura; mas é necessário que
sejam elevados e sustentados nela por uma grande virtude. No caso contrário, em
vez de recompensa, um rigoroso castigo lhes está reservado; tal é o pensamento de São Lourenço Justiniano.
São Pedro Crisólogo diz por sua vez: "O Sacerdócio é uma grande honra; mas é também um fardo pesado, e traz consigo
uma grande conta a prestar". - E São Jerônimo: "Não é pela sua dignidade que o padre se
salva, mas pela obras concordes com a sua dignidade".
Todo o cristão deve ser perfeito, deve ser santo, por isso que todo o cristão
faz profissão de servir um Deus santo. Segundo São Leão, uma pessoa torna-se
cristã despojando-se da semelhança do homem terreno, e revestindo-se da forma
de homem celeste. Era a razão por que Jesus Cristo dizia: Vós pois sêde perfeitos, como vosso Pai
celeste é perfeito.
Mas a santidade do padre deve ser diferente da dos seculares, segundo a
observação de Santo Ambrósio. Ajunta o santo Doutor que assim como a graça
dispensada aos padres é superior, assim a vida do padre deve exceder em santidade
à dos seculares. E, segundo Isodoro de Pelusa, entre a santidade do padre e a
de todo o bom leigo, deve haver tanta distância como do céu à terra.
Santo Tomás ensina que cada um é obrigado a cumprir os deveres do estado que
escolheu. Por outro lado, assegura Santo Agostinho que o clérigo, no mesmo
instante em que recebe a clericatura, se impõe a obrigação de ser santo. E
Cassiodoro escreve: O eclesiástico é
obrigado a uma vida celeste. O padre é obrigado a maior perfeição que todos os
outros, como diz Tomás de Kempis, porque o seu estado é o mais sublime de todos
os estados. Salviano ajunta que Deus ordena a perfeição aos clérigos no mesmo
lugar, em que a aconselha aos seculares.
Os sacerdotes da Lei antiga traziam estas palavras gravadas na tiara, que lhes
cingia a fronte: Consagrado ao Senhor,
ou Coisa santa do Senhor. Era para que nunca se esquecessem da santidade que
deviam professar. As vítimas, oferecidas pelos sacerdotes, deviam ser inteiramente
consumidas, - e para quê? Teodoreto
responde: Para lhes significarem a
integridade da vida, que convém a quem se consagra por completo a Deus.
Para oferecer dignamente o divino sacrifício, nota Santo Ambrósio, deve o padre
sacrificar-se primeiro ele próprio, oferecendo-se todo a Deus. E, segundo Santo
Hesíquio deve o padre ser um holocausto contínuo de perfeição, desde a sua
juventude até à morte.
Na Lei antiga disse Deus: Separei-vos
dos outros povos, para que sejais o meu povo. Com quanto mais forte razão quer
o Senhor na Lei nova, que os sacerdotes ponham de parte os negócios do século,
para só agradarem Àquele a quem se consagraram! É o que ele declara pela voz do Apóstolo: Nenhum soldado de Deus se deve ingerir nos
negócios seculares, para agradar Àquele cujo serviço abraçou. E é a promessa
que a Igreja exige de todos os clérigos, ao entraram no santuário pela
prima-tonsura. Faz-lhes prometer que de futuro só Deus será a sua herança: É o Senhor a parte que me coube em herança, e
o quinhão que me é destinado; pois vós,
Senhor, que me haveis de dar a devida herança. "Tudo no padre, escreveu
São Jerônimo, reclama e exige a santidade da vida: o hábito que veste, o próprio ofício que
exerce".
Como diz São Bernardo, não lhe basta fugir de todos os vícios, é necessário que
faça esforços em que consiste a perfeição única, que o homem viador pode
possuir cá na terra.
O mesmo São Bernardo gemia, à vista de tantos insensatos, que se afadigam por
chegar às ordens sacras, sem considerarem na santidade exigida aos que aspiram
a tão alta dignidade. E Sto Ambrosio exclama: Quanto é raro encontrar-se um ordinando que
possa dizer: O Senhor é a minha herança,
que não se deixe abrasar da concupiscência, aguilhoar pela avareza, distrair
pelos cuidados dos negócios seculares!
No Apocalipse de São João, lê-se: Fez-nos reino seu e sacerdotes de Deus, seu
Pai. Tirino, de acordo com os outros intérpretes explica a palavra Regnum e diz
que os sacerdotes são o reino de Deus, ou porque Deus reina neles, nesta vida
pela graça e na outra pela glória; ou
porque eles próprios são constituídos reis para reinarem sobre os vícios.
Quer São Gregório que o padre seja morto para o mundo e para todas as paixões,
a fim de se dar a uma vida toda divina. O sacerdócio atual é o mesmo que Jesus
Cristo recebeu de seu Pai: E Eu dei-lhes
a glória que me deste a mim. Se pois o sacerdote representa Jesus Cristo, diz
São João Crisóstomo, é preciso que seja bastante puro para merecer tomar lugar
entre os anjos.
São Paulo exige do padre uma perfeição tal, que o ponha ao abrigo de toda a
censura. É certo que neste lugar, por Episcopum, se devem entender não só os
bispos, mas também os sacerdotes, pois que o Apóstolo passa em seguida a falar
dos diáconos. Como não os chamou pelo apelido de padres, quis ajuntá-los sob
esse ponto de vista aos bispos; tal é o
sentir de Santo Agostinho e de São João Crisóstomo, que sobre este ponto
especial se exprime assim: O que ele diz
dos bispos aplica-se por igual aos padres.
Quanto à palavra Irreprehensibilem, todos vêem com São Jerônimo que ela
compreende a posse de todas as virtudes. E eis a explicação que dá Cornélio
A-Lápide: Deve o sacerdote não só ser
isento de todos os vícios, mas adornado de todas as virtudes.
Durante onze séculos, foi interdita a iniciação na clericatura a todos aque-les
que depois do seu batismo tivessem cometido um só pecado mortal; é o que nos ensinam os Concílio de Nicéia,
Toledo, Elvira e Cartago. E se um clérigo, depois da sua ordenação, vinha o
cair em pecado, era deposto para sempre e encerrado num mosteiro, como lemos em
muitos cânones e eis a razão que ali se encontra expressa: "Porque a santa Igreja quer que o
sacerdote seja isento de censura, a todos os respeitos. Os que não são santos
não podem administrar as coisas santas".
No Concílio de Cartago disse-se: Os
clérigos de quem o Senhor é herança devem fazer divórcio com o século. O
Concílio de Trento vai mais longe: quer
que num clérigo tudo seja santo: o
hábito, as maneiras, a linguagem, e todos os atos. E São João Crisóstomo ajunta
que o sacerdote deve ser de tal modo perfeito, que todos os fiéis o possam
olhar como um modelo de santidade; porque Deus colocou os sacerdotes na terra,
para que eles aqui vivam como anjos, e para servirem a todos os homens de
faróis e guias no caminho da virtude.
Segundo São Jerônimo, o nome de clérigo significa: Que tem a Deus como herança. Quer dizer: que o clérigo se compenetre bem na
significação do seu nome, e com ele conforme o seu procedimento. Se Deus é a
sua herança, que não viva senão para Deus. O que tem a Deus por herança, diz
Santo Ambrósio, de nada se deve ocupar senão de Deus: = Cui Deus portio est, nihil debet curare,
nisi Deum.
O padre é o ministro de Deus, encarregado das duas funções extremamente nobres
e elevadas, que são: honrar a Deus com
sacrifícios, e santificar as almas. Porque todo o pontífice, escolhido dentre
os homens, é estabelecido para administrar em nome dos homens as coisas que
respeitam a Deus. Sobre este texto diz Sto Tomás: Todo o padre é escolhido pelo Senhor e posto
na terra, não para adquirir riquezas, atrair a estima dos homens, entregar-se
aos prazeres e engrandecer a sua família, mas unicamente para vigiar pelos
interesses da glória de Deus.
Também nas Escrituras o padre é chamado Homo Dei: um homem que nem é do mundo, nem de seus pais,
nem de si próprio, mas só de Deus e que só a Deus procura. Aos padres pois se
aplicam as palavras de Davi: Eis a
geração dos que só procuram a Deus. Assim como Deus no céu destinou certos
anjos para rodearem o seu trono, também na terra, entre os homens, destinou os
sacerdotes para tomarem cuidado da sua glória, por isso lhes disse: Separei-vos dos outros povos, para que sejais
meus. Vimos já este pensamento de São João Crisóstomo: Escolheu-nos Deus, para que sejamos na terra
como anjos entre os homens. E o próprio Senhor diz: Serei santificado nos que se aproximarem de
mim; o que se interpreta assim: A minha santidade será conhecida mediante a
santidade dos meus ministros.
O Novo Código de Direito Canônico, no título 3º., das obrigações dos clérigos,
confirma a doutrina exposta. Vide os cânones 124-144, que não podemos
transcrever.
§ 2º Qual deve ser a santidade do
padre como ministro do altar
Quer Santo Tomás que se exija aos padres maios santidade que aos simples
religiosos, em razão das funções sublimes que exercem, especialmente da
celebração do sacrifício da missa. A razão é que recebendo uma Ordem sacra,
dedica-se o homem ao mais alto ministério, que consiste em servir a Jesus
Cristo até no Sacramento do altar; o que
exige uma santidade interior mais elevada que a que se requer para o estado
religioso. Em igualdade de circunstâncias pois, um clérigo de Ordens sacras,
obrando contra a santidade, peca mais gravemente que um religioso, que não
esteja revestido de nenhuma Ordem sacra. É muito conhecida a sentença de Santo
Agostinho: "Dificilmente um bom
monge dá um bom clérigo". Deste modo, nenhum clérigo pode ser olhado como
bom, se não exceder em virtude um bom religioso.
"Um verdadeiro ministro do altar forma-se para Deus, e não para si".
Significam estas palavras de Santo Ambrósio que um padre deve esquecer as suas
comodidades, as suas vantagens e os seus gostos; deve persuadir-se que, desde o dia em que
recebeu o sacerdócio, não é seu, mas de Deus. Tem muito a peito o Senhor que os
padres sejam puros e santos, para que possam comparecer na sua presença, isentos
de todo o defeito, e oferecer-lhe os sacrifícios: Ele se assentará a fundir e limpar a prata; e purificará os filhos de Levi, e os
acrisolará como o ouro e a prata; depois
oferecerão os sacrifícios na justiça. Assim fala o profeta Malaquias; e no Levítico lê-se: Serão santos no serviço do seu Deus, e não
desonrarão o seu nome; porque hão de
oferecer incenso do Senhor e os pães do seu Deus, e por conseqüência serão
santos.
Se deviam pois ser santos os sacerdotes da Lei antiga, porque ofereciam a Deus
apenas o incenso, e os pães de proposição, que eram uma simples figura do
adorável Sacramento dos nossos altares, quanto mais devem ser puros e santos os
sacerdotes da lei nova, que oferecem a Deus o Cordeiro sem mancha, o seu
próprio Filho! Nós oferecemos, observa
Estio, não novilhos ou incenso, como os sacerdotes antigos, mas o próprio Jesus
Cristo; oferecemos o corpo mesmo do
Senhor, que foi suspenso no altar da cruz.
É-nos necessária portanto a santidade, que consiste na pureza do coração; quem se aproxima sem ela destes mistérios
terríveis, aproxima-se indignamente. Sobre este ponto, escreveu Belarmino: Desgraçados de nós, que, chamados a este
ministério sublime, estamos longe do fervor que Salomão exigia dos padres da
aliança figurativa!. Até mesmo os que deviam transp ortar os vasos sagrados
queria o Senhor que fossem isentos de mancha: Purificai-vos, ó vós que levais os vasos do
Senhor! Quanto mais puros devem ser os
padres que trazem nas suas mãos e recebem no seu corpo o próprio Jesus Cristo! Assim fala Pedro de Blois. E Santo Agostinho
diz por sua vez: Deve ser puro quem há de
manusear não só vasos de ouro, mas até os vasos em que é renovada a morte do
Senhor.
Devia ser santa e imaculada a beatíssima Virgem Maria, porque havia de trazer
no seu seio o Verbo encarnado e tornar-se sua Mãe; e, à visto disso, exclama São João Crisóstomo,
não será indispensável que brilhe, com uma santidade mais resplandecente que o
sol, essa mão do padre que toca a carne dum Deus, essa boca que se enche dum
fogo celeste, e essa língua que se banha com o sangue de Jesus Cristo? O padre ao altar ocupa o lugar de Jesus
Cristo, deve pois, diz São Lourenço Justiniano, aproximar-se dele para
celebrar, quanto possível, à imitação de Jesus Cristo. Que perfeição não exige
duma religiosa o confessor, para lhe permitir a comunhão quotidiana! E porque não se exigiria a mesma perfeição do
sacerdote que comunga todos os dias? É
preciso confessar, diz o Concílio de Trento, que não é possível a um homem
praticar ação mais santa que celebrar uma missa.
E acrescenta: deve portanto o padre
envidar todos os esforços para celebrar o santo Sacrifício do altar com a
máxima pureza de consciência possível. Ai! Que horror, exclama Santo Agostinho, ouvir
essa língua, que chama o Filho de Deus do Céu à terra, falar depois contra
Deus, e ver essas mãos, que se tingem no sangue de Jesus Cristo, mancharem-se
com as torpezas do pecado!.
Se Deus exigia tamanha pureza dos que deviam oferecer-lhe em sacrifício animais
ou pães, e aos que qualquer modo estavam manchados lhes proibia que lhe
fizessem oferendas, - quanto maior deve ser a pureza de quem está encarregado
de oferecer a Deus o seu próprio Filho, o Cordeiro divino! Tal é a reflexão de Belarmino. Sto Tomás diz
que pela palavra maculam, no texto citado, se deve entender todo e qualquer
vício: Qui est aliquo vitio irretitus,
non debet ad ministerium Ordinis accedere.
A Lei antiga excluía das funções de sacrificador os cegos, coxos, corcundas e
leprosos: Nec accedet ad ministerium
ejus, si caecus fuerit, si claudus... si gibbus... si habens jugem scabiem. Os
santos Padres, dando um sentido espiritual a estes defeitos, olham como
indignos de subir ao altar: os cegos, ou
que fecham os olhos à luz divina; os
coxos, ou preguiçosos, que nada adiantam no caminho de Deus, e vivem sempre com
as mesmas imperfeições, sem oração e sem recolhimento; os corcovados, que sempre estão com as suas
afeições voltadas para a terra, para os bens, honras e prazeres do mundo; os leprosos, ou sensuais que, à semelhança do
mundo animal imundo, diz o Sábio, se revolvem no lodaçal dos prazeres torpes.
Numa palavra, quem não é santo é indigno de se aproximar do altar, porque,
sendo impuro, mancha o santuário de Deus. Não se aproxime do altar, porque tem
uma mancha, e não deve manchar o meu santuário.
§ 3º Qual deve ser a santidade do
padre como mediador entre Deus e os homens
De mais, deve o sacerdote ser santo na qualidade de dispensador dos
sacramentos: É necessário que não tenha
mancha, como despenseiro de Deus. E deve ser como mediador entre Deus e os
pecadores: O sacerdote, diz um santo
Padre, está colocado entre Deus e a natureza humana: traz-nos os benefícios que vem do Céu, e leva
para lá as nossas orações; aplaca a
cólera do Senhor e arranca-nos das suas mãos.
É por ministério dos sacerdotes que Deus comunica a sua graça aos fiéis nos
sacramentos. - É mediante os sacerdotes que os recebe no número dos seus filhos
no Batismo, que é de necessidade para a salvação: Quem não renascer, não pode entrar no reino de
Deus.
É por ministério deles que Deus cura os doentes e ressuscita os que estão
mortos para a graça, isto é, os pecadores, no sacramento da penitência.
É por eles que alimenta as almas e lhes conserva a vida da graça, no sacramento
da sagrada Eucaristia: Se não comerdes a
carne do Filho do homem, não tereis a vida em vós.
É por eles que dá aos moribundos a força para vencerem as tentações do inferno,
mediante o sacramento da Unção dos Enfermos. Numa palavra, diz São Crisóstomo,
sem os padres não nos podemos salvar. São Próspero chama aos padres os
intérpretes da vontade divina. O autor da Obra imperfeita apelida-os - os muros
da Igreja; Sto Ambrósio, exército ou
campo da santidade; e São Gregório de
Nazianzo, os fundamentos do mundo e as colunas da fé. Daqui a palavra de Santo
Euquério: que os padres devem, pelo vigor
da sua santidade, transportar o fardo dos pecados do mundo. Ó, como esse fardo
é terrível! Rogará por ele (pelo
impudico) o sacerdote e pelo seu pecado
diante do Senhor, e o Senhor se lhe tornará propício, e lhe perdoará o seu
pecado. É por isso que a santa Igreja obriga os sacerdotes à recitação diária
do Ofício divino, e à celebração da missa, ao menos algumas vezes no ano.
Santo Ambrósio até diz que os padres nunca devem cessar, nem de dia nem de
noite, de orar pelo povo.
Mas para obter graças para os outros, é necessário que o sacerdote seja santo.
Colocados entre Deus e o povo, diz o Doutor angélico, devem brilhar aos olhos
de Deus por uma boa consciência, e aos olhos dos homens por um bom renome.
Porque, segundo a reflexão de São Gregório, seria grande temeridade
apresentar-se alguém diante dum príncipe, para obter o perdão para os seus
súditos rebeldes, estando ele culpado do mesmo crime.
Quem quer interceder pelos outros, deve ser bem-visto do príncipe; se lhe for odioso, ajunta o mesmo santo, mais
fará indignar o seu juiz. Por esta razão, escreve Santo Agostinho, o padre,
orando pelos outros, deve ter junto de Deus um tal mérito, que possa obter dele
o que os outros em razão dos seus deméritos não ousariam esperar. Foi o que
declarou o papa Hormisdas: Convém que o
sacerdote seja mais puro que o povo para orar pelo povo. Mas São Bernardo
lamenta, que haja poucos padres bastantes santos para serem mediadores dignos.
E Santo Agostinho, falando dos maus eclesiásticos, diz: É mais agradável a Deus o ladrar dos cães que
a oração de tais clérigos.
Refere o Padre Marchese, no seu "Jornal dos Dominicanos", que uma
serva de Deus, religiosa da sua Ordem, pedia um dia ao Senhor que perdoasse ao
povo em atenção aos merecimentos dos padres; ele respondeu-lhe que os padres, pelos seus
pecados, mais o irritavam do que aplacavam.
§ 4º Santidade que deve ter o
padre como modelo do povo
Devem também os padres ser santos, porque Deus os colocou na terra para serem
modelos de virtude.
O autor da Obra imperfeita chama-lhes os doutores da piedade; São Jerônimo os salvadores do mundo; São Próspero, as portas da cidade eterna; e São Pedro Crisólogo, os modelos das virtudes.
Dali esta reflexão de Santo Isodoro: Quem foi colocado à frente dos povos para os
instruir e formas na virtude, deve ser santo em tudo, inteiramente
irrepreensível. O papa Hormisdas diz igualmente: Os que têm a seu cargo repreender os outros,
devem estar a coberto de toda a censura.
São Dionísio proferiu esta célebre sentença: "Ninguém deve ter a audácia de se
constituir guia dos outros, a não ser que na prática das virtudes se tenha tornado
semelhante a Deus". São Gregório assegura que os sermões dos padres, cuja
vida é pouco edificante, produzem antes desprezo do que fruto. Ao que Santo
Tomás ajunta: Pela mesma razão (se
volvem desprezíveis) todas as de mais
funções que exerçam.
Eis como São Gregório de Nazianzo fala do padre a este respeito: "É preciso que ele primeiro se purifique
a si próprio, depois que purifique os outros; que se aproxime de Deus, depois lhe reconduza
os outros; se santifique a si, depois
trabalhe na santificação dos outros; e
antes; e antes de alumiar é necessário
que seja alumiado".
É preciso, diz São Gregório, que a mão que empreende lavar as manchas dos
outros, seja isenta delas. E noutro lugar acrescenta que a luz apagada não pode
alumiar os outros. Sobre o mesmo assunto, diz São Bernardo, que a linguagem do
amor, na boca de quem não ama, é uma linguagem bárbara e estranha.
Estão os sacerdotes colocados na terra como outros tantos espelhos, em que se
deve rever a gente do mundo: Somos dados
em espetáculo ao mundo, aos anjos e aos homens. Por isso o Concílio de Trento quer
que os eclesiásticos sejam como espelhos para os quais todos os leigos não
tenham mais que levantar os olhos, afim de aprenderem a regular os seus
constumes. E segundo o abade Filipe de Boa-Esperança, os sacerdotes são
escolhidos por Deus para defesa dos povos, mas por isso mesmo lhes não basta a
dignidade sem a santidade da vida.
§ 5º Conseqüências práticas
Considerando tudo quanto fica dito, conclui o Doutor angélico que, para exercer
dignamente as funções sacerdotais, é necessária uma perfeição acima do comum.
Noutro lugar: "Os que se aplicam
aos divinos mistérios devem ser duma virtude perfeita". Ainda noutra
parte: Para exercer dignamente estas
funções, requere-se a perfeição interior. Devem os sacerdotes ser santos, para
não desonrarem o Deus de quem são ministros, e estão encarregados de honrar: Serão santos na presença de Deus e não
mancharão o seu nome. Se se visse o ministro dum rei a folgar pelas praças públicas,
a freqüentar as tabernas, confundido com o populacho, a falar e proceder duma
maneira desonrosa para o seu príncipe, - que caso se faria desse soberano? É assim que os maus padres desonram a Jesus
Cristo, de quem são ministros.
Segundo o autor da Obra imperfeita, poderiam os pagãos ao falar deles dizer: Que Deus têm esses que de tal modo se
comportam? Acaso os suportaria ele, se
não lhes aprovasse o precedimento?. Os Chineses, os Índios, que vissem um padre
de costumes desregrados, estariam no direito de dizer: Como poderemos crer que o Deus que tais
sacerdotes pregam seja o verdadeiro? Se
ele fosse o verdadeiro Deus, como poderia, à vista da má conduta deles,
suportá-los sem participar dos seus vícios?
Daqui a exortação de São Paulo, dirigida aos padres: Demo-nos a conhecer como verdadeiros ministros
de Deus, sofrendo com paciência a pobreza, as doenças, as perseguições, velando
com zelo pelo que respeita à glória de Deus, e mortificando os nossos sentidos.
Conservemos a pureza do corpo, entregando-nos ao estudo, para sermos úteis às
almas, praticando a doçura e a verdadeira caridade para com o próximo.
Pareceremos tristes, em razão de vivermos afastados dos prazeres do mundo, mas
gozaremos sempre da paz, que é a partilha dos filhos de Deus. Seremos pobres
dos bens da terra, mas ricos em Deus, porque possuir a Deus é possuir tudo.
Tais devem ser os padres. Devem ser santos, porque são ministros dum Deus
santo. Devem estar prontos a dar a sua vida pelas almas, porque são ministros
de Jesus Cristo, que veio morrer por nós, ovelhas suas, como ele próprio
declarou: Eu sou o bom Pastor. O bom
Pastor dá a vida pelas suas ovelhas. Devem enfim empregar todos os esforços
para acender no coração de todos os homens o fogo sagrado do amor divino,
porque são ministros do Verbo encarnado, que para este fim desceu à terra, como
ele próprio nos ensina também: Vim
trazer o fogo à terra, e que quero eu senão que ele se acenda?
O que Davi pedia com insistência ao Senhor, para bem do mundo inteiro, era que
os padres fossem revestidos de justiça. Compreende a justiça todas as virtudes.
Assim, todos os padres devem estar compenetrados da fé e viver, não segundo as
máximas do mundo, mas segundo as da fé. As máximas do mundo são: "É necessário conseguir bens e riquezas; é necessário procurar a estima dos homens; é necessário gozar quanto possível".
As máximas da fé são: "Feliz o
pobre; é preciso abraçar as humilhações,
renunciar a si mesmo, amar os sofrimentos; é necessário estar animado duma santa
confiança, esperar tudo, não das criaturas, mas de Deus somente; é necessário ser humilde, julgando-se digno de
toda a pena e desprezo; é preciso ser
manso, praticando a doçura para com todos, principalmente para com as pessoas
melindrosas e grosseiras; é preciso
enfim estar-se revestido de caridade para com Deus e para com os homens. Quanto
a Deus, todos os padres devem viver numa perfeita união com ele e procurar,
mediante a oração, que os seus corações sejam outros tantos altares, em que
arda de contínuo o amor divino. Para com os homens, todos devem praticar o que
diz o Apóstolo: Tomai entranhas de
misericórdia, vós, eleitos de Deus, santos e caros a seus olhos.
Devem quanto possível prestar a todos os homens socorros corporais e
espirituais; a todos, digo, mesmo aos
mais ingratos e aos perseguidores.
Santo Agostinho dizia: Nada mais ditoso
cá na terra, nem mais agradável aos homens que o ofício de padre; mas aos olhos de Deus nada mais miserável, nem
mais triste, nem mais arriscado para a salvação. É grande felicidade e honra
para um homem ser padre: poder fazer
baixar do Céu às suas mãos o Verbo encarnado, e livrar as almas do pecado e do
inferno; ser vigário de Jesus Cristo; ser a luz do mundo e o mediador entre Deus e
os homens; ser maior e mais nobre que
todos os monarcas da terra; ter um poder
superior ao dos anjos; ser numa palavra
um Deus terreno, conforme a expressão de São Clemente. Nada mais venturoso, mas
por outro lado nada mais terrível.
Com efeito, se Jesus Cristo desce às suas mãos para seu alimento, é preciso que
o padre seja mais puro que a água que foi mostrada a São Francisco; se é o mediador dos homens diante de Deus, é
preciso, para se apresentar diante do Senhor, que seja isento de todo o pecado;
se é o vigário do Redentor, é preciso
que lhe seja semelhante na vida; se é a
luz do mundo, é preciso que seja todo resplendor de virtudes. Numa palavra, se
é padre, é necessário que seja santo; de
contrário, se não corresponde aos dons recebidos de Deus, quanto maiores são
esses dons, diz São Gregório, mais rigorosa será a conta a prestar. São
Bernardo diz do padre: Está ele
encarregado dum ofício celeste, é o anjo do Senhor; mas é também como os anjos eleito para a
glória, ou réprobo e condenado ao fogo. Por isso Santo Ambrósio ensina que o
padre deve ser isento até dos mais leves defeitos.
Donde se segue que, se um padre não é santo, está em grande perigo de se
condenar. Mas que fazem alguns padres, ou melhor, a máxima parte dos padres,
para se tornarem santos? Recitam o
ofício, celebram a missa, e nada mais: nem oração, nem mortificação, nem recolhimento.
Basta que me salve, dirá algum. - Ó, não, responde Santo Agostinho, se dizes: Basta, pereceste. Para ser santo, deve o padre
ser desapegado de tudo, - dos ajuntamentos do mundo, das honras vãs etc., e em
especial do afeto desordenado a seus pais. Estes ao verem o sacerdote pouco
interessado no engrandecimento da família, e todo entregue às coisas de Deus,
dirão talvez: Por que procedeis assim
conosco? - Quid facis nobis sic? Deverá ele responder como o menino Jesus,
quando encontrado por sua Mãe no templo: Quid est quod me quaerebatis? nesciebatis quia, in his quae Patris mei sunt,
oportet me esse?. O padre responderá a seus pais: Foste vós que me fizestes sacerdote? Não sabíeis que o padre não deve trabalhar
senão para Deus? É só a Deus que eu
quero dedicar todos os meus cuidados.
CAPÍTULO, 4. Da gravidade e
castigo dos pecados do padre
§ 1º Gravidade dos pecados do
padre
É extremamente grave o pecado do padre, porque peca com pleno conhecimento: sabem bem o mal que faz. Ensina Santo Tomás
que o pecado dos fiéis é mais grave que o dos infiéis, precisamente porque os
fiéis conhecem melhor a verdade; ora, as
luzes dum simples fiel são bem inferiores às de um sacerdote. O padre é tão
instruído na lei de Deus, que a ensina aos outros: Porque os lábios do sacerdote hão de guardar a
ciência, e é da sua boca que os outros aprenderão a lei. É muito grave o pecado
de quem conhece a lei, porque de nenhum modo pode desculpar-se com a
ignorância. Pecam os pobres seculares, mas no meio das trevas do mundo,
afastados dos sacramentos, pouco instruídos nas coisas espirituais, envolvidos
nos negócios do século. Como apenas têm um fraco conhecimento de Deus, não vêem
bem o mal que fazem, pecando: sagittant
in obscuro, - arremessam as suas frechas na obscuridade como diz Davi.
Os padres ao contrário estão cheios de luz, pois eles mesmo são os luzeiros
destinados a alumiar os outros: Vós sois
o luz do mundo.
Sem dúvida, devem os padres estar muito instruídos, depois de terem lido tantos
livros, ouvido tantos sermões, feito tantas meditações e recebido dos seus
superiores tantos avisos! Numa palavra,
foi-lhes dado conhecer a fundo os divinos mistérios.
Sabem pois perfeitamente quanto Deus merece ser servido e amado, conhecem a
malícia do pecado mortal, que é um inimigo tão contrário a Deus que, se Deus
pudesse ser aniquilado, o seria por um só pecado mortal, como ensina São
Bernardo: "O pecado tende a
destruir a divina bondade"; e
noutro lugar: "O pecado, quanto lhe
é possível, aniquila a Deus". Diz o autor da Obra imperfeita que o
pecador, tanto quanto depende da sua vontade, faz morrer Deus". De fato,
ajunta o Padre Medina, o pecado mortal tanto desonra e desagrada a Deus que, se
Deus fosse susceptível de tristeza, o pecado o faria morrer de pura dor. Tudo isso
sabe o padre muito bem, e conhece por igual a obrigação em que está, como
padre, cumulado de benefícios de Deus, de o servir e amar. Assim, diz São
Gregório, quanto melhor vê a enormidade da injúria que faz a Deus, pecando,
mais grave é o seu pecado.
Todo o pecado da parte do padre é um pecado de malícia, semelhante ao dos
anjos, que pecaram na presença da luz. É ele o anjo do Senhor, diz São
Bernardo, falando do padre, e de certo modo peca no Céu, pecando no estado
eclesiástico. Peca no meio da luz, o que faz que o seu pecado, como fica dito,
seja um pecado de malícia: não pode pois
alegar ignorância, porque sabe que mal é o pecado mortal; também não pode alegar fraqueza, porque
conhece os recursos para se tornar forte, se quiser valer-se deles. Se o não
quer, a culpa é sua: Não quis entender
para praticar o bem. Pecado de malícia, diz Santa Teresa, é aquele a que o
pecador se decide cientemente; e afirma
noutro lugar que todo o pecado de malícia é pecado contra o Espírito Santo.
Ora, da boca do Senhor sabemos que o pecado contra o Espírito Santo não será
perdoado, nem na vida presente, nem na futura; quer dizer, um tal pecado será de mui difícil
perdão, por causa da cegueira que o pecado de malícia traz consigo.
Pregado na cruz, rogou o nosso Salvador pelos seus perseguidores: Pai, perdoai-lhes, porque não sabem o que
fazem. Mas esta oração não aproveitou para os maus padres; foi antes a sua sentença de condenação, porque
os padres sabem o que fazem. Nas suas lamentações, exclamava Jeremias: Como se embaciou o ouro, como perdeu o seu
brilho?. Esse ouro embaciado é precisamente, diz o cardeal Hugues, o sacerdote
pecador, que devia luzir com todo o brilho do amor divino, mas pelo pecado se
tornou escuro, horrível, objeto de horror para o próprio inferno, e mais odioso
aos olhos de Deus que todos os outros pecadores. Diz São João Crisóstomo que
nunca Deus é tão ofendido como quando os que o ultrajam estão revestidos da
dignidade sacerdotal.
O que agrava a malícia do pecado no padre é a ingratidão de que se torna
culpado para com Deus, que o elevou a funções tão sublimes. Santo Tomás ensina
que a enormidade do pecado aumenta à medida da ingratidão de quem o comete.
Nenhumas ofensas, diz São Basílio, nos ferem tanto, como as que nos são feitas
por nossos amigos e parentes.
Os padres são chamados por São Cirilo - Dei intimi familiares. A que dignidade
mais alta poderia Deus erguer a um homem, do que fazê-lo sacerdote? Passai revista a todas as honras e dignidades,
diz Santo Efrém, e vereis que não há nenhuma que não seja eclipsada pelo
sacerdócio. Que honra maior, que nobreza mais assinalada, que ser constituído
vigário de Jesus Cristo, seu coadjutor, santificador das almas e ministro dos
sacramentos? Dispensadores regiae domus:
é assim que São Próspero chama aos
padres. Escolheu o Senhor o padre do meio de tantos outros homens, para ser
ministro seu, e para lhe oferecer em sacrifício o seu próprio Filho. Escolheu-o
entre todos os homens viadores para oferecer o sacrifício a Deus. Deu-lhe poder
sobre o corpo de Jesus Cristo; depôs nas
suas mãos as chaves do Paraíso; elevou-o
acima de todos os reis da terra e de todos os anjos do Céu; numa palavra, fê-lo um Deus na terra.
Que mais poderia eu fazer à minha vinha que não tenha feito? Não parece que estas palavras são dirigidas
unicamente ao padre? Depois disso, que
monstruosa ingratidão, quando esse padre, tão amado de Deus, o ofende na sua
própria casa, como o mesmo Deus se lamenta pela boca de Jeremias. A este
pensamento, exclama São Bernardo com gemidos: Ai, Senhor, os que têm a vanguarda na vossa
Igreja são os primeiros a perseguirvos!
Ao que parece, é ainda dos maus padres que se queixa o Senhor, quando convida o
Céu e a terra para testemunhas da ingratidão, que os seus filhos usam com ele: Ó céus, escutai, ó terra, presta ouvidos...
criei filhos, cumulei-os de honras, e eles desprezaram-me!. De fato, que filhos poderiam ser esses senão
os padres, que Deus elevou a tão alta dignidade, e com a sua carne alimentou à
sua mesa, e que depois ousaram desprezar o seu amor e a sua graça? É ainda desta ingratidão que se lamenta quando
diz pela boca de Davi: Se o meu inimigo
tivesse falado mal de mim, eu o teria sofrido... mas tu que eras como que
metade da minha alma, tu, um dos chefes do meu povo, meu amigo íntimo, que
partilhavas das delícias da minha mesa! Sim, o Salvador parece dizer: se um inimigo, quer dizer um idólatra, um
herege, um mundano, me ofendesse, eu o suportaria, mas como poder sofrer que me
ultrajes tu, sacerdote, meu amigo, meu comensal?
É o que Jeremias deplora igualmente, exclamando: Os que se alimentavam delicadamente... que se
tinham nutrido na púrpura, abraçaram a podridão. Que miséria, que horror, diz o
Profeta! O que se alimentava duma
iguaria celeste e se revestia de púrpura, ei-lo coberto com os andrajos do
pecado, a nutrir-se de lodo e estrume!
§ 2º Castigo dos pecados do padre
Consideremos agora o castigo, que tem de ser proporcionado à gravidade do seu
pecado. São João Crisóstomo tem por condenado o padre que no tempo do seu
sacerdócio comete um só pecado mortal: Se pecardes como particular, será menor o
vosso castigo; se pecais no sacerdócio,
estais perdido.
São em verdade terríveis as ameaças, que o Senhor profere pela boca de Jeremias
contra os padres que pecam: Estão
manchados o profeta e o sacerdote, e eu encontrei na minha casa a iniqüidade
deles, diz o Senhor. Por isso o seu caminho será como um atalho escorregadio e
coberto de trevas; hão de impeli-los e
cairão. Que esperança de vida poderíeis dar a quem caminhasse à borda dum
precipício, em terreno escorregadio e às escuras, sem ver onde punha os pés, e
ao mesmo tempo impelido fortemente para o abismo por seus inimigos? Tal é o estado desgraçado a que se encontra
reduzido o padre que comete um pecado mortal.
Lubricum in tenebris. Pecando, o padre perde a luz e cai nas trevas. Mais lhes
valera, assegura São Pedro, não ter conhecido o caminho da justiça, do que
voltar atrás depois de o haver conhecido. Ó, sem dúvida, mais valia para um
padre que peca ser antes um camponês ignorante, que nunca tivesse estudado
coisa alguma; porque depois de tantos
conhecimentos adquiridos, - pelos livros que leu, pelos oradores sagrados que
ouviu, pelos diretores que teve - depois de tantas luzes recebidas de Deus, o
desgraçado calca aos pés todas as graças, pecando, e merece que as luzes
recebidas só sirvam para o tornar mais cego e impenitente. A maior ciência, diz
São Crisóstomo, dá lugar a mais severo castigo; se o pastor cometer os mesmos pecados que as
suas ovelhas, não receberá o mesmo castigo, mas uma pena muito mais dura.
Um padre cometerá o mesmo pecado que os seculares; mas sofrerá um castigo muito maior,
permanecerá mais profundamente cego que todos os outros; será punido conforme o anúncio do Profeta: Que vendo não o vejam, e ouvindo não
compreendam!
É o que a experiência deixa ver, diz o autor da Obra imperfeita: Um secular, depois de pecar, facilmente se
arrepende. Se assiste a uma missão, se ouve um sermão enérgico sobre alguma
verdade eterna, - malícia do pecado, certeza da morte, rigor do juízo de Deus,
penas do inferno, entra facilmente em si e volta-se para Deus; porque estas verdades, como coisas novas,
tocam-no e penetram-no de temor. Mas quando um padre há calcado aos pés a graça
de Deus, com todas as luzes e conhecimentos recebidos, - que impressão podem
fazer ainda nele as verdades eternas e as ameaças das divinas Escrituras? Tudo quanto encerra a Escritura, continua o
mesmo autor, é para ele uma coisa sediça de pouco valor; porque as coisas mais terríveis que lá se
encontram, por muito lidas, já lhe não fazem impressão. Donde conclui que nada
mais impossível que a emenda de quem sabe tudo e peca.
Quanto maior é a dignidade dos padres, diz São Jerônimo, tanto maior é a sua
ruína, se num tal estado chegam a abandonar a Deus. Quanto mais alto é o posto
em que Deus os colocou, diz São Bernardo, tanto mais funesta será a sua queda.
Quando se cai em plano, diz Sto Ambrósio, raro se experimenta grande mal; mas cair de alto não é só cair, é
precipitar-se, e a queda será mortal.
Nós os padres regozijamo-nos, diz São Jerônimo, por nos vermos erguidos a tão
alta dignidade; mas seja igual o nosso
temor de cair. Parece que é aos padres que Deus fala, quando diz pela boca de
Ezequiel: Coloquei-vos sobre o monte
santo de Deus... e vós pecastes; e eu
vos expulsei do monte de Deus, e vos entreguei à ruína. Vós que sois padres,
diz o Senhor, eu vos estabeleci sobre a montanha santa, para serdes os faróis
do universo: Sois vós a luz do mundo.
Uma cidade assente no cimo duma montanha não pode estar escondida.
Tem pois razão São Lourenço Justiniano em dizer que quanto maior é graça
concedida por Deus aos padres, tanto mais digno de castigo é o seu pecado, e
quanto mais alto o seu estado, mais mortal a sua queda. Quem cai num rio, diz
Pedro de Blois, mergulha tanto mais fundo, quanto de mais alto tiver caído.
Compreende bem, ó padre: Deus,
elevando-te ao sacerdócio, ergueu-te até ao Céu, e fez de ti, não mais um homem
da terra, mas um homem celeste, pensa pois quanto te será funesta uma queda,
segundo o aviso de São Pedro Crisólogo. A tua queda, diz São Bernardo, será
semelhante à do raio que se precipita com impetuosidade. Quer dizer que a tua
perda será irreparável. Assim, ó desgraçado, cairá sobre ti a ameaça que o
Senhor lançou sobre Cafarnaum: E tu, ó
Cafarnaum, erguida até ao Céu, serás abatida até ao inferno.
Um padre que peca merece tal castigo, por causa da sua ingratidão para com
Deus, a quem deve um reconhecimento tanto maior quanto recebeu dele os maiores
benefícios, como nota São Gregório. Merece o ingrato ser privado de todos os
bens que recebera, como observa um sábio autor. Jesus Cristo disse: Ao que já possui, dar-se-á, e ele estará na
abundância; mas o que nada possui,
ver-se-á despojado até do que parecia ter. Quem é grato para com Deus obterá
maior abundância de graças; mas um padre
que, depois de tantas luzes, depois de tantas comunhões, volta as costas a Deus,
e desprezando todos os favores recebidos, renuncia à sua graça, este padre será
com justiça privado de tudo. É o Senhor liberal com todas as suas criaturas,
mas nunca com os ingratos. A ingratidão, diz São Bernardo, faz estancar a fonte
da bondade divina.
Por isso São Jerônimo pôde dizer: Nenhuma besta há no mundo mais feroz que um
mau padre, porque esse não se quer deixar corrigir. E o autor da Obra
imperfeita: Os leigos facilmente se
emendam, mas um mau eclesiástico é incorrigível. Segundo São Damião, é de
preferência aos padres pecadores que se aplicam estas palavras do Apóstolo: Porque os que foram alumiados, os que
saborearam o dom celeste, e receberam o Espírito Santo... depois caíram, é
impossível que se renovem pela penitência. Com efeito, quem mais que o padre
recebeu de Deus graças abundantes? Quem
mais do que ele gozou dos favores do Céu e participou dos dons do Espírito
Santo? Segundo Santo Tomás, permaneceram
obstinados no pecado os anjos rebeldes, porque pecaram em face da luz; é assim, escreve São Bernardo, que o padre
será tratado por Deus: tornado anjo do
Senhor, ou há de ser eleito como anjo, ou réprobo como o anjo.
Eis o que o Senhor revelou a Santa Brígida: Olho os pagãos e os judeus, mas não vejo
ninguém pior que os padres: o seu pecado
é como o que precipitou Lúcifer. E notemos aqui o que diz Inocêncio 3º: Muitas coisas que nos leigos são pecados
veniais, nos eclesiásticos são mortais.
É ainda aos padres que se aplicam estas palavras de São Paulo: Uma terra, que, depois de muito regada pelas
chuvas, só produz espinhos e silvas, está reprovada e sujeita a maldição: acabará por ser entregue ao fogo. Que chuva de
graças não recebe de Deus continuamente o padre? E contudo, em vez de frutos, só produz silvas
e espinhos: Desgraçado! Está prestes a ser reprovado e a receber a
maldição final, para ir, depois de tantas graças, que Deus lhe prodigalizou,
arder no fogo do inferno! - Mas, que
temor pode ter ainda do fogo do inferno um padre, que voltou as costas a Deus? Os padres que pecam perdem a luz, como levamos
dito, e perdem também o temor de Deus. É o Senhor quem no-lo declara: Se eu sou o Senhor, onde está o meu temor, vos
diz o Senhor, a vós, ó padres, que desprezais o meu nome?.
Segundo São Bernardo, os sacerdotes, caindo da altura a que se acham elevados,
de tal modo se afundam na malícia, que perdem a lembrança de Deus, e tornam-se
surdos a todas as ameaças da justiça divina, a tal ponto que nem o perigo da
sua condenação os espanta.
Mas que haverá nisso de admirável? O
padre, pecando, cai no fundo do abismo, onde fica privada da luz e despreza
tudo. Acontece então o que diz o Sábio: Caído no fundo do abismo do pecado, o ímpio
despreza. Este ímpio é o padre que peca por malícia; um só pecado mortal o precipita no fundo das
misérias, em que cegamente permanece mergulhado. Nesse estado despreza tudo: castigos, advertências, presença de Jesus
Cristo, a quem toca no altar. Não córa de se tornar pior que o traidor Judas,
como o próprio Senhor um dia disse a Santa Brígida: Tais padres já não são sacerdotes meus, mas
verdadeiros traidores. Sim, tais padres são verdadeiros traidores, porque
abusam da celebração da Missa, para ultrajarem mais cruelmente a Jesus Cristo
pelo sacrílego!
E qual será, depois de tudo, o triste fim do padre mau? Ei-lo: Praticou a iniqüidade na terra dos santos, não
verá a glória do Senhor. Será, numa palavra, o abandono de Deus, e depois o
inferno. - Mas, dirá alguém, essa linguagem é demasiado aterradora: quereis lançar-nos da desesperação? Respondo com Santo Agostinho: Se vos espanto, "é que eu próprio estou
espantado". - Assim, dirá um padre, que tiver tido a desgraça de ofender a
Deus no sacerdócio, não haverá para mim esperança de perdão? - Ó, não posso afirmar isso; haverá esperanças, desde que haja
arrependimento do mal cometido.
Que esse padre seja pois extremamente reconhecido para com o Senhor, se ainda
se vê ajudado da graça; mas é preciso
que se apresse a dar-se a Deus, enquanto o chama, conforme o aviso de Santo
Agostinho: "Abramos os ouvidos à
voz de Deus, enquanto nos chama, com receio de que se recuse a ouvir-nos,
quando estiver prestes a julgar-nos".
§ 3º Exortação
Ó padres, irmãos meus! Saibamos de
futuro apreciar a nossa dignidade; e,
ministros de Deus, envergonhemo-nos da escravidão do pecado e do demônio, como
diz São Pedro Damião: "Deve o padre
ter sentimentos nobres e, como ministro do Senhor, corar de se fazer escravo do
pecado". Não imitemos a loucura dos mundanos que só pensam no presente.
Está decretado que os homens morrem uma vez, e depois da morte segue-se o
juízo. Todos havemos de comparecer no tribunal de Jesus Cristo, para cada um
receber o salário dos trabalhos desta vida. Ali nos será dito: Dá conta da tua administração. Dá-me conta do
teu sacerdócio: como o exerceste? A que fim o fizeste servir? - Meu caro irmão, se tivesses de ser julgado
neste momento, estarias contente? Ou
antes, não dirias: Quando ele me
interrogar, que lhe responderei?.
Quando Deus quer castigar um povo, começa o castigo pelos padres, porque são
eles a causa primária dos pecados do povo, quer pelos seus maus exemplos, quer
pela sua negligência em cultivarem a vinha confiada aos seus cuidados. Por isso
o Senhor diz então: Eis o tempo em que o
juízo vai começar pela casa de Deus. No morticínio descrito por Ezequiel, quis
Deus que os padres fossem as primeiras vítimas: Começai pelo meu santuário. E noutro lugar,
lê-se: Um juízo rigorosíssimo está
reservado para os que se acham à frente do povo. A quem recebeu muito, será
exigido muito.
Diz o autor da Obra imperfeita: Há de
ver-se no dia do juízo o padre pregador despojado da sua dignidade, e arrojado
para o meio dos infiéis e hipócritas, e dada a um leigo a estola que lhe era
destinada. Eis o que todo o padre deve meditar bem: Escutai isto, ó sacerdotes... porque é do
vosso julgamento que se trata.
E, como o juízo dos padres é o mais rigoroso, também a sua condenação será mais
terrível: Esmagai-os com uma violência
extrema. Um concílio de Paris, repete estas palavras de São Jerônimo: "Grande é a ruína deles, se vierem a cair
em pecado". Sim, diz São João Crisóstomo, se o padre cometer os mesmos
pecados que as suas ovelhas, sofrerá, não a mesma pena, mas uma pena muito mais
severa. Foi revelado a Santa Brígida que os sacerdotes pecadores são
mergulhados num inferno mais profundo que o dos demônios. Ó, que festa para os
demônios, quando um padre réprobo descer ao meio deles! Todo o inferno se põe em movimento para ir ao
encontro dele, como diz Isaías. Todos os príncipes dessa terra de misérias se
levantarão para darem ao padre condenado o primeiro lugar nos tormentos: Todos, ajunta o profeta, te receberão com
estas palavras: Então cá estás tu
também, condenado como nós e tornado semelhante a nós.
Ó padre, houve tempo em que mandaste sobre nós com império; fizeste descer muitas vezes o Verbo encarnado
sobre os altares, arrancaste ao inferno muitas almas e agora eis-te semelhante
a nós, desgraçado e atormentado como nós! Foi o teu orgulho que te fez desprezar a Deus
e ao teu próximo, até por fim te precipitar aqui. Visto que és rei, fica-te bem
a cama real e a púrpura conveniente à tua dignidade; pois bem, aí está o fogo, aí estão os vermes,
que te hão de devorar eternamente o corpo e alma. Ó como então os demônios hão
de mofar das missas, dos sacramentos e de todas as funções do sacerdote
condenado!.
Ó sacerdotes, irmãos meus, tomai cuidado de vós; os demônios têm mais a peito tentar um padre
que cem seculares, porque um padre que se condena arrasta com ele uma multidão
para o abismo. Diz São João Crisóstomo: Quem faz perecer o pastor, em breve faz
dispersar todo o rebanho. E com não menos razão diz outro autor: Na guerra procuram os inimigos primeiro que
tudo matar os chefes.
São Jerônimo ajunta: Não procura tanto o
demônio os infiéis, nem os que estão fora do santuário; é na Igreja de Jesus Cristo que gosta de fazer
os seus latrocínios; estão ali, segundo
Habacuc, as suas iguarias de predileção. Não há iguarias mais apetitosas para o
demônio, que as almas dos eclesiásticos. (O que se segue pode servir para
excitar a compunção no ato de contrição.)
Sacerdote de Jesus Cristo, imagina que o Senhor te fala da maneira mais
tocante, como ao povo judeu: Dize-me que
mal te fiz, ou antes que bem tenho deixado de te fazer? Tirei-te do meio do mundo, e escolhi-te entre
tantos seculares, para te fazer meu sacerdote, meu ministro, meu amigo. E tu,
por um interesse miserável, por um vil prazer, de novo me pregaste na cruz!
Pela minha parte, todas as manhãs, no deserto desta vida, te tenho saciado com
o maná celeste, isto é, com a minha carne divina e com o seu sangue. E tu
tens-me esbofeteado, flagelado por tuas palavras e ações imodestas. Escolhi-te
como um vinho que devia fazer as minhas delícias; por isso infundi na tua alma tantas luzes e
graças, para que produzisses frutos doces e preciosos; e tu só me tens dado frutos amargos. Fiz-te
rei, elevei-te mesmo acima de todos os reis da terra. E tu coroaste-me de
espinhos, com os teus maus pensamentos consentidos.
Cheguei a fazer-te meu vigário, a entregar-te as chaves do Céu, a fazerte um
Deus da terra! E tudo desprezaste as
minhas graças, a minha amizade; crucificaste-me de novo etc.
CAPÍTULO, 5. O mal da tibieza no
padre
§ 1º A que está exposto o padre
tíbio
A São João mandou o Senhor, no Apocalipse, que escrevesse ao bispo de Éfeso
estas palavras: Sei o bem que fazes; conheço os teus trabalhos pela minha glória,
assim como a tua paciência nas fadigas do teu ministério. Em seguida,
acrescenta: Mas, por outro lado, tenho a
arguir-te de haveres esfriado no teu primitivo fervor. - Alguém dirá talvez: que grande mal havia nisso? - Escutai o que o Senhor ajunta ainda: Lembra-te donde caíste; faze penitência das tuas culpas, e cuida de
voltar ao primitivo fervor, em que deves viver, como ministro meu; de contrário, serás reprovado por mim, como
indigno do ministério, que te confiei.
Como assim! Então a tibieza conduz a uma
ruína tal? - Sim, a uma grande ruína, e
o pior é que os tíbios não a conhecem, não a temem, não procuram evitá-la. Isto
acontece sobretudo aos padres, cuja máxima parte vão esbarrar no escolho oculto
da tibieza, e um grande número encontram nele a sua perdição. Escolho oculto: o que faz que os tíbios estejam expostos a
grande risco de se perderem, é que a tibieza não deixa ver a uma alma o mal
enorme que lhe causa. Muitos deles por certo não querem separar-se inteiramente
de Jesus Cristo; querem segui-lo, mas de
longe, como fez São Pedro, quando o Redentor foi preso no jardim das Oliveiras.
Procedendo porém assim, caem facilmente na desgraça de Pedro, que apenas entrou
na casa do Pontífice, a um simples remoque duma serva, renegou Jesus Cristo!
Quem despreza as coisas pequenas vem a cair pouco a pouco nas grandes. O
intérprete aplica este texto à alma tíbia, e diz que ela em breve perderá a
devoção, e cairá depois, passando das faltas leves de que não se importava, às
graves e mortais. Segundo Eusébio de Emeso, quem não teme ofender a Deus com
pecados veniais, dificilmente se há de preservar dos pecados mortais. É com
justiça, ajunta Santo Isidoro, que o Senhor permite que quem não faz caso das
faltas leves caía depois nas mais graves.
Os pequenos excessos, quando são raros, não causam grave detrimento na saúde; mas, quando são freqüentes e multiplicados,
acabam por ocasionar doenças mortais. É o que diz Santo Agostinho: Evitais com cuidado as quedas graves, e não
temeis as leves; não perdestes a vida
sob a pedra enorme dalgum pecado mortal; mas tomai cautela não fiqueis esmagados
debaixo dum montão de areia de pecados veniais.
Ninguém ignora que só o pecado mortal dá a morte à alma e que os veniais, por
mais numerosos que sejam, a não podem privar da graça, mas é preciso saber
também o que diz São Gregório: que o
hábito de cometer faltas veniais, sem delas sentir remorso e sem pensar em corrigi-las,
faz perder pouco a pouco o temor de Deus, e, uma vez perdido este temor, é
fácil passar das faltas pequenas às grandes. Santo Doroteu ajunta: Se desprezar-mos as faltas leves, periculum
est ne in perfectam insensibilitatem deveniamus. Quem não se inquieta com as
pequenas quedas, corre perigo de cair numa insensibilidade universal, que lhe
faça perder o horror até às quedas mortais.
Conforme o atesta o tribunal da Rota, Santa Teresa nunca caiu em nenhuma falta
grave; contudo o Senhor lhe fez ver o
lugar que lhe estava reservado no inferno, não porque ela o tivesse merecido,
mas porque se teria condenado, se não tivesse sido arrancada a tempo, ao estado
de tibieza em que vivera. Por isso o Apóstolo nos faz esta advertência: Não deis entrada ao demônio. Ao espírito das
trevas basta-lhe que comecemos a abrir-lhe a porta do nosso coração, deixando entrar
nele sem escrúpulo faltas leves; porque
depois ele a saberá abrir de par em par por faltas graves. Cassiano escreveu: Quando algum cai, não imagineis que ele tenha
chegado de repente à sua ruína. Não, quando soubermos que alguma pessoa, dada à
vida espiritual, sucumbira enfim, não pensemos que o demônio a tenha lançado
subitamente no abismo do mal: primeiro a
fez cair no estado de tibieza e dali no precipício da inimizade de Deus.
Assim, São João Crisóstomo afirma ter conhecido muitas pessoas, adornadas de
todas as virtudes, mas que, vindo a cair na tibieza, depois se precipitaram num
abismo de vícios.
Conta-se nas crônicas da Ordem de Santa Teresa que a venerável irmã Ana da
Encarnação vira um dia uma alma condenada, que ela primeiro tivera por santa; viam-se-lhe unidos ao rosto muitos animais
pequenos, imagens das numerosas faltas que na sua vida tinha cometido e de que
não se havia importado. Alguns desses animálculos lhe diziam: "Foi por nós que começaste"; outros enfim: "Foi por nós que te perdeste". Ao
bispo de Laodicéia mandou dizer o Senhor: Conheço as tuas obras, e que não és frio nem
quente. Tal é o estado dum tíbio, - nem frio, nem quente. Homem tíbio, diz
Menóquio, é o que não ousa, de propósito deliberado, ofender a Deus
mortalmente, mas que é negligente em se aperfeiçoar; por aí dá fácil entrada a todas as paixões.
Um padre tíbio não é ainda manifestamente frio, porque não comete
deliberadamente pecados mortais; mas
afroixa em tender para a perfeição, a que o seu estado o obriga; não lança conta aos pecados veniais, e cada dia
os comete em grande número sem escrúpulo: mentiras, intemperanças na comida e na bebida,
imprecações, Ofício mal recitado, missa mal celebrada, maledicência contra
todos, chocarrices inconvenientes. Vive na dissipação, no meio dos negócios e
prazeres do século; alimenta desejos e
apegos perigosos; cede à vanglória, ao
respeito humano, aos melindres e ao amor próprio; não pode suportar a menor contrariedade, a
menor palavra que o humilhe; vive sem
oração e sem devoção.
O Padre Alvarez de Paz, falando dos defeitos e faltas da alma tíbia, exprime-se
assim: O tíbio assemelha-se a um doente
dominado de muitas moléstias pequenas que, sem lhe darem a morte por si mesmas,
não lhe deixando nenhum descanso, acabam por lançá-lo em tal fraqueza, que ele
vem a ser atacado por um mal grave, isto é, por uma tentação a que não pode
resistir, e então a sua queda é profunda.
Eis por que o Senhor, continuando a falar do tíbio, lhe diz: Oxalá fôras frio ou quente! Mas porque és tíbio, e nem frio nem quente,
apresso-me a lançar-te da minha boca. O que tem a desgraça de jazer no estado
de tibieza, medite bem estas palavras e trema.
Antes eu quereria, diz o Senhor, que fosses frio, isto é, privado da graça; porque haveria mais esperança para ti de
saíres desse miserável estado, do que se permaneceres nele, onde ficas mais exposto
a cair em vícios graves, sem esperança de emenda. É assim que Cornélio A-Lápide
explica esta passagem. Segundo São Bernardo, é mais fácil converter um leigo
vicioso, que um eclesiástico tíbio; e
Pereira ajunta que é mais fácil converter um infiel, que fazer sair um cristão
da tibieza.
E de fato, Cassiano afirma ter visto muitos pecadores a darem-se a Deus com
fervor, mas nunca uma alma tíbia. São Gregório não perde a esperança a respeito
dum pecador não convertido, mas nada espera dum convertido que, depois de se
ter dado a Deus com fervor, caiu na tibieza. Eis as suas palavras: "O que é frio, sem ter sido tíbio antes,
deixa esperança; o tíbio porém não a
deixa: porque pode esperar-se a
conversão duma alma, que se encontra atualmente em estado de pecado; mas a que, depois da sua conversão, cai na
tibieza, essa tira-nos a esperança de vermos voltar para Deus, no caso de se
separar dele pelo pecado.
Em suma, a tibieza é um mal quase incurável e desesperado. Eis a razão: para se poder evitar qualquer perigo, é
necessário conhecê-lo; ora, o tíbio está
engolfado numa tal obscuridade, que não chega mesmo a conhecer o perigo em que
se encontra. A tibieza é como a febre ética que mal se faz sentir. As faltas
habituais em que o tíbio cai escapam-lhe à vista. As faltas graves, diz São
Gregório, por isso mesmo que se fazem conhecer melhor, corrigem-se mais
depressa; mas as leves olham-se como
nada, e continua-se a cometê-las; é
assim que o homem se acostuma a desprezar as coisas pequenas, chegando por isso
facilmente as desprezar também as grandes.
Além disto, o pecado mortal causa sempre um certo horror, mesmo ao pecador
habitudinário; mas, à alma tíbia, as
suas imperfeições, os seus afetos desordenados, a sua dissipação, o seu apego
ao prazer e à estima própria, nenhum horror lhe inspiram; e contudo essas pequenas faltas são para ela
mais perigosas, pois que a conduzem à ruína, sem ela dar por isso; é o que nota o Padre Alvarez de Paz.
Dali esta célebre máxima de São João Crisóstomo, - que "em certo sentido,
devemos evitar com mais cuidado as faltas leves que as graves". E a razão
que o Santo dá é nós termos naturalmente horror às faltas graves, ao passo que
as leves desprezamo-las, e por isso elas em breve se tornam graves. O pior é
que as pequenas infidelidades, que se desprezam, tornam o homem pouco atento
aos interesses da sua alma, e fazem que, uma vez lançado no hábito de não
cuidar das faltas leves, venha a negligenciar também as mais graves.
É a razão porque o Senhor nos Cânticos nos dá este aviso: Caçai as raposas pequenas que assolam a nossa
vinha; porque a nossa vinha está em
flor.. Notai neste texto a palavra raposas = Vulpes; não nos diz o Senhor que cacemos os leões ou
os tigres, mas as raposas. As raposas devastam as vinhas, pelas escavações
numerosas, que fazem secar as raízes; dum modo semelhante, as faltas habituais
extinguem a devoção e os bons desejos, que são as raízes da vida espiritual.
Ajunta o texto - parvulas: caçai as
raposas pequenas; - e porque não as
grandes? É que das pequenas receia-me
menos, e no entanto elas muitas vezes causam maior mal que as grandes; porque, como observa o Padre Alvarez de Paz,
as faltas pequenas, de que não se faz caso, impedem a chuva das graças divinas,
sem as quais a alma permanece estéril, e acaba por se perder.
Diz ainda o Espírito Santo: Porque a
nossa vinha está em flor. Que fazem as faltas veniais multiplicadas, que não se
aborrecem? Devoram as flores, isto é,
abafam os bons desejos de adiantar na perfeição; e, desde que estes desejos venham a faltar, só
se andará para trás, até que se caia nalgum precipício, donde só com grande
dificuldade se possa sair.
Terminemos a explicação do citado texto do Apocalipse. Mas porque sois tíbio,
começarei a lançar-vos da minha boca. Quando uma bebida é fria ou quente,
toma-se com prazer; mas, se é tépida,
custa a tomar, porque provoca vômitos. É por isso que o Senhor faz esta ameaça
ao tíbio: vou começar a lançar-te da
minha boca, palavras que Menóquio comenta assim: Começa o tíbio a ser vomitado, quando,
permanecendo na sua tibieza, começa a desgostar a Deus, até que enfim seja do
todo rejeitado por ele no momento da morte, e para sempre separado de Jesus
Cristo.
Tal é o perigo que corre o tíbio de ser lançado, isto é, abandonado de Deus,
sem esperança de regresso. É o que se significa pelo vômito, pois que se tem
horror de tornar a ingerir o que uma vez se vomitou. É a explicação de Cornélio
A-Lápide.
Como é que o Senhor começa a vomitar um sacerdote tíbio? Cessa de lhe fazer os seus convites amorosos,
e é o que significa propriamente ser vomitado da boca de Deus; retira-lhe as consolações interiores, os
santos desejos, de modo que esse desgraçado se encontra privado de unção
espiritual. Irá para a oração, mas com aborrecimento, dissipação e tédio; assim, pouco e pouco será levado a deixá-la.
Depois nem mesmo se recomendará a Deus, e, sem oração, cada vez se tornará mais
miserável, irá de mal a pior. Celebrará a missa, recitará o Ofício, mas com
mais detrimento do que fruto; fará tudo
à sobreposse, por força ou sem devoção. Esmagareis as azeitonas e não nos
podereis ungir com azeite, diz o Senhor: quer dizer, que no meio dos exercícios mais
próprios para produzirem o azeite da devoção, vós permanecereis privado de toda
a unção.
Celebrar a missa, recitar o Ofício, pregar, ouvir confissões, assistir aos
moribundos, tomar parte nos funerais, - são exercícios que deviam aumentar o
fervor; apesar de tudo isso,
permanecereis árido, sem paz, dissipado, vítima de mil tentações. Eis como Deus
começa a vomitar o tíbio.
§ 2º O sacerdote não pode
contentar-se com evitar os pecados graves
Dirá talvez o padre tíbio: basta-me que
não cometa pecados mortais e que me salve. - Basta que vos salveis? Não, responde Santo Agostinho: visto que sois padre, estais obrigado a
trilhar o caminho estreito da perfeição; se seguirdes pela via larga da tibieza, não
vos salvareis. "Se dizeis: Basta,
estais perdido". Segundo São Gregório, quem é chamado a salvar-se como
santo, e quer salvar-se como imperfeito, não se salvará. Foi precisamente o que
o Senhor fez ouvir um dia à bem-aventurada Angela de Foligno, falando-lhe
assim: "Aqueles a quem dou luzes
para caminharem na via da perfeição, e degradam a sua alma, querendo seguir
pela via comum, serão abandonados em mim".
Como vimos acima, é certo que o sacerdote é obrigado a tornar-se santo, quer
pela sua qualidade de amigo e ministro de Deus, quer em razão das funções
augustas que exerce, não só quando oferece o sacrifício da missa, mas quando se
apresenta como mediador dos homens, diante da sua divina majestade, e quando
santifica as almas mediante os sacramentos; porque é para o fazer caminhar na perfeição
que o Senhor o cumula de graças e socorros especiais. Em presença disto, quando
ele quer exercer com negligência o seu ministério, no meio de defeitos e faltas
sem número, que não pensa em detestar, provoca a maldição de Deus: Maldito o que faz a obra de Deus com
negligência. Esta maldição significa o abandono de Deus, diz Santo Ambrósio.
Costuma o Senhor abandonar essas almas que, depois de terem sido mais
favorecidas com as suas graças, não cuidam de atingir a perfeição a que são
chamadas.
Quer Deus que os seus ministros o sirvam com o fervor dos serafins, escreve um
autor; de contrário, há de retirar-lhes
as suas graças e permitir que adormeçam na tibieza, para dali caírem primeiro
no abismo do pecado, e depois no do inferno.
O padre tíbio, acabrunhado sob o peso de tantas faltas veniais e de tantas
afeições desordenadas, permanece como que mergulhado num estado de
insensibilidade. As graças recebidas e as obrigações do sacerdócio já o não
tocam; por isso o Senhor na sua justiça
o privará dos socorros abundantes, que lhe seriam moralmente necessários, para
se desempenhar os deveres do seu estado. Assim irá de mal a pior; cada dia aumentarão os seus defeitos e também
a sua cegueira. Havia Deus de prodigalizar as suas graças a quem se mostra
avaro com ele? Não, diz o Apóstolo: quem pouco semeia, pouco colhe.
Declarou o Senhor que aumentará os seus favores aos que lhe testemu-nham
reconhecimento e conservam as suas graças, mas tirará aos ingratos o que
primeiro lhes tinha dado.
Noutra parte diz que, o senhor da vinha, quando não tira fruto dela, trata de a
confiar a outros vinhateiros, e castiga os primeiros. Depois ajunta: Por isso vos declaro que o reino de Deus vos
será tirado, para ser dado a uma nação que colha fruto dele. Significa que Deus
tirará do mundo o padre tíbio, ao qual havia confiado o cuidado do seu reino,
isto é, que tinha encarregado de trabalhar na sua glória, e que dará esse
encargo a outros, que lhe sejam reconhecidos e fiéis.
Deve procurar-se na tibieza a razão por que muitos padres colhem pouco fruto,
de tantos sacrifícios que oferecem a Deus, de tantas comunhões que fazem, e de
tantas orações que recitam no Ofício e na Missa. Semeastes muito e colhestes
pouco... e o que tinha recebido o salário do seu trabalho, lançou-o num saco
roto. Tal é o padre tíbio: os seus
exercícios espirituais lança-os ele todos num saco furado, quer dizer que não
lhe resta nenhum merecimento; antes, ao
fazê-los dum modo tão defeituoso se torna digno de castigo. Não, o padre que
vive na tibieza não está longe da sua perda. Segundo Pedro de Blois, deve o
coração do padre ser um altar em que não cesse de arder o fogo do amor divino.
Mas que sinal de amor ardente dá a Deus esse padre, que se contenta com evitar
os pecados mortais e não teme desagradar a Deus com as faltas veniais? Como observa o Padre Alvarez de Paz, o sinal
que dá é antes o de um amor bem tíbio.
Para fazer um bom padre não bastam apenas graças comuns e pouco numerosas; requerem-se graças muito especiais e
abundantes. Ora, como quereria Deus prodigalizar os seus favores a quem se pôs
a seu serviço, e depois o serve mal? Santo Inácio de Loiola chamou um dia um irmão
leigo da sua Companhia, que passava uma vida muito tíbia, e falou-lhe assim: "Dizeme, irmão meu, que vieste fazer à
religião?" Ele respondeu-lhe: "Vim para servir a Deus". "Ah,
meu irmão, replicou o Santo, que disseste? Se me tivesses respondido que foi para servir
um cardeal, um príncipe da terra, terias mais desculpa; mas, visto que vistes para servir a Deus, - é
assim que o serves?
Todo o sacerdote entra na corte, não dum príncipe da terra, mas noutra muito
mais alta, - a dos amigos de Deus, onde se tratam continuamente e em
confidência os negócios mais importantes para a glória da soberana Majestade.
Donde procede que um padre tíbio mais desonra do que honra a Deus; porque dá a entender, pela sua conduta
negligente e cheia de defeitos, que o Senhor não merece ser servido e amado com
mais diligência; que, procurando
agradar-lhe, não encontra prêmio que o faça bastante feliz; e que a sua divina Majestade não é digna dum
amor tal, que nos obrigue a preferir a sua glória a todas as nossas
satisfações.
§ 3º Exortação
Redobremos de esforços, ó padres, irmãos meus, e tremamos! Não aconteça que todas as nossas grandezas,
todas as honras a que Deus nos alteou, entre todos os homens, venham a terminar
um dia na nossa condenação eterna! Diz
São Bernardo que o empenho com que os demônios trabalham na nossa ruína, deve
excitar o nosso zelo, em assegurarmos a salvação. Ó, como esses inimigos
terríveis porfiam em perder um padre! Ambicionam com mais ardor a perda dum padre,
que a de cem seculares, não só porque a vitória alcançada sobre um padre é para
eles um triunfo mais brilhante, mas porque um padre na sua queda arrasta muitos
outros desgraçados para o abismo.
Assim como as moscas se afastam dum vaso que contenha algum líquido a ferver, e
procuram outro de licor tépico, assim os demônios se mostram menos pressurosos
em assaltar os sacerdotes fervorosos, que em impelir os tíbios do estado de
tibieza para o de pecado. Diz Cornélio A-Lápide que o tíbio, desde que seja
atacado por alguma tentação grave, está em grande perigo de sucumbir, porque se
encontra quase sem força para lhe resistir; e assim, no meio de tantas ocasiões em que se
encontra, caí muitas vezes em faltas graves.
É preciso pois que o sacerdote se aplique a evitar os pecados que comete
cientemente e de propósito deliberado. Além de Jesus Cristo, que por natureza e
sua divina Mãe por um privilégio especial, foram puros de toda a mancha de
pecado, é certo que de todos os homens, sem exceptuar os santos, nenhum foi
isento de pecados ao menos veniais. Nem os céus são puros na sua presença.
Todos pecamos em muitas coisas. Como diz pois São Leão, para todos os filhos de
Adão, é uma triste herança o serem manchados do pó da terra.
Acima de tudo porém, é necessário prestar atenção a esta palavra do Sábio: O justo cairá sete vezes e se levantará. O que
cai por fragilidade, sem pleno conhecimento do mal que faz, e sem consentimento
deliberado, levanta-se com facilidade. Se, ao contrário, o pecador conhece o
mal e o pratica deliberadamente e, em vez de o detestar, se compraz nele, -
como poderá levantar-se?
Diz Santo Agostinho: Se escorregamos em
algumas faltas, ao menos detestemo-las e confessemo-las, e Deus no-las
perdoará: Se confessarmos os nossos
pecados, Deus, que é fiel e justo no-los perdoará, e nos purificará de toda a
iniqüidade. Falando dos pecados veniais, Luís de Blois ensina com Tauler que
basta, para obter o perdão deles, confessá-los ao menos em geral. E noutro
lugar diz que se apagam mais facilmente tais pecados, voltando-se para Deus com
um sentimento de humildade e amor, do que passando muito tempo a pesá-los com
excessivo temor. Lê-se igualmente em São Francisco de Sales que as faltas
ordinárias das pessoas piedosas, como as cometem indeliberadamente, também se
apagam indeliberadamente.
No mesmo sentido se exprime Santo Tomás, quando diz que, para a remissão dos
pecados veniais, basta um ato de detestação, implícito ou explícito, como o que
uma pessoa faz, voltando-se para Deus com devoção e amor. E acrescenta: Os pecados veniais remitem-se de três modos: 1º. pela infusão da graça, e é o que acontece,
quando se recebe a Eucaristia, ou outro sacramento; 2º. por certos atos acompanhados de algum
movimento de arrependimento, como são a confissão geral, o ato de tocar no
peito, e a oração dominical; 3º. por
atos acompanhados dum certo movimento de reverência para com Deus e as coisas
divinas; e é assim que a benção do
bispo, a aspersão da água benta, a oração numa igreja consagrada, e outras
coisas deste gênero, produzem a remissão dos pecados veniais.
São Bernardino de Sena, falando especialmente da comunhão, diz: Pode acontecer que, pela recepção da
Eucaristia, uma alma se una tão estreitamente a Deus que fique purificada de
todos os seus pecados veniais.
O venerável Luís du Pont dizia: "Tenho cometido muitas faltas, mas nunca
fiz a paz com as minhas faltas". Há muitos que fazem as pazes com os seus
defeitos, e é o que há de causar a sua perda. Segundo São Bernardo, enquanto se
detestam as próprias imperfeições, dá se esperança de regressar ao bom caminho;
mas, deste que se peca ciente e
deliberadamente, sem temor de pecar e sem dor de haver pecado, pouco a pouco se
cai na perdição. As moscas que morrem no bálsamo fazem-lhe perder a suavidade
do odor, diz o Sábio. Essas moscas são precisamente as faltas que se cometem e
não se detestam; porque então permanecem
como mortas na alma: é a explicação de
Dionísio Chartreux. Quando uma mosca cai num perfume, diz ele, e lá permanece,
estraga-o e anula-lhe o bom odor.
No sentido espiritual, essas moscas que morrem em nós são os pensamentos vãos,
as afeições mais ou menos culposas, as distrações não combalidas: tudo isso nos rouba a doçura dos exercícios
espirituais.
Nota São Bernardo que não há grande mal em dizer que tal coisa é um pecado
venial; mas cometer esse pecado,
acrescenta, e comprazer-se nele, é um mal que tem conseqüências graves, e Deus
há de punir severamente, como está escrito em São Lucas: Aquele que conheceu a vontade do seu senhor, e
não fez os preparativos necessários para o seu regresso, e não cumpriu a sua
vontade, receberá grande número de açoites; o que porém o não conheceu, e fez coisas
dignas de castigo, receberá poucos açoites. É verdade que nem mesmo as pessoas
espirituais são isentas de pecados veniais; mas, diz o Padre Alvarez de Paz, cada dia
diminuem elas o número e a gravidade, e depois apagam a mancha por atos de amor
de Deus. Quem assim procede acabará por se santificar, e as suas faltas não o
impedirão de tender para a perfeição. Por isso Luís de Blois nos exorta a não
nos desanimarmos com essas pequenas faltas, pois que temos muitos meios para
nos corrigirmos delas.
Mas quem ainda está preso à terra por algum laço, quem cai e recai nelas
voluntariamente, sem desejar levantar-se, como poderá adiantar no caminho de Deus?
Quando a ave está solta de todas as
prisões, logo levanta o seu vôo; mas, se
estivesse presa, embora por um fio delgado, permaneceria retida. O menor laço
que prenda a alma à terra, dizia São João da Cruz, impede-a de adiantar na
perfeição.
Guardemo-nos pois de cair no miserável estado da tibieza; porque, à face do que fica dito, para arrancar
dele um padre, é necessária uma graça potentíssima. E que fundamento temos nós
para pensar que o Senhor concederá uma tal graça a quem lhe provoca náuseas? - Alguém dirá que já se encontra nesse estado;
- e não lhe restará esperança? - Há ainda uma esperança: a misericórdia e o poder de Deus, - As coisas
impossíveis aos homens são possíveis para Deus. É impossível ao tíbio
arrancar-se da tibieza, mas não é impossível a Deus tirá-lo dela. É preciso
contudo que ele ao menos o deseje: se
nem mesmo deseja levantar-se, como poderá esperar o socorro de Deus? Ainda assim, o que não tem esse desejo, ao
menos peça ao Senhor que lho dê. Se lho pedir com perseverança, Deus lhe dará o
desejo e o socorro de que necessita. A promessa de Deus não falta.
Oremos pois e digamos com Santo Agostinho: Senhor, nenhuns merecimentos tenho a
oferecer-vos para ser atendido por vós; mas, ó Padre eterno, a vossa misericórdia e os
merecimentos de Jesus Cristo, são os meus méritos. - É também um grande meio
para sair da tibieza, recorrer à santíssima Virgem.
CAPÍTULO, 6. Do pecado da
incontinência
§ 1º Necessidade da pureza no
padre
A incontinência é chamada por Basílio de Seleucia uma peste viva, e por São
Bernardino de Sena, o mais funesto de todos os vícios; e isso porque, como diz São Boaventura, a
impudicícia destrói o germe de todas as virtudes. Por isso Santo Ambrósio lhe
chama a origem e mãe de todos os vícios. De fato, este vício arrasta consigo
todos os crimes: ódios, roubos,
sacrilégios etc. São Remígio teve pois razão em dizer que por causa deste
vício, poucos adultos se salvam. E lê-se no Padre Paulo Segneri que assim como
o orgulho encheu o inferno de anjos rebeldes, assim a impudicícia o enche de
homens.
Nos outros vícios pesca o demônio ao anzol; neste é à rede, de modo que enche mais o
inferno com esta paixão, do que com todas as outras. Assim, para punir a
incontinência, há Deus enviado à terra os flagelos mais espantosos: dilúvios de água e de fogo!
Segundo Santo Atanásio, é a castidade uma pérola mui preciosa, mas poucas
pessoas cá na terra sabem encontrá-la. Ora, se esta pérola convém aos
seculares, é absolutamente necessária aos padres. Entre todas as virtudes que o
Apóstolo prescreve a Timóteo, recomenda-lhe em especial a castidade. Orígenes
diz que é a primeira virtude que deve adornar o padre, quando sobe ao altar. E,
segundo São Clemente de Alexandria, nesta vida, somente são e se podem com
verdade dizer sacerdotes os de vida pura. Se pois a pureza faz o padre, a
impureza dalgum modo o há de despojar da sua dignidade, diz Santo Isidoro de
Pelusa.
Eis a razão por que a santa Igreja, em tantos concílios, em tantas leis e
advertências, sempre se tem mostrado ciosa de conservar a castidade nos padres.
Inocêncio 3º publicou o seguinte decreto: "Ninguém seja admitido a uma Ordem sacra,
desde que não seja virgem ou duma castidade provada; = Nemo ad sacrum Ordinem permittatur accedere,
nisi aut virgo aut probatae castitatis existat. E ao mesmo tempo ordenou que os
eclesiásticos incontinentes fossem excluídos - ab omnium graduum dignitate.
Outro decreto é de São Gregório: "Se alguém se manchar com um pecado
carnal, depois de receber alguma Ordem sacra, seja excluído das funções da sua
Ordem, e não seja mais admitido a servir ao altar ".
Além disto, condenou todo o sacerdote réu dum pecado vergonhoso, a dez anos de
penitência: durante os três primeiros
meses devia dormir no chão duro, viver na solidão, sem nenhuma comunicação com
os homens, e privado da sagrada comunhão; depois, durante ano e meio, devia sustentarse
a pão e água; nos anos seguintes, devia
continuar o jejum a pão e água, mas só três dias na semana. Em suma, a Igreja
olha como monstros os padres que não têm uma vida casta.
§ 2º Malícia do pecado de
impureza no padre
Examinemos primeiro a malícia do pecado dum padre contra a castidade. O padre é
o templo de Deus, tanto pelo voto de castidade que fez, como pela unção santa
que o consagrou a Deus. Assim fala São Paulo de si próprio e dos outros
sacerdotes, associados ao seu ministério; o que faz dizer ao cardeal Hugues: Acautele-se o padre de manchar o santuário de
Deus, porque ele foi ungido com óleo sagrado. O corpo do padre é pois esse
santuário do Senhor. Conservai-vos casto, escrevia Santo Inácio mártir, como
casa de Deus e templo de Jesus Cristo. Por isso São Pedro Damião diz que os
padres, manchando o seu corpo com ações desonestas, profanam o templo de Deus.
Depois ajunta: "Não demudeis os
vasos consagrados a Deus, em vasos de desprezo".
Que se diria se alguém se servisse, à mesa para beber, dum cálice consagrado? Dirigindo-se aos padres, diz Inocêncio 2º: Visto que eles devem ser santuário de Espírito
Santo, que indignidade vê-los escravos da impureza! Que horror ver manchado com as ignomínias dos
pecados carnais um padre, que por toda a parte devia difundir, a par duma vida
luz, o doce odor da pureza: vê-lo imundo
e pestilento! Foi o que fez dizer a
Clemente de Alexandria que os padres impudícos, quanto lhes é possível, mancham
o próprio Deus, que habita na sua alma.
E disso se lamenta o Senhor: Os
sacerdotes calcaram aos pés a minha lei e profanaram os meus santuários, e Eu
era manchado no meio deles. Pois que, exclama Ele! Vejo-me desonrado pela incontinência dos meus
padres, porque, faltando à castidade, profanam os meus santuários, isto é, os
seus corpos, que eu consagrei ao meu culto, e onde venho muitas vezes fazer a
minha morada! Foi também o que fez
compreender São Jerônimo nestas palavras: "Manchamos o corpo de Cristo, quando nos
aproximamos indignamente do altar".
Além disto, o padre imola a Deus sobre o altar o Cordeiro sem mancha, o Filho
do próprio Deus; por este motivo ainda,
diz São Jerônimo, deve ser de tal modo casto, que se abstenha não só de toda a
ação desonesta, mas até do menor olhar pouco honesto. São João Crisóstomo
ensina igualmente que o padre deve ser muito puro, para tomar lugar no Céu entre
os Anjos. Noutra parte acrescenta que a mão do padre, que há de tocar a carne
de Jesus Cristo, deveria resplandecer em pureza mais que o sol.
Onde se poderia encontrar, pergunta Santo Agostinho, um homem bastante ímpio
que se atrevesse a tocar o Sacramento do altar com as mãos cheias de imundícia?
Mas há ainda uma coisa muito mais horrível, - é que os padres ousem subir ao
altar e tocar o corpo de Jesus Cristo, depois de se terem manchado com pecados
obscenos, como diz São Bernardo. Ai, padres do Senhor, exclama Santo Agostinho!
Tomai cuidado para que essas mãos que se
banham no sangue do Redentor, derramado outrora por vosso amor, não venham a
manchar-se no sangue sacrílego do pecado.
Demais, Cassiano observa que os padres não devem somente tocar a carne do
Cordeiro sagrado, mas alimentar-se dela, o que os obriga a uma pureza mais que
angélica. Segundo Pedro Comestor, quando o padre pronuncia, com os lábios
manchados do vício vergonhoso, as palavras da consagração, é como se escarrasse
no rosto do Salvador; e quando mete na
sua boca impura o Corpo sagrado e o Sangue precioso, é como se os lançasse na
lama. Mais ainda, diz São Vicente Ferrer, esse desgraçado comete crime mais
horrível do que se lançasse uma hóstia consagrada numa sentina.
Ó Padre! Exclama aqui São Pedro Damião,
vós que deveis sacrificar a Deus o Cordeiro sem mancha, não vades antes
imolar-vos ao demônio por vossas impurezas! O mesmo santo chama aos padres impudicos
vítimas do demônio, vítimas de que o inimigo das almas faz as suas delícias no
inferno. É necessário ajuntar que o padre impuro não se perde só; arrasta consigo muitos outros. Segundo São
Bernardo, a incontinência dos eclesiásticos é a perseguição mais funesta que a
Igreja sofre. Sobre estas palavras de Ezequias - eis que no seio da paz a minha
amargura é amaríssima escreve ele gemendo: Foi a dor da Igreja amarga na morte dos
mártires, mais amarga na guerra, que lhe moveram os hereges, amaríssima na
corrupção dos seus membros.
Está em paz a Igreja, e não tem paz: está em paz da parte dos pagãos, em paz do
lado dos hereges, mas não por certo da parte dos seus filhos. Os filhos
dilaceram as entranhas da sua mãe. Na verdade a Igreja sofreu cruelmente da
parte dos tiranos, que pelo martírio lhe arrebataram tantos fiéis; depois sofreu ainda mais cruelmente da parte
dos hereges, que com o veneno do erro inficionaram muitos dos seus súditos; mas o seu maior sofrimento, a sua maior
perseguição é a que lhe advém dos seus filhos, desses eclesiásticos indignos,
que por seus escândalos dilaceram as entranhas maternais! - Que vergonha, exclama também São Pedro
Damião, ver escravo da luxúria aquele que devia pregar a castidade!
§ 3º Conseqüências funestas da
impureza
Examinemos agora os estragos que o pecado desonesto causa na alma, e
principalmente na alma do padre.
1º. A cegueira do Espírito
Primeiro que tudo, o pecado cega o espírito, e faz-lhe perder de vista Deus as
verdades eternas. Segundo Santo Agostinho, a castidade faz que os homens vejam
a Deus. Pelo contrário, o primeiro efeito do vício impuro é a cegueira do
espírito, cujas conseqüências no sentir de Santo Tomás são: cegueira do espírito, ódio a Deus, apego à
vida presente, horror à vida futura ou desesperação de salvação. A impudicícia,
ajunta Santo Agostinho, roubanos o pensamento da eternidade. A primeira coisa
que faz o corvo, quando encontra um cadáver, é arrancar-lhe os olhos, o
primeiro mal que a incontinência faz à alma é tirar-lhe a luz das coisas
divinas.
Quantos exemplos desta triste verdade! Vêde Calvino, primeiro inclinado para a vida
eclesiástica, pastor de almas, tornado depois, por essa paixão infame, o chefe
duma heresia; Henrique 8º, primeiro
defensor da Igreja, depois seu perseguidor; Salomão, que começa por ser um santo, e acaba
por idólatra! O mesmo acontece de
contínuo aos sacerdotes impuros. Caminharão como cegos, porque pecaram contra o
Senhor. Desgraçados! No meio das luzes
das missas que celebram, das orações que recitam, dos funerais a que assistem,
permanecem cegos, como se não acreditassem, nem na morte que os espera, nem no
juízo em que hão de prestar contas, nem no inferno que será a sua herança! Parecem feridos desta terrível maldição: Que o Senhor te faça louco, cego e delirante,
de modo que andes às apalpadelas, como o cego nas trevas, e não possas trilhar
o caminho direito.
Esse lamaçal infecto em que estão engolfados, a tal cegueira os reduz, que
depois de terem abandonado a Deus, - que os havia sublimado acima dos astros, -
não pensam mais em prostrar-se a seus pés, a solicitar-lhe perdão: Não terão o pensamento de voltar para o seu
Deus; porque o espírito de fornificação
está no seio deles, e não conheceram o Senhor. Como diz São João Crisóstomo,
nada mais pode alumiá-los, nem as advertências dos superiores, nem os conselhos
dos bons amigos, nem o temor dos castigos, nem o perigo de serem desonrados. E
será para a admirar que eles não vejam mais? Caiu sobre eles o fogo, e não viram mais o
sol. Que fogo, pergunta o Doutor angélico, senão o da concupiscência?. Depois,
noutra parte diz: O vício da carne
extingue o juízo da razão. Os prazeres impuros não deixam mais na alma
sentimento senão para os deleites carnais.
Pela sua deleição brutal faz este vício perder ao homem até a razão, a ponte,
como diz São Jerônimo, de o tornar pior que uma besta. Donde resultará que o
padre impudico, cego pelas suas impudicícias, nenhuma atenção prestará, nem aos
ultrajes que faz a Deus com a sua conduta sacrílega, nem ao escândalo que dá
aos outros; chegará mesmo a celebrar
missa com pecado na alma. Que admira? Quem perdeu a luz facilmente se deixa ir a
toda a espécie de mal.
Se se quer encontrar a luz, é necessário aproximar de Deus, diz o Salmista.
Mais que nenhum outro vício, porém, a impudicícia afasta o homem de Deus, diz
Santo Tomás. Por isso o impudico se torna semelhante a um bruto, incapaz para o
futuro de compreender as coisas espirituais. Não compreende o homem animal as
coisas do espírito de Deus. Nada lhe faz impressão, nem o inferno, nem a
eternidade, nem a dignidade sacerdotal: Non percipit. Segundo Santo Ambrósio, começará
talvez a duvidar da fé: "Desde que
uma pessoa começa a entregar-se à luxúria, começa a afastar-se da verdadeira fé".
Ó, quantos desgraçados padres, transviados por este vício, acabaram por perder
a fé! Assim como a luz do sol não pode
penetrar num vaso cheio de terra, assim a luz divina não brilha numa alma
habituada aos pecados da carne: o
habitudinário levará consigo para a sepultura os seus vícios. Os seus ossos se
hão de encher dos vícios da sua juventude, (os vícios da juventude são os
vícios vergonhosos) vícios que dormirão
com ele no pó.
Como esta alma desgraçada acabará por se esquecer de Deus, no meio das suas
impurezas, também Deus a esquecerá, e permitirá que ela fique abandonada nas
suas trevas: Visto que me esqueceste, e
me atiraste para trás das costas, arrasta tu também o estigma da tua
perversidade e das tuas abominações. São Pedro Damião explica assim: Os que lançam a Deus para trás das costas são
os que se deixam arrastar pela luxúria.
Conta o Padre Cataneo que um pecador, que vivia em relações criminosas, foi
advertido por um amigo para que emendasse a vida, se não queria condenar-se.
Ele porém respondeu-lhe: "Meu
amigo, por uma tal mulher bem se pode ir para o inferno". Sem dúvida, para
lá foi esse miserável, porque foi morto. - Um outro, e era padre, surpreendido
em casa duma dama, a quem pretendia seduzir, foi obrigado pelo marido dela a
ingerir um veneno. De regresso a sua casa, deitou-se no leito e contou a um
amigo a desgraça que lhe tinha acontecido. O amigo, vendo-o prestes a expirar,
exortou-o a confessar-se sem demora, mas ele respondeu-lhe: "Não, não posso confessar-me; só tenho um favor a pedir-te, - dize a Senhora
N. que morro por amor dela". Pode ir mais longe a cegueira?
2º. A obstinação da vontade
O segundo efeito do pecado impuro é a obstinação da vontade. Diz São Jerônimo
que o que se deixa cair na rede do demônio não se escapa dela facilmente. E em
Santo Tomás lê-se que nenhum pecado dá tanta alegria ao demônio como o da
impudicícia, porque a carne está muito inclinada para este vício; de modo que os que nele caem mui dificilmente
se levantam. É por isso que São Clemente de Alexandria chama à impudicícia uma
moléstia incurável e Tertuliano um vício sem conversão. São Cipriano chama-lhe
a mãe da impenitência. É quase impossível, dizia Pedro de Blois, vencer as
tentações carnais, quando se está escravizado pela carne.
Conta o Padre Biderman que um certo jovem caía com muita freqüência no pecado
da impureza; à hora da morte fez uma
confissão, acompanhada de muitas lágrimas, e morreu deixando a todos grande
esperança de se ter salvado. No dia seguinte porém o confessor, ao dizer missa
por ele, sentiu que lhe puxavam pela casula; voltou-se e viu um fumo negro, donde saíam
centelhas de fogo; em seguida ouviu uma
voz a dizer-lhe, que era a alma do jovem defunto, que depois de recebida a
absolvição dos seus pecados fôra de novo tentado nos últimos momentos; tinha consentido num mau pensamento e se tinha
condenado.
O profeta e o sacerdote estão manchados... eis por que o caminho deles será
como um atalho escorregadio e coberto de trevas; serão impelidos e cairão. Tal é a desgraça
final dos padres impudícos: caminham em
trevas por uma via escorregadia, e são impelidos pelos demônios e pelo seu mau
hábito para o abismo; por isso lhe é
quase impossível escapar à ruína. os que se entregam a este vício, diz Santo
Agostinho, em breve contraem o hábito, que prestes se torna em necessidade de
pecar. O gavião, que se repasta sôfrego da carne podre, deixa-se matar pelo
caçador, mas não abandona a sua iguaria; é o que acontece ao impudíco de hábito.
E, quanto a obstinação dos padres, escravos deste vício vergonhoso, é ainda
mais invencível que a dos seculares! A
razão disto é, ou porque recebem luzes mais abundantes para conhecerem a malícia
do pecado mortal, ou porque a impudicícia neles é muito maior crime. De fato,
eles não ultrajam somente a castidade, mas a religião, por causa do voto que
fizeram; e as mais das vezes ferem
também a caridade para com o próximo, porque quase sempre a impudicícia do
padre origina grande escândalo nos outros. Refere Dionísio Chartreux que um
servo de Deus, levado um dia em espírito pelo seu anjo ao Purgatório, vira lá
uma multidão de seculares que expiavam as suas impurezas, mas poucos padres.
Perguntou a razão, e foi-lhe respondido que um padre impudíco dificilmente
chega a arrepender-se devéras, e por conseqüência esses padres quase todos se
condenam.
3º. A condenação eterna
Finalmente, este vício execrável conduz o homem, e sobretudo o padre à
condenação eterna. Diz São Pedro Damião que os altares de Deus não recebem
outro fogo senão o do amor divino; de
modo que todos aqueles que lá sobem, com uma chama impura no coração, devem ser
atormentados pelo fogo da vingança divina. E ajunta que todas as obscenidades
do impudíco se hão de demudar um dia em pez que nas suas entranhas alimentará
eternamente o fogo do inferno.
Ó, que terríveis castigos reserva Deus para os padres impudícos! E a quantos padres este pecado há precipitado
no inferno! Diz ainda São Damião: Se o homem do Evangelho, que se tinha
apresentado no festim nupcial sem o vestido conveniente, foi por isso condenado
às trevas, - que há de esperar aquele que, introduzido na sala do festim
celeste, longe de lá brilhar pela riqueza da veste nupcial, se mostra
conspurcado com a imundícia abominável de uma luxúria espantosa? Conta Barônio que um padre, que tinha passado
uma vida licenciosa, viu à hora da morte, durante a sua agonia, uma multidão de
demônios que vinham contra ele; então
voltou-se para um religioso que lhe assistia e pediu-lhe que intercedesse por
ele. Um instante depois, disse-lhe que já estava no tribunal de Deus, e
exclamou: Cessai, cessai de orar por
mim, são inúteis as vossas preces, estou condenado.
Escreve São Pedro Damião que, na cidade de Parma, um padre e uma mulher foram feridos
de morte repentina, no momento em que se entregavam ao crime. Nas revelações de
Santa Brígida lê-se que um padre impudíco, estando no campo, fôra fulminado por
um raio, que só lhe reduziu a cinzas as partes pudendas, e lhe deixou intacto o
resto do corpo; prova evidente de que
Deus o tinha castigado assim, em razão da sua incontinência. - Em nossos dias
morreu também repentinamente um padre no meio do crime; e, para cúmulo de desonra foi exposto à porta
duma igreja, no mesmo estado de desnudez, em que tinha sido encontrado em casa
da sua cúmplice.
Como os padres impudícos desonram a Igreja com os seus escândalos, o Senhor
lhes inflige o castigo que merecem, tornando-os os mais vis e desprezíveis de
todos os homens. É precisamente o que ele declara pela boca de Malaquias,
falando dos padres: Desertastes do
caminho, escandalizastes a muitos, a quem ensinastes a lei..., por isso vos
humilhei e entreguei ao desprezo de todos os povos.
§ 4º Remédios contra a
incontinência
Muitos remédios indicam os mestres da vida espiritual, contra esta lepra de
impureza; mas os dois principais e os
mais necessários são a fuga das ocasiões e a oração.
Quanto ao primeiro, dizia São Filipe de Néri que neste combate a vitória é para
os poltrões, isto é, para os que fogem à ocasião. Embora o homem empregue todos
os outros meios possíveis, se não fugir, está perdido. Quanto ao segundo
remédio, que é a oração, devemos estar persuadidos que de nós mesmos não temos
força para resistir às tentações da carne. Há de vir-nos de Deus a força, - que
ele não concede senão a quem lha suplica. O único baluarte contra esta tentação,
diz São Gregório de Nyssa, é a oração. E antes dele tinha dito o Sábio: Como eu sabia que não podia possuir este
tesouro, se Deus mo não desse, apresentei-me diante do Senhor e pedi-lho.
Para maior desenvolvimento sobre os meios de combater o vício impuro, e em
especial sobre os dois meios aqui indicados, a fuga das ocasiões e a oração,
veja-se a instrução sobre a castidade, na segunda parte desta obra.
CAPÍTULO, 7. A missa sacrílega
§ 1º Pureza exigida no padre para
celebrar dignamente
Lê-se no Concílio de Trento: Devemos
reconhecer que entre todas as obras, ao alcance dos fiéis, nenhuma há mais
santa que este mistério terrível.
Nem o próprio Deus pode fazer que haja no mundo uma ação maior e mais santa que
a celebração duma missa. Ó, quanto mais excelente que todos os sacrifícios
antigos o sacrifício dos nossos altares, em que a vítima oferecida não é já um
touro ou um cordeiro, mas o próprio Filho de Deus!
Para a vítima, o judeu tinha um boi, escreve São Pedro de Cluny; o cristão tem Jesus Cristo; tanto este último sacrifício excede o
primeiro, como Jesus Cristo excede a um boi. Depois ajunta que uma vítima
servil era a única que convinha a servos, ao passo que aos amigos e aos filhos
estava reservado o próprio Jesus Cristo, como vítima que nos libertou do pecado
e da morte eterna. Tem pois razão São Lourenço Justiniano em dizer que não há
oferenda nem maior em si mesma, nem mais útil aos homens, nem mais agradável a
Deus, que a que se faz no sacrifício da missa.
Assim, São João Crisóstomo assegura que, durante a celebração da missa, está o
altar cercado de anjos, reunidos para honrarem a Jesus Cristo, que é a Vítima
oferecida neste augusto sacrifício. Que fiel poderá duvidar, pergunta por sua
vez São Gregório, que no momento do sacrifício o Céu se não abra à voz do padre
e numerosos coros de anjos não estejam presentes a este mistério em que Jesus
Cristo se imola? E Santo Agostinho
acrescenta que os anjos se conchegam a rodear o sacerdote como servos, para o ajudarem
nas suas funções.
Falando deste grande sacrifício do Corpo e Sangue de Jesus Cristo, o Concílio
de Trento nos ensina que é o próprio Salvador que aí se oferece a seu Pai, mas
pelas mãos do sacerdote, que escolheu para seu ministro, encarregado de o
representar ao altar. E São Cipriano tinha dito antes: O padre ao altar ocupa o lugar de Jesus
Cristo. É por isso que, ao consagrar, o padre se exprime assim: Isto é o meu corpo; este é o cálice do meu sangue. E o próprio
Jesus Cristo disse a seus discípulos: Quem vos ouve, a mim ouve; quem vos despreza, a mim desprezas.
Ora, mesmo aos antigos Levitas exigia o Senhor que fossem puros, só porque
tinham por dever transportar os vasos sagrados: Purificai-vos, vós que levais os vasos do
Senhor. Sobre o que Pedro de Blois faz esta reflexão: Quanto mais puros devem ser os que trazem
Jesus Cristo nas suas mãos e nos seus corações? E com quanta mais razão exigirá o Senhor a
pureza dos padres da Lei nova, encarregados de representar ao altar a pessoa de
Jesus Cristo, para oferecerem ao Padre eterno o seu próprio Filho! Tem pois justo motivo o Concílio de Trento,
para querer que os padres celebrem este augusto sacrifício com a máxima pureza
de consciência possível. E é o que significa, nota o abade Rupert, a brancura
da alba, de que a Igreja quer que o sacerdote se revista e cubra da cabeça aos
pés, quando celebrar os divinos mistérios.
É muito justo que o sacerdote honre a Deus com a inocência da sua vida, visto
que Deus tanto o há honrado, elevando-o acima de todos os outros homens, e
fazendo-o ministro seu, neste mistério sublime, como dizia São Francisco de
Assis. Mas como deve o padre honrar a Deus? Será porventura trajando ricos vestidos,
anafando a cabeleira com arte, ostentando punhos elegantes? Não, responde São Bernardo, é por uma vida
irrepreensível, pelo estudo das ciências sagradas, e pelos trabalhos que
empreender para glória de Deus.
§ 2º Quanto é enorme o crime do
padre que celebra em estado de pecado mortal
Que faz então o padre que celebra, em pecado mortal? Acaso honra ele a Deus? Ai, muito ao contrário! Comete contra ele o maior ultraje de que é
capaz; despreza-o na sua própria pessoa,
porque pelo sacrilégio parece fazer quanto de si depende para manchar o
Cordeiro imaculado, que oferece sob as espécies sacramentais! Eis o que diz o Senhor: Escutai, ó sacerdotes que desprezais o meu
nome... Ofereceis sobre o meu altar um pão manchado e dizeis: Em que é que te desonramos? São Jerônimo comenta assim esta passagem: Manchamos o pão, isto é, o corpo de Cristo,
quando nos aproximamos indignamente do altar.
Não podia Deus elevar um homem a uma dignidade mais sublime, que à dignidade
sacerdotal. Que escolha teve de fazer o Senhor para formar um padre! Primeiro, teve de escolhê-lo na multidão
inumerável das criaturas possíveis; depois teve de separá-lo de tantos milhões de
pagãos e hereges; e por último teve de
tirá-lo do meio de tantos simples fiéis. Depois disto, que poder lhe não foi
dado! Se Deus tivesse concedido a um só
homem o poder de fazer descer à terra por suas palavras o próprio Jesus Cristo,
quanto não estaria obrigado para com o Senhor esse homem tão privilegiado, e
quantas ações de graças não teria de lhe render! Pois bem, esse poder concede-o Deus a cada um
dos padres. Nada importa que o mesmo poder tenha sido confiado a muitos: o número dos padres, nem apouca a sua
dignidade, nem diminui as suas obrigações.
Mas, grande Deus! Que faz um padre que
ousa celebrar com o pecado na sua alma? Desonra-nos, despreza-vos, declarando por isso
mesmo que este sacrifício não é tão digno dos nossos respeitos, que devamos
temer profaná-lo por um sacrilégio! Aproximar-se alguém do altar, sem o respeito
que lhe é devido, diz São Cirilo de Alexandria, é mostrar que o julga digno de
desprezo.
A mão que toca a carne sagrada de Jesus Cristo, a língua que se tinge do sangue
divino, diz São João Crisóstomo, deveriam ser mais puras que os raios do sol.
Noutro lugar, ajunta que um padre que sobe ao altar deveria ser bastante puro e
santo para merecer um lugar entre os anjos. Que horror pois para os anjos verem
um padre, inimigo de Deus, levar uma mão sacrílega para o Cordeiro sem mancha,
e fazê-lo seu alimento! Onde se
encontraria um homem tão ímpio, exclama Santo Agostinho, que ousasse tocar o
Santíssimo com as mãos enlameadas? Muito
pior faz o padre que celebra missa com a consciência manchada. Deus então
desvia os olhos, para não ver um atentado tão horrível: Quando estenderdes as vossas mãos, afastarei
de vós os meus olhos. E, para exprimir o desgosto que lhe causam esses padres
sacrílegos, declara que lhes dá de atirar à cara a imundícia dos seus
sacrifícios.
Como ensina o Concílio de Trento, é verdade que o santo sacrifício não pode ser
manchado pela malícia do padre. No entanto os sacerdotes, que celebram em
estado de pecado mortal, não deixam de profanar, quanto podem, este adorável
mistério; por isso declara Deus que as
manchas deles o atingem dalgum modo.
Ai, Senhor, exclama São Bernardo, como é possível que os chefes da vossa Igreja
sejam os primeiros a perseguir-vos? É
bem verdade, segundo São Cipriano, que o padre, que celebra em estado de pecado
mortal, ultraja com a sua boca e com as suas mãos o próprio corpo de Jesus
Cristo. Pedro Comestor ajunta que, quando um padre fora da graça de Deus
pronuncia as palavras da consagração, escarra por assim dizer no rosto de Jesus
Cristo, e quando recebe na sua boca indigna o corpo adorável do Salvador, é
como se o lançasse na lama. Mas, que digo, na lama? O padre no estado do pecado é pior que a lama:
a lama, diz Teofilato, é muito menos
indigna de receber essa carne divina, do que um padre sacrílego. Segundo São
Vicente Ferrer, esse miserável comete então muito maior crime do que se
atirasse o Santíssima a uma sentina.
E tal é também o sentir de São Tomás de Vilanova: Que abominação, exclamava ele, derramar o
sangue de Cristo na sentina infecta do seu coração!
O pecado do padre é sempre gravíssimo, em razão da injúria que ele faz a Deus,
que se dignou escolhê-lo para seu ministro e cumulá-lo de tantas graças.
Observa São Pedro Damião que uma coisa é transgredir as leis do príncipe, e
outra feri-lo com as suas próprias mãos, como faz o padre, quando celebra em
estado de pecado mortal. Tal foi o crime dos judeus que ousaram levantar as
mãos contra a pessoa de Jesus Cristo; mas, segundo Santo Agostinho, o pecado dos
sacerdotes que celebram indignamente é muito mais grave ainda.
Os judeus não conheciam o Redentor como o conhecem os padres. E de mais, diz
Tertuliano, os judeus só uma vez levantaram as mãos contra Jesus Cristo, ao
passo que os padres sacrílegos têm a audácia de renovar com freqüência esta
injúria. Notai além disto, como ensinam os doutores, que o sacerdote sacrílego
ao celebrar comete quatro pecados mortais: 1º. consagra em estado de pecado; 2º. comunga em estado de pecado; 3º. administra o Sacramento em estado de
pecado; 4º. ministrando-o a si próprio,
administra-o a um indigno, isto que se encontra em estado de pecado.
Era o que inflamava em zelo São Jerônimo e o fazia estuar de indignação contra
o diácono Sabiniano. Miserável, exclamava! Como não se cobriram de trevas os vossos
olhos, como não se vos gelou a língua na boca, como vos atrevestes a assistir
no altar em estado de pecado? Dizia São
João Crisóstomo que o padre, que se aproxima do altar com a consciência
manchada de falta grave, é muito pior que o demônio. Com efeito, os demônios
tremem na presença de Jesus Cristo, como o prova uma passagem que lemos na vida
de Santa Teresa. Indo ela um dia comungar, percebeu aos dois lados do padre,
que celebrava em pecado, dois demônios, que tremiam à vista do Santíssimo, e
pareciam querer fugir. Então, do meio da hóstia consagrada, Jesus dirigiu à
Santa estas palavras: "Vê que força
têm as palavras da consagração, e vê também, ó Teresa, até onde vai a minha
bondade, que, para teu bem e de todos, consinto em me pôr nas mãos do meu
inimigo".
Assim os demônios tremem à vista de Jesus Cristo no Santíssimo Sacramento, ao
passo que o padre sacrílego, não só não treme, mas tem a audácia de calcar aos
pés, segundo a expressão de São João Crisóstomo, a própria pessoa do Filho de
Deus. Verificam-se então as palavras do Apóstolo: Quanto mais digno de castigo deveis crer
aquele que calca aos pés o Filho de Deus, e trata como uma coisa impura o
sangue da aliança, pelo qual foi santificado?. Em presença pois deste Deus, a
cuja vista, diz Jó, tremem as colunas do céu, um verme da terra ousa calcar aos
pés o sangue do Filho de Deus!
Mas, ai! Que maior desgraça pode
acontecer a um padre, do que mudar a sua salvação em condenação, o sacrifício
em sacrilégio, e a sua vida em morte? Sem dúvida foram muito ímpios os judeus, que
atravessaram o lado de Jesus Cristo, para dele fazerem sair o seu precioso
sangue; mas ainda mais ímpio é o padre,
que tira do cálice este mesmo sangue, para o tratar dum modo tão indigno! Tal é o pensamento de Pedro de Blois: = Quam perditus ergo est, qui redemptionem in
perditionem, qui sacrificium in sacrilegium, qui vitam convertit in mortem! Verbum beati Heronymi est: "Perfidus Judaeus, perfidus Christianus,
ille de latere, iste de calice sanguinem Christi fundit"!. O próprio
Senhor dizia um dia a Santa Brígida, lamentando-se destes padres sacrílegos: Eles me crucificam mais cruelmente do que o
fizeram os judeus.
O padre que celebra em estado de pecado, diz um autor, chega por assim dizer a
matar o próprio Filho de Deus, sob os olhos de seu Pai.
Ó, que horrível traição! Eis como Jesus
Cristo se lamenta do padre sacrílego, pela boca de Davi: Se o meu inimigo me tivesse execrado, tê-lo-ia
sofrido; mas tu, meu amigo íntimo, e um
dos chefes do meu povo, tu que partilhavas das delícias da minha mesa...! Tal é, feição por feição, o padre que diz a
missa em pecado mortal: Se o meu inimigo
me tivesse ultrajado, diz o Senhor, eu o teria sofrido com menor pena; mas tu, a quem escolhi para meu ministro, para
seres o príncipe do meu povo; tu,
venderes-me ao demônio por um capricho, por um prazer brutal, por um pouco de
lodo!
Foi o que o divino Mestre declarou mais particularmente a Santa Brígida: Padres tais não são sacerdotes meus, são antes
traidores, porque me vendem como Judas. Aos olhos de São Bernardino de Sena,
são estes sacerdotes ainda piores que Judas: com efeito Judas entregou o Salvador aos
judeus, mas eles entregam-no aos demônios, lançando-o num lugar submetido ao
seu poder, no seio dum padre sacrílego.
Pedro Comestor faz esta reflexão: Quando
o padre sacrílego sobe ao altar, recita a oração Aufer a nobis, e beija o altar,
parece que Jesus Cristo lhe censura o seu crime e lhe diz: Ó Judas! É com um ósculo que me entregas? E, quando depois esse padre estende a mão para
comungar, observa São Gregório, parece-me ouvir o Redentor a dizer como outrora
a respeito de Judas: Eis comigo sobre o
altar a mão que me entrega! Foi o que
fez dizer a Santo Isidoro de Pelusa que "o padre sacrílego se encontra,
como Judas, possesso do demônio".
Ó, como então o sangue de Jesus Cristo, assim profanado, grita contra este
padre indigno, ainda em mais altas vozes que o sangue do inocente Abel contra
Caim! Foi o que o Salvador disse a Santa
Brígida. Ó, que horror causa a Deus e aos anjos uma missa celebrada em pecado
mortal! Fê-lo o Senhor compreender um
dia, em 1688, à sua fiel serva, a irmã MariaCrucificada, de Palma, na Sicília,
conforme se lê na sua vida.
Ouviu primeiro o retinir lúgubre duma trombeta, que com o estampido do trovão
fazia ouvir, em todo o mundo estas palavras: Ultio, poena, dolor! Viu depois uma multidão de eclesiásticos
sacrílegos, cujas vozes confusas formavam uma salmódia discordante. A seguir,
um dentre eles se ergueu para dizer missa. Enquanto ele se revestia dos
ornamentos sagrados, a igreja se cobriu de trevas e luto. Aproxima-se do altar
e diz: Introibo ad altare Dei; neste instante, de novo retine a trombeta e
repete: Ultio, poena, dolor! De repente - sinal visível da justa cólera do
Senhor contra o ministro indigno, turbilhões de chamas se elevam e cintilam em
volta do altar. Ao mesmo tempo a religiosa distingue uma legião de anjos,
armados de espadas ameaçadoras, como para tirarem vingança do sacrilégio que se
vai cometer.
Quando o monstro se prepara, para o grande ato da consagração, uma multidão de
serpentes saltam do meio das chamas, para o expulsarem do altar, - símbolo dos
temores e remorsos da consciência. É em vão, o sacrílego sacrifica todos os
remorsos à sua própria reputação. Pronuncia enfim as palavras da consagração; então a serva de Deus observa um tremor
universal, que parece abalar o céu, a terra e o inferno.
Depois da consagração a cena muda: Jesus
Cristo aparece como um doce cordeiro, que se deixa maltratar entre as garras
desse lobo cruel. No momento da comunhão, o céu obscurece-se, e todo se abala
de novo, a ponto de parecer que a igreja desaba. Os anjos choram amargamente em
redor do altar; mas ainda mais amargas
são as lágrimas, que inundam o rosto da Mãe de Deus; geme ela sobre a morte de seu Filho inocente,
e sobre a perda dum filho culpado.
Depois duma visão tão terrível, permaneceu a serva de Deus de tal modo aterrada
e abatida pela dor, que não pôde fazer outra coisa senão chorar. O autor da sua
Vida nota que foi precisamente no mesmo ano de 1688 que se deu o grande
terremoto, que tantos estragos fez na cidade de Nápoles e seus contornos, donde
se pode concluir que tal castigo foi efeito da celebração desta missa sacrílega.
Haverá no mundo crime mais horrível do que o dessa língua, que faz descer do
Céu à terra o Filho de Deus, e ousa depois carregá-lo de ultrajes no mesmo
instante em que o chama? Que coisa mais
espantosa que ver essas mãos, que se banham no sangue de Jesus Cristo,
mancharem-se ao mesmo tempo no sangue impuro do pecado, segundo a expressão de
Santo Agostinho! Pelo menos, exclama São
Bernardo, dirigindo-se ao padre sacrílego, pelo menos, ó miserável, quando
quiseres levar as tuas culpas até o extremo, procura outra língua diferente da
que se banha com o sangue de Jesus Cristo, e outras mãos que não sejam as que
tocam a sua carne sagrada.
Se tais padres, - dispostos a comportar-se como inimigos de Deus, que os elevou
a tão altas funções, - se abstivessem ao menos de sacrificar indignamente no
altar! Mas não, diz São Boaventura, para
não perderem o salário miserável duma missa, uma vil moeda, ousam cometer um
crime tão horrível. Como assim! Para
falar segundo a linguagem de Jeremias, pensais então que a carne de Jesus
Cristo, que ides oferecer, vos há de livrar das vossas iniqüidades? Não; o
contato desse corpo adorável, sobre o qual vos atreveis a estender uma mão
conspurcada pelo pecado, servira para vos tornar mais culpado ainda e digno de
maior castigo. Quando se comete um crime, diz São Pedro Crisólogo, na presença
do próprio juiz, nenhuma desculpa se pode invocar.
Que castigo não merece sobretudo um padre que, em vez de levar consigo ao altar
o fogo do amor divino, intromete lá as chamas infectas de afeições impuras! É do que nos adverte São Pedro Damião, ao
considerar o castigo dos filhos de Aarão que no sacrifício se serviram dum fogo
estranho. Quem tiver uma tal audácia, ajunta ele, infalivelmente será consumido
pelo fogo da vingança divina. Que Deus nos guarde pois, diz ele ainda, de
virmos adorar no altar o ídolo da impureza, e colocar o Filho da Virgem no
templo de Vênus, isto é, num coração impudíco. Se aquele homem do Evangelho,
continua o mesmo Santo, por se ter apresentado no festim sem a veste nupcial,
foi condenado às trevas eternas, - que castigo bem mais terrível está reservado
para quem, admitido à sagrada mesa, não só não se encontra preparado com o
vestido conveniente, mas até exala o cheiro infecto da impudicícia?
Desgraçado, exclama São Bernardo, o que se afasta de Deus, mas muito mais
desgraçado o padre, que se aproxima do altar com a consciência manchada.
Falando um dia o Senhor a Santa Brígida a respeito de um padre sacrílego,
disse-lhe que entrava na alma dele como Esposo, com desejo de o santificar, mas
pouco depois se via obrigado a sair como Juiz, para castigar a injúria que lhe
fazia este ministro indigno, recebendo-o em estado de pecado mortal.
Mas, se o horror do ultraje, ou para melhor dizer, dos numerosos ultrajes que
faz a Deus uma missa sacrílega, não pode impedir esses padres culpados de
celebrarem em estado de pecado mortal, deveriam eles ao menos tremer com o
pensamento do grande castigo, que lhes está preparado. Segundo São Tomás de
Vilanova, não há castigo bastante rigoroso para punir um tal crime como ele
merece: = Vae sacrilegis manibus, vae
immundis pectoribus impiorum Sacerdotum! Omne supplicium minus est fragitio quo Christus contemnitur in hoc
sacrificio. O Senhor disse a Santa Brígida que tais padres são amaldiçoados por
todas as criaturas no Céu e na terra.
Como noutra parte dissemos, o padre é um vaso consagrado a Deus; portanto, assim como Baltasar foi punido por
ter profanado os vasos do Templo, do mesmo modo, diz Pedro de Blois, será
punido o sacerdote, que celebra indignamente. Já uma mão misteriosa se prepara
para traçar estas palavras terríveis: Máne, Thécel, Farés. Numeratum, Appensum,
Divisum. Numeratum, quer dizer, um só sacrilégio basta para suspender a
torrente das graças divinas; Appensum, é
bastante para fazer pender a balança da justiça divina, e decidir a ruína
eterna do padre culpado; Divisum, Deus,
irritado por um crime tão atroz, o repelirá e afastará para sempre.
É assim que se há de cumprir a palavra de Davi: Torne-se em ruína sua a mesa posta diante
deles. Sim, o altar há de tornar-se para este desgraçado o lugar do seu
suplício; ali será carregado com as
cadeias que hão de retê-lo para sempre escravo do demônio, fazendo-o perseverar
no mal; porque, segundo São Lourenço
Justiniano, todos os que comungam em pecado mortal permanecem mais obstinados
na sua malícia. Isto está de acordo com o que o Apóstolo declarou: O que come e bebe indignamente, come e bebe a
sua própria condenação. Ó padre do Senhor, exclama sobre este ponto São Pedro
Damião, vós, que deveis oferecer em sacrifício ao Padre eterno o seu próprio
Filho, não vades primeiro dar-vos como vítima ao demônio!
O pecado de escândalo
Nos tempos antigos, inventou o demônio deuses fantásticos, entregues a todos os
vícios, e empenhou todos os meios para os fazer adorar, a fim de que os homens,
perdendo até o horror aos crimes de que as divindades lhes davam exemplo,
cressem que lhes era permitido pecar à vontade. Assim confessa o pagão Sêneca,
nestes termos: "Por estas
invenções, chegou-se a destruir nos homens a vergonha de pecar". Não será
fomentar os vícios e atribuí-los aos deuses, e desculpar-se do mal como o
exemplo da divindade? Imersos em tal
cegueira, os desgraçados pagãos, como se vê no mesmo filósofo, diziam:
"O que os deuses fizeram sem vergonha, hão de corar os homens de o
fazer?"
Ora, o que o demônio conseguiu dos pagãos, por meio dessas falsas divindades,
que lhes propunha por modelos, hoje o consegue dos cristãos por meio de padres
prevaricadores, cujos escândalos persuadem aos pobres seculares, que lhes é
permitido, que lhes é permitido, ou pelo menos que não é grande mal para eles,
fazerem o que vêem fazer aos seus pastores; é o que nota São Gregório. Colocou Deus os
padres na terra para servirem de modelos aos outros, do mesmo modo que o nosso
Salvador foi enviado por seu Pai para ser o exemplar de todos: Conforme o meu Pai me enviou, assim eu vos
envio a vós. Por isso São Jerônimo escrevia a um bispo que evitasse tudo quanto
fosse capaz de induzir a pecado os que quisessem imitá-lo.
Não consiste o pecado de escândalo só em aconselhar diretamente o mal aos
outros, mas em levar o próximo a pecar, dum modo indireto, pelo exemplo da
própria conduta. "Uma palavra ou ação, mais ou menos repreensível, e que é
para o próximo ocasião de ruína espiritual", dá escândalo. É assim que se
define geralmente o escândalo, segundo Santo Tomás.
E, para se conhecer quanto é grande a malícia do escândalo, basta recordar o
que dele diz São Paulo: que o que ofende
o seu irmão, fazendo-o cair em pecado, ofende o próprio Jesus Cristo. São
Bernardo dá esta razão: que o
escandaloso faz perder a Jesus Cristo as almas, resgatadas a preço do seu
sangue; e acrescenta que o Salvador sofre
uma perseguição mais cruel da parte dos escandalosos, do que da parte dos
algozes que o crucificaram.
Mas se o escândalo é tão abominável mesmo nos seculares, quanto mais o não será
no padre, que Deus estabeleceu na terra para salvar as almas e conduzi-las o
para o céu! O padre é chamado o sal da
terra. É próprio do sal conservar as coisas: assim o padre é destinado a manter as almas na
graça de Deus. Em que se tornarão os outros homens, pergunta Santo Agostinho,
se os padres não produzirem sobre eles o efeito do sal? Então, prossegue ele, esse sal só será bom
para ser lançado fora da Igreja e calcado aos pés, por todos os transeuntes. E,
se o sal em vez de conservar não fizesse senão corromper, quero dizer, se o
padre, em vez de salvar as almas, só trabalha em as perder, que castigo não
chama sobre si! Também o padre é luz do
mundo. Donde São João Crisóstomo conclui que o padre deve ter uma vida tão
radiante de virtudes, que possa alumiar os outros e servirlhes de modelo.
Mas se esta luz se muda em trevas, em que se tornará o mundo? Só servirá para precipitar na ruína o mesmo
mundo, como diz São Gregório. No mesmo sentido escreveu este grande papa aos
bispos de França, exortando-os a castigar os padres escandalosos. É a palavra
do profeta Oséias: Tal padre tal povo. E
pela boca de Jeremias se exprime o Senhor assim: Hei de encher de favores a alma dos meus
sacerdotes, e o meu povo será enriquecido dos meus benefícios. Por isso mesmo
dizia São Carlos Borromeu que, se os padres forem ricos e fecundos em virtudes,
também ricos serão os povos; mas, se os
sacerdotes forem pobres, bem miseráveis serão os povos.
Conta Tomás de Cantimpré que um eclesiástico que pregara em Paris, em presença
do clero, fôra encarregado pelo demônio de saudar os príncipes da Igreja, e
dar-lhe os agradecimentos, da parte dos príncipes do inferno, pelas muitas almas
que deixavam perder. É precisamente do que o Senhor se lamenta pela boca de
Jeremias: O meu povo não é mais que um
rebanho perdido; os pastores seduziram
as suas ovelhas: = Grex perditus factus
est populus meus; pastores eorum
seduxerunt eos. É inevitável, diz São Gregório: quando o pastor caminha para o precipício, as
ovelhas vão com ele. O mau exemplo dos padres, diz também São Bernardo,
necessariamente arrasta o povo à depravação. Se um leigo, acrescenta ele, se
transvia do reto caminho, perder-se-á ele só; mas, se um padre se desgarrar, causará a
perdição duma multidão de almas, sobretudo das que lhe estiverem sujeitas.
Mandou o Senhor, no Levítico, que se imolasse um novilho pelo pecado dum só
sacerdote, como pelos pecados de todo o povo; donde Inocêncio 3º deduz que o pecado do padre
pesa tanto como os pecados de todo o povo, e a razão que dá é que o padre,
pecando, arrasta ao pecado todo o povo. Foi o que o próprio Deus declarou no
Levítico: Se o sacerdote que recebeu a
unção santa vier a pecar, fazendo pecar o povo... Assim Santo Agostinho dizia,
dirigindo-se aos padres: Não fecheis o
Céu aos fiéis; de fato lho fechais,
desde que lhes deis o exemplo duma má vida. Um dia dizia o Senhor a Santa
Brígida, que os pecadores, à vista dos maus exemplos dos padres, se animavam a
praticar o mal, e chegavam até a gloriar-se dos vícios, que antes os faziam
corar. Assim, o Senhor ajunta que os padres maus serão carregados de maldições,
muito mais terríveis que os outros homens, porque a sua má vida, é a ruína
deles e também a dos outros.
À vista duma árvore cujas folhas se mostram amarelentas e murchas, diz o autor
da Obra imperfeita, logo se compreende que ela sofre nas raízes; do mesmo modo quando se vê um povo corrompido,
pode-se concluir, sem receio de proferir um juízo temerário, que é entre os
seus sacerdotes que reina o mal. Com efeito, ajunta ele, a vida dos padres é a
raiz que comunica a seiva das virtudes aos fiéis, que são coo os ramos a
respeito da árvore. No mesmo sentido, diz Santo Ambrósio, que os padres são a
cabeça, donde os espíritos vitais se difundem em todos os membros, que são os
seculares. E lê-se em Isaías: Toda a
cabeça está esvaecida... Da planta dos pés ao alto da cabeça nada há nela de
são. Palavras que Santo Isidoro aplica assim ao nosso assunto: A cabeça enfraquecida é o doutor que se
entrega ao pecado; o seu mal comunica-se
ao corpo. Do mesmo modo lamenta São Leão esta desordem e diz que não pode haver
saúde no corpo quando não a há na cabeça.
Santo Ambrósio, servindo-se doutra figura, pergunta: Quem procurará uma fonte de água cristalina no
meio de um lamaçal? Por outras palavras,
olharia eu como idôneo para me dar conselhos quem não soubesse aconselhar-se a
si próprio? Diz Plutarco que a corrupção
dos príncipes é como um veneno lançado, não numa taça, mas numa fonte, onde
todos venham colher e beber água que os há de envenenar. O que tem aplicação
ainda mais aos padres; por isso Eugênio
3º disse que os pecados dos inferiores se devem atribuir de preferência aos
maus superiores.
Aos sacerdotes chama São Gregório - Patres christianorum. É o título que lhes
dá também São João Crisóstomo, que afirma que o padre, na sua qualidade de
vigário de Deus, é obrigado a tomar cuidado de todos os homens, visto que é pai
do mundo inteiro. Assim como um pai se torna duplamente culpado, quando dá mau
exemplo a seus filhos, também o padre dalgum modo comete dois pecados, quando
escandaliza os simples fiéis. Que fará o leigo, pergunta Pedro de Blois, senão
o que vir fazer ao seu pai espiritual?. É precisamente o que São Jerônimo
escrevia a um bispo: Os outros
acreditarão que devem fazer quanto virem que vós fazeis.
E, conforme nota São Cesário, ao seguirem os maus exemplos dos eclesiásticos,
os leigos desculpam-se dizendo: Não
fazem a mesma coisa os eclesiásticos mais graduados? Santo Agostinho põe a mesma linguagem na
língua dum homem do mundo: O que é que
me mandais? Nem os padres fazem isso, e
vós quereis que eu o faça? Quando os
padres, diz São Gregório, em vez do bom exemplo, dão escândalo, fazem de algum
modo que o pecado deixe de ser aborrecido e inspire horror.
Tais sacerdotes pois são ao mesmo tempo pais e parricidas, visto que são a
causa da morte de seus filhos. Disto se lamentava São Gregório: "Vêde donde partem os dardos, que semeiam
a morte nas fileiras do povo; - qual a
causa de tantos males senão os nossos pecados? Sim, damos a morte ao povo, nós que devíamos
ser os seus guias nos caminhos da vida".
Dirão talvez alguns na sua cegueira: Que
me importam os pecados dos outros? -
Digam lá o que quiserem, mas escutem o que escreveu São Jerônimo: "Se disserdes: 'Basta-me a minha consciência; não me importo com o que disserem', escutai o
que vos responde o Apóstolo: Devemos
aplicar-vos a praticar o bem, não só diante de Deus, mas também diante dos
homens". Nota São Bernardo que os padres escandalosos dão a morte aos
outros, dando-a a si próprios. E noutra parte acrescenta que não há peste mais
funesta aos povos, que a ignorância e a corrupção unidas nos padres. Ajunta
ainda noutro lugar que muitos padres são católicos na sua pregação, mas hereges
nos seus costumes; porque fazem muito
maior mal com os seus maus exemplos, que os hereges, ensinando o erro: têm as obras mais força que as palavras.
Segundo Sêneca, para cair no vício, como para chegar à virtude, é longo o
caminho do ensino, ao passo que o do exemplo é curto e eficaz. O que fez dizer
a Santo Agostinho, falando especialmente da castidade dos sacerdotes: A todos é indispensável a castidade, mas
especialmente aos ministros do altar de Jesus Cristo, porque a sua vida deve
ser uma pregação contínua para os outros. Como pregar a castidade, quando se é
escravo da impudicícia? Tal é a reflexão
de São Pedro Damião. O estado em que se acha constituído, o hábito que veste,
tudo nele diz São Jerônimo, reclama e exige a santidade.
Que escândalo não será pois na Igreja, segundo nota São Gregório, ver aquele
que é honrado, com um nome e caráter sagrados, dar o exemplo do vício! E que desordem ainda mais horrível, acrescenta
Santo Isodoro de Pelusa, ver um sacerdote servir-se da sua dignidade como de
uma arma para ofender a Deus! Segundo a
palavra de Ezequiel, um tal padre torna abominável a nobreza do seu estado. Diz
São Bernardo que os padres que não dão bom exemplo são a fábula de todo o
mundo. É já uma grande desordem que os padres vivam à maneira das pessoas do
mundo, observa o autor da Obra imperfeita, mas o que será se a sua conduta for
pior que a dos mundanos?
E que exemplo pode o povo receber de vós, pergunta Santo Ambrósio, se em vós
nota certas ações que o fazem envergonhar, devendo olhar-vos como santos?
Lê-se no profeta Oséias: Ouvi isto, ó
sacerdotes... visto que se trata de culpa vossa, porque vos tornastes como um
laço e uma rede estendida para caçar aves. Para atrair as aves aos seus laços,
serve-se o caçador do chamariz doutras aves, que retém presas no lugar em que
preparou as armadilhas. O mesmo faz o demônio: serve-se dos escandalosos para atrair os
outros aos seus laços. Desde que uma alma se deixa cair, diz Santo Efrém,
serve-se dela para seduzir outras. É dos escandalosos que se queixa o Senhor
pela boca de Jeremias, quando diz: Há no
meu povo ímpios que, à semelhança do passareiro, armam emboscadas e estendem
laços traiçoeiros para caçarem os homens.
Mas os que os demônios buscam com mais empenho e escolhem de preferência, para
chamariz nesta caça, são os padres escandalosos, diz São Cesário, o qual
explica como é que os demônios se servem deles: Fazem como os passareiros que, tendo tomado
algumas pombas, as tornam cegas e surdas, para que as outras pombas se
aproximem delas e caiam nas armadilhas.
Afirma um autor que antigamente, quando um simples clérigo ia a passar na rua,
todos se levantavam, e cada um se recomendava às suas orações. Vê-se o mesmo
nos nossos dias? Ai! Devemos exclamar Jeremias: Como se obscureceu o ouro, como se embaciou o
seu brilho, como se dispersaram as pedras do santuário pelos ângulos de todas
as praças? Eis como São Gregório explica
toda esta passagem: Está o ouro
obscurecido, porque os padres desonram a sua vida com ações baixas: está empanado o vivo resplendor do ouro,
porque o mais santo dos estados se tornou desprezível, por obras abjectas; dispersaram-se as pedras do santuário pelos
ângulos de todas as praças, porque os que deviam passar uma vida toda interior
e de oração, só se ocupam de coisas exteriores. Quase não há negócios seculares
que não sejam administrados pelos padres.
Lê-se nos Cânticos: Combateram contra
mim os filhos de minha mãe. Orígines aplica estas palavras aos padres que, por
seus escândalos se armam contra a Igreja, sua mãe. Diz São Jerônimo que a vida
criminosa dos padres produz a devastação na Igreja. E a propósito da lamentação
de Ezequias - Eis que no seio da paz a minha amargura é amaríssima - São
Bernardo põe na boca da Igreja estas palavras: Tenho a paz do lado dos pagãos, tenho a paz do
lados dos hereges, mas em verdade não a tenho da parte dos meus filhos. Não sou
hoje perseguida pelos pagãos, não há tiranos; não sou perseguida pelos hereges, não há
heresias novas; mas sou perseguida pelos
meus próprios filhos, pelos sacerdotes, cuja vida desordenada me rouba um
grande número de almas! Não, diz São
Gregório, ninguém prejudica tanto a causa de Deus como os padres que,
estabelecidos para encaminharem os outros, são os primeiros a dar-lhes maus
exemplos.
Pelos seus maus exemplos, fazem os maus sacerdotes que os povos desprezem o
ministério deles, isto é, os sermões, as missas, e todos os ministérios da
religião. Por isso o Apóstolo lhes dirige este aviso: Não demos a ninguém ocasião de escândalo, para
que não se torne desprezível o nosso ministério; mostremo-nos ao contrário verdadeiros servos
de Deus. Se a lei de Jesus Cristo é desprezada, diz Salviano, a causa disso
somos nós, os padres. São Bernardino de Sena ajunta que muitos cristãos, à
vista dos maus exemplos dos eclesiásticos, chegam a vacilar na fé, e acabam por
se abandonar aos vícios, desprezando os sacramentos, o inferno e o Paraíso.
Segundo o autor da Obra imperfeita, quando os infiéis viam os desregramentos
dos sacerdotes, diziam que o Deus dos cristãos ou não existia, ou era um deus
mau; porque, acrescentavam, se fosse
bom, como poderia suportar tais desordens nos seus ministros? Na Instrução sobre a missa, mais de espaço nos
havemos de referir ao caso de um herege que estava disposto a converter-se: tendo porém visto em Roma um padre a dizer
missa com pouco respeito, desistiu de abjurar os seus erros, dizendo que nem o
próprio papa tinha fé; de contrário,
teria mandado queimar vivos tais padres, desde que os conhecesse.
Dizia São Jerônimo que, procurando saber pela história quais os homens que têm
difundido na Igreja o veneno das heresias e pervertido os povos, não encontrava
outros senão os padres. Pedro de Blois diz por sua vez: É pela negligência dos padres que as heresias
se têm multiplicado... Por causa dos nossos pecados, é que a Igreja tem sido
calcada aos pés e caído no desprezo. E, no sentir de São Bernardo, mais mal nos
fazem os padres escandalosos, que os próprios hereges; porque, afirma ele, está no nosso poder
guardarmo-nos dos heréticos, - mas como será possível guardarmonos dos padres,
cuja assistência a cada instante nos é necessária? Eis as suas palavras: Uma peste mortal invade hoje todo o corpo da
Igreja; e o mal é tanto mais assombroso
quanto se mostra geral; é tanto mais
funesto quanto procede do interior.
Se o inimigo fosse um herege declarado, poderia lançar-se fora; se o inimigo se apresentasse com as armas na
mão, poderia a Igreja furtar-se aos seus golpes; mas como lançá-lo fora? Como escapar aos seus golpes? Todos são a um tempo amigos e adversários dela.
Ó, que terrível castigo está reservado para os padres escandalosos! Se é ameaçado de grande desgraça todo o homem
por quem vem o escândalo, que desgraça ainda mais terrível há de estalar sobre
aquele que Deus escolheu para ser ministro seu! De preferência a tantos outros, o encarregou
Deus de lhe granjear frutos, salvando-lhe almas, e ele, por seus maus exemplos,
arrebatou almas ao seu divino Mestre! Diz São Gregório que tais sacerdotes merecem
sofrer tantas mortes, quantos os maus exemplos que dão. Falando dos padres em
especial, disse o Senhor a Santa Brígida: Serão duplamente malditos os que por sua conta
se perdem a si próprios e consigo perdem os outros. São os sacerdotes
encarregados da vinha; o Senhor porém
expulsa da sua vinha os maus jornaleiros e a confia a outros, que saibam
produzir bons frutos.
Ai! Que será dos padres escandalosos no
dia do juízo? Hei de aparecerlhes como a
ursa a que arrebataram os filhos. Com que furor se não precipita a ursa contra
o caçador que vai para lhe arrebatar e matar os filhos! É assim, diz o Senhor, que eu me lançarei
contra os sacerdotes que, em vez de me salvarem as almas, as fazem perder. E,
se nesse dia terrível cada um há de ter dificuldade em responder por si,
pergunta Santo Agostinho, que será dos padres que hão de dar conta de tantas
almas que fizeram perder? O autor da
Obra imperfeita acrescenta: Quando os
padres vivem em pecado, todo o povo se afunda nos vícios; também, ao passo que os outros só prestarão
conta dos próprios pecados de todos.
Ó, quantos seculares, quantos pobres camponeses e mulheres humildes, serão no
Vale de Josaphat um motivo de confusão para os padres! Acrescenta ainda o autor da Obra imperfeita: No dia do juízo hão de ver se leigos
revestidos da túnica da glória destinada aos padres; e alguns padres, por seus pecados, despojados
da dignidade sacerdotal e repelidos para o meio dos infiéis e hipócritas.
Guardemo-nos pois, ó sacerdotes, ó irmãos meus, de causar por nossos maus
exemplos a perda das almas, nós a quem Deus colocou na terra para as salvar. Em
ordem à consecução deste fim, evitemos com zelo não só as ações, más em si
mesmas, mas até as que tenham aparência de mal, conforme a palavra do Apóstolo:
Ab omni specie mala abstinete vos. Por
esta razão ordenou o concílio de Agda: Ut ancillae a mansione, in qua clericus manet,
removeantur. Ter na própria casa criadas novas, - ainda mesmo que, por
impossível, não fossem ocasião de pecado, - seria pelo menos uma aparência de
mal, que podia ser motivo de escândalo para os outros.
Assim o Apóstolo nos adverte que devemos abster-nos até de certas coisas
permitidas, com receio de escandalizar os fracos. Devemos absternos igualmente,
com muito cuidado, de repetir certas máximas do mundo, tais como estas: É preciso que não nos deixemos calcar aos pés;
é necessário gozar da vida; felizes os ricos; Deus é cheio de misericórdia e compadece-se
das nossas fraquezas. (falando-se de pecadores, que persistem nas suas
desordens) Que escândalo não seria
também aplaudir quem pratica o mal, por exemplo: um homem que se vinga, ou que mantém relações
perigosas! Louvar os que fazem o mal,
diz São Crisóstomo, é muito pior que praticálo! Finalmente, quanto ao passado, quem teve a
desgraça de dar algum escândalo, ou qualquer ocasião de pecado, deve saber que
está obrigado a repará-lo publicamente por seus bons exemplos.
CAPÍTULO, 8. Zelo a que é
obrigado o padre
Cumpre notar que, num retiro eclesiástico, de todos os discursos a fazer, o
mais importante, e de que se pode esperar mais fruto, é o que versa sobre o
zelo; porque, se de entre os ouvintes, -
como se deve esperar da graça do Senhor, - algum sacerdote vier a tomar a
resolução de trabalhar, com ardor na salvação do próximo, ter-se há ganhado,
não apenas uma alma, mas cem, mil almas, que se salvarão por meio desse padre.
Vamos falar neste capítulo:
1º. Da obrigação, que têm todos os padres de trabalhar na salvação das almas;
2º. Do prazer que dá a Deus o padre, que trabalha na salvação das almas;
3º. Da salvação eterna e da grande recompensa que pode esperar de Deus o padre,
que trabalha na salvação das almas;
4º. Do fim, meios e obras do padre zeloso.
§ 1º Da obrigação que incumbe aos
padres de trabalhar na salvação das almas
Lê-se na Obra imperfeita: Muitos padres
e poucos padres: muitos no nome, poucos
nas obras. Está o mundo cheio de padres, mas poucos dentre eles trabalham por
ser verdadeiros padres, isto é, por satisfazer a grande obrigação que o sacerdócio
impõe, à obrigação de salvar almas. É uma alta dignidade a dos padres, visto
que são cooperadores do próprio Deus. Que há de mais nobre, diz o Apóstolo, que
trabalhar com Jesus Cristo na salvação das almas, que ele resgatou com o seu
sangue? É por isso que São Dionísio
Areopagita chamava à dignidade sacerdotal a mais divina de todas as dignidades.
De fato, como diz Santo Agostinho, maior poder se exige para justificar um
pecador, que para criar o Céu e a terra.
São Jerônimo chamava aos padres os salvadores do mundo, e São Próspero
dava-lhes o título de intendentes da casa real de Deus. E primeiro Jeremias os
tinha designado com o nome de pescadores e caçadores do Altíssimo: Hei de enviar muitos pescadores, diz o Senhor,
e eles os pescarão; e depois, hei de
enviar-lhes caçadores, e eles os procurarão, para os retirarem de todos os
montes, e de todas as colinas e das cavernas. É precisamente aos padres que
Santo Ambrósio aplica esta passagem. Os bons sacerdotes reconduzem a Deus os
pecadores mais pervertidos e libertam-nos de todos os seus vícios: Monte, da montanha do orgulho; colle, da colina da pusilanimidade; e cavernis, dos maus hábitos, que trazem
consigo as trevas para o espírito e o endurecimento para o coração.
Falando de Deus, diz Pedro de Blois: Na
obra da criação, não teve Deus nenhum auxiliar, mas no mistério da redenção
quis ter cooperadores. Ao rei, diz São João Crisóstomo, foram confiadas as
coisas da terra, mas a mim, a mim sacerdote, as coisas do Céu. Ainda que a
bem-aventurada Virgem é superior aos apóstolos, diz Inocêncio 3º, nem por isso
lhe confiou Deus as chaves do reino dos Céus, mas sim àqueles.
O padre é chamado por São Pedro Damião - guia do povo de Deus; por São Bernardo guarda da Igreja, que é a
Esposa de Jesus Cristo; e por São
Clemente um Deus terreno. É na verdade por meio dos padres que se formam os
santos na terra. Afirma São Flaviano que a esperança e a salvação dos homens
estão nas mãos dos sacerdotes. E São João Crisóstomo diz: Os nossos pais geraram-nos para a vida
presente, os padres para a eterna. Sem os padres, diz Santo Inácio Mártir, não
haveria santos na terra. Muito antes tinha dito Judite que dos padres está
dependente a salvação dos povos. Ensinam os padres aos seculares a prática das
virtudes, e é delas que depende a salvação deles. Isto fez dizer a São
Clemente: Honrai os padres que vos guiam
pelo caminho da santidade.
Bem alta pois é a dignidade do padre, mas à mesma altura está também a
obrigação que lhe incumbe de trabalhar na salvação das almas. Ouçamos o que diz
o Apóstolo: Todo o Pontífice escolhido
dentre os homens, é estabelecido a favor dos homens no que respeita ao culto
divino, para oferecer dons e sacrifícios pelos pecados. Depois ajunta: É necessário que o padre saiba condoer-se dos
que estão na ignorância e se acham extraviados. O padre pois recebeu de Deus
uma dupla missão: a de o honrar pelos
sacrifícios, e a de salvar as almas, instruindo os ignorantes e convertendo os
pecadores.
Há uma diferença completa entre os seculares e os eclesiásticos: aqueles aplicam-se às coisas terrenas e só
cuidam de si próprios; estes formam o
povo eleito, encarregado de adquirir tesouros, mas que tesouros? O ofício de clérigo, responde Santo Ambrósio,
é ganhar, não dinheiro, mas almas. O mesmo nome de padre, em latim sacerdos,
exprime a natureza das suas funções: segundo Santo Antonino, que faz derivar esta
palavra de sacra docens, e segundo Santo Tomás que a explica por sacra dans.
Honório de Autum pensa que presbyter vem de praebens iter, - o que mostra ao
povo o caminho por onde se chega do exílio à patria. Está isto de acordo com o
sentir de Santo Ambrósio, que chama aos padres os guias e dirigentes do rebanho
de Jesus Cristo. Donde o santo tira esta conclusão: Que a vida corresponda ao nome, que o nome não
seja uma palavra vã; o que não poderia
dar-se sem um crime enorme.
Se pois os nomes de Sacerdos e de Presbyter significam que o padre deve servir
de sustentáculo às almas, guiálas no caminho da salvação, e conduzi-las ao Céu,
necessário é, segundo a reflexão de Santo Ambrósio, que o nome seja justificado
pelas obras, para não ser um título vão; não aconteça que a honra das funções
sacerdotais se torne um crime, ou uma ignomínia, como diz São Jerônimo.
Se quereis cumprir os deveres do sacerdócio, continua ainda São Jerônimo,
procedei de modo a salvardes a vossa alma, salvando os outros. Preservar as
almas da corrupção do mundo e conduzi-las para Deus, tal é, segundo Santo
Anselmo, a função própria do padre. E segundo o abade Filipe da Boa Esperança,
o Senhor separou os padres do resto dos homens, para que eles trabalhem, não só
na sua própria salvação, mas ainda na dos outros. Nasce o zelo do amor, como
diz Santo Agostinho; assim como a
caridade nos obriga a amar a Deus e ao próximo, também o zelo nos obriga
primeiro a procurar a glória de Deus, e impedir que se ultraje o seu nome; depois a promover o bem do próximo e
preservá-lo do mal.
Não digais: Sou um simples padre, sem
cura de almas, basta que cuide de mim. Não; todo o padre é obrigado a trabalhar na
salvação das almas, segundo as suas forças e a necessidade em que elas se
encontrarem. Assim, quando as almas por falta de confessores se encontram em
grande necessidade espiritual, até o simples padre está obrigado a confessar,
como demonstramos na nossa Teologia moral. Se não tem a ciência precisa, para
exercer esta função do seu ministério, está obrigado a adquirila. É o sentir do
Padre Pavone, da Companhia de Jesus, e que não é destituído de razão. Com
efeito, assim como o Padre eterno enviou Jesus Cristo à terra para salvar o
mundo, assim também Jesus Cristo destinou os padres, para converterem os
pecadores: Assim como meu Pai me enviou,
assim eu vos envio. Razão esta por que o Concílio de Trento exige, dos que
aspiram ao sacerdócio, que sejam julgados idôneos para a administração dos
sacramentos.
Estabeleceu Deus a Ordem sacerdotal neste mundo, diz o Doutor angélico, para
que haja cá homens encarregados de santificar os outros, pela administração dos
sacramentos. E é especialmente para a administração do sacramento da Penitência
que os padres estão colocados na terra, porque a seguir às palavras que
acabamos de citar, - Eu vos envio como meu Pai me enviou, - São João ajunta
imediatamente: Dito isto, soprou sobre
eles e disse-lhes: Recebei o Espírito
Santo; aqueles a quem perdoardes os
pecados ser-lhes-ão perdoados. Mas, se o perdoar os pecados é um dos principais
deveres do padre, segue-se que é uma das suas principais obrigações aplicar-se
a cumpri-lo, ao menos quando a necessidade o exigir; de contrário, merecerá a censura de ter
faltado ao aviso que São Paulo dirigia aos seus irmãos no sacerdócio: Nós vos exortamos a não receberdes em vão a
graça de Deus.
São os padres destinados por Deus a serem o sal da terra, e assim preservarem
as almas da corrupção dos pecados, conforme a reflexão do venerável Beda. Mas,
se o sal já não tem a propriedade do sal, para que serve ele, no dizer do
Evangelho, senão para ser lançado fora da casa do Senhor e calcado aos pés de
todos os transeuntes?
O padre, diz São João Crisóstomo, é como que o pai do mundo inteiro; deve pois tomar cuidado de todas as almas, que
pelo seu ministério puder ajudar a salvar, correspondendo assim às vistas de
Deus, de quem faz as vezes. Além disto, os padres são os médicos encarregados
por Deus da cura das enfermidades de todas as almas. Assim os chama Orígenes: Medicos animarum; do mesmo modo São Jerônimo: Medicos spirituales. E São Boaventura ajunta: Se o médico abandona os doentes, quem tomará
cuidado deles?.
Demais, são os padres chamados muros da Igreja. Santo Ambrósio diz: Habet et Ecclesia muros suos; e o autor da Obra imperfeita:
Muri illius sunt sacerdotes. Por Jeremias são também chamados as pedras que
sustentam a Igreja de Deus; e por Santo
Euquério as colunas que sustentam o mundo e o impedem de desabar. Finalmente
São Bernardo os chama casa do próprio Deus. Dizemos pois com o autor da Obra
imperfeita que se não cair senão parte do edifício, será fácil repará-lo; mas se as paredes da casa, se os alicerces, se
as colunas que a sustentam vierem a cair, que reparação será ainda possível?
Também na Obra imperfeita os padres são chamados da vinha do Senhor.
Mas, ó Céu! exclama em gemidos São
Bernardo, os vinhateiros não se poupam nem a suores nem a fadigas, trabalham
dia e noite na cultura das suas vinhas; pela sua parte porém que fazem os padres, a
quem o Senhor encarregou o cultivo da sua vinha? Adormecem ociosos e consomem as suas forças no
meio dos prazeres terrenos!
É grande a seara, mas são poucos os obreiros. É certo que nem os bispos nem os
pastores seriam bastantes para as necessidades dos povos; se Deus não tivesse mandado outros sacerdotes
em socorro das almas, não estaria a sua Igreja bem provida.
Diz Santo Tomás que os doze apóstolos, encarregados por Jesus Cristo da
conversão do mundo, figuravam os bispos, e que os setenta e dois discípulos
representavam todos os padres. Estes estão estabelecidos para trabalharem na
salvação das almas, - fruto que o Redentor espera do ministério deles: Eu vos estabeleci para que vades pelo mundo e
façais fruto. Tal a razão por que Santo Agostinho chama aos padres
administradores dos interesses de Deus. Receberam eles a missão de extirpar os
vícios e as máximas perniciosas do meio dos povos, fazendo florescer em seu
lugar as virtudes e as máximas eternas. No dia em que Deus eleva algum
ordinando ao sacerdócio, impõe-lhe a mesma obrigação que outrora a Jeremias: Eis que hoje te estabeleci sobre as nações e
os reinos, para que arranques, e destruas, e dissipes, e edifiques e plantes.
Não sei como se poderá desculpar um padre que vê as necessidades instantes das
almas, onde habita; que pode
socorrê-las, quer ensinando-lhes as verdades da fé, quer pregando-lhes a
palavra de Deus, ou ainda ouvindoas de confissão, e que o não faz por preguiça.
Não sei, repito, como no dia do juízo um tal padre poderá escapar à reprovação
e castigo com que o Senhor, no Evangelho, ameaça o servo negligente, que
escondeu o talento. Tinha-lhe o senhor confiado o talento para que negociasse
com ele, mas o servo deixou-o estéril, e, quando lhe pediu conta dos lucros a
feridos, respondeu: Escondi o vosso
talento na terra; ei-lo, entrego-vos o
que vos pertence.
Ora, é precisamente o que seu senhor lhe censura: Como assim, lhe diz, dei-te um talento para
negociares; está aqui o talento, mas
onde está o lucro? - Mandou então que
lhe tirasse o talento, e deu-o a outro; depois fez lançar nas trevas exteriores esse
servo inútil: Tirai-lhe o talento, dai-o
ao que tem dez... e quanto ao servo inútil, lançai-o nas trevas exteriores. Por
trevas exteriores, entende-se o fogo do inferno, que é privado de luz, isto é,
que está fora do Céu, como explicam os intérpretes.
Santo Ambrósio e outros, como Calmet, Cornélio e Tirin, aplicam esta passagem
do Evangelho aos que podem trabalhar na salvação das almas, e por uma
negligência culpável, ou vão temor de pecar, deixam de o fazer. Que prestem
atenção a esta passagem, diz Cornélio A-Lápide, os que por moleza ou temor de
pecar, nem para a sua salvação nem para a do próximo, fazem uso dos talentos,
ciência e outros dons que receberam de Deus; de tudo lhes há de pedir contas Jesus Cristo
no dia do juízo. E São Gregório: Notem
os padres ociosos, quem não quiser empregar o seu talento será privado dele e
além disso condenado. E Pedro de Blois: O que faz servir à utilidade de outrem o dom
que recebera de Deus, merece que lhe seja acrescentado o que já tem; mas o que enterra o talento do Senhor,
ver-se-á despojado do que parecia ter. São João Crisóstomo afirma não se poder
persuadir de que um padre, que nada faz pela salvação do seu próximo, possa
salvar-se.
Pois, aludindo, à parábola do talento, ajunta que a negligência dum tal padre,
em usar do talento que lhe foi confiado, será o seu crime e a causa da sua
condenação. Pouco lhe aproveitará, diz o santo, não ter perdido o talento que
recebêra; o servo foi condenado
precisamente por não ter aumentado e duplicado o seu. Em resposta aos que dizem
- basta que salve a minha alma - escreveu Santo Agostinho: Que dizeis vós? Esqueceis o que aconteceu ao servo que tinha
escondido o seu talento?
Segundo São Próspero, ao padre não lhe basta para se salvar que viva
santamente, porque se perderá com os que se perderem por sua culpa; e de que lhe servirá, ajunta ainda, não ser
castigado pelas suas faltas pessoais, se o é pelos pecados dos outros? Lemos nos Cânones apostólicos: O padre que não tomar cuidado, nem do clero
nem do povo, será separado dos seus irmãos e, se continuar na sua negligência,
será deposto. Como se atrevem a pretender a honra do sacerdócio, pergunta São
Leão, se não querem trabalhar pelas almas?
Um decreto do Concílio de Colônia estatuiu que quem se introduzir no
sacerdócio, sem a intenção de exercer as funções de vigário de Jesus Cristo,
isto é, de trabalhar na salvação das almas, é um lobo e um bandido, segundo a
expressão do Evangelho, e deve esperar um castigo tão terrível como certo.
Santo Isidoro não hesita em declarar culpados de falta grave dos padres, que
descuram ensinar os ignorantes ou converter os pecadores. E São João Crisóstomo
exprime o mesmo pensamento: Estão
condenados muitos, não por seus próprios pecados, mas por pecados alheios, que
não impediram. Falando dos simples padres, diz o Doutor angélico que aquele
que, por negligência ou ignorância, não presta às almas os socorros do seu
ministério, torna-se responsável diante de Deus pelas que podia salvar, e por
sua falta não salvou. É ainda o sentir de São João Crisóstomo: Se o padre se contenta com salvar a sua alma,
negligenciando as dos outros, será precipitado no inferno com os ímpios.
Um sacerdote que tinha passado uma vida piedosa e retirada, encontrando-se em
Roma prestes a morrer, interrogado a respeito dos seus terrores, respondeu: "Tremo, porque não tenho trabalhado em
salvar almas". Tinha razão para temer, porque o Senhor estabeleceu os
sacerdotes para salvar as almas e libertá-las dos vícios. Se o padre não
desempenhar a sua missão, terá de dar contas a Deus de todas as almas que se
perderem por sua culpa: Quando digo ao
ímpio: Tu morrerás, se pela tua parte o
não advertires e não instares para que se converta e viva, morrerá o ímpio por
causa da sua iniqüidade, mas Eu te pedirei contas do seu sangue. Assim, diz São
Gregório, ao falar dos padres preguiçosos, que eles serão responsáveis diante
de Deus por todas as almas que podiam socorrer, e de cuja perda se tornaram
causa por sua negligência.
Jesus Cristo resgatou as almas à custa do seu sangue. Depois, como Redentor,
confiou-as à guarda dos padres. Desgraçado de mim, exclamava São Bernardo,
vendo-se padre, se negligenciar a guarda deste depósito, isto é, as almas que o
Salvador julgou mais preciosas que o seu sangue! Os simples fiéis só hão de prestar contas dos
seus próprios pecados, diz o autor da Obra imperfeita, mas o padre há de
responder pelos pecados de todos. É o que o Apóstolo nos declara nesta
passagem: Vigiam eles sobre vós, como
quem há de dar contas a Deus das vossas almas. Deste modo, ajunta São João
Crisóstomo, são imputados ao padre os pecados dos outros, a que ele por
negligência não deu remédio.
Daí a reflexão de Santo Agostinho: Se no
dia do juízo cada um há de ter dificuldade em responder por si, - que será dos
padres, a quem se pedirá contas das almas de todos os fiéis? E São Bernardo, ao considerar os que se fazem
padres, não para salvarem almas, mas para terem uma vida mais cômoda, exclama
com dor: Ai! Melhor seria para eles cavar a terra ou
mendigar, do que serem revestidos do sacerdócio; porque no dia de juízo se levantarão contra
eles as lamentações de todas as almas que a sua preguiça fez condenar.
§ 2º Quanto agrada a Deus o padre
que trabalha na salvação das almas
Para se conhecer quanto Deus deseja a salvação das almas, basta considerar o
que ele fez na obra da redenção dos homens. Esse desejo bem o patenteou Jesus
Cristo, quando disse: Tenho de ser
batizado com um batismo de sangue, e quanto estou ansioso de que ele se
consuma! Sentia-se como desfalecer, em
razão do desejo que tinha de levar a cabo a obra da redenção, para ver os
homens salvos. Donde com razão conclui São João Crisóstomo que nada há mais
caro aos olhos de Deus, que a salvação das almas. E antes dele tinha dito São
Justino: Nada agrada tanto a Deus como
os esforços que se fazem para tornar os homens melhores. Um dia que o Padre
Bernardo Colnado se dava a grandes trabalhos pela conversão dos pecadores, o
próprio Senhor lhe dirigiu estas palavras: Trabalha na salvação dos pecadores, porque
nada me é mais agradável.
Trabalhar na salvação das almas é uma obra tanto do agrado de Deus, acrescenta
São Clemente de Alexandria, que parece não ter ele outro pensamento senão o de
ver todos os homens salvos. Por isso São Lourenço Justiniano dá este aviso ao
padre: Se desejas honrar a Deus, o mais
seguro meio que para isso tens é trabalhar na salvação dos homens.
Aos olhos de Deus, diz São Bernardo, mais vale uma alma que o universo inteiro.
Também, segundo São João Crisóstomo, quem converte uma só alma torna-se mais
agradável ao Senhor, que quem reparte todos os seus bens em esmolas. E
Tertuliano afirma que o regresso duma só ovelhinha desgarrada é tão caro a Deus
como a salvação de todo o rebanho. Neste sentido dizia o Apóstolo: Ele me amou e se entregou por mim. Queria
assim significar que Jesus Cristo teria morrido por uma só alma, como morreu
por todos os homens, conforme a interpretação de São João Crisóstomo. Foi o que
o nosso Redentor nos deu bem a entender na parábola da dracma perdida, sobre a
qual diz o Doutor angélico: Tendo
encontrado a dracma, reuniu todos os anjos e convidou-os a regozijarem-se, não
com o homem, mas com ele próprio, como se o homem fosse o Deus de Deus, como se
a salvação do próprio Deus dependesse de tornar a encontrar o homem perdido, e
não pudesse ser feliz sem ele.
Conforme o testemunho de muitos autores, o bispo São Carpo teve uma visão, em
que parecia representar-se-lhe, que um pecador escandaloso tinha arrastado ao
crime um inocente. Levado do seu zelo, ia o Santo a precipitá-lo num abismo, à
beira do qual esse criminoso se achava, quando apareceu Jesus Cristo e o
segurou com a sua mão, dizendo a São Carpo estas palavras: Percute me, quia iterum pro peccatoribus mori
paratus sum. Era como se tivesse dito: Parai lá; sou antes eu que quero sofrer, porque já uma
vez dei a minha vida por esse pecador, e estou pronto a dá-la de novo para
evitar a perda dele.
O espírito eclesiástico, segundo Luís Habert, consiste essencialmente num
grande zelo de aumentar a glória de Deus e salvar o maior número de almas. A
Moisés mandou o Senhor que fizesse trazer aos sacerdotes uma vestimenta toda
premiada de figuras circulares, em forma de olhos, para significar, segundo um
autor, que o sacerdote deve ser todo olhos para vigiar pela salvação dos povos.
Segundo Santo Agostinho, o zelo pela salvação das almas, assim como o desejo de
ver Deus amado de todos os homens, nasce do amor; quem pois não ama está perdido. Quem cuida da
sua alma torna-se agradável a Deus; mas
muito mais quem atende também à alma do seu próximo, diz São Bernardo.
Nada prova melhor ao Senhor o amor e fidelidade duma alma, diz São João
Crisóstomo, que um zelo ardente pelo bem do próximo. Até três vezes perguntou o
Salvador a São Pedro se o amava, e assegurado do seu amor, não lhe exigiu outra
garantia senão o tomar cuidado das almas. Eis a reflexão de São João
Crisóstomo: Podia dizer-lhe: "Se me amas, deixa o teu dinheiro,
entrega-te ao jejum, castiga o teu corpo com trabalhos"; mas não, diz-lhe apenas: Apascenta as minhas ovelhas. Sobre a palavra
meas, nota Santo Agostinho que o Salvador quis dizer: Apascenta-as como minhas e não como tuas,
pondo nisso a minha glória e não a tua, o meu proveito e não o teu. Por isso o
santo Doutor nos ensina que quem quer agradar a Deus, trabalhando na salvação
das almas, não deve ter em vista nem a sua própria glória, nem as suas
vantagens pessoais, mas somente o acréscimo da glória de Deus.
Santa Teresa dizia que, ao ler a vida dos santos mártires e dos santos
missionários, tinha mais inveja aos últimos que aos primeiros, por causa da
glória imensa que alcançavam para Deus os que trabalhavam na conversão dos
pecadores. Santa Catarina de Sena beijava a terra tocada pelos pés dos sacerdotes,
que consagravam os seus trabalhos ao bem das almas. Estava esta santa abrasada
dum zelo tão ardente pela salvação dos pecadores, que desejava ser colocada à
porta do inferno, para de futuro impedir que lá caíssem mais almas. E nós que
somos padres, que dizemos? Que fazemos? Vemos tantas almas que se perdem, e
permaneceremos espectadores ociosos?
Dizia São Paulo que, para obter a salvação de seus irmãos, teria consentido até
em ser separado de Jesus Cristo, - por algum tempo - conforme a explicação dos
intérpretes. São João Crisóstomo desejava ser olhado com execração, contanto
que as almas confiadas aos seus cuidados se convertessem.
São Boaventura protesta que aceitaria tantas mortes quantos os pecadores que há
no mundo, para salvar a todos. Quando São Francisco de Sales se encontrava no
meio dos hereges em Chablais, não hesitou, durante o inverno, em atravessar um
riacho, agarrando-se e escorregando por uma trave gelada, a servir de
pontilhão. Afrontou as maiores fadigas e perigos para ir levar ao povo a
palavra do Evangelho. São Caetano encontrava-se em Nápoles, durante a revolução
terrível de 1547; ao ver que tantas
pobres almas se perdiam, por ocasião destas perturbações, sentiu-se tão
profundamente magoado que morreu de dor. Por sua parte, Santo Inácio de Loiola
dizia: "Ainda que tivesse a certeza
de que, morrendo agora, me salvara, quereria antes ficar na terra, incerto da
minha salvação, para continuar a socorrer as almas".
Eis o zelo de que estão animados pelo bem das almas todos os padres que amam a
Deus; e contudo muitos há que, sob o
menor pretexto, para não se exporem a um pequeno incomodo, descuram tão graves
obrigações! Até entre os que têm cargo
de almas se encontram alguns réus desta indiferença! Dizia São Carlos Borromeu que um pároco, dado
às comodidades, e que toma todas as precauções possíveis a respeito da saúde,
nunca poderá cumprir os seus deveres. Acrescentava ainda, que um pastor não se
deve meter na cama, senão depois de três acessos de febre.
Se amais a Deus, dizia Santo Agostinho, levai o mundo inteiro a amar a Deus. Quem
ama verdadeiramente a Deus, faz todos os esforços para levar os outros a
amá-lo; insta-os e diz a todos com Davi:
Glorificai comigo ao Senhor, e de comum
acordo exaltemos o seu nome. O sacerdote que ama a Deus vai por toda a parte,
exortando a todos e repetindo sem cessar na cadeira, no confessionário, nas
praças públicas e nas casas: Irmãos
meus, amemos a Deus; glorifiquemos o seu
santo nome pelas nossas palavras e pela nossa vida.
§ 3º Como um padre, trabalhando
na salvação das almas, assegura a sua própria salvação, e como será
recompensado no Céu
Não pode morrer mal um sacerdote que gastou a sua vida a trabalhar na salvação
das almas. "Se empregaste a tua vida, diz o Profeta, a socorrer uma alma
nas suas necessidades, se a consolaste nas suas aflições, o Senhor, no meio das
trevas da tua morte temporal, te encherá de luz e te livrará da morte
eterna". Era o que dizia Santo Agostinho: Animam salvasti, animam tuam praedestinasti. E
antes dele tinha dito o apóstolo São Tiago: Quem houver convertido um pecador extraviado,
salvará a sua alma e cobrirá a multidão dos seus pecados.
Um padre da Cia. de Jesus, José Scamaca, tinha consagrado a sua vida a
trabalhos relativos à conversão dos pecadores; à hora da morte, mostrouse tão alegre e seguro
da sua salvação, que alguns olharam como demasiada a sua confiança e
disseram-lhe que, em tal situação, devia a confiança andar acompanhada do
temor. "Como, respondeu ele! é
porventura a Maomé que eu tenho servido? Terei razão para temer, depois de haver
servido um Deus tão bom e tão fiel?" Como acima referimos, Santo Inácio de
Loiola declarou um dia que, para socorrer as almas, de bom grado permaneceria
na terra incerto da sua própria salvação, embora morrendo primeiro tivesse a
certeza de se salvar. Houve quem lhe dissesse: "Não é prudente arriscar a salvação
própria pela dos outros". - "Ora essa! respondeu o Santo, seria Deus um tirano? Tendo-me visto expor a minha salvação para lhe
ganhar almas, quereria depois mandar-me para o inferno?"
Tinha Jonatas salvado os Hebreus das mãos dos Filisteus, vencendo-os com o
máximo risco da própria vida. Foi condenado à morte por seu pai Saul, em razão
de ter, contra a sua proibição, comido um pouco de mel. O povo porém começou a
clamar a Saul: Como pode ser isso! Quereis tirar a vida a Jonatas que nos salvou
da morte? Foi assim que obteve o seu
perdão. Eis o que pode esperar com fundada razão o padre que, pelos seus
trabalhos, chegou a salvar algumas almas. Ao tempo da sua morte, elas se apresentarão
a Jesus Cristo e lhe dirão: Senhor,
quereis acaso precipitar no inferno, quem de lá nos livrou? E se Saul perdoou a Jonatas, a pedido do seu
povo, por certo não recusará Deus o perdão a esse padre, por quem pedem almas
benditas. Os padres que trabalham na salvação das almas ouvirão, no momento da
morte, o próprio Senhor a anunciar-lhe o repouso eterno.
Ó que consolação! Que motivo de
confiança, no leito mortuário, pensar que se ganhou alguma alma para Jesus
Cristo! É doce o repouso depois da
fadiga. Assim, para o sacerdote que trabalhou por Deus é mui doce a morte.
Quanto mais um pecador tiver contribuído para libertar as almas da escravidão
do pecado, diz São Gregório, tanto mais facilmente conseguirá o perdão dos seus
próprios pecados. Ter a felicidade de trabalhar na conversão dos pecadores, é
um sinal claro de que se está predestinado e escrito no Livro da vida, como o
Apóstolo o manifesta, quando fala dos que com ele cooperavam na conversão dos
povos, dizendo: Também te rogo, meu
irmão amantíssimo, que venhas em auxílio dos que têm trabalhado comigo no
Evangelho, com Clemente e com os restantes cooperadores meus, cujos nomes estão
inscritos no Livro da Vida. Notem-se estas últimas palavras.
Quanto às magníficas recompensas, reservadas aos obreiros evangélicos,
escutemos o que diz Daniel: Brilharão
como estrelas, por eternidades infindas, os que instruem a muitos na justiça.
Vemos agora as estrelas a brilhar no firmamento; assim na mansão dos bem-aventurados hão de
resplandecer, com uma glória ainda mais deslumbrante, os que trabalharam em
reconduzir almas para Deus. Se se merece uma grande recompensa quando se livra
um homem da morte temporal, diz São Gregório, quanto maior quando se livra uma
alma da morte eterna, e se lhe alcança uma vida sem fim! Foi o que o nosso Salvador declarou
expressamente: Quem houver ensinado e
praticado, será chamado grande no reino dos céus. Quando um mau padre vem a
condenar-se, depois de ter pervertido uma multidão de almas com os seus
escândalos, - que tremendo castigo tem a sofrer no inferno! Ao contrário, Deus, que é mais liberal nas
suas recompensas, do que severo nos seus castigos, - como não retribuirá
magnificamente no Paraíso um padre que, pelos seus trabalhos lhe tiver ganhado
um grande número de alma?
São Paulo apoiava toda a esperança da sua coroa eterna, na salvação das almas,
que tinha convertido para o Senhor, e estava persuadido de que elas lhe haviam
de obter uma grande recompensa do Céu: Qual é pois a nossa esperança, a nossa
alegria, a nossa glória? Não sois vós
que haveis de ser tudo isso diante de N. Sr. Jesus Cristo no dia da sua vinda? Assegura São Gregório que um pregoeiro do
Evangelho há de alcançar tantas coroas quantas as almas que tiver ganhado para
Deus. Lemos nos Cânticos: Vem do Líbano,
ó esposa minha, vem do Líbano, vem; hão
de contribuir para a tua coroa... os covis dos leões, os montes dos leopardos.
Tal é a promessa magnífica que o Senhor faz, a quem se dedica à conversão dos
pecadores: almas que outrora eram como
bestas ferozes e monstros infernais, converteram-se e tornaram-se agradáveis a
Deus.
Um dia hão de ser elas no Céu outras tantas pérolas preciosas, destinadas a
ornar a coroa do padre, que as encaminhou para a virtude.
Um padre que se condena, não se condena só; e um padre que se salva, com certeza se não
salva só. Quando São Filipe de Néri morreu e subiu ao Céu, enviou o Senhor ao
encontro da sua todas as almas que se tinham salvado pelo seu ministério. O
mesmo se conta dum outro grande servo de Deus, - o irmão Querubim de Spoleto: viram-no entrar na glória, acompanhado de
muitos milhares de almas, que aos seus trabalhos deviam a salvação. Conta-se
também do venerável Padre Luís La Nuza, que fôra visto no Céu, assentado num
trono elevado, cujos degraus estavam ocupados pelas almas que havia convertido.
Para cultivarem os seus campos, semeá-los e ceifá-los, sofrem os pobres
lavradores duros trabalhos; mas todas as
suas penas são depois amplamente compensadas pela alegria da colheita: Lá iam eles e choravam ao lançarem as
sementes; mas voltavam na alegria,
trazendo os seus feixes. Também, para levar as almas para Deus, é necessário
sofrer muitas penas e fadigas; mas os
obreiros evangélicos hão de ser abundantemente recompensados, pela alegria de
apresentarem a Jesus Cristo, no Vale de Josafat, todas as almas salvadas pelo
seu zelo.
E que não afrouxe nem desista de tão importante missão o padre que, depois de
ter trabalhado em reconduzir os pecadores para Deus, não vir os seus esforços
coroados de bom êxito. Padre de Jesus Cristo, lhe diz São Bernardo, para
reanimar o seu zelo, não te desanimes; a
recompensa que te espera, está garantida; Deus não exige de ti a cura das almas; contenta-se com lhes dispensares os teus cuidados;
não é o êxito dos esforços que será
coroado, serão antes os próprios esforços a medida da recompensa. É o que São
Boaventura confirma, dizendo que o padre não será menos recompensado com
respeito aos que tiverem desprezado ou aproveitado mal os seus trabalhos, do
que em relação aos que souberam colher os maiores frutos. O mesmo Santo
acrescenta que o lavrador, que cultiva uma terra árida e pedregosa, não é menos
digno de recompensa, embora colha dela pouco fruto.
Quer dizer com isso que um padre que trabalha, ainda que sem fruto, em
reconduzir um pecador obstinado, receberá uma recompensa tanto maior, quanto
mais penosos tiverem sido os seus trabalhos.
§ 4º Fim, meios e obras do padre
zeloso
1º. Fim que se deve propor
Se queremos que Deus recompense os trabalhos que consagramos à salvação das
almas, não nos devemos deixar mover nem pelo respeito humano, nem pela nossa
própria honra e interesse, mas só pelo amor de Deus e da sua glória. De
contrário, o fruto dos nossos labores seria um castigo e não uma recompensa.
"Grande seria a nossa loucura, dizia o bem-aventurado José Calasanzio, se
trabalhando como trabalhamos, esperássemos dos homens uma recompensa
temporal".
É muito arriscada, diz Santo Tomás, a missão de salvar as almas. E São Gregório
diz do padre: Quantas pessoas um homem
tem a governar, outras tantas, por assim dizer, são as almas de que há de prestar
contas ao soberano Juiz. Com auxílio de Deus, pode-se exercer o ministério sem
pecar e com merecimento; mas quem não o
exerce com o fim de agradar a Deus, será privado do socorro divino, - e então
como poderá eximir-se de pecado? Como
procederão os que, segundo São Boaventura, "recebem as santas Ordens, não
na intenção de salvarem as almas, mas com os olhos em sórdidos lucros?"
Ou, segundo São Próspero, "não para se tornarem melhores, mas para se
enriquecerem; não para se santificarem,
mas para serem honrados?" Quando um eclesiástico procura ser provido num
benefício, pergunta acaso, quantas almas tem a ganhar para Deus? Não, responde Pedro de Blois; o que pergunta é quanto rende.
Conforme a expressão do Apóstolo, muitos padres "procuram os seus
interesses e não os de Jesus Cristo". "Abuso detestável! exclama o venerável João de Avila, fazer
servir o Céu à terra!" Observa São Bernardo que N. Senhor ao recomendar as
suas ovelhas a São Pedro, lhe disse: Apascenta as minhas ovelhas, e não: ordinha ou tosquia as minhas ovelhas. E lê-se
na Obra imperfeita: Somos obreiros
contratados por Jesus Cristo; portanto
assim como ninguém chama um operário só para comer, também nós não fomos
chamados pelo Salvador somente para cuidarmos dos nossos interesses, mas para a
glória de Deus. Donde São Gregório conclui que os padres não devem comprazer-se
em estar à frente dos outros homens, mas sim em lhes fazer bem.
É pois a glória de Deus o único fim que o padre se deve propor, trabalhando no
bem das almas.
2º. Meios que deve empregar
Quanto aos meios a empregar para ganhar almas para o Senhor, eis o que
principalmente se deve observar:
1º.
Primeiro que tudo, deve aplicar-se o padre à própria santificação; o meio mais eficaz para converter os outros é
a santidade do padre. Diz Santo Euquério que as forças que a santidade lhe dá
são o sustentáculo do mundo. Na sua qualidade de mediador, está o padre
encarregado de manter a paz e a união entre Deus e os homens, conforme o sentir
de Santo Tomás. Para que se apresente porém como mediador perante uma pessoa
ofendida, é preciso que não lhe seja odioso; de contrário, diz São Gregório, não fará senão
irritá-la mais. O mesmo Santo ajunta: É
necessário que se esforce por ser limpa a mão que se aplica a lavar as manchas
dos outros. Donde São Bernardo conclui que um padre, que quer trabalhar com
êxito na conversão dos pecadores, deve purificar a sua própria consciência,
antes de pensar em purificar as alheias. Dizia São Filipe de Néri: "Dai-me dez padres, verdadeiramente
animados do Espírito de Deus, e eu respondo pela conversão do mundo inteiro".
Que não fez no Oriente São Francisco Xavier! Diz-se que só ele convertera dez milhões de
infiéis. Que não fizeram na Europa São Patrício e São Vicente Ferrer! Um padre mediocremente instruído, mas bem
penetrado do amor de Deus, converterá mais almas ao Senhor, do que cem padres
muito sábios, mas pouco fervorosos.
2º.
Em segundo lugar, para fazer uma vasta colheita de almas, é necessário que o
sacerdote se dê muito à oração. Primeiro há de receber de Deus as luzes, e os
sentimentos de fervor, para que possa depois comunicá-los aos outros. É pela
oração que eles se obtêm: Pregai em
público o que vos digo ao ouvido. É preciso, diz São Bernardo, que sejais
reservatório antes de serdes canal; hoje, acrescenta ele, temos muitos canais, e
poucos reservatórios. Converteram os santos mais almas pelas suas orações que
pelos seus trabalhos.
3º. Obras do padre zeloso
Eis agora as obras a que se deve consagrar o padre zeloso:
1º.
Deve ser cuidadoso em advertir os pecadores. Os padres que vêem ofender a Deus,
e se calam, são chamados por Isaías de cães mudos. E é a esses cães mudos que
serão imputados os pecados que não tiverem impedido, quando podiam impedi-los.
Não vos caleis, diz Alcuino, para que não vos sejam imputados os pecados do
povo. Não querem certos padres repreender os pecadores, para não se
incomodarem, dizem eles; mas São
Gregório adverte-lhes que essa paz que desejam conservar lhes fará
desgraçadamente perder a paz com Deus. Caso estranho, exclama São Bernardo! Se um animal cai, correm muitos a levantá-lo; perde-se uma alma e ninguém a socorre! Apesar de tudo isso, diz São Gregório, o padre
é estabelecido principalmente para apontar o bom caminho a quem se extraviou. E
São Leão ajunta: O padre que não avisa
os fiéis a respeito dos seus desmandos mostra que também anda fora do caminho.
Nós, sacerdotes do Senhor, diz ainda São Gregório, damos a morte a todas as
almas que vemos perecer, sem corrermos em seu socorro.
2º.
O padre zeloso deve dar-se à pregação. Foi pela pregação, diz São Paulo, que o
mundo se converteu à fé de Jesus Cristo. É também pela pregação que a fé e o
temor de Deus se conservam entre os fiéis. Os padres que se não sentem capazes
de pregar devem ao menos, todas as vezes que possam, nas suas conversações com
parentes e amigos, dizer coisas edificantes, quer contando algum exemplo de
virtude da vida dos santos, quer lembrando alguma máxima eterna, por exemplo,
sobre a vaidade do mundo, importância da salvação, certeza da morte, paz de que
se goza no estado de graça etc.
3º.
Deve o padre assistir aos moribundos; é
a obra de caridade mais agradável a Deus, e mais útil à salvação das almas; porque no momento da morte os pobres doentes,
por um lado são mais vivamente tentados pelo demônio, e pelo outro menos
capazes de lhe resistir por si mesmos. São Filipe de Néri viu muitas vezes os
anjos a sugerir aos padres as palavras, que deviam dirigir aos moribundos. Para
os párocos é um dever de justiça, e para todos os sacerdotes um dever de
caridade; porque todos o podem cumprir,
mesmo os que não têm o talento da pregação. Têm aí ocasião de fazer muito bem,
não só aos doentes, mas ainda a todos os parentes e amigos que os rodeiam; porque é o tempo mais próprio para
entretenimentos espirituais. Em tal conjuntura, não conviria mesmo que um padre
falasse doutra coisa, senão da alma e de Deus.
Necessário é contudo desempenhar este dever com muita prudência e modéstia,
para não ser ocasião de ruína para si próprio e para os outros; não aconteça que, ajudando os outros a morrer,
dê a morte à sua própria alma. - Além disto, o que não se encontra em condições
de pregar, deve ao menos cuidar de instruir as crianças e os rústicos, dos
quais um grande número nos campos, não podendo frequentar os templos, ignoram
até as principais verdades da fé.
4º.
Finalmente, deve o padre persuadir-se de que o meio mais eficaz para salvar as
almas é aplicar-se a ouvir confissões. O venerável Padre Luís Fiorilo,
dominicano, dizia que pregar é lançar a rede, ao passo que confessar é puxá-la
para a praia e tomar o peixe.
Mas, direis vós, é um ministério muito arriscado. - Sim, por certo, vos
responde São Bernardo, é perigoso exercer as funções de juiz das consciências; mas ainda a maior perigo vos expondes, se, por
preguiça ou excessivo temor, negligenciais cumprir este dever, quando a ele vos
chama o Senhor. Lamento, acrescenta ele, que estejais à frente dos outros
homens, mas lamento ainda que, por temor de exercerdes a autoridade sobre eles,
recuseis fazer-lhes bem. Já falamos da obrigação, imposta a todos, de
empregarem na salvação das almas o talento que receberam de Deus, e dissemos
que, ao receberem a ordenação, se encarregam especialmente de administrar o
sacramento da penitência.
Replicareis ainda: Não estou apto para
este ministério, porque não tenho estudado. - Mas não sabeis que o padre está
obrigado a instruir-se? Pois que os
lábios do sacerdote devem ser os guardas da ciência, é da sua boca que se há de
aprender a lei. Se não quereis estudar para vos tornardes capaz de assistir ao
próximo, para que vos ordenastes? Quem
vos obrigou, pergunta o Senhor, a receber as Ordens sacras? Quem vos forçou a serdes padres, insiste São
João Crisóstomo? Antes de receberdes o
sacerdócio, ajunta ele, devíeis examinar-vos; ao presente, visto que sois padre, já não é
tempo de vos examinardes, é necessário trabalhar; tornai-vos capaz, se o não sois. Alegardes
hoje ignorância, continua o santo Doutor, é acusar-vos duma segunda falta para
desculpardes a primeira: não pode
desculpar-se com a ignorância quem se obrigou por ofício a ensinar os
ignorantes.
Não poderia com esse pretexto escapar ao suplício que o espera, ainda mesmo
que, por sua negligência, apenas tivesse causada a perda duma alma. Há padres
que passam o seu tempo a estudar uma infinidade de coisas inúteis, e descuram a
aquisição dos conhecimentos necessários para trabalharem com fruto na salvação
das almas; proceder assim, diz São
Próspero, é violar as regras da justiça.
Numa palavra, é necessário ter bem presente ao espírito que o padre só deve
trabalhar para a glória de Deus e salvação das almas. Por isso o papa São
Silvestre quis que, para os eclesiásticos, os dias da semana não tivessem outro
nome senão o de férias, isto é, dias vagos: "Dias em que se devem pôr de parte todos
os cuidados, para só tratar das coisas de Deus". Os próprios pagãos diziam
que os sacerdotes só se devem ocupar das coisas divinas; razão por que lhes era interdito o exercício
de cargos públicos, para que só se consagrassem ao culto dos seus deuses.
Moisés, a quem Deus tinha encarregado especialmente os interesses da sua glória
e a execução da sua lei, dava-se ainda a outros cuidados, mas Jetro advertiu-o
e disse-lhe: Olha que tu está a
esgotar-te com um trabalho inútil... Presta-te ao povo nas coisas que dizem
respeito a Deus.
Antes de seres elevado ao sacerdócio, diz Santo Atanásio, podias fazer o que
quisesses, mas agora que estás investido nele, deves aplicar-te a cumprir os
deveres do teu ministério. E quais são eles? Um dos principais é trabalhar na salvação das
almas, como acima demonstramos. Confirmam-no estas palavras de São Próspero: Foi confiado aos padres o cuidado das almas,
como sua atribuição própria.
CAPÍTULO, 9. Da vocação ao
Sacerdócio
§ 1º Necessidade da vocação
divina para receber as ordens sacras
Para entrar em qualquer estado de vida, é necessário ser chamado por Deus,
porque, sem vocação, se não é impossível, é pelo menos muito difícil satisfazer
às obrigações desse estado e salvar-se.
Mas, se para todos é necessária a vocação, sobretudo é indispensável para
abraçar o estado eclesiástico. É a porta única para se entrar na Igreja; quem lá se introduzir doutro modo é um bandido
e um ladrão, diz o Senhor. São Cirilo de Alexandria conclui que o que recebe as
Ordens sacras, sem a elas ser chamado por Deus, se torna culpado de roubo,
porque arrebata uma graça que Deus lhe não quer confiar. Também São Paulo
declarou que a vocação divina é necessariamente requerida para se ser elevado
ao sacerdócio, e cita o exemplo de Aarão e do próprio Jesus Cristo. Ninguém por
si mesmo assume esta honra, que não se confere senão a quem é chamado por Deus,
como Aarão. Foi assim que nem o próprio Jesus Cristo se arrogou a função de
Pontífice, que lhe conferiu Aquele que lhe disse: Tu és o meu Filho.
Ninguém pois, por mais inteligente, sábio e santo que seja, pode entrar no
santuário, por iniciativa próprio; é
necessário que seja chamado e introduzido lá por Deus. O próprio Jesus Cristo,
que foi em verdade o mais santo e sábio dos homens, por isso que é cheio de
graça e de verdade, e nele estão encerrados todos os tesouros da sabedoria e da
ciência, o próprio Jesus Cristo, digo, para se revestir da dignidade de
sacerdote, quis ser chamado a ela por Deus.
Ainda mesmo quando estavam certos da sua vocação divina, tremiam os santos de
assumir o sacerdócio. Santo Agostinho, na sua humildade, olhava como castigo
dos seus pecados a violência que o seu bispo empregara para o fazer sacerdote.
Santo Efrém, apresentou-se como insensato, para não ser constrangido a receber
o sacerdócio, e Santo Ambrósio fingiu ser cruel. O santo monge Amon, para
escapar à ordenação, cortou as orelhas e fez ameaça de cortar também a língua,
se persistissem em inquietá-lo a tal respeito. Em resumo, São Cirilo de
Alexandria afirma que todos os santos têm considerado a dignidade sacerdotal
como um fardo enorme. Depois disso, pergunta São Cipriano, poderá encontrar-se
alguém tão temerário que se abalance a receber as sagradas Ordens sem a vocação
divina?
Quem se introduz no santuário sem vocação ofende a autoridade de Deus, como um
vassalo rebelde, que por si mesmo se fizesse ministro contra a vontade do seu
soberano. Que temeridade a de um súdito que, sem ordem do rei e até contra a
sua vontade, se metesse a administrar os domínios da coroa, a julgar causas, a
comandar o exército, numa palavra a exercer as funções de vice-rei! É de São Bernardo esta reflexão. Segundo São
Próspero não são outras as funções dos padres senão serem dispenseiros na casa
de Deus; chefes do rebanho de Jesus
Cristo, os chama Santo Ambrósio; intérpretes da lei divina, os apelida São
Dionísio. No dizer do autor da Obras imperfeita, são os vigários de Jesus
Cristo. À vista disto, quem teria ainda a audácia de se fazer ministro de Deus,
sem a isso ser chamado?
Num reino, diz São Pedro Crisólogo, só o pensamento de usurpar a autoridade
suprema é um crime da parte do súdito. Até na casa dum particular, ninguém se
atreveria a entrar lá, para dispor dos seus bens e administrar os seus
negócios; porque é ao dono que cabe o
direito de escolher e estabelecer os gerentes dos seus negócios. E vós, diz São
Bernardo, sem serdes chamados por Deus, quereis entrar na sua casa, para
lançardes mão dos seus interesses e dispordes dos seus bens? Eis a razão por que o Concílio de Trento
declarou que a Igreja não olha como seu ministro, mas como ladrão, quem ousa
ingerir-se sem vocação nas funções eclesiásticas. Poderá esse padre dar-se a
muitas fadigas, mas os seus trabalhos pouco lhe aproveitarão diante de Deus; mais ainda, as obras que para os outros são
meritórias, para ele se tornarão demeritórias.
Imaginais que um servo recebeu ordem do seu senhor para lhe guardar a casa, e
ele por seu arbítrio preferiu ir cavar a vinha; debalde se fatigará e suará, em vez de
recompensa, deve antes esperar castigo. Tal é a sorte dos que, sem vocação,
invadem o santuário: em primeiro lugar,
não aceitará o Senhor os meus trabalhos, porque os empreenderam sem o seu
beneplácito. Não está em vós a minha vontade, diz o Senhor dos exércitos, e não
receberei as dádivas das vossas mãos; e
depois, em vez de recompensa, terão castigo: Todo o estrangeiro que se aproximar (do
tabernáculo) será condenado à morte.
Aquele pois que aspira a Ordens sacras, deve antes de tudo examinar bem, diz
São João Crisóstomo, se é Deus quem o chama a tão alta dignidade. Ora, para se
conhecer se a vocação vem de Deus, é necessário examinar os sinais dela.
Escutemos a advertência que nos faz o Senhor: Quando se quer edificar uma torre, começa-se
por fazer o orçamento, para se ver se não faltam os recursos necessários para
levar a obra ao fim.
§ 2º Sinais da vocação divina ao
sacerdócio
Eis agora quais são os sinais da vocação divina para o sacerdócio. Não é a
nobreza de nascimento. Segundo São Jerônimo, quando se trata de escolher um
chefe que dirija os povos pelo caminho da salvação eterna, não se deve
considerar a nobreza do sangue, mas a santidade da vida. São Gregório emprega a
mesma linguagem..
De nenhum modo deve a influência dos pais impelir os filhos para o sacerdócio,
com a mira apenas nos interesses e vantagens da própria família, e não com os
olhos no bem das suas almas. Esses pensam na vida presente, diz o autor da Obra
imperfeita, e esquecem a eternidade que se há de seguir. Persuadamo-nos de que,
no que respeita à escolha de estado, conforme a palavra de Jesus Cristo, são os
próprios pais os inimigos mais temíveis: Cada um terá por inimigos os da sua casa. A
isto ajunta: Quem ama o seu pai ou a sua
mãe mais do que a mim, não é digno de mim. Ó! quantos padres se verão condenados no dia do
juízo por terem recebido as santas Ordens, para fazerem a vontade a seus pais!
Não se compreende! Se um jovem, movido
por uma vocação divina, quer entrar em religião, - que não fazem então os pais,
por paixão ou por interesse da família, para o afastarem dum estado a que Deus
o chama! Entenda-se bem, um tal
procedimento, como ensinam em comum todos os doutores, não pode escusar-se de
pecado mortal; leia-se o que escrevemos
na nossa Teologia moral. Neste caso, os pais tornam-se duplamente culpados: 1º., pecam contra a caridade, pelo grande mal
que causam àquele a quem Deus chama, pois comete uma falta grave qualquer
pessoa, embora estranha, que afasta alguém da vocação religiosa; 2º., pecam contra o amor paternal, porque os
pais que têm a seu cargo a educação de seus filhos, estão obrigados a
procurar-lhes a maior vantagem espiritual.
Há confessores ignorantes que, - aos seus penitentes que querem abraçar o
estado religioso, - insinuam que devem nisso obedecer a seus pais, e renunciar
à sua vocação, se eles se opuserem a ela. É seguir a doutrina de Lutero que
dizia que os filhos pecam, quando entram em religião sem o consentimento de
seus pais. Tal doutrina é contradita por todos os Santos Padres e pelo Concílio
10 de Toledo, onde se decidiu que é permitido aos filhos, passados os catorze
anos, fazerem-se religiosos, mesmo contra a vontade de seus pais. (Veja-se o
Novo Código de Direito Canônico, cânon 555 e 573.)
Sem dúvida, são os filhos obrigados a obedecer a seus pais. em tudo quanto
respeita à educação e o governo da casa; mas, quanto à escolha de estado, devem
obedecer a Deus, e escolher o estado a que ele os chamar. Quando os pais
quiserem fazer-se obedecer também nesse ponto, devem os filhos responder-lhes o
mesmo que os apóstolos responderam aos príncipes dos judeus: Vós próprios julgai se é justo, aos olhos de
Deus, obedecer antes a vós do que a Deus.
Ensina expressamente Santo Tomás que na escolha dum estado, não estão os filhos
obrigados a obedecer a seus pais e ajunta que, quando se trata da vocação
religiosa, os filhos nem mesmo estão obrigados a tomar conselho com os pais,
que, ao verem feridos os seus interesses, são antes inimigos do que pais. Como
diz São Bernardo, antes querem ver os filhos condenar-se com eles, do que
permitir-lhes que se salvem sem eles.
Pelo contrário, se vêem que um filho, fazendo-se padre, pode ser útil à
família, que esforços não fazem então para que se ordene, a torto ou a direito,
embora não seja chamado por Deus! E que
gritos, que ameaças se o filho, sensível aos remorsos da própria consciência,
recusa receber as santas Ordens! Pais
bárbaros, e antes homicidas do que pais, vos chamamos com São Bernardo! Mais uma vez, desgraçados pais e desgraçados
filhos! Quantos não havemos de ver no
Vale de Josafat que serão condenados por causa da vocação, visto que a salvação
de cada um, como acima demonstramos, está dependente da fidelidade em seguir a
vocação divina!
Voltemos ao assunto. Não se devem pois olhar, como sinais de vocação ao
sacerdócio, nem a nobreza de sangue, nem a vontade dos pais, nem mesmo os
talentos e aptidões que possa haver para as funções sacerdotais; porque além dos talentos convenientes, é
necessária uma vida boa, unida à vocação divina.
Quais os verdadeiros sinais pelos quais se pode reconhecer que se é chamado por
Deus ao estado eclesiástico? Eis os três
principais.
1º. A reta intenção
O primeiro é uma reta intenção. É necessário entrar no santuário pela porta,
que é o próprio Jesus Cristo: Sou Eu a
porta do aprisco... Quem entrar por mim, salvar-se-á. Não está pois a entrada
legítima para o santuário, no desejo de comprazer com os pais, ou de
engrandecer a família, nem no interesse ou amor próprio; mas somente na intenção de servir a Deus,
trabalhando na sua glória e salvação das almas, como o sábio continuador de
Tournely muito bem o diz. Se sois conduzido pela ambição, interesse ou gosto
das honras, diz um outro teólogo, não é Deus que vos chama, é o demônio. E quem
se apresenta à ordenação com disposições tão indignas, ajunta Santo Anselmo,
receberá a maldição de Deus, e não a sua bênção.
2º. A ciência e os talentos
O segundo sinal da vocação é a ciência e capacidade necessária, para
desempenhar convenientemente as funções sacerdotais. Devem os padres ser os
doutores, que ensinem a lei de Deus aos povos: Porque os lábios do sacerdote devem ser os
guardas da ciência, e da sua boca receberão os outros a lei. Dizia Sidônio
Apolinário que os médicos pouco instruídos muitas vezes matam os doentes, em
vez de os curarem. Um padre ignorante, sobretudo se é confessor, ensinará
falsas doutrinas, dará maus conselhos, e assim causará a ruína de muitas almas;
porque facilmente se dará crédito às
suas palavras, em razão de ser padre. Era o que fazia dizer a Yves de Chartres
que a admissão às santas Ordens, além duma boa conduta, exige uma instrução
suficiente.
Conhecidas todas as rubricas do Missal, para bem celebrar a santa Missa, todo o
padre está ainda obrigado a saber as coisas principais relativas ao sacramento
da Penitência. Como noutra parte fica dito, nem todo o padre é obrigado a ser
confessor, a não ser que as necessidades instantes, do país em que habita,
reclamem o seu ministério; todavia até o
simples sacerdote está obrigado a conhecer ao menos o que se deve saber em
geral, para ouvir as confissões dos moribundos, isto é: em que casos há faculdade para os absolver; quando e como se deve dar a absolvição ao
enfermo, sob condição ou em absoluto; qual
a obrigação que se lhe deve impor, se estiver incurso nalguma censura. Deve
também o simples sacerdote conhecer ao menos os princípios gerais da moral.
3º. Bondade positiva de vida
O terceiro sinal de vocação, para o estado eclesiástico, é a bondade positiva
de vida.
Primeiro que tudo, deve o ordinando ter uma vida inocente, não manchada de
pecados. O Apóstolo exige que aquele que aspira ao sacerdócio seja
irrepreensível, conforme o escrevia ao seu discípulo Tito. Nos primeiros
séculos da Igreja, quem tivesse cometido um só pecado mortal não podia ser
ordenado; prova-o uma decisão do 1º.
Concílio de Nicéia. Segundo São Jerônimo, para ser admitido ao sacerdócio, não
bastava estar sem pecado ao tempo da ordenação, era necessário não ter cometido
nenhuma falta grave depois do batismo. Verdade é que depois a disciplina a
disciplina da Igreja cessou de ser tão rigorosa; mas dos aspirantes a Ordens sacras sempre tem
exigido ao menos que, depois das suas quedas graves, tenham conservado a sua
consciência bem purificada, durante um período considerável de tempo.
É o que vemos numa carta de Alexandre 3º ao arcebispo de Reims, a propósito dum
diácono que tinha ferido outro diácono: o Papa decidiu que, se o culpado estava
verdadeiramente arrependido do seu crime, depois de recebida a absolvição e
cumprida a penitência, que lhe fosse imposta, poderia ser reintegrado nas
funções da sua Ordem, e até, se depois desse exemplo duma vida perfeita, lhe
poderia ser conferido o sacerdócio. Se haveis pois contraído algum mau hábito,
e ainda não o arrancastes, não vos atrevais a receber nenhuma Ordem sacra.
Seria uma falta grave, que causava horror a São Bernardo: É necessário ao menos, dizia ele, que ponhais
em regra a vossa consciência, antes de vos ocupardes da consciência dos outros.
Um autor antigo, Gildas o Sábio, falando dos que cheios de maus hábitos têm a
temeridade de assaltar o sacerdócio, diz que eles mereciam antes ser expostos
no pelourinho.
Devemos concluir pois com Santo Isidoro: recusem-se por completo as Ordens sacras a
quem quer que ainda seja escravo de algum mau hábito.
Quando se aspira à honra de subir ao altar, não basta que se esteja isento de
pecado, é preciso ter bondade positiva, isto é, caminhar na via da perfeição,
possuir já algum hábito de virtude. Na nossa Teologia moral demonstramos
suficientemente, pelo sentir comum dos doutores, que quem tem vivido no hábito
de algum vício, e quer ser promovido a uma Ordem sacra, deve estar disposto
para receber, não só o sacramento da Penitência, mas também o da Ordem; de contrário, não estará disposto nem para um,
nem para outro; e cometerá falta grave,
tanto o ordinando que receber a absolvição com a intenção de entrar nas Ordens
sacras, sem as disposições requeridas, como o confessor que o absolver.
A razão é que, a quem deseja receber as ordens, não lhe basta ter saído do
estado de pecado; é-lhe necessária,
repetimos, a bondade positiva, indispensável para o estado eclesiástico,
conforme o texto de Alexandre 3º, acima citado: Si perfectae vitae et conversationis fuerit.
A decisão deste Pontífice prova-nos que a penitência basta para exercer uma
Ordem já recebida, mas não para ser promovido a uma Ordem superior; é precisamente o que ensina o Doutor Angélico.
Doutrina conforme com a que São Dionísio tinha já estabelecido: Nas coisas divinas, não deve o primeiro
adventício atrever-se a tomar a dianteira aos outros; é necessário para isso ter dado provas duma
conduta muito correta e ser muito semelhante a Deus. Santo Tomás dá duas
razões: a 1ª é que o que recebe as
santas Ordens deve elevar-se acima dos simples fiéis pela santidade, na mesma
proporção em que os excede pela dignidade do seu ministério.
"Para desempenhar dignamente as funções das santas Ordens, diz ele, não
basta qualquer bondade, é necessária uma bondade excelente, de modo que os
ministros sagrados sejam tão superiores ao povo pela sua santidade, como pela
Ordem que receberam; ora, para receber
as Ordens, requere-se uma graça que torne o ordinando apto para aparecer com
honra no rebanho de Jesus Cristo".
A 2ª razão é que na ordenação recebe-se a missão de exercer ao altar as mais
altas funções, para as quais se exige maior santidade do que para o estado
religioso. Por isso o Apóstolo, proibiu que se ordenassem os neófitos, isto é,
segundo a explicação de Santo Tomás, os que ainda não deram provas de
constância na prática das virtudes.
Eis a razão porque o Concílio de Trento, fazendo alusão às palavras da
Escritura - A velhice é uma vida sem mancha - manda aos bispos que não admitam
à ordenação, senão os que se mostrarem digno dela por uma virtude madura.
E é necessário, diz Santo Tomás, que esta bondade positiva dos ordinandos seja
conhecida. Recomenda São Gregório esta precaução, sobretudo no que respeita à
virtude da castidade. Exige neste ponto uma prova de muitos anos.
À vista disto, medite-se nas contas que hão de dar a Deus muitos párocos que
nos seus certificados atestam, que os ordinandos têm frequentado os sacramentos
e são de bons costumes, sabendo que eles nem frequentam os sacramentos, nem dão
bom exemplo, antes causam escândalo! Com
atestados tais, passados, não por caridade, como dizem, mas contra a caridade
devida a Deus e à Igreja, esses párocos tornam-se responsáveis por todos os
pecados que de futuro hão de cometer esses seus paroquianos indignos; porque os Bispos fazem juízo pelos
certificados dos párocos, e são assim induzidos a erro. Para passar os
certificados de que vimos falando, não deve o pároco proceder ao de leve em
colher informações; deve ter certeza do
que atesta, deve saber positivamente que o clérigo tem um comportamento
exemplar e freqüenta os sacramentos.
Quanto aos confessores dos ordinandos, assim como o Bispo não pode ordenar um
súdito, cuja castidade ainda não esteja bem provada, também o confessor não
pode permitir que um penitente seu, que vive na incontinência, se apresente à
ordenação, se não estiver moralmente certo de que tal ordinando já se libertara
do mau hábito antigo, e adquirira o hábito da virtude da castidade.
§ 3º Ao que se expõe quem entra
nas ordens sem vocação
Do que levamos dito resulta que não se poderia escusar de falta grave quem
entrasse nas Ordens, sem consciência de possuir os sinais da vocação divina. É
o sentir dum grande número de teólogos, tais como Habert, Natal Alexandre,
Juenino, e o Continuador de Tournely; e
é o que antes deles claramente ensinou Santo Agostinho quando ao falar do
castigo infligido pelo Senhor a Coré, Datan e Abiron, - que se haviam ingerido
nas funções sacerdotais, sem a elas serem chamados, - afirma que esse exemplo é
uma advertência para os que sem vocação aspiram às Ordens sacras. A razão é que
se taxa de presunção grave e indesculpável entrar no santuário sem a isso ser
chamado por Deus, e o réu de tal culpa fica depois privado das graças de estado
e dos socorros oportunos, sem os quais se pode, falando em absoluto,
desempenhar as próprias obrigações, mas não sem muita dificuldade, conforme
nota Habert. Será como um membro deslocado, que não poderá obrar sem dor e sem
dificuldade.
Nesse caso pois, fica-se grandemente exposto ao perigo de perder a alma,
porque, diz o bispo Abely, é um dos pecados contra o Espírito Santo, pecado de
perdão muito difícil, conforme o testemunho do Evangelho.
Declara o Senhor que se sente indignado contra os que querem reinar na Igreja,
sem a isso serem chamados. Reinam por sua própria autoridade, e não por escolha
do soberano Senhor do mundo; sem nenhum
apelo divino, antes somente por impulso da sua cobiça; não obtém o governo das almas, usurpam-no. Que
esforços, que tentativas, que súplicas, que meios não empregam certos sujeitos
para se fazerem ordenar, sem vocação, e só com vistas mundanas! Desgraçados que se aventuram a tais empresas,
contra a minha vontade, diz o Senhor pela boca de Isaías! Pedirão no dia do juízo uma recompensa, mas
Jesus Cristo os repelirá para longe de si: Muitos me dirão naquele dia: Senhor, Senhor, não profetizamos nós (quer
dizer, não pregamos e ensinamos) em
vosso nome, e não expulsamos o demônio em vosso nome, (dando a absolvição) e não fizemos em vosso nome muitos milagres.
corrigindo, acalmando discórdias, reconduzindo os pecadores ao bom
caminho?) E Eu lhes responderei: Nunca vos conheci; retirai-vos de mim, obreiros da iniqüidade. Os
padres sem vocação são de fato agentes e ministros de Deus, porque receberam o
caráter sacerdotal; mas são ministros de
iniquidade e rapina, visto que por si mesmos e sem serem chamados invadiram o
aprisco.
Não receberam as chaves, diz São Bernardo, roubaram-nas. Muito embora
trabalhem, não lhes recompensará o Senhor os seus suores, antes os punirá por
não terem entrado no santuário pelo caminho direito. Não recebe a Igreja, diz
São Leão, senão os que o Senhor escolhe e torna dignos, pela sua escolha, de
serem seus ministros. Repele os que Deus não chamou, porque vêem antes para
trabalhar na ruína da mesma Igreja, do que em proveito dela, e, longe de a
edificarem, são a sua desolação e opróbrio, como diz São Pedro Damião.
Hão de aproximar-se de Deus os que ele tiver escolhido. O Senhor há de acolher
os que tiver chamado ao Sacerdócio; logo
os que não escolheu serão rejeitados. Assim Santo Efrém olha como condenado o
que teve a audácia de se fazer padre sem vocação: "Estou espantado, diz ele, da audácia de
certos insensatos, que assaltam como à força as funções sacerdotais, sem
pensarem, desgraçados, nem na morte, nem nos fogos eternos em que se
lançam!" Pedro de Blois exprime quase o mesmo pensamento nestas palavras: "Como é para lamentar o que muda o
sacrifício em sacrilégio, e a vida em morte!" Quem se engana na sua
vocação corre muito maior perigo de se condenar, do que quem transgride os
preceitos particulares; porque este pode
erguer-se da sua queda e retomar o bom caminho, ao passo que aquele segue um
caminho errado, pelo qual se afasta cada vez mais da pátria, à medida que
adianta.
Pode aplicar-se-lhe o dito de Santo Agostinho: "Corres muito, mas por fora do
caminho".
Estejamos pois persuadidos do que dizia São Gregório, - que a nossa salvação
eterna depende principalmente da nossa docilidade em abraçarmos o estado a que
o Senhor nos chama. A razão é evidente: na ordem da sua providência, é Deus que
assinala a cada um de nós o seu estado de vida, e nos prepara as graças e
socorros próprios do estado a que nos chama; e tal é o pensamento de São Cipriano. O
Espírito Santo distribui as suas graças segundo a ordem por ele próprio
estabelecida, e não ao nosso gosto. E esta ordem é, para cada um de nós, a
ordem da predestinação, como o Apóstolo nos dá a entender nestas palavras: Os que escolheu, chamou-os, e os que chamou,
justificou-os, e os que justificou, também os glorificou. Assim, depois da
vocação, vem a justificação e depois da justificação, a glorificação, isto é, a
consecução da vida eterna; por
conseqüência quem não obedece à vocação divina, nem será justificado nem
glorificado.
O frei Luís de Granada tinha pois razão para dizer que a vocação é a mola real
de toda a vida: assim como um relógio
pára, desde que a roda principal se desarranja, do mesmo modo, diz São Gregório
de Nazianzo, desde que nos desviamos da nossa vocação, toda a nossa vida
caminha de erro em erro; porque fora do
estado, a que Deus nos chama, nos faltam os socorros de que necessitamos para
bem obrar.
Cada um recebeu de Deus um dom que lhe é próprio: uns num sentido, outros noutro. Segundo os
intérpretes, esta sentença do Apóstolo quer dizer - que Deus dá a cada um as
graças necessárias para cumprir as obrigações do estado a que o chama, como
ensina Santo Tomás, apoiando-se nas palavras de São Paulo: Fez-nos idôneos para sermos os ministros do
Novo Testamento. Donde se segue que aquele mesmo que é apto para desempenhar as
funções a que Deus o chama, é inapto para outras a que não o chama. Assim o pé,
que é destinado a caminhar, com certeza é incapaz de ver; e o olho que é dado para ver não pode
aplicar-se a ouvir. Como poderá pois desempenhar-se das funções sacerdotais
aquele que Deus não destinou ao sacerdócio?
É o Senhor quem escolhe os obreiros que hão de trabalhar na sua vinha: Eu vos escolhi e estabeleci para que vades
pelo mundo e façais fruto. Por isso mesmo não diz o divino Redentor: Pedi aos homens que trabalhem na seara; - mas: Pedi ao Senhor que mande obreiros E acrescenta
noutra parte: Conforme meu Pai me
enviou, assim eu vos envio. Ora, quando Deus chama alguém a um cargo, dá-lhe
todos os socorros necessários. O Autor da minha elevação, diz São Leão, há de vir
em meu auxílio, no governo dos interesses que me confiou; tendo-me imposto o encargo, há dar-me a força
para o levar dignamente. É o que o próprio Jesus Cristo declara nestes termos: Sou Eu a porta. Quem entrar por mim será salvo;
entrará, e sairá, e encontrará o seu
sustento. O que pode explicar-se assim: Entrará: Tudo quanto empreender o sacerdote chamado por
Deus, há de levá-lo a cabo sem pecado, e até com merecimento.
E ele sairá: Há de encontrar-se em
ocasiões e perigos, mas com o auxílio do Céu sairá são e salvo. E há de
encontrar o seu sustento: Finalmente, em
todas as funções do seu ministério, há de ver-se assistido de graças especiais,
que o farão caminhar a passos largos no caminho da perfeição; e isso por se encontrar no estado em que o
Senhor o colocou. Poderá assim dizer com confiança que está sob a direção de
Deus e na abundância de todos os bens.
Pelo contrário, os padres que não foram enviados por Deus, para trabalharem na
sua Igreja, hão de ver-se abandonados dele e condenados a um opróbrio eterno, a
desgraças sem fim, como ele o declara pela boca de Jeremias: Eu não enviava estes profetas e eles corriam
por si mesmos. Por isso vos tomarei para levar-vos e vos abandonarei longe de
mim... e vos entregarei a um opróbrios sempiterno e a uma eterna ignomínia, que
jamais será apagada pelo esquecimento.
Somente pelo poder de Deus, diz Santo Tomás, pode um homem ser elevado à altura
do sacerdócio, por isso que está constituído santificador dos povos e vigário
de Jesus Cristo. A quem pretende elevar-se por si mesmo a uma dignidade
sublime, há de acontecer-lhe o que diz o Sábio: Depois do louco se ter elevado a uma grande
altura, há de ser posta a descoberto a sua loucura no dia do juízo. Se ele
tivesse ficado no mundo, teria sido talvez um leigo virtuoso: mas, tendo-se feito padre sem vocação, será um
mau padre, e, em vez de se tornar útil à Igreja, será para ela um verdadeiro
flagelo. É o que diz o Catecismo Romano, ao falar de tais padres: "Nenhuma desgraça maior que o destes
padres, e nada mais funesto à Igreja de Deus". Que bem poderiam eles fazer
à Igreja, tendo entrado nela sem vocação? É muito difícil, diz São Leão, que um começo
tão mau seja seguido dum bom fim.
São Lourenço Justiniano emprega a mesma linguagem: "Que fruto poderá produzir uma raiz
contaminada?" E o divino Mestre afirma que não só o fruto será rejeitado,
mas até a planta será arrancada. Também, segundo Pedro de Blois, quando o
Senhor permite que alguém chegue ao sacerdócio, sem a ele ser chamado, não
significa isso uma graça, mas um castigo; porque uma árvore que não está bem arraigada,
e se encontra exposta ao vento, em breve cairá e será depois lançada ao fogo.
Para ele próprio pois é uma desgraça, mas também o é para os outros, como nota
São Bernardo; porque aquele que não
entrou legitimamente no santuário, continuará a caminhar pelas vias da
infidelidade e, em vez de procurar a salvação das almas, será antes para elas
uma causa de perdição e morte. É o que ensina a sentença de Jesus Cristo: O que não entra pela porta... é um bandido e
um ladrão. O ladrão só vem para roubar, e matar, e fazer perecer.
Mas, dir-se-á, se somente se admitirem às santas Ordens os que reunirem todos
os sinais de vocação, de que acabais de falar e exigis, poucos padres haverá na
Igreja, e faltarão os socorros aos fiéis. - O 4º Concílio de Latrão já
respondeu a esta objeção, dizendo que é preferível haver poucos padres bons,
que muitos maus. Por outro lado, conforme nota Santo Tomás, nunca Deus
desampara a sua Igreja de modo que a deixe desprovida de ministros dignos,
necessários parar obviar às necessidades dos povos. E se alguém quisesse
dirigir os povos, mediante ministros indignos, seria isso, diz com razão São
Leão, querer antes a sua ruína que a sua salvação.
Que tem pois a fazer um padre que entrou nas Ordens sem vocação? Há de ter-se como um condenado e entregar-se
ao desespero? - Não, por certo. São
Gregório faz a si próprio esta pergunta: Sacerdos sum non vocatus; quid faciendum? E responde: Ingemiscendum. Eis o que deve fazer este
padre, se quiser salvar-se: procure à
força de lágrimas aplacar o Senhor, para obter da sua misericórdia o perdão do
crime que cometera, introduzindo-se no santuário sem vocação. - Conforme a
exortação de São Bernardo, que se esforce por passar, ao menos de futuro, a
vida santa de que devia ter feito preceder a sua elevação ao sacerdócio. E para
isso, ajunta o Santo, necessário é que mude de costumes, de companhias e de
sentimentos.
Se é ignorante, aplique-se ao estudo; se
tem vivido na dissipação, nas intimidades e divertimentos do mundo, renuncie a
tudo isso, e de futuro consagre o seu tempo à oração, às leituras espirituais e
à visita das igrejas. Não se consegue isto sem violência. Como acima dissemos,
a entrada no sacerdócio sem vocação é semelhante a um membro do corpo humano,
que saiu para fora do seu lugar próprio. Por isso a salvação de tais sacerdotes
não pode operar-se senão à custa de muitos esforços e penas.
Fica demonstrado que quem se ordena sem ser chamado, priva-se dos socorros
necessários para cumprir as obrigações do sacerdócio: como poderá então desempenhá-las? Que fará? Que ore, diz Habert e o Continuador de
Tournely. Por suas preces obterá o que de nenhum modo merece; porque, dizem eles, Deus concede então por
misericórdia ao homem os socorros que, de certo modo, deve por justiça aos que
são legitimamente chamados. Está isto de acordo com o que ensina o Concílio de
Trento: Deus não manda impossíveis; mas preceituando, adverte-nos que façamos o
que pudermos, e peçamos o que não pudermos; e ajuda-nos para que possamos.
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