quarta-feira, 30 de agosto de 2017

A SELVA POR SANTO AFONSO MARIA DE LIGÓRIO


A SELVA POR SANTO AFONSO MARIA DE LIGÓRIO
TRADUÇÃO de Padre MARINHO

PREFÁCIO

 Há uns vinte anos que nos vimos dedicando principalmente à formação eclesiástica, para a qual temos publicado alguns opúsculos, a que a tradução da Selva vem agora por o remate. Em conseqüência da revolução de cinco de outubro de 1910, tivemos de emigrar em maio de 1911 e só regressamos a 27 de fevereiro de 1912. Assim a Providência nos deparou ensejo de preparar lá fora as Considerações Íntimas, que logo ao regressar cuidamos de fazer imprimir. Escrevíamos então no prefácio:

 "Diante dos montões de ruínas, que ora se deparam a nossos olhos, devemos confessar que não sentimos a menor tentação de desânimo, antes que cada vez mais nos firmamos na convicção de que a Providência nos reserva enormes bens, sob a perspectiva dolorosa de grandes males. Estava a cair de carunchoso o edifício da sociedade portuguesa, e tinha-se aluido com a conivência, por vezes escandalosa, daqueles que mais deviam trabalhar pela sua conservação. Sem dúvida, foi por isso mesmo que ele caiu quase sem ruído: mal se lhe sentiu o baque final, e, após um momento de surpresa, ouviu-se o ressoar de muitas palmas, -- não poucas de príncipes da Igreja. Era a condenação do passado, o entusiasmo pelo presente e a esperança no futuro? Fosse o que fosse, não vem para aqui dizê-lo, porque a índole desta obra o não permite. O que agora importa é delinear o novo edifício e assentar-lhe sólidos alicerces: eis o assunto que aqui tratamos.

 Três são, nas circunstâncias atuais, os apostolados a que os católicos portugueses se devem consagrar de alma e coração: 1º., a formação e disciplina do clero;  2º., o ensino do catecismo;  3º., o desenvolvimento e boa orientação da imprensa.

 A primeira, a maior e a mais meritória de todas as obras sociais é a formação de bons sacerdotes. A ela pois, mais que a nenhuma outra, devemos dedicar os nossos esforços. Quanto a nós, de boa vontade lhe prestamos a nossa humilde cooperação. Anima-nos a convicção profunda de que é esta, em especial, a tarefa que nos incumbe na hora presente...

 Damos graças a Deus por vermos confirmado o vago pressentimento, com que então encarávamos o futuro: o vendaval passou, nas ruínas do velho edifício ficou sepultada a simonia, e todos os príncipes da Igreja se acham hoje compenetrados da sua alta missão. Há muito a fazer, mas a orientação está traçada e é segura: os fiéis com os bispos, os bispos com o Papa. A grande obra será sempre a formação de bom clero;  e nela todos podem e devem cooperar, ao menos pela oração. Conforme se verá no prefácio seguinte, do tradutor francês, a Selva é o livro clássico da formação e santificação do clero. A nosso ver, se há livro que deva ser obrigatório para um ordinando, está este em primeiro lugar;  por isso o apresentamos em português, ao darmos por terminada a nossa missão de diretor espiritual interino, do Seminário do Porto.

 Foz do Douro, 13/10/1928. Padre Marinho

 PREFÁCIO DO TRADUTOR FRANCÊS

 Mês de Maria de 1869.

 Começamos a série das obras destinadas especialmente ao clero. A que vem agora, em primeiro lugar, apareceu em 1760, depois da Verdadeira Esposa de Jesus Cristo, quando o santo Autor tinha atingido a idade de sessenta e quatro anos. É o fruto das suas investigações e estudos, de cerca de quarenta anos, tanto para regular a sua própria conduta, como para dirigir os retiros eclesiásticos, que pregou pela primeira vez ao clero de Nápoles, por ordem do arcebispo, em 1732, quando apenas contava seis anos de sacerdócio. Era já olhado como um modelo e um mestre, para ser encarregado de formar outros ministros do santuário, em todos os degraus.

 Foi este livro um dos que obteve maior êxito, o que nos dá uma alta idéia dos frutos produzidos. Em breve apareceu traduzido nas principais línguas da Europa. Conhecemos pelo menos cinco traduções francesas;  entre elas avulta pelo seu mérito a de Mgr. Gaume, de que muitas vezes nos temos aproveitado.

 Na sua Advertência, previne-nos o Autor de que não se preocupou com a ligação das idéias próprias de cada assunto;  ver-se há contudo que não falta ali a ordem conveniente. Para a salientar quanto possível, segundo o nosso método ordinário, dividimos cada assunto em diversos parágrafos. Graças a esta disposição, não só se tornará mais fácil apreender e reter as matérias, mas até se poderá utilizar o livro tanto para meditação, como para leitura espiritual.

 Aqui dum modo muito particular, convém recordar o que noutro lugar já dissemos: é que todas as citações de autores, notadas à margem, foram cuidadosamente verificadas, e por vezes corrigidas. Santo Afonso nem sempre pôde recorrer às fontes;  teve de se contentar muitas vezes com o que lhe ofereciam os autores que tinha à mão, e que se limitavam a reproduzir as inexatidões dos seus predecessores, aumentadas com os copistas e tipógrafos. Daí a necessidade de rever os textos originais, para tornar exatas as citações. Foi um grande trabalho, sobretudo numa obra como esta;  mas, graças às investigações do Reverendo Padre de Fooz, conseguimos fazer um bom número de correções importantes.

 Quanto ao valor e utilidade desta Compilação, de bom grado citamos a seguinte passagem de Mgr. Gaume:

 "Tendes lido Massillon, Sevoy, o Espelho do clero;  que tendes vós? Três autoridades sem dúvida muito respeitáveis;  mas enfim são autoridades particulares, e a vossa razão tantas vezes iludida com autoridades deste gênero e com nomes próprios, hesita, desconfia, e, usando do seu direito, julga, aceita, rejeita, e não se eleva acima de uma fé filosófica. Úteis em todos os tempos, estas obras, monumentos de eloquência ou de piedade, são hoje insuficientes: às amplas expansões do erro, era preciso opor o desenvolvimento análogo da verdade;  à invasão do espírito particular, a imposição autorizada do espírito católico. Lede a Selva e dizei se é possível atingir este fim: não é o pensamento dum homem que aqui vos é dado, como regra do vosso, é o pensamento dos séculos;  não é o do bispo de Santa Ágatha;  é a tradição inteira que prega, que instrui, que proíbe, que manda, que reanima, que espanta.

 "É este livro como uma tribuna sagrada do alto da qual falam por sua vez os Profetas, os Apóstolos, os homens apostólicos, os mártires, os solitários, os pontífices mais ilustres do Oriente e do Ocidente, os doutores mais afamados, os mestres mais hábeis na ciência dos santos, os sucessores de Pedro e os concílios, os órgãos do Espírito Santo, numa palavra, a antigüidade, a idade média, os tempos modernos da Igreja inteira.

 "No meio desta augusta assembléia, que faz o santo Bispo? Quase sempre se limita ao modesto papel de relator;  muitas vezes deixa ao vosso cuidado deduzirdes as conclusões. Nada de longos raciocínios, induções, interpretações particulares. Está nisso o mérito próprio e o caráter providencial da Selva: mais que noutra qualquer época o mundo, e o clero que deve salvar o mundo, tinham necessidade do pensamento católico, e o Santo dá-lho puro e íntegro;  teve receito de o enfraquecer, misturando-lhe o seu.

 "O resultado para o livro é torná-lo mais imponente. Não há margem para discussões: que poderá de fato alegar contra este concerto unânime a razão do leitor, colocada dum extremo a outro na alternativa, ou de subscrever a tudo para permanecer católica, ou de se isolar, de se suicidar no isolamento? Poderia a lógica com todo o seu rigor ter levado o pensamento até este ponto?

 "Mas que força dá ao clero esta vasta revelação dos seus deveres! Viva muito embora o padre no meio da indiferença e da incredulidade, persuadalhe o mundo corrompido e relaxação, façam coro secreto com as máximas do mundo as suas próprias paixões, cúmplices de todos os erros, -- não lhe é possível descer das alturas da santidade, em que a sua vocação o fixou e permanecer surdo a esta voz imperiosa dos séculos: "Sê santo!"

 Assim fala Mgr. Gaume, e há de reconhecer-se que de fato é tal a força do livro, força igualada pela unção que a acompanha, como nas outras obras do Autor, e ambas apoiadas pelo exemplo da sua vida. Até certo ponto se pode dizer dele como do divino Mestre: Coepit facere, et docere. Eis as regras de vida que ele se traçou, desde a sua entrada para as Santa Ordens, quando permanecia no seio da sua família, depois de recebido o hábito eclesiástico e a prima tonsura:

 1º. Freqüentar sempre santos sacerdotes, para me edificar com seus exemplos.

 2º. Fazer todos os dias pelo menos uma hora de oração mental, para alimentar o recolhimento e o fervor.

 3º. Visitar assiduamente o Santíssimo Sacramento, sobretudo nos templos onde estiver exposto.

 4º. Ler a vida dos santos eclesiásticos, para neles encontrar modelos a imitar.

 5º. Ter uma devoção especial à santíssima Virgem, Mãe e Rainha do clero, e devotar-me particularmente ao seu serviço.

 6º. Honrar o estado eclesiástico, e por isso nada fazer que possa acarretar a mais ligeira mancha à sua reputação.

 7º. Ser sempre respeitoso para com as pessoas do mundo, sem as freqüentar;  não me familiarizar com os seculares, sobretudo com as pessoas do outro sexo.

 8º. Ver a vontade de Deus nas ordens dos superiores e obedecer-lhes como ao próprio Deus.

 9º. Trazer o hábito eclesiástico e a tonsura clerical;  mostrar-me sempre modesto, sem afetação, singularidade ou pretensão.

 10º. Viver em paz no seio da família;  estar atento às lições do professor na aula;  ser exemplar no templo, sobretudo no desempenho dalguma função.

 11º. Confessar-me ao menos de oito em oito dias e comungar ainda mais vezes.

 12º. Afastar-me de todo o mal, e exercitar-me na prática de todo o bem. O jovem levita, que já se tinha feito admirar noutra carreira, ( na de advogado )  edificou toda a cidade de Nápoles pelo seu fervor sempre crescente, subindo aos diversos degraus do sacerdócio;  e ao cabo de três anos duma preparação tão perfeita, foi julgado digno de ser elevado com dispensa ao Sacerdócio, em 21 de dezembro de 1726. Escreveu então as resoluções seguintes:

 1º. Sou sacerdote, a minha dignidade está acima da dos anjos;  deve ser pois a minha vida duma pureza angélica, para a qual sou obrigado a tender por todos os meios possíveis.

 2º. Um Deus digna-se obedecer à minha voz;  com melhoria de razão devo eu obedecer à sua, obedecer à graça e aos meus superiores.

 3º. A santa Igreja honrou-me;  é necessário que por minha vez eu a honre, com a santidade da minha vida, com o meu zelo, com os meus trabalhos etc.

 4º. Eu ofereço ao Padre eterno Jesus Cristo, seu Filho;  logo é do meu dever revestir-me das virtudes de Jesus Cristo, e tornar-me capaz de tratar o mais santo dos mistérios.

 5º. O povo cristão vê em mim um ministro de reconciliação, um mediador entre Deus e os homens;  logo é necessário que eu me conserve sempre na graça e amizade de Deus.

 6º. Querem os fiéis ver em mim um modelo das virtudes a que aspiram;  devo portanto edificá-los a todos e sempre.

 7º. Os pobres pecadores, que perderam a vida das graça, esperam de mim a sua ressurreição espiritual;  é necessário pois que eu trabalhe nela, pelas minhas orações, exemplos, palavras e conduta.

 8º. Preciso de coragem para triunfar do demônio, da carne, e do mundo;  logo devo corresponder à graça divina, para os combater vitoriosamente. 9. Preciso de ciência para me tornar capaz de defender a religião, combater o erro e a impiedade;  devo pois aproveitar-me de todos os meios possíveis para adquirir essa ciência.

 10º. O respeito humano e as amizades mundanas desonram o sacerdócio: logo devo ter-lhes horror.

 11º. Nos padres, a ambição e o espírito de interesse conduzem as mais das vezes à perda da fé;  devo pois abominar esses vícios como origens de reprovação.

 12º. Em mim a gravidade e a caridade devem ser inseparáveis: serei portanto prudente e reservado, principalmente a respeito das pessoas do outro sexo, sem ser altivo, grosseiro ou desdenhador.

 13º. Só posso agradar a Deus pelo recolhimento, fervor e virtudes sólidas, que o santo exercício da oração alimenta;  nada pois devo descurar para as adquirir.

 14º. Só devo procurar a glória de Deus, a minha santificação e a salvação do meu próximo;  a isso pois me devo dedicar, até com sacrifício da minha vida, se tanto for necessário.

 15º. Sou padre: o meu dever é inspirar a virtude, e glorificar a Jesus Cristo, Sacerdote eterno. Eis a aurora desse astro, que devia percorrer uma tão longa órbita e elevar-se a tão alta perfeição: Quasi lux splendens, procedit, et crescil usque ad perfectam diem! O nosso Santo é já reconhecido como um dos mais puros luminares, que Deus enviou para alumiar o mundo: Quasi sol refulgens, sic ille effulsit in templo Dei. Esperamos que um novo decreto, ajuntando ainda novo raio à sua glória, para bem do povo cristão, em breve o proclamará doutor da Igreja. Nesta expectativa, não deixaremos de nos aproveitar dos seus ensinamentos e de imitar as suas virtudes, para irmos um dia partilhar da sua eterna felicidade.

 Ao terminarmos este trabalho, cremos poder afirmar que a nenhum cuidado nos poupamos, para o tornar o mais útil possível aos nossos irmãos no sacerdócio, e aos jovens discípulos do santuário;  se tivermos a felicidade de contribuir para o bem espiritual de alguns, rogamos-lhes que se lembrem de nós, principalmente no santo altar, e prometemos retribuir-lhes na mesma moeda.

 VIVA JESUS, MARIA, JOSÉ E AFONSO!

 Advertência necessária a quem dá exercícios espirituais a sacerdotes

 Dá-se a este livro o título de Compilação de materiais, e não de discursos ou Exercícios espirituais, porque, embora se tenha tido o cuidado de reunir o que pertence propriamente a cada um dos assuntos propostos, não se lhe imprimiu a ordem que em regra exige um discurso sobre a matéria.

 Não se desenvolvem as idéias;  expõem-se sem coordenação e com brevidade;  mas é de propósito, para que o leitor escolha as autoridades, os ensinamentos e pensamentos, que mais lhe agradarem;  depois os ordene e desenvolva à sua vontade, compondo assim um discurso seu. A experiência de monstra que é difícil a um pregador exprimir com calor e energia idéias, de que primeiro se não tenha apropriado, escolhendo-as ao menos entre muitas outras, ou dando-lhes a ordem e desenvolvimento convenientes, na composição do seu discurso. Foi ainda nesse intuito que se citaram muitas passagens de diversos autores, a exprimirem o mesmo pensamento, para que o leitor escolha as que forem mais do seu gosto.

 Falamos assim, para que se compreenda o fim da obra. Vão agora alguns avisos, a que deve atender quem dá os exercícios espirituais a sacerdotes:

1º.

 Antes de tudo, que se proponha nos seus discursos um fim reto, que deve ser, não adquirir a reputação de sábio, de grande gênio, de homem eloqüente, mas unicamente dar glória a Deus, fazendo bem aos ouvintes.

2º.

 Que não procure adornar os seus discursos com coisas estranhas, pensamentos novos e sublimes, que apenas levam o espírito dos ouvintes a refletir na beleza das idéias, ao passo que a vontade permanece árida e estéril;  mas que se aplique a dizer as coisas que julgar mais próprias, para mover os ouvintes a boas resoluções.

3º.

 Para este fim, que recorde muitas vezes as verdades eternas;  porque é pela meditação delas que se obtém a perseverança, conforme a máxima do Espírito Santo: Memorare novissima tua, et in aeternum non peccabis.

 É verdade que alguns eclesiásticos não gostam dos sermões sobre os novíssimos, e ofendem-se de se verem tratados à maneira dos seculares, como se não houvessem de morrer e ser julgados como eles! Nem por isso quem lhes dá os exercícios deixará de lhes falar muitas vezes da morte, do juízo e da eternidade: são verdades capazes de levar a uma mudança de vida quem as considerar atentamente.

4º.

 Não se esqueça de insinuar, sempre que possa, alguma coisa prática, por exemplo: o modo de fazer a oração mental, de dar graças depois da missa, de corrigir os pecadores, e sobretudo de ouvir as confissões, particularmente dos recidivos e dos que estão em ocasião próxima;  porque muitos confessores pecam neste ponto, uns por demasiado rigor, outros por demasiada facilidade em darem a absolvição, -- o que é mais freqüente, e assim são causa da condenação de muitas almas. Os textos latinos ouvem-se e logo se esquecem;  só as coisas práticas ficam na memória.

5º.

 Não se esqueça de tratar com respeito e doçura os sacerdotes que o escutam. Com respeito, digo, mostrando veneração por eles, por isso os chamará -- senhores e santos. Se verberar algum vício, falará em geral, protestando que as suas palavras se não dirigem a nenhum dos presentes. Ponha cuidado sobretudo em não repreender em particular a nenhum qualquer falta, bem como em não tomar tom de autoridade. Tratará de falar com familiaridade, que é o modo mais próprio para persuadir e comover. Com doçura: não se deixe ir à cólera nos seus discursos;  não deixe escapar palavras injuriosas, mais próprias para azedar os ânimos, que para mover à piedade.

6º.

 Quando os assuntos forem terríveis, não lance na alma dos seus ouvintes a desesperação de se salvarem ou emendarem;  por fim, deixe a todos, mesmo aos mais relaxados, a porta aberta para se animarem a mudar de vida: exorte-os a porem a sua confiança nos merecimentos de Jesus Cristo e na intercessão da divina Mãe;  que recorram pela oração a estas duas grandes âncoras da esperança. Em quase todos os seus discursos, recomendará com instância o exercício da oração, que é o meio único de se obterem as graças necessárias à salvação.

7º.

 Enfim, e acima de tudo, quem prega a padres espere o fruto que deseja produzir, não dos seus talentos e esforços, mas da misericórdia divina e das suas orações, pedindo ao Salvador que dê força às suas palavras;  porque é sabido que, de ordinário, os sermões a padres permanecem quase inteiramente sem efeito, e que para um padre exercitante se decidir a mudar de vida, se é pecador, ou a tornar-se melhor, se é tíbio, é necessária uma espécie de milagre, que raras vezes se dá;  donde deriva que, para converter padres, é mais necessária a oração que o estudo.



PRIMEIRA PARTE  MATERIAIS PARA OS SERMÕES

CAPÍTULO, 1.  A dignidade do Padre

§ 1º  Idéia da dignidade sacerdotal

                Diz Santo Inácio mártir que a dignidade sacerdotal tem a supremacia entre todas as dignidades criadas. Santo Efrém exclama:  "É um prodígio espantoso a dignidade do sacerdócio, é grande, imensa, infinita. Segundo São João Crisóstomo, o sacerdócio, embora se exerça na terra, deve ser contado no número das coisas celestes. Citando Santo Agostinho, diz Bartolomeu Chassing que o sacerdote, alevantado acima de todos os poderes da terra e de todas as grandezas do Céu, só é inferior a Deus. e Inocêncio 3º assegura que o sacerdote está colocado entre Deus e o homem;  é inferior a Deus, mas maior que o homem.

                Segundo São Dionísio, o sacerdócio é uma dignidade angélica, ou antes divina;  por isso chama ao padre um homem divino. Numa palavra, concluí Santo Efrém, a dignidade sacerdotal sobreleva a tudo quanto se pode conceber. Basta saber-se que, no dizer do próprio Jesus Cristo, os padres devem ser tratados como a sua pessoa:  Quem vos escuta, a mim escuta;  e quem vos despreza, a mim despreza. Foi o que fez dizer ao autor da Obra imperfeita:  Honrar o sacerdote de Cristo, é honrar o Cristo;  e fazer injúria ao sacerdote de Cristo, é fazê-la a Cristo". Considerando a dignidade dos sacerdotes, Maria d'Oignies beijava a terra em que eles punham os pés.

§ 2º  Importância das funções sacerdotais

                Mede-se a dignidade do padre pelas altas funções que ele exerce. São os padres escolhidos por Deus, para tratarem na terra de todos os seus negócios e interesses;  é uma classe inteiramente consagrada ao serviço do divino Mestre, diz São Cirilo de Alexandria. Também Santo Ambrósio chama ao ministério sacerdotal uma "profissão divina". O sacerdote é o ministro, que o próprio Deus estabeleceu, como embaixador público de toda a Igreja junto dele, para o honrar, e obter da sua bondade as graças necessárias a todos os fiéis.

                Não pode a Igreja inteira, sem os padres, prestar a Deus tanta honra, nem obter dele tantas graças, como um só padre que celebra uma missa. Com efeito, sem os padres, não poderia a Igreja oferecer a Deus sacrifício mais honroso que o da vida de todos os homens:  mas o que era a vida de todos os homens, comparada com a de Jesus Cristo, cujo sacrifício tem um valor infinito?  O que são todos os homens diante de Deus senão um pouco de pó, ou antes um nada?  Isaías diz:  São como uma gota de água... e todas as nações são diante dele, como se não fossem.

                Assim, o sacerdote que celebra uma missa rende a Deus uma honra infinitamente maior, sacrificando-lhe Jesus Cristo, do que se todos os homens, morrendo por ele, lhe fizessem o sacrifício das suas vidas. Mais ainda, por uma só missa, dá o sacerdote a Deus maior glória, do que lhe têm dado e hão de dar todos os anjos e santos do Paraíso, incluindo também a Virgem santíssima;  porque não lhe podem dar um culto infinito, como o faz um sacerdote celebrando no altar.

                Além disso, o padre que celebra oferece a Deus um tributo de reconhecimento condigno da sua bondade infinita, por todas as graças que ele há sempre concedido, mesmo aos bem-aventurados que estão no Céu. Este reconhecimento condigno nem todos os bem-aventurados juntos o poderiam prestar;  de modo que, ainda sob este ponto de vista, a dignidade do padre está acima de todas as dignidades, sem exceptuar as do Céu.

                Mais, o padre é um embaixador enviado pelo universo inteiro, como intercessor junto de Deus, para obter as suas graças para todas as criaturas;  assim fala São João Crisóstomo. Santo Efrém ajunta que o padre trata familiarmente com Deus. Para o padre, numa palavra, não há nenhuma porta fechada.

                Jesus Cristo morreu para fazer um padre. Não era necessário que o Redentor morresse para salvar o mundo:  uma gota de sangue, uma lágrima, uma prece lhe bastava para salvar todos os homens;  porque, sendo esta prece dum valor infinito, era suficiente para salvar, não um mundo, mas milhares de mundos.

                Pelo contrário, foi necessária a morte de Jesus Cristo para fazer um padre:  pois, doutro modo, - onde se encontraria a Vítima que os padres da lei nova oferecem hoje a Deus, Vítima santíssima, sem mancha, só por si suficiente para honrar a Deus duma maneira condigna de Deus?  O sacrifício da vida de todos os anjos e de todos os homens não seria capaz, como acabamos de dizer, de prestar a Deus a honra infinita, que lhe presta um padre com uma só missa.

§ 3º  Excelência do poder sacerdotal

                Mede-se também a dignidade do padre pelo poder que ele exerce sobre o corpo real e o corpo místico de Jesus Cristo.

                Quanto ao corpo real, é de fé que no momento em que o padre consagra, o Verbo encarnado se obrigou a obedecer-lhe, vindo às suas mãos sob as espécies sacramentais. Causou espanto que Deus obedecesse a Josué, e mandasse ao sol que se detivesse à sua voz, quando ele disse:  Sol!  fica-te imóvel diante de Gabaon... E o sol deteve-se no meio do Céu.

                Mas é muito maior prodígio que Deus, em obediência a poucas palavras do padre, desça sobre o altar, ou a qualquer parte em que o sacerdote o chame, quantas vezes o chamar, e se ponha entre as suas mãos, embora esse sacerdote seja seu inimigo!  Aí permanece inteiramente à disposição do padre, que pode transportá-lo à sua vontade dum lugar para outro, encerrálo no tabernáculo, expô-lo no altar, ou ministrá-lo aos outros. É o que exprime com admiração São Lourenço Justiniano, falando dos padre:  "Bem alto é o poder que lhes é dado!  Quando querem, demudam o pão em corpo de Cristo:  o Verbo encarnado desde do Céu e desce verdadeiramente à mesa do altar!  É-lhes dado um poder que nunca foi outorgado aos anjos. Estes conservam-se junto do trono de Deus;  os sacerdotes têm-no nas mãos, dão-no ao povo e eles próprios o comungam".

                Quando ao corpo místico de Jesus Cristo, que se compõe de todos os fiéis, tem o sacerdote o poder das chaves:  pode livrar do inferno o pecador, torná-lo digno do Paraíso, e, de escravo do demônio, fazê-lo filho de Deus. O próprio Jesus Cristo se obrigou a estar pela sentença do padre, em recusar ou conceder o perdão, conforme o padre recusar ou dar a absolvição, contanto que o penitente seja digno dela.

                De modo que o juízo de Deus está na mão do padre, diz São Máximo de Turim. A sentença do padre precede, ajuda São Pedro Damião, e Deus a subscreve. Assim, conclui São João Crisóstomo, o Senhor supremo do universo não faz senão seguir o seu servo, confirmando no Céu tudo quanto ele decide na terra.

                Os padres, diz Santo Inácio mártir, são os dispensadores das graças divinas e os consócios de Deus. E, segundo São Próspero, são a honra e as colunas da Igreja, portas e porteiros do Céu.

                Se Jesus Cristo descesse a uma igreja, e se sentasse num confessionário para administrar o sacramento da Penitência, ao mesmo tempo que um padre sentado no outro, o divino Redentor diria:  Ego te absolvo o padre diria o mesmo:  Ego te absolvo;  e os penitentes ficariam igualmente absolvidos, tanto por um como pelo outro.

                Que honra para um súdito, se o seu rei lhe desse poder para livrar da prisão quem lhe aprouvesse!  Mas muito maior é o poder dado pelo Padre Eterno a Jesus Cristo, e por Jesus Cristo aos padres, para livrarem do inferno, não só os corpos, mas até as almas;  esta reflexão é de São João Crisóstomo.

§ 4º  A dignidade do padre excede todas as dignidades criadas

                A dignidade sacerdotal é pois neste mundo a mais alta de todas as dignidades, nota Santo Ambrósio. Ela excede, diz São Bernardo, todas as dignidades dos imperadores e dos anjos. Santo Ambrósio ajunta que a dignidade do padre sobreleva à dos reis como o ouro ao chumbo. A razão disso, segundo São João Crisóstomo, é que o poder dos reis só se estendem aos bens temporais e aos corpos, ao passo que o dos padres abrange os bens espirituais e as almas. Donde se conclui, em conformidade com o que fica exposto, que o poder ou a dignidade do padre é tão superior à dos príncipes como a alma ao corpo;  era o que já tinha dito o Papa São Clemente.

                É uma glória para os reis da terra honrar os padres;  é isso próprio dum bom príncipe, diz o Papa Marcelo. Os reis, diz Pedro de Blois, apressam-se a dobrar o joelho diante do sacerdote, a beijar-te a mão, e a abaixar humildemente a cabeça para receberem a sua bênção.

                Reconhecem assim a superioridade do sacerdócio, diz São João Crisóstomo. Conta Barónio que Leôncio, bispo de Trípoli, tendo sido chamado à côrte pela imperatriz Eusébia, lhe mandara dizer que, se queria a visita dele, era necessário que primeiro aceitasse as seguintes condições:  que à sua chegada a imperatriz desceria do seu trono, viria inclinar a cabeça sob as suas mãos, pedir-lhe e receber dele a bênção;  depois ele se assentaria, e ela só o poderia fazer com permissão sua. Terminava por dizer-lhe que, a não se darem essas condições, jamais poria os pés na sua côrte.

                Convidado para a mesa do imperador Máximo, São Martinho brindou primeiro o seu capelão e só depois o imperador. No Concílio de Nicéia, quis Constantino Magno ocupar o último lugar, depois de todos os sacerdotes, num assento menos elevado;  e ainda se não quis assentar sem permissão deles. O santo rei Boleslau tinha pelos sacerdotes uma tal veneração que não se assentava na presença deles.

                A dignidade sacerdotal ultrapassa até a dos anjos, razão por que também estes a veneram. Velam os anjos da guarda pelas almas que lhe estão confiadas, de modo que, se elas se encontram em estado de pecado mortal, excitam-nas a recorrer aos sacerdotes, esperando que eles pronunciem a sentença de absolvição;  assim fala São Pedro Damião.

                Se um moribundo pedir a assistência de São Miguel, bem poderá, é verdade, este glorioso arcanjo expulsar os demônios que o cercarem, mas não quebrar-lhes as cadeias, se não vier um padre que o absolva. Acabando São Francisco de Sales de conferir a ordem de presbítero a um digno clérigo, notou à saída que ele trocava algumas palavras com outra pessoa, a quem queria ceder a passo. Interrogado pelo Santo, respondeu ao jovem sacerdote que o Senhor o tinha honrado com a presença visível do seu anjo da guarda. Este antes da sua elevação ao sacerdócio caminhava à sua direita e precedia-o, mas agora tomava a esquerda e recusava caminhar diante;  por isso ele se tinha ficado à porta, numa santa contenda com o anjo. São Francisco de Assis dizia:  "Se eu visse um padre, primeiro ajoelharia diante do padre, e depois diante do anjo".

                Mais ainda, o poder do padre excede até o da santíssima Virgem;  porque a Mãe de Deus pode pedir por uma alma e obter-lhe quanto quiser pelas suas súplicas, mas não pode absolvê-la da menor falta. Escutemos Inocêncio 3º:  "Embora a santíssima Virgem esteja elevada acima dos apóstolos, não foi contudo a ela, mas a eles que o Senhor confiou as chaves do reino dos céus".

                Por outro lado, São Bernardino de Sena, dirigindo-se a Maria, diz igualmente que Deus elevou o sacerdócio acima dela;  e eis a razão que dá:  Maria concebeu Jesus Cristo uma só vez;  o padre pela consagração concebe-o, por assim dizer, quantas vezes quer;  de modo que, se a pessoa do Redentor ainda não existisse no mundo, o padre, pronunciando as palavras das consagração, produziria realmente esta pessoa sublime do Homem-Deus.

                Daqui esta bela exclamação de Santo Agostinho:  "Ó venerável dignidade a dos sacerdotes, entre cujas mãos o Filho de Deus encarna como encarnou no seio da Virgem!". Por isso São Bernardo, entre muitos outros, chama aos padres pais de Jesus Cristo. De fato, são causa da existência real da pessoa de Jesus Cristo na Hóstia consagrada.

                De certo modo, pode o padre dizer-se criador do seu Criador, porque pronunciando as palavras da consagração, cria Jesus Cristo sobre o altar, onde lhe dá o ser sacramental, e o produz como vítima para o oferecer a Padre eterno. Para criar o mundo, Deus só disse uma palavra:  Disse, e tudo foi feito;  do mesmo modo, basta que o sacerdote diga sobre o pão:  Isto é o meu corpo;  = Hoc est corpus meum;  e eis que o pão deixou de ser pão:  é o corpo de Jesus Cristo. São Bernardino de Sena vê nesta maravilha um poder igual ao que criou o universo. E Santo Agostinho exclama de assombro:  "Ó venerável e sagrado poder o das mãos do padre!  Ó glorioso ministério!  Aquele que me criou a mim, deu-me, se ouso dizê-lo, o poder de o criar a ele;  e ele que me criou sem mim, criou-se a si por meio de mim!"

                Assim como a palavra de Deus criou o céu e a terra, assim também, diz São Jerônimo, as palavras do padre criam Jesus Cristo. Tão alta é a dignidade do padre que vai até abençoar sobre o altar o próprio Jesus, como Vítima para oferecer ao Padre eterno. Segundo nota o Padre Mansi, no sacrifício da Missa, Jesus Cristo é considerado como Sacrificador principal e como Vítima:  como Sacrificador abençoa o padre;  mas, como Vítima, é abençoado pelo padre.

§ 5º  O alto posto ocupado pelo padre

                A excelência da dignidade sacerdotal mede-se também pelo alto posto que o padre ocupa. No sínodo de Chartres, celebrado em 1550, é chamado "a morada dos santos". Dá-se aos padres o título de vigários de Jesus Cristo, e assim os chama Santo Agostinho, porque fazem as suas vezes na terra. Tal é também a linguagem empregada por São Carlos Borromeu no sínodo de Milão:  Somos nós os embaixadores de Jesus Cristo;  é Deus quem pela nossa boca vos exorta. Foi o que o próprio Apóstolo declarou.

                Subindo ao Céu, o divino Redentor deixou os sacerdotes para serem na terra os mediadores entre Deus e os homens, particularmente ao altar, como diz São Lourenço Justiniano:  "Deve o padre aproximar-se do altar como o próprio Jesus Cristo". São Cipriano diz:  "O padre ocupa verdadeiramente o lugar e desempenha o ofício do Salvador;  e São Crisóstomo:  Quando virdes o sacerdote a oferecer o sacrifício, vêde a mão de Jesus Cristo estendida dum modo invisível".

                Ocupa também o padre o lugar do Salvador, quando remite os pecados, dizendo:  Ego te absolvo. O grande poder que o Padre eterno deu o seu divino Filho, comunica-o Jesus Cristo aos padres, De suo vestiens sacerdotes, segundo a expressão de Tertualiano.

                Para perdoar um pecado, é necessário o poder do Altíssimo, como a Igreja o faz ouvir nas suas orações.

                Tinham pois razão os judeus, quando, ao verem que Jesus Cristo perdoava os pecados ao paralítico, disseram:  "Quem senão Deus pode perdoar os pecados?" Mas esta graça que só Deus pode fazer pela sua onipotência, o padre a pode também dispensar por estas palavras:  Ego te absolvo a peccatis tuis;  porque a forma, ou, se o quiserem, as palavras da forma, pronunciadas pelo padre nos sacramentos, operam imediatamente o que significam.

                Qual seria o nosso espanto, se víssemos um homem que, mediante algumas palavras, tinha a virtude de tornar branca a pele dum negro!  O padre faz mais, quando diz:  Eu te absolvo, - porque no mesmo instante demuda em amigo um inimigo de Deus, e um escravo do inferno num herdeiro do Céu.

                O cardeal Hugues põe na boca do Senhor estas palavras, que representa dirigidas a um sacerdote ao absolver um pecador:  Eu fiz o céu e a terra, mas dou-te o poder para fazeres uma criação mais nobre e melhor:  duma alma manchada pelo pecado, faze uma alma nova. (Faze uma alma nova, quer dizer, faze que uma alma pecadora e escrava de Lúcifer se torne minha filha)  Mandei à terra que produza os seus frutos;  dou-te um poder melhor, o de produzires frutos nas almas.

                Privada da graça, é a alma como uma árvore seca, que não pode produzir nenhum fruto;  mas, recobrando a graça pelo ministério do padre, produz frutos de vida eterna. Santo Agostinho ajunta que a justificação dum pecador é uma obra maior que a de criar o céu e a terra. O Senhor diz a Jó:  Tendes vós um braço como o de Deus, e uma voz trovejante como a sua?  Ora, quem é que tem um braço semelhante ao de Deus e como Deus faz trovejar a sua voz?  É o padre que, dando a absolvição, se serve do braço e da voz do próprio Deus, para livrar do inferno as almas.

                Lemos em Santo Ambrósio que o padre, quando absolve, opera o mesmo que faz o Espírito Santo, quando justifica as almas. Eis por que o divino Redentor, ao conferir aos padres o poder de absolver, lhes deu o seu Espírito:  Soprou sobre eles e disse-lhes:  Recebei o Espírito Santo:  aqueles a quem perdoardes os pecados, ser-lhes-ão perdoados, e a quem os retiverdes ser-lhes-ão retidos. Deu-lhes o seu Espírito que santifica as almas, e estabeleceu-os cooperadores seus, conforme a expressão do Apóstolo. E São Gregório ajunta:  "Receberam o poder judicial supremo, para em nome de Deus remitirem ou reterem os pecados aos outros". Razão tem pois São Clemente de chamar ao padre um Deus na terra. Davi disse:  Veio Deus à assembléia dos deuses. Segundo a explicação de Santo Agostinho, os deuses de que fala são os sacerdotes. E eis o que diz Inocêncio 3º:  "Os padres se chamam deuses, por causa da dignidade do seu ofício".

§ 6º  Conclusão

                Mas, que horror ver, numa mesma pessoa, uma dignidade sublime e uma vida vergonhosa, uma profissão divina e obras de iniqüidade!  Para longe de nós esta desordem, exclama Santo Ambrósio;  que as nossas obras estejam de acordo com o nosso nome!  O que é uma alta dignidade num indigno, senão uma pérola caída na lama, pergunta Salviano?.

                O Apóstolo nos adverte que ninguém deve ser tão audacioso que se eleve ao sacerdócio, sem a vocação divina de Aarão, pois que nem Jesus Cristo se quis arrogar a honra do sacerdócio, mas esperou que seu Pai o chamasse a essa dignidade.

                Aprendamos daqui quanto é alta a dignidade do padre;  mas quanto mais alta é, mais devemos temê-la. "É grande a dignidade dos padres, diz São Jerônimo;  mas também a sua ruína, se vierem a pecar. Regozijemo-nos com a nossa elevação, mas temamos de cair". São Gregório exclama gemendo:  "Purificados pelas mãos dos sacerdotes entram na pátria os eleitos;  e os próprios padres se precipitam de cabeça para baixo nos suplícios do inferno!" E ajunta:  é o que acontece com a água batismal, que purifica do pecado os que a recebem, e os envia para o Céu, ao passo que ela cai e perdese.

CAPÍTULO, 2.  O fim do Sacerdócio

§ 1º  O Sacerdócio, aos olhos dos santos, é um encargo terrível

                Dizia São Clemente de Alexandria que os que estavam verdadeiramente animados do Espírito de Deus, se encontravam possuídos de temor ao receberem o sacerdócio, como um homem que treme à vista dum fardo enorme, que lhe vão lançar sobre os ombros, com perigo de ele ficar esmagado. Santo Efrém nos diz que não encontrava ninguém que quisesse ser ordenado de presbítero. Um concílio de Cartago decretou que os que fossem julgados dignos do sacerdócio e o recusassem, podiam ser obrigados a deixar-se ordenar. "Ninguém, dizia São Gregório de Nazianzo, recebe de boa vontade o sacerdócio". Refere o diácono Pôncio que São Cipriano, ao saber que o queriam ordenar sacerdote, correra a esconder-se por humildade:  Humiliter secessit. O mesmo fez, por igual motivo, São Fulgêncio. Prevendo que ia ser eleito, correu a esconder-se num lugar desconhecido. Refere Sozomeno que também Santo Atanásio fugira para não ser elevado ao sacerdócio. Santo Ambrósio fez grandes resistências, como ele próprio afirma.

                São Gregório procurou disfarçar-se em trajo de negociante para escapar à ordenação, apesar de Deus ter mostrado por milagres que o chamava à ordenação.

                Para não ser ordenado, Santo Efrém se apresentou como insensato e São Marco cortou o dedo polegar. O mesmo motivo levou Santo Amon a cortar as orelhas e o nariz;  e, como apesar disso o povo insistia em o fazer ordenar, fez-lhe a ameaça de cortar também a língua;  então cessaram de o perseguir.

                É sabido que São Francisco, ordenado diácono, não quis receber o presbiterato, porque uma visão lhe tinha revelado que a alma do padre deve ser pura como a água, que lhe fôra mostrada num vaso de cristal. Do mesmo modo o abade Teodoro não era senão diácono, e todavia nunca quis exercer as funções da sua Ordem, porque um dia ao fazer a oração viu uma coluna de fogo e foi-lhe dito:  "Se tens o coração inflamado como esta chama, então exerce a tua Ordem". O abade Motuès era sacerdote, mas não quis celebrar, porque se julgava indigno disso.

                Antigamente, entre os monges, cuja vida era tão austera, poucos se encontravam que fossem sacerdotes. Aos olhos deles, aspirar ao sacerdócio era presunção. Por isso São Basílio, querendo experimentar a obediência dum monge, mandou-lhe que pedisse publicamente o presbiterato;  o que foi olhado como um ato de obediência;  porque, fazendo um tal pedido, o religioso expunha-se a passar por um grande orgulhoso.

                Mas, enquanto os santos, que só vivem para Deus, têm tanta repugnância em receber as Ordens e se crêem indignos delas, - como é que tantos correm às cegas para o sacerdócio e não descansam até que lá cheguem, por caminhos direitos ou tortos?  Ai, exclama São Bernardo, esses são para lamentar;  porque, para eles, o estarem no número dos sacerdotes será o mesmo que estarem inscritos na lista dos condenados!

                Porquê?  Porque de todos esses padres apenas haverá algum que tenha sido chamado por Deus. O que os impediu para o santuário foi o interesse, a ambição, a influência dos pais, e assim não se ordenam para o fim que o sacerdote deve ter em vista, mas para os fins perversos do mundo. Por isso os povos permanecem ao abandono e a Igreja desonrada. Tantas almas se perdem, ao mesmo tempo que tais padres se afundam na ignomínia!

§ 2º  O fim do sacerdócio

                Quer Deus que todos os homens cheguem a salvar-se, mas nem todos pelos mesmos caminhos:  assim como no Céu há diversos graus de glória, também na terra há diversos estados, que assinalam outros tantos caminhos diferentes para ir para o Céu. Entre esses estados, o mais nobre, o mais sublime, que se pode chamar o estado por excelência, é o estado sacerdotal, em razão dos fins altíssimos para que foi estabelecido.

                Quais esses fins?  Só celebrar missa, recitar o ofício, e viver depois como os seculares?  Não, por certo;  o fim que Deus se propôs foi estabelecer na terra pessoas públicas, encarregadas de tudo quanto respeita à honra da sua divina majestade e à salvação das almas:  Porque todo o Pontífice, escolhido dentre os homens, é estabelecido o favor dos homens, para exercer as funções do culto para com Deus, e oferecer dons e sacrifícios pelos pecados;  deve saber compadecer-se dos que pecam por ignorância. Assim fala São Paulo, e o Sábio diz de Aarão que ele fôra escolhido, para desempenhar funções sacerdotais e louvor ao nome de Deus. Foi assim que o cardeal Hugues aplicou as palavras:  Habere laudem. E Cornélio A-Lápide ajunta:  Assim como o ofício dos anjos é louvar incessantemente a Deus no Céu, assim o dos sacerdotes é louvá-lo constantemente na terra.

                Estabeleceu Jesus Cristo os padres como cooperadores seus para glória de seu eterno Pai e salvação das almas;  por isso ao subir ao Céu declarou que os deixava em seu lugar, para continuarem a obra da redenção, que tinha empreendido e consumado. Conforme a expressão de Santo Ambrósio, assim que os constituiu delegados do seu amor. O Salvador disse a seus discípulos:  Conforme meu Pai me enviou, assim Eu vos envio a vós;  deixovos, para que façais o que eu próprio vim fazer à terra, isto é, para que manifesteis aos homens o nome de meu Pai.

                Dirigindo-se a seu Padre eterno, tinha Ele dito:  Glorifiquei-vos na terra;  a minha obra está consumada... fiz conhecer o vosso nome aos homens. Depois tinha orado pelos seus sacerdotes nestes termos:  Confiei-lhes a vossa palavra... Santificai-os na verdade!... Assim como vós me enviastes ao mundo, assim Eu os enviei. Portanto os padres estão colocados neste mundo para fazerem conhecer a Deus:  as suas perfeições, a sua justiça, a sua misericórdia, os seus preceitos, e para lhe conciliarem o respeito, obediência e amor que lhe são devidos. Estão encarregados de procurar as ovelhas desgarradas, e dar a vida por elas, se necessário for. Tal o fim para que Jesus Cristo veio à terra, e instituiu os sacerdotes.

§ 3º  Principais deveres do padre

                O próprio Jesus Cristo diz que viera ao mundo para acender o fogo do amor divino. Eis ao que o padre deve consagrar toda a sua vida e todas as suas forças. Não tem que trabalhar em adquirir tesouros, honras e bens terrenos, mas unicamente em ver a Deus amado de todos os homens. Somos chamadas por Jesus Cristo, diz o autor da Obra imperfeita, não a procurar os nossos próprios interesses, mas a glória de Deus... O amor verdadeiro não se procura a si próprio;  deseja em tudo andar à vontade do amado. Na antiga Lei disse o Senhor:  Separei vos de todos os povos, para que fôsseis meus. Considerai estas palavras como dirigidas aos padres:  Para que sejais meus, inteiramente aplicados aos meus louvores, ao meu serviço e ao meu amor;  e, segundo São Pedro Damião, para que sejais os cooperadores e dispensadores dos meus sacramentos;  e segundo Santo Ambrósio:  Para serdes os guias e pastores do rebanho de Jesus Cristo.

                Acrescenta o santo Doutor que o ministro dos altares não é mais seu mas de Deus. O próprio Senhor diz que separa dos outros homens os padres, para os ter inteiramente unidos a si.

                O divino Mestre disse:  Se alguém me está associado, que me siga;  = Si quis mihi ministrat, me sequatur. Para seguir a Jesus Cristo, deve o padre fugir do mundo, socorrer as almas, fazer amar a Deus, declarar guerra ao pecado. Deve olhar como feitas a si as injúrias contra Deus:  Caíram sobre mim os ultrajes dos que vos ofendem. Entregues aos negócios do mundo, não podem os leigos render a Deus o tributo de homenagem e reconhecimento que lhe é devido;  por isso, diz um sábio autor, o Padre Frassen, é necessário escolher dentre os outros homens alguns que, pelo seu próprio estado, sejam obrigados a prestar ao Senhor a honra que lhe pertence.

                Em todas as cortes dos soberanos, há ministros encarregados de fazer observar as leis, remover os escândalos, reprimir os sediciosos e defender a honra do rei. Foi para os mesmos fins que o Senhor estabeleceu os sacerdotes:  são oficiais da sua corte. Isto fez dizer a São Paulo:  Mostremo-nos verdadeiros ministros de Deus. Estão os ministros sempre atentos a conciliar ao seu soberano o respeito que lhe é devido, e engrandecer a sua glória. Falam dele com veneração;  se alguém o censura, logo o defendem com zelo;  procuram adivinhar-lhe os desejos, e até expõem a vida para lhe agradar.

                É assim que procedem os padres para com Deus?  Não há dúvida que são ministros seus;  é pelas suas mãos que passam e são tratados os negócios que interessam à sua glória. É por intermédio deles que devem ser tirados do mundo os pecados, - fim para que que Jesus Cristo quis morrer, diz São Paulo. Mas, no dia do juízo, como serão reconhecidos por verdadeiros ministros de Jesus Cristo esses padres que, longe de impedirem os pecados dos outros, eles próprios são os primeiros a conjurar-se contra Jesus Cristo?

                Que se diria dum ministro que se recusasse a vigiar pelos interesses do seu rei, e se afastasse quando ele reclamasse o seu serviço?  É que se diria se este ministro falasse até contra o rei, e conspirasse para o destronar, coligando-se com os seus inimigos?

                Segundo o Apóstolo, são os sacerdotes embaixadores de Deus;  são os cooperadores de Deus na salvação das almas. Deu-lhes Jesus Cristo o Espírito Santo, para que possam salvar as almas, absolvendo-as dos pecados. Donde conclui o teólogo Habert que o espírito sacerdotal consiste essencialmente num zelo ardente, primeiro pela glória de Deus, e depois pela salvação das almas.

                Não tem pois o padre que se ocupar das coisas do mundo, mas unicamente dos interesses de Deus:  = Constituitur in iis quae sunt ad Deum.

                Por esta razão, quis São Silvestre que, para os eclesiásticos, os dias da semana tivessem o nome de Férias, que quer dizer dias feriados, em que não se cuida dos trabalhos ordinários. Assim nos adverte que nós os padres nos devemos empregar exclusivamente em servir a Deus e ganhar-lhe almas, ocupação que São Dionísio Areopagita chama o mais divino dos ministérios:  "Será perfeito o sacerdote se imitar a Deus, se se fizer cooperador de Deus, que é a mais divina de todas as ocupações".

                Segundo Santo Antonino, sacerdos significa sacra docens;  e segundo Honório d'Autun, presbyter significa praebens iter. Assim, Santo Ambrósio dá aos padres o título de guias e pastores do rebanho de Jesus Cristo. Por São Pedro é chamado o clero um sacerdócio real, uma nação santa, um povo de conquista, povo destinado a conquistar, - o quê?  Almas e não riquezas, conforme a reflexão de Santo Ambrósio. Os próprios pagãos não queriam que os seus sacerdotes se ocupassem senão do culto dos seus deuses;  por isso lhes era vedado o exercício de qualquer magistratura.

                Este pensamento fazia gemer São Gregório, que dizia, falando dos padres:  "Devemos pôr de parte todos os negócios da terra, para só nos darmos à causa de Deus;  mas procedemos ao contrário:  deixamos a causa de Deus e só vivemos para os interesses terrenos". Moisés, estabelecido por Deus para só cuidar das coisas da sua glória, aplicava-se a decidir pleitos, mas Jetro advertiu-o e disse-lhe:  Estás a gastar-te loucamente;  deixa esse trabalho para cuidares do povo e das coisas relativas a Deus.

                Que diria Jetro se visse os nossos padres feitos negociantes, servos dos seculares, medianeiros de casamentos, e sem se importarem das obras de Deus?  Se os tivesse visto, como observa São Próspero, empenhados em se fazerem ricos, mas não melhores;  em adquirirem mais honras, mas não mais santidade?

                Ó, exclamava a este respeito o venerável João de Ávila, que abuso subordinar o Céu à terra!  Que miséria, ajunta São Gregório, ver tantos padres que procuram adquirir, não os merecimentos duma vida virtuosa, mas as vantagens da vida presente!  É porque, nas funções do seu ministério, não intentam a glória de Deus, mas somente o lucro que auferem delas, diz Santo Isodoro de Pelusa.

CAPÍTULO, 3.  Santidade exigida no Padre

§ 1º  Em razão da sua dignidade

                É grande a dignidade dos padres;  mas não são menores as obrigações que lhe andam inerentes. Erguem-se os padres a uma grande altura;  mas é necessário que sejam elevados e sustentados nela por uma grande virtude. No caso contrário, em vez de recompensa, um rigoroso castigo lhes está reservado;  tal é o pensamento de São Lourenço Justiniano.

                São Pedro Crisólogo diz por sua vez:  "O Sacerdócio é uma grande honra;  mas é também um fardo pesado, e traz consigo uma grande conta a prestar". - E São Jerônimo:  "Não é pela sua dignidade que o padre se salva, mas pela obras concordes com a sua dignidade".

                Todo o cristão deve ser perfeito, deve ser santo, por isso que todo o cristão faz profissão de servir um Deus santo. Segundo São Leão, uma pessoa torna-se cristã despojando-se da semelhança do homem terreno, e revestindo-se da forma de homem celeste. Era a razão por que Jesus Cristo dizia:  Vós pois sêde perfeitos, como vosso Pai celeste é perfeito.

                Mas a santidade do padre deve ser diferente da dos seculares, segundo a observação de Santo Ambrósio. Ajunta o santo Doutor que assim como a graça dispensada aos padres é superior, assim a vida do padre deve exceder em santidade à dos seculares. E, segundo Isodoro de Pelusa, entre a santidade do padre e a de todo o bom leigo, deve haver tanta distância como do céu à terra.

                Santo Tomás ensina que cada um é obrigado a cumprir os deveres do estado que escolheu. Por outro lado, assegura Santo Agostinho que o clérigo, no mesmo instante em que recebe a clericatura, se impõe a obrigação de ser santo. E Cassiodoro escreve:  O eclesiástico é obrigado a uma vida celeste. O padre é obrigado a maior perfeição que todos os outros, como diz Tomás de Kempis, porque o seu estado é o mais sublime de todos os estados. Salviano ajunta que Deus ordena a perfeição aos clérigos no mesmo lugar, em que a aconselha aos seculares.

                Os sacerdotes da Lei antiga traziam estas palavras gravadas na tiara, que lhes cingia a fronte:  Consagrado ao Senhor, ou Coisa santa do Senhor. Era para que nunca se esquecessem da santidade que deviam professar. As vítimas, oferecidas pelos sacerdotes, deviam ser inteiramente consumidas, - e para quê?  Teodoreto responde:  Para lhes significarem a integridade da vida, que convém a quem se consagra por completo a Deus.

                Para oferecer dignamente o divino sacrifício, nota Santo Ambrósio, deve o padre sacrificar-se primeiro ele próprio, oferecendo-se todo a Deus. E, segundo Santo Hesíquio deve o padre ser um holocausto contínuo de perfeição, desde a sua juventude até à morte.

                Na Lei antiga disse Deus:  Separei-vos dos outros povos, para que sejais o meu povo. Com quanto mais forte razão quer o Senhor na Lei nova, que os sacerdotes ponham de parte os negócios do século, para só agradarem Àquele a quem se consagraram!  É o que ele declara pela voz do Apóstolo:  Nenhum soldado de Deus se deve ingerir nos negócios seculares, para agradar Àquele cujo serviço abraçou. E é a promessa que a Igreja exige de todos os clérigos, ao entraram no santuário pela prima-tonsura. Faz-lhes prometer que de futuro só Deus será a sua herança:  É o Senhor a parte que me coube em herança, e o quinhão que me é destinado;  pois vós, Senhor, que me haveis de dar a devida herança. "Tudo no padre, escreveu São Jerônimo, reclama e exige a santidade da vida:  o hábito que veste, o próprio ofício que exerce".

                Como diz São Bernardo, não lhe basta fugir de todos os vícios, é necessário que faça esforços em que consiste a perfeição única, que o homem viador pode possuir cá na terra.

                O mesmo São Bernardo gemia, à vista de tantos insensatos, que se afadigam por chegar às ordens sacras, sem considerarem na santidade exigida aos que aspiram a tão alta dignidade. E Sto Ambrosio exclama:  Quanto é raro encontrar-se um ordinando que possa dizer:  O Senhor é a minha herança, que não se deixe abrasar da concupiscência, aguilhoar pela avareza, distrair pelos cuidados dos negócios seculares!

                No Apocalipse de São João, lê-se:  Fez-nos reino seu e sacerdotes de Deus, seu Pai. Tirino, de acordo com os outros intérpretes explica a palavra Regnum e diz que os sacerdotes são o reino de Deus, ou porque Deus reina neles, nesta vida pela graça e na outra pela glória;  ou porque eles próprios são constituídos reis para reinarem sobre os vícios.

                Quer São Gregório que o padre seja morto para o mundo e para todas as paixões, a fim de se dar a uma vida toda divina. O sacerdócio atual é o mesmo que Jesus Cristo recebeu de seu Pai:  E Eu dei-lhes a glória que me deste a mim. Se pois o sacerdote representa Jesus Cristo, diz São João Crisóstomo, é preciso que seja bastante puro para merecer tomar lugar entre os anjos.

                São Paulo exige do padre uma perfeição tal, que o ponha ao abrigo de toda a censura. É certo que neste lugar, por Episcopum, se devem entender não só os bispos, mas também os sacerdotes, pois que o Apóstolo passa em seguida a falar dos diáconos. Como não os chamou pelo apelido de padres, quis ajuntá-los sob esse ponto de vista aos bispos;  tal é o sentir de Santo Agostinho e de São João Crisóstomo, que sobre este ponto especial se exprime assim:  O que ele diz dos bispos aplica-se por igual aos padres.

                Quanto à palavra Irreprehensibilem, todos vêem com São Jerônimo que ela compreende a posse de todas as virtudes. E eis a explicação que dá Cornélio A-Lápide:  Deve o sacerdote não só ser isento de todos os vícios, mas adornado de todas as virtudes.

                Durante onze séculos, foi interdita a iniciação na clericatura a todos aque-les que depois do seu batismo tivessem cometido um só pecado mortal;  é o que nos ensinam os Concílio de Nicéia, Toledo, Elvira e Cartago. E se um clérigo, depois da sua ordenação, vinha o cair em pecado, era deposto para sempre e encerrado num mosteiro, como lemos em muitos cânones e eis a razão que ali se encontra expressa:  "Porque a santa Igreja quer que o sacerdote seja isento de censura, a todos os respeitos. Os que não são santos não podem administrar as coisas santas".

                No Concílio de Cartago disse-se:  Os clérigos de quem o Senhor é herança devem fazer divórcio com o século. O Concílio de Trento vai mais longe:  quer que num clérigo tudo seja santo:  o hábito, as maneiras, a linguagem, e todos os atos. E São João Crisóstomo ajunta que o sacerdote deve ser de tal modo perfeito, que todos os fiéis o possam olhar como um modelo de santidade;  porque Deus colocou os sacerdotes na terra, para que eles aqui vivam como anjos, e para servirem a todos os homens de faróis e guias no caminho da virtude.

                Segundo São Jerônimo, o nome de clérigo significa:  Que tem a Deus como herança. Quer dizer:  que o clérigo se compenetre bem na significação do seu nome, e com ele conforme o seu procedimento. Se Deus é a sua herança, que não viva senão para Deus. O que tem a Deus por herança, diz Santo Ambrósio, de nada se deve ocupar senão de Deus:  = Cui Deus portio est, nihil debet curare, nisi Deum.

                O padre é o ministro de Deus, encarregado das duas funções extremamente nobres e elevadas, que são:  honrar a Deus com sacrifícios, e santificar as almas. Porque todo o pontífice, escolhido dentre os homens, é estabelecido para administrar em nome dos homens as coisas que respeitam a Deus. Sobre este texto diz Sto Tomás:  Todo o padre é escolhido pelo Senhor e posto na terra, não para adquirir riquezas, atrair a estima dos homens, entregar-se aos prazeres e engrandecer a sua família, mas unicamente para vigiar pelos interesses da glória de Deus.

                Também nas Escrituras o padre é chamado Homo Dei:  um homem que nem é do mundo, nem de seus pais, nem de si próprio, mas só de Deus e que só a Deus procura. Aos padres pois se aplicam as palavras de Davi:  Eis a geração dos que só procuram a Deus. Assim como Deus no céu destinou certos anjos para rodearem o seu trono, também na terra, entre os homens, destinou os sacerdotes para tomarem cuidado da sua glória, por isso lhes disse:  Separei-vos dos outros povos, para que sejais meus. Vimos já este pensamento de São João Crisóstomo:  Escolheu-nos Deus, para que sejamos na terra como anjos entre os homens. E o próprio Senhor diz:  Serei santificado nos que se aproximarem de mim;  o que se interpreta assim:  A minha santidade será conhecida mediante a santidade dos meus ministros.

                O Novo Código de Direito Canônico, no título 3º., das obrigações dos clérigos, confirma a doutrina exposta. Vide os cânones 124-144, que não podemos transcrever.

§ 2º  Qual deve ser a santidade do padre como ministro do altar

                Quer Santo Tomás que se exija aos padres maios santidade que aos simples religiosos, em razão das funções sublimes que exercem, especialmente da celebração do sacrifício da missa. A razão é que recebendo uma Ordem sacra, dedica-se o homem ao mais alto ministério, que consiste em servir a Jesus Cristo até no Sacramento do altar;  o que exige uma santidade interior mais elevada que a que se requer para o estado religioso. Em igualdade de circunstâncias pois, um clérigo de Ordens sacras, obrando contra a santidade, peca mais gravemente que um religioso, que não esteja revestido de nenhuma Ordem sacra. É muito conhecida a sentença de Santo Agostinho:  "Dificilmente um bom monge dá um bom clérigo". Deste modo, nenhum clérigo pode ser olhado como bom, se não exceder em virtude um bom religioso.

                "Um verdadeiro ministro do altar forma-se para Deus, e não para si". Significam estas palavras de Santo Ambrósio que um padre deve esquecer as suas comodidades, as suas vantagens e os seus gostos;  deve persuadir-se que, desde o dia em que recebeu o sacerdócio, não é seu, mas de Deus. Tem muito a peito o Senhor que os padres sejam puros e santos, para que possam comparecer na sua presença, isentos de todo o defeito, e oferecer-lhe os sacrifícios:  Ele se assentará a fundir e limpar a prata;  e purificará os filhos de Levi, e os acrisolará como o ouro e a prata;  depois oferecerão os sacrifícios na justiça. Assim fala o profeta Malaquias;  e no Levítico lê-se:  Serão santos no serviço do seu Deus, e não desonrarão o seu nome;  porque hão de oferecer incenso do Senhor e os pães do seu Deus, e por conseqüência serão santos.

                Se deviam pois ser santos os sacerdotes da Lei antiga, porque ofereciam a Deus apenas o incenso, e os pães de proposição, que eram uma simples figura do adorável Sacramento dos nossos altares, quanto mais devem ser puros e santos os sacerdotes da lei nova, que oferecem a Deus o Cordeiro sem mancha, o seu próprio Filho!  Nós oferecemos, observa Estio, não novilhos ou incenso, como os sacerdotes antigos, mas o próprio Jesus Cristo;  oferecemos o corpo mesmo do Senhor, que foi suspenso no altar da cruz.

                É-nos necessária portanto a santidade, que consiste na pureza do coração;  quem se aproxima sem ela destes mistérios terríveis, aproxima-se indignamente. Sobre este ponto, escreveu Belarmino:  Desgraçados de nós, que, chamados a este ministério sublime, estamos longe do fervor que Salomão exigia dos padres da aliança figurativa!. Até mesmo os que deviam transp ortar os vasos sagrados queria o Senhor que fossem isentos de mancha:  Purificai-vos, ó vós que levais os vasos do Senhor!  Quanto mais puros devem ser os padres que trazem nas suas mãos e recebem no seu corpo o próprio Jesus Cristo!  Assim fala Pedro de Blois. E Santo Agostinho diz por sua vez:  Deve ser puro quem há de manusear não só vasos de ouro, mas até os vasos em que é renovada a morte do Senhor.

                Devia ser santa e imaculada a beatíssima Virgem Maria, porque havia de trazer no seu seio o Verbo encarnado e tornar-se sua Mãe;  e, à visto disso, exclama São João Crisóstomo, não será indispensável que brilhe, com uma santidade mais resplandecente que o sol, essa mão do padre que toca a carne dum Deus, essa boca que se enche dum fogo celeste, e essa língua que se banha com o sangue de Jesus Cristo?  O padre ao altar ocupa o lugar de Jesus Cristo, deve pois, diz São Lourenço Justiniano, aproximar-se dele para celebrar, quanto possível, à imitação de Jesus Cristo. Que perfeição não exige duma religiosa o confessor, para lhe permitir a comunhão quotidiana!  E porque não se exigiria a mesma perfeição do sacerdote que comunga todos os dias?  É preciso confessar, diz o Concílio de Trento, que não é possível a um homem praticar ação mais santa que celebrar uma missa.

                E acrescenta:  deve portanto o padre envidar todos os esforços para celebrar o santo Sacrifício do altar com a máxima pureza de consciência possível. Ai!  Que horror, exclama Santo Agostinho, ouvir essa língua, que chama o Filho de Deus do Céu à terra, falar depois contra Deus, e ver essas mãos, que se tingem no sangue de Jesus Cristo, mancharem-se com as torpezas do pecado!.

                Se Deus exigia tamanha pureza dos que deviam oferecer-lhe em sacrifício animais ou pães, e aos que qualquer modo estavam manchados lhes proibia que lhe fizessem oferendas, - quanto maior deve ser a pureza de quem está encarregado de oferecer a Deus o seu próprio Filho, o Cordeiro divino!  Tal é a reflexão de Belarmino. Sto Tomás diz que pela palavra maculam, no texto citado, se deve entender todo e qualquer vício:  Qui est aliquo vitio irretitus, non debet ad ministerium Ordinis accedere.

                A Lei antiga excluía das funções de sacrificador os cegos, coxos, corcundas e leprosos:  Nec accedet ad ministerium ejus, si caecus fuerit, si claudus... si gibbus... si habens jugem scabiem. Os santos Padres, dando um sentido espiritual a estes defeitos, olham como indignos de subir ao altar:  os cegos, ou que fecham os olhos à luz divina;  os coxos, ou preguiçosos, que nada adiantam no caminho de Deus, e vivem sempre com as mesmas imperfeições, sem oração e sem recolhimento;  os corcovados, que sempre estão com as suas afeições voltadas para a terra, para os bens, honras e prazeres do mundo;  os leprosos, ou sensuais que, à semelhança do mundo animal imundo, diz o Sábio, se revolvem no lodaçal dos prazeres torpes. Numa palavra, quem não é santo é indigno de se aproximar do altar, porque, sendo impuro, mancha o santuário de Deus. Não se aproxime do altar, porque tem uma mancha, e não deve manchar o meu santuário.

§ 3º  Qual deve ser a santidade do padre como mediador entre Deus e os homens

                De mais, deve o sacerdote ser santo na qualidade de dispensador dos sacramentos:  É necessário que não tenha mancha, como despenseiro de Deus. E deve ser como mediador entre Deus e os pecadores:  O sacerdote, diz um santo Padre, está colocado entre Deus e a natureza humana:  traz-nos os benefícios que vem do Céu, e leva para lá as nossas orações;  aplaca a cólera do Senhor e arranca-nos das suas mãos.

                É por ministério dos sacerdotes que Deus comunica a sua graça aos fiéis nos sacramentos. - É mediante os sacerdotes que os recebe no número dos seus filhos no Batismo, que é de necessidade para a salvação:  Quem não renascer, não pode entrar no reino de Deus.

                É por ministério deles que Deus cura os doentes e ressuscita os que estão mortos para a graça, isto é, os pecadores, no sacramento da penitência.

                É por eles que alimenta as almas e lhes conserva a vida da graça, no sacramento da sagrada Eucaristia:  Se não comerdes a carne do Filho do homem, não tereis a vida em vós.

                É por eles que dá aos moribundos a força para vencerem as tentações do inferno, mediante o sacramento da Unção dos Enfermos. Numa palavra, diz São Crisóstomo, sem os padres não nos podemos salvar. São Próspero chama aos padres os intérpretes da vontade divina. O autor da Obra imperfeita apelida-os - os muros da Igreja;  Sto Ambrósio, exército ou campo da santidade;  e São Gregório de Nazianzo, os fundamentos do mundo e as colunas da fé. Daqui a palavra de Santo Euquério:  que os padres devem, pelo vigor da sua santidade, transportar o fardo dos pecados do mundo. Ó, como esse fardo é terrível!  Rogará por ele (pelo impudico)  o sacerdote e pelo seu pecado diante do Senhor, e o Senhor se lhe tornará propício, e lhe perdoará o seu pecado. É por isso que a santa Igreja obriga os sacerdotes à recitação diária do Ofício divino, e à celebração da missa, ao menos algumas vezes no ano.

                Santo Ambrósio até diz que os padres nunca devem cessar, nem de dia nem de noite, de orar pelo povo.

                Mas para obter graças para os outros, é necessário que o sacerdote seja santo. Colocados entre Deus e o povo, diz o Doutor angélico, devem brilhar aos olhos de Deus por uma boa consciência, e aos olhos dos homens por um bom renome. Porque, segundo a reflexão de São Gregório, seria grande temeridade apresentar-se alguém diante dum príncipe, para obter o perdão para os seus súditos rebeldes, estando ele culpado do mesmo crime.

                Quem quer interceder pelos outros, deve ser bem-visto do príncipe;  se lhe for odioso, ajunta o mesmo santo, mais fará indignar o seu juiz. Por esta razão, escreve Santo Agostinho, o padre, orando pelos outros, deve ter junto de Deus um tal mérito, que possa obter dele o que os outros em razão dos seus deméritos não ousariam esperar. Foi o que declarou o papa Hormisdas:  Convém que o sacerdote seja mais puro que o povo para orar pelo povo. Mas São Bernardo lamenta, que haja poucos padres bastantes santos para serem mediadores dignos. E Santo Agostinho, falando dos maus eclesiásticos, diz:  É mais agradável a Deus o ladrar dos cães que a oração de tais clérigos.

                Refere o Padre Marchese, no seu "Jornal dos Dominicanos", que uma serva de Deus, religiosa da sua Ordem, pedia um dia ao Senhor que perdoasse ao povo em atenção aos merecimentos dos padres;  ele respondeu-lhe que os padres, pelos seus pecados, mais o irritavam do que aplacavam.

§ 4º  Santidade que deve ter o padre como modelo do povo

                Devem também os padres ser santos, porque Deus os colocou na terra para serem modelos de virtude.

                O autor da Obra imperfeita chama-lhes os doutores da piedade;  São Jerônimo os salvadores do mundo;  São Próspero, as portas da cidade eterna;  e São Pedro Crisólogo, os modelos das virtudes. Dali esta reflexão de Santo Isodoro:  Quem foi colocado à frente dos povos para os instruir e formas na virtude, deve ser santo em tudo, inteiramente irrepreensível. O papa Hormisdas diz igualmente:  Os que têm a seu cargo repreender os outros, devem estar a coberto de toda a censura.

                São Dionísio proferiu esta célebre sentença:  "Ninguém deve ter a audácia de se constituir guia dos outros, a não ser que na prática das virtudes se tenha tornado semelhante a Deus". São Gregório assegura que os sermões dos padres, cuja vida é pouco edificante, produzem antes desprezo do que fruto. Ao que Santo Tomás ajunta:  Pela mesma razão (se volvem desprezíveis)  todas as de mais funções que exerçam.

                Eis como São Gregório de Nazianzo fala do padre a este respeito:  "É preciso que ele primeiro se purifique a si próprio, depois que purifique os outros;  que se aproxime de Deus, depois lhe reconduza os outros;  se santifique a si, depois trabalhe na santificação dos outros;  e antes;  e antes de alumiar é necessário que seja alumiado".

                É preciso, diz São Gregório, que a mão que empreende lavar as manchas dos outros, seja isenta delas. E noutro lugar acrescenta que a luz apagada não pode alumiar os outros. Sobre o mesmo assunto, diz São Bernardo, que a linguagem do amor, na boca de quem não ama, é uma linguagem bárbara e estranha.

                Estão os sacerdotes colocados na terra como outros tantos espelhos, em que se deve rever a gente do mundo:  Somos dados em espetáculo ao mundo, aos anjos e aos homens. Por isso o Concílio de Trento quer que os eclesiásticos sejam como espelhos para os quais todos os leigos não tenham mais que levantar os olhos, afim de aprenderem a regular os seus constumes. E segundo o abade Filipe de Boa-Esperança, os sacerdotes são escolhidos por Deus para defesa dos povos, mas por isso mesmo lhes não basta a dignidade sem a santidade da vida.

§ 5º  Conseqüências práticas

                Considerando tudo quanto fica dito, conclui o Doutor angélico que, para exercer dignamente as funções sacerdotais, é necessária uma perfeição acima do comum. Noutro lugar:  "Os que se aplicam aos divinos mistérios devem ser duma virtude perfeita". Ainda noutra parte:  Para exercer dignamente estas funções, requere-se a perfeição interior. Devem os sacerdotes ser santos, para não desonrarem o Deus de quem são ministros, e estão encarregados de honrar:  Serão santos na presença de Deus e não mancharão o seu nome. Se se visse o ministro dum rei a folgar pelas praças públicas, a freqüentar as tabernas, confundido com o populacho, a falar e proceder duma maneira desonrosa para o seu príncipe, - que caso se faria desse soberano?  É assim que os maus padres desonram a Jesus Cristo, de quem são ministros.

                Segundo o autor da Obra imperfeita, poderiam os pagãos ao falar deles dizer:  Que Deus têm esses que de tal modo se comportam?  Acaso os suportaria ele, se não lhes aprovasse o precedimento?. Os Chineses, os Índios, que vissem um padre de costumes desregrados, estariam no direito de dizer:  Como poderemos crer que o Deus que tais sacerdotes pregam seja o verdadeiro?  Se ele fosse o verdadeiro Deus, como poderia, à vista da má conduta deles, suportá-los sem participar dos seus vícios?

                Daqui a exortação de São Paulo, dirigida aos padres:  Demo-nos a conhecer como verdadeiros ministros de Deus, sofrendo com paciência a pobreza, as doenças, as perseguições, velando com zelo pelo que respeita à glória de Deus, e mortificando os nossos sentidos. Conservemos a pureza do corpo, entregando-nos ao estudo, para sermos úteis às almas, praticando a doçura e a verdadeira caridade para com o próximo. Pareceremos tristes, em razão de vivermos afastados dos prazeres do mundo, mas gozaremos sempre da paz, que é a partilha dos filhos de Deus. Seremos pobres dos bens da terra, mas ricos em Deus, porque possuir a Deus é possuir tudo.

                Tais devem ser os padres. Devem ser santos, porque são ministros dum Deus santo. Devem estar prontos a dar a sua vida pelas almas, porque são ministros de Jesus Cristo, que veio morrer por nós, ovelhas suas, como ele próprio declarou:  Eu sou o bom Pastor. O bom Pastor dá a vida pelas suas ovelhas. Devem enfim empregar todos os esforços para acender no coração de todos os homens o fogo sagrado do amor divino, porque são ministros do Verbo encarnado, que para este fim desceu à terra, como ele próprio nos ensina também:  Vim trazer o fogo à terra, e que quero eu senão que ele se acenda?

                O que Davi pedia com insistência ao Senhor, para bem do mundo inteiro, era que os padres fossem revestidos de justiça. Compreende a justiça todas as virtudes. Assim, todos os padres devem estar compenetrados da fé e viver, não segundo as máximas do mundo, mas segundo as da fé. As máximas do mundo são:  "É necessário conseguir bens e riquezas;  é necessário procurar a estima dos homens;  é necessário gozar quanto possível".

                As máximas da fé são:  "Feliz o pobre;  é preciso abraçar as humilhações, renunciar a si mesmo, amar os sofrimentos;  é necessário estar animado duma santa confiança, esperar tudo, não das criaturas, mas de Deus somente;  é necessário ser humilde, julgando-se digno de toda a pena e desprezo;  é preciso ser manso, praticando a doçura para com todos, principalmente para com as pessoas melindrosas e grosseiras;  é preciso enfim estar-se revestido de caridade para com Deus e para com os homens. Quanto a Deus, todos os padres devem viver numa perfeita união com ele e procurar, mediante a oração, que os seus corações sejam outros tantos altares, em que arda de contínuo o amor divino. Para com os homens, todos devem praticar o que diz o Apóstolo:  Tomai entranhas de misericórdia, vós, eleitos de Deus, santos e caros a seus olhos.

                Devem quanto possível prestar a todos os homens socorros corporais e espirituais;  a todos, digo, mesmo aos mais ingratos e aos perseguidores.

                Santo Agostinho dizia:  Nada mais ditoso cá na terra, nem mais agradável aos homens que o ofício de padre;  mas aos olhos de Deus nada mais miserável, nem mais triste, nem mais arriscado para a salvação. É grande felicidade e honra para um homem ser padre:  poder fazer baixar do Céu às suas mãos o Verbo encarnado, e livrar as almas do pecado e do inferno;  ser vigário de Jesus Cristo;  ser a luz do mundo e o mediador entre Deus e os homens;  ser maior e mais nobre que todos os monarcas da terra;  ter um poder superior ao dos anjos;  ser numa palavra um Deus terreno, conforme a expressão de São Clemente. Nada mais venturoso, mas por outro lado nada mais terrível.

                Com efeito, se Jesus Cristo desce às suas mãos para seu alimento, é preciso que o padre seja mais puro que a água que foi mostrada a São Francisco;  se é o mediador dos homens diante de Deus, é preciso, para se apresentar diante do Senhor, que seja isento de todo o pecado;  se é o vigário do Redentor, é preciso que lhe seja semelhante na vida;  se é a luz do mundo, é preciso que seja todo resplendor de virtudes. Numa palavra, se é padre, é necessário que seja santo;  de contrário, se não corresponde aos dons recebidos de Deus, quanto maiores são esses dons, diz São Gregório, mais rigorosa será a conta a prestar. São Bernardo diz do padre:  Está ele encarregado dum ofício celeste, é o anjo do Senhor;  mas é também como os anjos eleito para a glória, ou réprobo e condenado ao fogo. Por isso Santo Ambrósio ensina que o padre deve ser isento até dos mais leves defeitos.

                Donde se segue que, se um padre não é santo, está em grande perigo de se condenar. Mas que fazem alguns padres, ou melhor, a máxima parte dos padres, para se tornarem santos?  Recitam o ofício, celebram a missa, e nada mais:  nem oração, nem mortificação, nem recolhimento.

                Basta que me salve, dirá algum. - Ó, não, responde Santo Agostinho, se dizes:  Basta, pereceste. Para ser santo, deve o padre ser desapegado de tudo, - dos ajuntamentos do mundo, das honras vãs etc., e em especial do afeto desordenado a seus pais. Estes ao verem o sacerdote pouco interessado no engrandecimento da família, e todo entregue às coisas de Deus, dirão talvez:  Por que procedeis assim conosco?  - Quid facis nobis sic?  Deverá ele responder como o menino Jesus, quando encontrado por sua Mãe no templo:  Quid est quod me quaerebatis?  nesciebatis quia, in his quae Patris mei sunt, oportet me esse?. O padre responderá a seus pais:  Foste vós que me fizestes sacerdote?  Não sabíeis que o padre não deve trabalhar senão para Deus?  É só a Deus que eu quero dedicar todos os meus cuidados.

CAPÍTULO, 4.  Da gravidade e castigo dos pecados do padre

§ 1º  Gravidade dos pecados do padre

                É extremamente grave o pecado do padre, porque peca com pleno conhecimento:  sabem bem o mal que faz. Ensina Santo Tomás que o pecado dos fiéis é mais grave que o dos infiéis, precisamente porque os fiéis conhecem melhor a verdade;  ora, as luzes dum simples fiel são bem inferiores às de um sacerdote. O padre é tão instruído na lei de Deus, que a ensina aos outros:  Porque os lábios do sacerdote hão de guardar a ciência, e é da sua boca que os outros aprenderão a lei. É muito grave o pecado de quem conhece a lei, porque de nenhum modo pode desculpar-se com a ignorância. Pecam os pobres seculares, mas no meio das trevas do mundo, afastados dos sacramentos, pouco instruídos nas coisas espirituais, envolvidos nos negócios do século. Como apenas têm um fraco conhecimento de Deus, não vêem bem o mal que fazem, pecando:  sagittant in obscuro, - arremessam as suas frechas na obscuridade como diz Davi.

                Os padres ao contrário estão cheios de luz, pois eles mesmo são os luzeiros destinados a alumiar os outros:  Vós sois o luz do mundo.

                Sem dúvida, devem os padres estar muito instruídos, depois de terem lido tantos livros, ouvido tantos sermões, feito tantas meditações e recebido dos seus superiores tantos avisos!  Numa palavra, foi-lhes dado conhecer a fundo os divinos mistérios.

                Sabem pois perfeitamente quanto Deus merece ser servido e amado, conhecem a malícia do pecado mortal, que é um inimigo tão contrário a Deus que, se Deus pudesse ser aniquilado, o seria por um só pecado mortal, como ensina São Bernardo:  "O pecado tende a destruir a divina bondade";  e noutro lugar:  "O pecado, quanto lhe é possível, aniquila a Deus". Diz o autor da Obra imperfeita que o pecador, tanto quanto depende da sua vontade, faz morrer Deus". De fato, ajunta o Padre Medina, o pecado mortal tanto desonra e desagrada a Deus que, se Deus fosse susceptível de tristeza, o pecado o faria morrer de pura dor. Tudo isso sabe o padre muito bem, e conhece por igual a obrigação em que está, como padre, cumulado de benefícios de Deus, de o servir e amar. Assim, diz São Gregório, quanto melhor vê a enormidade da injúria que faz a Deus, pecando, mais grave é o seu pecado.

                Todo o pecado da parte do padre é um pecado de malícia, semelhante ao dos anjos, que pecaram na presença da luz. É ele o anjo do Senhor, diz São Bernardo, falando do padre, e de certo modo peca no Céu, pecando no estado eclesiástico. Peca no meio da luz, o que faz que o seu pecado, como fica dito, seja um pecado de malícia:  não pode pois alegar ignorância, porque sabe que mal é o pecado mortal;  também não pode alegar fraqueza, porque conhece os recursos para se tornar forte, se quiser valer-se deles. Se o não quer, a culpa é sua:  Não quis entender para praticar o bem. Pecado de malícia, diz Santa Teresa, é aquele a que o pecador se decide cientemente;  e afirma noutro lugar que todo o pecado de malícia é pecado contra o Espírito Santo.

                Ora, da boca do Senhor sabemos que o pecado contra o Espírito Santo não será perdoado, nem na vida presente, nem na futura;  quer dizer, um tal pecado será de mui difícil perdão, por causa da cegueira que o pecado de malícia traz consigo.

                Pregado na cruz, rogou o nosso Salvador pelos seus perseguidores:  Pai, perdoai-lhes, porque não sabem o que fazem. Mas esta oração não aproveitou para os maus padres;  foi antes a sua sentença de condenação, porque os padres sabem o que fazem. Nas suas lamentações, exclamava Jeremias:  Como se embaciou o ouro, como perdeu o seu brilho?. Esse ouro embaciado é precisamente, diz o cardeal Hugues, o sacerdote pecador, que devia luzir com todo o brilho do amor divino, mas pelo pecado se tornou escuro, horrível, objeto de horror para o próprio inferno, e mais odioso aos olhos de Deus que todos os outros pecadores. Diz São João Crisóstomo que nunca Deus é tão ofendido como quando os que o ultrajam estão revestidos da dignidade sacerdotal.

                O que agrava a malícia do pecado no padre é a ingratidão de que se torna culpado para com Deus, que o elevou a funções tão sublimes. Santo Tomás ensina que a enormidade do pecado aumenta à medida da ingratidão de quem o comete. Nenhumas ofensas, diz São Basílio, nos ferem tanto, como as que nos são feitas por nossos amigos e parentes.

                Os padres são chamados por São Cirilo - Dei intimi familiares. A que dignidade mais alta poderia Deus erguer a um homem, do que fazê-lo sacerdote?  Passai revista a todas as honras e dignidades, diz Santo Efrém, e vereis que não há nenhuma que não seja eclipsada pelo sacerdócio. Que honra maior, que nobreza mais assinalada, que ser constituído vigário de Jesus Cristo, seu coadjutor, santificador das almas e ministro dos sacramentos?  Dispensadores regiae domus:  é assim que São Próspero chama aos padres. Escolheu o Senhor o padre do meio de tantos outros homens, para ser ministro seu, e para lhe oferecer em sacrifício o seu próprio Filho. Escolheu-o entre todos os homens viadores para oferecer o sacrifício a Deus. Deu-lhe poder sobre o corpo de Jesus Cristo;  depôs nas suas mãos as chaves do Paraíso;  elevou-o acima de todos os reis da terra e de todos os anjos do Céu;  numa palavra, fê-lo um Deus na terra.

                Que mais poderia eu fazer à minha vinha que não tenha feito?  Não parece que estas palavras são dirigidas unicamente ao padre?  Depois disso, que monstruosa ingratidão, quando esse padre, tão amado de Deus, o ofende na sua própria casa, como o mesmo Deus se lamenta pela boca de Jeremias. A este pensamento, exclama São Bernardo com gemidos:  Ai, Senhor, os que têm a vanguarda na vossa Igreja são os primeiros a perseguirvos!

                Ao que parece, é ainda dos maus padres que se queixa o Senhor, quando convida o Céu e a terra para testemunhas da ingratidão, que os seus filhos usam com ele:  Ó céus, escutai, ó terra, presta ouvidos... criei filhos, cumulei-os de honras, e eles desprezaram-me!.  De fato, que filhos poderiam ser esses senão os padres, que Deus elevou a tão alta dignidade, e com a sua carne alimentou à sua mesa, e que depois ousaram desprezar o seu amor e a sua graça?  É ainda desta ingratidão que se lamenta quando diz pela boca de Davi:  Se o meu inimigo tivesse falado mal de mim, eu o teria sofrido... mas tu que eras como que metade da minha alma, tu, um dos chefes do meu povo, meu amigo íntimo, que partilhavas das delícias da minha mesa!  Sim, o Salvador parece dizer:  se um inimigo, quer dizer um idólatra, um herege, um mundano, me ofendesse, eu o suportaria, mas como poder sofrer que me ultrajes tu, sacerdote, meu amigo, meu comensal?

                É o que Jeremias deplora igualmente, exclamando:  Os que se alimentavam delicadamente... que se tinham nutrido na púrpura, abraçaram a podridão. Que miséria, que horror, diz o Profeta!  O que se alimentava duma iguaria celeste e se revestia de púrpura, ei-lo coberto com os andrajos do pecado, a nutrir-se de lodo e estrume!

§ 2º  Castigo dos pecados do padre

                Consideremos agora o castigo, que tem de ser proporcionado à gravidade do seu pecado. São João Crisóstomo tem por condenado o padre que no tempo do seu sacerdócio comete um só pecado mortal:  Se pecardes como particular, será menor o vosso castigo;  se pecais no sacerdócio, estais perdido.

                São em verdade terríveis as ameaças, que o Senhor profere pela boca de Jeremias contra os padres que pecam:  Estão manchados o profeta e o sacerdote, e eu encontrei na minha casa a iniqüidade deles, diz o Senhor. Por isso o seu caminho será como um atalho escorregadio e coberto de trevas;  hão de impeli-los e cairão. Que esperança de vida poderíeis dar a quem caminhasse à borda dum precipício, em terreno escorregadio e às escuras, sem ver onde punha os pés, e ao mesmo tempo impelido fortemente para o abismo por seus inimigos?  Tal é o estado desgraçado a que se encontra reduzido o padre que comete um pecado mortal.

                Lubricum in tenebris. Pecando, o padre perde a luz e cai nas trevas. Mais lhes valera, assegura São Pedro, não ter conhecido o caminho da justiça, do que voltar atrás depois de o haver conhecido. Ó, sem dúvida, mais valia para um padre que peca ser antes um camponês ignorante, que nunca tivesse estudado coisa alguma;  porque depois de tantos conhecimentos adquiridos, - pelos livros que leu, pelos oradores sagrados que ouviu, pelos diretores que teve - depois de tantas luzes recebidas de Deus, o desgraçado calca aos pés todas as graças, pecando, e merece que as luzes recebidas só sirvam para o tornar mais cego e impenitente. A maior ciência, diz São Crisóstomo, dá lugar a mais severo castigo;  se o pastor cometer os mesmos pecados que as suas ovelhas, não receberá o mesmo castigo, mas uma pena muito mais dura.

                Um padre cometerá o mesmo pecado que os seculares;  mas sofrerá um castigo muito maior, permanecerá mais profundamente cego que todos os outros;  será punido conforme o anúncio do Profeta:  Que vendo não o vejam, e ouvindo não compreendam!

                É o que a experiência deixa ver, diz o autor da Obra imperfeita:  Um secular, depois de pecar, facilmente se arrepende. Se assiste a uma missão, se ouve um sermão enérgico sobre alguma verdade eterna, - malícia do pecado, certeza da morte, rigor do juízo de Deus, penas do inferno, entra facilmente em si e volta-se para Deus;  porque estas verdades, como coisas novas, tocam-no e penetram-no de temor. Mas quando um padre há calcado aos pés a graça de Deus, com todas as luzes e conhecimentos recebidos, - que impressão podem fazer ainda nele as verdades eternas e as ameaças das divinas Escrituras?  Tudo quanto encerra a Escritura, continua o mesmo autor, é para ele uma coisa sediça de pouco valor;  porque as coisas mais terríveis que lá se encontram, por muito lidas, já lhe não fazem impressão. Donde conclui que nada mais impossível que a emenda de quem sabe tudo e peca.

                Quanto maior é a dignidade dos padres, diz São Jerônimo, tanto maior é a sua ruína, se num tal estado chegam a abandonar a Deus. Quanto mais alto é o posto em que Deus os colocou, diz São Bernardo, tanto mais funesta será a sua queda. Quando se cai em plano, diz Sto Ambrósio, raro se experimenta grande mal;  mas cair de alto não é só cair, é precipitar-se, e a queda será mortal.

                Nós os padres regozijamo-nos, diz São Jerônimo, por nos vermos erguidos a tão alta dignidade;  mas seja igual o nosso temor de cair. Parece que é aos padres que Deus fala, quando diz pela boca de Ezequiel:  Coloquei-vos sobre o monte santo de Deus... e vós pecastes;  e eu vos expulsei do monte de Deus, e vos entreguei à ruína. Vós que sois padres, diz o Senhor, eu vos estabeleci sobre a montanha santa, para serdes os faróis do universo:  Sois vós a luz do mundo. Uma cidade assente no cimo duma montanha não pode estar escondida.

                Tem pois razão São Lourenço Justiniano em dizer que quanto maior é graça concedida por Deus aos padres, tanto mais digno de castigo é o seu pecado, e quanto mais alto o seu estado, mais mortal a sua queda. Quem cai num rio, diz Pedro de Blois, mergulha tanto mais fundo, quanto de mais alto tiver caído.

                Compreende bem, ó padre:  Deus, elevando-te ao sacerdócio, ergueu-te até ao Céu, e fez de ti, não mais um homem da terra, mas um homem celeste, pensa pois quanto te será funesta uma queda, segundo o aviso de São Pedro Crisólogo. A tua queda, diz São Bernardo, será semelhante à do raio que se precipita com impetuosidade. Quer dizer que a tua perda será irreparável. Assim, ó desgraçado, cairá sobre ti a ameaça que o Senhor lançou sobre Cafarnaum:  E tu, ó Cafarnaum, erguida até ao Céu, serás abatida até ao inferno.

                Um padre que peca merece tal castigo, por causa da sua ingratidão para com Deus, a quem deve um reconhecimento tanto maior quanto recebeu dele os maiores benefícios, como nota São Gregório. Merece o ingrato ser privado de todos os bens que recebera, como observa um sábio autor. Jesus Cristo disse:  Ao que já possui, dar-se-á, e ele estará na abundância;  mas o que nada possui, ver-se-á despojado até do que parecia ter. Quem é grato para com Deus obterá maior abundância de graças;  mas um padre que, depois de tantas luzes, depois de tantas comunhões, volta as costas a Deus, e desprezando todos os favores recebidos, renuncia à sua graça, este padre será com justiça privado de tudo. É o Senhor liberal com todas as suas criaturas, mas nunca com os ingratos. A ingratidão, diz São Bernardo, faz estancar a fonte da bondade divina.

                Por isso São Jerônimo pôde dizer:  Nenhuma besta há no mundo mais feroz que um mau padre, porque esse não se quer deixar corrigir. E o autor da Obra imperfeita:  Os leigos facilmente se emendam, mas um mau eclesiástico é incorrigível. Segundo São Damião, é de preferência aos padres pecadores que se aplicam estas palavras do Apóstolo:  Porque os que foram alumiados, os que saborearam o dom celeste, e receberam o Espírito Santo... depois caíram, é impossível que se renovem pela penitência. Com efeito, quem mais que o padre recebeu de Deus graças abundantes?  Quem mais do que ele gozou dos favores do Céu e participou dos dons do Espírito Santo?  Segundo Santo Tomás, permaneceram obstinados no pecado os anjos rebeldes, porque pecaram em face da luz;  é assim, escreve São Bernardo, que o padre será tratado por Deus:  tornado anjo do Senhor, ou há de ser eleito como anjo, ou réprobo como o anjo.

                Eis o que o Senhor revelou a Santa Brígida:  Olho os pagãos e os judeus, mas não vejo ninguém pior que os padres:  o seu pecado é como o que precipitou Lúcifer. E notemos aqui o que diz Inocêncio 3º:  Muitas coisas que nos leigos são pecados veniais, nos eclesiásticos são mortais.

                É ainda aos padres que se aplicam estas palavras de São Paulo:  Uma terra, que, depois de muito regada pelas chuvas, só produz espinhos e silvas, está reprovada e sujeita a maldição:  acabará por ser entregue ao fogo. Que chuva de graças não recebe de Deus continuamente o padre?  E contudo, em vez de frutos, só produz silvas e espinhos:  Desgraçado!  Está prestes a ser reprovado e a receber a maldição final, para ir, depois de tantas graças, que Deus lhe prodigalizou, arder no fogo do inferno!  - Mas, que temor pode ter ainda do fogo do inferno um padre, que voltou as costas a Deus?  Os padres que pecam perdem a luz, como levamos dito, e perdem também o temor de Deus. É o Senhor quem no-lo declara:  Se eu sou o Senhor, onde está o meu temor, vos diz o Senhor, a vós, ó padres, que desprezais o meu nome?.

                Segundo São Bernardo, os sacerdotes, caindo da altura a que se acham elevados, de tal modo se afundam na malícia, que perdem a lembrança de Deus, e tornam-se surdos a todas as ameaças da justiça divina, a tal ponto que nem o perigo da sua condenação os espanta.

                Mas que haverá nisso de admirável?  O padre, pecando, cai no fundo do abismo, onde fica privada da luz e despreza tudo. Acontece então o que diz o Sábio:  Caído no fundo do abismo do pecado, o ímpio despreza. Este ímpio é o padre que peca por malícia;  um só pecado mortal o precipita no fundo das misérias, em que cegamente permanece mergulhado. Nesse estado despreza tudo:  castigos, advertências, presença de Jesus Cristo, a quem toca no altar. Não córa de se tornar pior que o traidor Judas, como o próprio Senhor um dia disse a Santa Brígida:  Tais padres já não são sacerdotes meus, mas verdadeiros traidores. Sim, tais padres são verdadeiros traidores, porque abusam da celebração da Missa, para ultrajarem mais cruelmente a Jesus Cristo pelo sacrílego!

                E qual será, depois de tudo, o triste fim do padre mau?  Ei-lo:  Praticou a iniqüidade na terra dos santos, não verá a glória do Senhor. Será, numa palavra, o abandono de Deus, e depois o inferno. - Mas, dirá alguém, essa linguagem é demasiado aterradora:  quereis lançar-nos da desesperação?  Respondo com Santo Agostinho:  Se vos espanto, "é que eu próprio estou espantado". - Assim, dirá um padre, que tiver tido a desgraça de ofender a Deus no sacerdócio, não haverá para mim esperança de perdão?  - Ó, não posso afirmar isso;  haverá esperanças, desde que haja arrependimento do mal cometido.

                Que esse padre seja pois extremamente reconhecido para com o Senhor, se ainda se vê ajudado da graça;  mas é preciso que se apresse a dar-se a Deus, enquanto o chama, conforme o aviso de Santo Agostinho:  "Abramos os ouvidos à voz de Deus, enquanto nos chama, com receio de que se recuse a ouvir-nos, quando estiver prestes a julgar-nos".

§ 3º  Exortação

                Ó padres, irmãos meus!  Saibamos de futuro apreciar a nossa dignidade;  e, ministros de Deus, envergonhemo-nos da escravidão do pecado e do demônio, como diz São Pedro Damião:  "Deve o padre ter sentimentos nobres e, como ministro do Senhor, corar de se fazer escravo do pecado". Não imitemos a loucura dos mundanos que só pensam no presente. Está decretado que os homens morrem uma vez, e depois da morte segue-se o juízo. Todos havemos de comparecer no tribunal de Jesus Cristo, para cada um receber o salário dos trabalhos desta vida. Ali nos será dito:  Dá conta da tua administração. Dá-me conta do teu sacerdócio:  como o exerceste?  A que fim o fizeste servir?  - Meu caro irmão, se tivesses de ser julgado neste momento, estarias contente?  Ou antes, não dirias:  Quando ele me interrogar, que lhe responderei?.

                Quando Deus quer castigar um povo, começa o castigo pelos padres, porque são eles a causa primária dos pecados do povo, quer pelos seus maus exemplos, quer pela sua negligência em cultivarem a vinha confiada aos seus cuidados. Por isso o Senhor diz então:  Eis o tempo em que o juízo vai começar pela casa de Deus. No morticínio descrito por Ezequiel, quis Deus que os padres fossem as primeiras vítimas:  Começai pelo meu santuário. E noutro lugar, lê-se:  Um juízo rigorosíssimo está reservado para os que se acham à frente do povo. A quem recebeu muito, será exigido muito.

                Diz o autor da Obra imperfeita:  Há de ver-se no dia do juízo o padre pregador despojado da sua dignidade, e arrojado para o meio dos infiéis e hipócritas, e dada a um leigo a estola que lhe era destinada. Eis o que todo o padre deve meditar bem:  Escutai isto, ó sacerdotes... porque é do vosso julgamento que se trata.

                E, como o juízo dos padres é o mais rigoroso, também a sua condenação será mais terrível:  Esmagai-os com uma violência extrema. Um concílio de Paris, repete estas palavras de São Jerônimo:  "Grande é a ruína deles, se vierem a cair em pecado". Sim, diz São João Crisóstomo, se o padre cometer os mesmos pecados que as suas ovelhas, sofrerá, não a mesma pena, mas uma pena muito mais severa. Foi revelado a Santa Brígida que os sacerdotes pecadores são mergulhados num inferno mais profundo que o dos demônios. Ó, que festa para os demônios, quando um padre réprobo descer ao meio deles!  Todo o inferno se põe em movimento para ir ao encontro dele, como diz Isaías. Todos os príncipes dessa terra de misérias se levantarão para darem ao padre condenado o primeiro lugar nos tormentos:  Todos, ajunta o profeta, te receberão com estas palavras:  Então cá estás tu também, condenado como nós e tornado semelhante a nós.

                Ó padre, houve tempo em que mandaste sobre nós com império;  fizeste descer muitas vezes o Verbo encarnado sobre os altares, arrancaste ao inferno muitas almas e agora eis-te semelhante a nós, desgraçado e atormentado como nós!  Foi o teu orgulho que te fez desprezar a Deus e ao teu próximo, até por fim te precipitar aqui. Visto que és rei, fica-te bem a cama real e a púrpura conveniente à tua dignidade;  pois bem, aí está o fogo, aí estão os vermes, que te hão de devorar eternamente o corpo e alma. Ó como então os demônios hão de mofar das missas, dos sacramentos e de todas as funções do sacerdote condenado!.

                Ó sacerdotes, irmãos meus, tomai cuidado de vós;  os demônios têm mais a peito tentar um padre que cem seculares, porque um padre que se condena arrasta com ele uma multidão para o abismo. Diz São João Crisóstomo:  Quem faz perecer o pastor, em breve faz dispersar todo o rebanho. E com não menos razão diz outro autor:  Na guerra procuram os inimigos primeiro que tudo matar os chefes.

                São Jerônimo ajunta:  Não procura tanto o demônio os infiéis, nem os que estão fora do santuário;  é na Igreja de Jesus Cristo que gosta de fazer os seus latrocínios;  estão ali, segundo Habacuc, as suas iguarias de predileção. Não há iguarias mais apetitosas para o demônio, que as almas dos eclesiásticos. (O que se segue pode servir para excitar a compunção no ato de contrição.)

                Sacerdote de Jesus Cristo, imagina que o Senhor te fala da maneira mais tocante, como ao povo judeu:  Dize-me que mal te fiz, ou antes que bem tenho deixado de te fazer?  Tirei-te do meio do mundo, e escolhi-te entre tantos seculares, para te fazer meu sacerdote, meu ministro, meu amigo. E tu, por um interesse miserável, por um vil prazer, de novo me pregaste na cruz!

                Pela minha parte, todas as manhãs, no deserto desta vida, te tenho saciado com o maná celeste, isto é, com a minha carne divina e com o seu sangue. E tu tens-me esbofeteado, flagelado por tuas palavras e ações imodestas. Escolhi-te como um vinho que devia fazer as minhas delícias;  por isso infundi na tua alma tantas luzes e graças, para que produzisses frutos doces e preciosos;  e tu só me tens dado frutos amargos. Fiz-te rei, elevei-te mesmo acima de todos os reis da terra. E tu coroaste-me de espinhos, com os teus maus pensamentos consentidos.

                Cheguei a fazer-te meu vigário, a entregar-te as chaves do Céu, a fazerte um Deus da terra!  E tudo desprezaste as minhas graças, a minha amizade;  crucificaste-me de novo etc.

CAPÍTULO, 5.  O mal da tibieza no padre

§ 1º  A que está exposto o padre tíbio

                A São João mandou o Senhor, no Apocalipse, que escrevesse ao bispo de Éfeso estas palavras:  Sei o bem que fazes;  conheço os teus trabalhos pela minha glória, assim como a tua paciência nas fadigas do teu ministério. Em seguida, acrescenta:  Mas, por outro lado, tenho a arguir-te de haveres esfriado no teu primitivo fervor. - Alguém dirá talvez:  que grande mal havia nisso?  - Escutai o que o Senhor ajunta ainda:  Lembra-te donde caíste;  faze penitência das tuas culpas, e cuida de voltar ao primitivo fervor, em que deves viver, como ministro meu;  de contrário, serás reprovado por mim, como indigno do ministério, que te confiei.

                Como assim!  Então a tibieza conduz a uma ruína tal?  - Sim, a uma grande ruína, e o pior é que os tíbios não a conhecem, não a temem, não procuram evitá-la. Isto acontece sobretudo aos padres, cuja máxima parte vão esbarrar no escolho oculto da tibieza, e um grande número encontram nele a sua perdição. Escolho oculto:  o que faz que os tíbios estejam expostos a grande risco de se perderem, é que a tibieza não deixa ver a uma alma o mal enorme que lhe causa. Muitos deles por certo não querem separar-se inteiramente de Jesus Cristo;  querem segui-lo, mas de longe, como fez São Pedro, quando o Redentor foi preso no jardim das Oliveiras. Procedendo porém assim, caem facilmente na desgraça de Pedro, que apenas entrou na casa do Pontífice, a um simples remoque duma serva, renegou Jesus Cristo!

                Quem despreza as coisas pequenas vem a cair pouco a pouco nas grandes. O intérprete aplica este texto à alma tíbia, e diz que ela em breve perderá a devoção, e cairá depois, passando das faltas leves de que não se importava, às graves e mortais. Segundo Eusébio de Emeso, quem não teme ofender a Deus com pecados veniais, dificilmente se há de preservar dos pecados mortais. É com justiça, ajunta Santo Isidoro, que o Senhor permite que quem não faz caso das faltas leves caía depois nas mais graves.

                Os pequenos excessos, quando são raros, não causam grave detrimento na saúde;  mas, quando são freqüentes e multiplicados, acabam por ocasionar doenças mortais. É o que diz Santo Agostinho:  Evitais com cuidado as quedas graves, e não temeis as leves;  não perdestes a vida sob a pedra enorme dalgum pecado mortal;  mas tomai cautela não fiqueis esmagados debaixo dum montão de areia de pecados veniais.

                Ninguém ignora que só o pecado mortal dá a morte à alma e que os veniais, por mais numerosos que sejam, a não podem privar da graça, mas é preciso saber também o que diz São Gregório:  que o hábito de cometer faltas veniais, sem delas sentir remorso e sem pensar em corrigi-las, faz perder pouco a pouco o temor de Deus, e, uma vez perdido este temor, é fácil passar das faltas pequenas às grandes. Santo Doroteu ajunta:  Se desprezar-mos as faltas leves, periculum est ne in perfectam insensibilitatem deveniamus. Quem não se inquieta com as pequenas quedas, corre perigo de cair numa insensibilidade universal, que lhe faça perder o horror até às quedas mortais.

                Conforme o atesta o tribunal da Rota, Santa Teresa nunca caiu em nenhuma falta grave;  contudo o Senhor lhe fez ver o lugar que lhe estava reservado no inferno, não porque ela o tivesse merecido, mas porque se teria condenado, se não tivesse sido arrancada a tempo, ao estado de tibieza em que vivera. Por isso o Apóstolo nos faz esta advertência:  Não deis entrada ao demônio. Ao espírito das trevas basta-lhe que comecemos a abrir-lhe a porta do nosso coração, deixando entrar nele sem escrúpulo faltas leves;  porque depois ele a saberá abrir de par em par por faltas graves. Cassiano escreveu:  Quando algum cai, não imagineis que ele tenha chegado de repente à sua ruína. Não, quando soubermos que alguma pessoa, dada à vida espiritual, sucumbira enfim, não pensemos que o demônio a tenha lançado subitamente no abismo do mal:  primeiro a fez cair no estado de tibieza e dali no precipício da inimizade de Deus.

                Assim, São João Crisóstomo afirma ter conhecido muitas pessoas, adornadas de todas as virtudes, mas que, vindo a cair na tibieza, depois se precipitaram num abismo de vícios.

                Conta-se nas crônicas da Ordem de Santa Teresa que a venerável irmã Ana da Encarnação vira um dia uma alma condenada, que ela primeiro tivera por santa;  viam-se-lhe unidos ao rosto muitos animais pequenos, imagens das numerosas faltas que na sua vida tinha cometido e de que não se havia importado. Alguns desses animálculos lhe diziam:  "Foi por nós que começaste";  outros enfim:  "Foi por nós que te perdeste". Ao bispo de Laodicéia mandou dizer o Senhor:  Conheço as tuas obras, e que não és frio nem quente. Tal é o estado dum tíbio, - nem frio, nem quente. Homem tíbio, diz Menóquio, é o que não ousa, de propósito deliberado, ofender a Deus mortalmente, mas que é negligente em se aperfeiçoar;  por aí dá fácil entrada a todas as paixões.

                Um padre tíbio não é ainda manifestamente frio, porque não comete deliberadamente pecados mortais;  mas afroixa em tender para a perfeição, a que o seu estado o obriga;  não lança conta aos pecados veniais, e cada dia os comete em grande número sem escrúpulo:  mentiras, intemperanças na comida e na bebida, imprecações, Ofício mal recitado, missa mal celebrada, maledicência contra todos, chocarrices inconvenientes. Vive na dissipação, no meio dos negócios e prazeres do século;  alimenta desejos e apegos perigosos;  cede à vanglória, ao respeito humano, aos melindres e ao amor próprio;  não pode suportar a menor contrariedade, a menor palavra que o humilhe;  vive sem oração e sem devoção.

                O Padre Alvarez de Paz, falando dos defeitos e faltas da alma tíbia, exprime-se assim:  O tíbio assemelha-se a um doente dominado de muitas moléstias pequenas que, sem lhe darem a morte por si mesmas, não lhe deixando nenhum descanso, acabam por lançá-lo em tal fraqueza, que ele vem a ser atacado por um mal grave, isto é, por uma tentação a que não pode resistir, e então a sua queda é profunda.

                Eis por que o Senhor, continuando a falar do tíbio, lhe diz:  Oxalá fôras frio ou quente!  Mas porque és tíbio, e nem frio nem quente, apresso-me a lançar-te da minha boca. O que tem a desgraça de jazer no estado de tibieza, medite bem estas palavras e trema.

                Antes eu quereria, diz o Senhor, que fosses frio, isto é, privado da graça;  porque haveria mais esperança para ti de saíres desse miserável estado, do que se permaneceres nele, onde ficas mais exposto a cair em vícios graves, sem esperança de emenda. É assim que Cornélio A-Lápide explica esta passagem. Segundo São Bernardo, é mais fácil converter um leigo vicioso, que um eclesiástico tíbio;  e Pereira ajunta que é mais fácil converter um infiel, que fazer sair um cristão da tibieza.

                E de fato, Cassiano afirma ter visto muitos pecadores a darem-se a Deus com fervor, mas nunca uma alma tíbia. São Gregório não perde a esperança a respeito dum pecador não convertido, mas nada espera dum convertido que, depois de se ter dado a Deus com fervor, caiu na tibieza. Eis as suas palavras:  "O que é frio, sem ter sido tíbio antes, deixa esperança;  o tíbio porém não a deixa:  porque pode esperar-se a conversão duma alma, que se encontra atualmente em estado de pecado;  mas a que, depois da sua conversão, cai na tibieza, essa tira-nos a esperança de vermos voltar para Deus, no caso de se separar dele pelo pecado.

                Em suma, a tibieza é um mal quase incurável e desesperado. Eis a razão:  para se poder evitar qualquer perigo, é necessário conhecê-lo;  ora, o tíbio está engolfado numa tal obscuridade, que não chega mesmo a conhecer o perigo em que se encontra. A tibieza é como a febre ética que mal se faz sentir. As faltas habituais em que o tíbio cai escapam-lhe à vista. As faltas graves, diz São Gregório, por isso mesmo que se fazem conhecer melhor, corrigem-se mais depressa;  mas as leves olham-se como nada, e continua-se a cometê-las;  é assim que o homem se acostuma a desprezar as coisas pequenas, chegando por isso facilmente as desprezar também as grandes.

                Além disto, o pecado mortal causa sempre um certo horror, mesmo ao pecador habitudinário;  mas, à alma tíbia, as suas imperfeições, os seus afetos desordenados, a sua dissipação, o seu apego ao prazer e à estima própria, nenhum horror lhe inspiram;  e contudo essas pequenas faltas são para ela mais perigosas, pois que a conduzem à ruína, sem ela dar por isso;  é o que nota o Padre Alvarez de Paz.

                Dali esta célebre máxima de São João Crisóstomo, - que "em certo sentido, devemos evitar com mais cuidado as faltas leves que as graves". E a razão que o Santo dá é nós termos naturalmente horror às faltas graves, ao passo que as leves desprezamo-las, e por isso elas em breve se tornam graves. O pior é que as pequenas infidelidades, que se desprezam, tornam o homem pouco atento aos interesses da sua alma, e fazem que, uma vez lançado no hábito de não cuidar das faltas leves, venha a negligenciar também as mais graves.

                É a razão porque o Senhor nos Cânticos nos dá este aviso:  Caçai as raposas pequenas que assolam a nossa vinha;  porque a nossa vinha está em flor.. Notai neste texto a palavra raposas = Vulpes;  não nos diz o Senhor que cacemos os leões ou os tigres, mas as raposas. As raposas devastam as vinhas, pelas escavações numerosas, que fazem secar as raízes;  dum modo semelhante, as faltas habituais extinguem a devoção e os bons desejos, que são as raízes da vida espiritual.

                Ajunta o texto - parvulas:  caçai as raposas pequenas;  - e porque não as grandes?  É que das pequenas receia-me menos, e no entanto elas muitas vezes causam maior mal que as grandes;  porque, como observa o Padre Alvarez de Paz, as faltas pequenas, de que não se faz caso, impedem a chuva das graças divinas, sem as quais a alma permanece estéril, e acaba por se perder.

                Diz ainda o Espírito Santo:  Porque a nossa vinha está em flor. Que fazem as faltas veniais multiplicadas, que não se aborrecem?  Devoram as flores, isto é, abafam os bons desejos de adiantar na perfeição;  e, desde que estes desejos venham a faltar, só se andará para trás, até que se caia nalgum precipício, donde só com grande dificuldade se possa sair.

                Terminemos a explicação do citado texto do Apocalipse. Mas porque sois tíbio, começarei a lançar-vos da minha boca. Quando uma bebida é fria ou quente, toma-se com prazer;  mas, se é tépida, custa a tomar, porque provoca vômitos. É por isso que o Senhor faz esta ameaça ao tíbio:  vou começar a lançar-te da minha boca, palavras que Menóquio comenta assim:  Começa o tíbio a ser vomitado, quando, permanecendo na sua tibieza, começa a desgostar a Deus, até que enfim seja do todo rejeitado por ele no momento da morte, e para sempre separado de Jesus Cristo.

                Tal é o perigo que corre o tíbio de ser lançado, isto é, abandonado de Deus, sem esperança de regresso. É o que se significa pelo vômito, pois que se tem horror de tornar a ingerir o que uma vez se vomitou. É a explicação de Cornélio A-Lápide.

                Como é que o Senhor começa a vomitar um sacerdote tíbio?  Cessa de lhe fazer os seus convites amorosos, e é o que significa propriamente ser vomitado da boca de Deus;  retira-lhe as consolações interiores, os santos desejos, de modo que esse desgraçado se encontra privado de unção espiritual. Irá para a oração, mas com aborrecimento, dissipação e tédio;  assim, pouco e pouco será levado a deixá-la. Depois nem mesmo se recomendará a Deus, e, sem oração, cada vez se tornará mais miserável, irá de mal a pior. Celebrará a missa, recitará o Ofício, mas com mais detrimento do que fruto;  fará tudo à sobreposse, por força ou sem devoção. Esmagareis as azeitonas e não nos podereis ungir com azeite, diz o Senhor:  quer dizer, que no meio dos exercícios mais próprios para produzirem o azeite da devoção, vós permanecereis privado de toda a unção.

                Celebrar a missa, recitar o Ofício, pregar, ouvir confissões, assistir aos moribundos, tomar parte nos funerais, - são exercícios que deviam aumentar o fervor;  apesar de tudo isso, permanecereis árido, sem paz, dissipado, vítima de mil tentações. Eis como Deus começa a vomitar o tíbio.

§ 2º  O sacerdote não pode contentar-se com evitar os pecados graves

                Dirá talvez o padre tíbio:  basta-me que não cometa pecados mortais e que me salve. - Basta que vos salveis?  Não, responde Santo Agostinho:  visto que sois padre, estais obrigado a trilhar o caminho estreito da perfeição;  se seguirdes pela via larga da tibieza, não vos salvareis. "Se dizeis:  Basta, estais perdido". Segundo São Gregório, quem é chamado a salvar-se como santo, e quer salvar-se como imperfeito, não se salvará. Foi precisamente o que o Senhor fez ouvir um dia à bem-aventurada Angela de Foligno, falando-lhe assim:  "Aqueles a quem dou luzes para caminharem na via da perfeição, e degradam a sua alma, querendo seguir pela via comum, serão abandonados em mim".

                Como vimos acima, é certo que o sacerdote é obrigado a tornar-se santo, quer pela sua qualidade de amigo e ministro de Deus, quer em razão das funções augustas que exerce, não só quando oferece o sacrifício da missa, mas quando se apresenta como mediador dos homens, diante da sua divina majestade, e quando santifica as almas mediante os sacramentos;  porque é para o fazer caminhar na perfeição que o Senhor o cumula de graças e socorros especiais. Em presença disto, quando ele quer exercer com negligência o seu ministério, no meio de defeitos e faltas sem número, que não pensa em detestar, provoca a maldição de Deus:  Maldito o que faz a obra de Deus com negligência. Esta maldição significa o abandono de Deus, diz Santo Ambrósio. Costuma o Senhor abandonar essas almas que, depois de terem sido mais favorecidas com as suas graças, não cuidam de atingir a perfeição a que são chamadas.

                Quer Deus que os seus ministros o sirvam com o fervor dos serafins, escreve um autor;  de contrário, há de retirar-lhes as suas graças e permitir que adormeçam na tibieza, para dali caírem primeiro no abismo do pecado, e depois no do inferno.

                O padre tíbio, acabrunhado sob o peso de tantas faltas veniais e de tantas afeições desordenadas, permanece como que mergulhado num estado de insensibilidade. As graças recebidas e as obrigações do sacerdócio já o não tocam;  por isso o Senhor na sua justiça o privará dos socorros abundantes, que lhe seriam moralmente necessários, para se desempenhar os deveres do seu estado. Assim irá de mal a pior;  cada dia aumentarão os seus defeitos e também a sua cegueira. Havia Deus de prodigalizar as suas graças a quem se mostra avaro com ele?  Não, diz o Apóstolo:  quem pouco semeia, pouco colhe.

                Declarou o Senhor que aumentará os seus favores aos que lhe testemu-nham reconhecimento e conservam as suas graças, mas tirará aos ingratos o que primeiro lhes tinha dado.

                Noutra parte diz que, o senhor da vinha, quando não tira fruto dela, trata de a confiar a outros vinhateiros, e castiga os primeiros. Depois ajunta:  Por isso vos declaro que o reino de Deus vos será tirado, para ser dado a uma nação que colha fruto dele. Significa que Deus tirará do mundo o padre tíbio, ao qual havia confiado o cuidado do seu reino, isto é, que tinha encarregado de trabalhar na sua glória, e que dará esse encargo a outros, que lhe sejam reconhecidos e fiéis.

                Deve procurar-se na tibieza a razão por que muitos padres colhem pouco fruto, de tantos sacrifícios que oferecem a Deus, de tantas comunhões que fazem, e de tantas orações que recitam no Ofício e na Missa. Semeastes muito e colhestes pouco... e o que tinha recebido o salário do seu trabalho, lançou-o num saco roto. Tal é o padre tíbio:  os seus exercícios espirituais lança-os ele todos num saco furado, quer dizer que não lhe resta nenhum merecimento;  antes, ao fazê-los dum modo tão defeituoso se torna digno de castigo. Não, o padre que vive na tibieza não está longe da sua perda. Segundo Pedro de Blois, deve o coração do padre ser um altar em que não cesse de arder o fogo do amor divino. Mas que sinal de amor ardente dá a Deus esse padre, que se contenta com evitar os pecados mortais e não teme desagradar a Deus com as faltas veniais?  Como observa o Padre Alvarez de Paz, o sinal que dá é antes o de um amor bem tíbio.

                Para fazer um bom padre não bastam apenas graças comuns e pouco numerosas;  requerem-se graças muito especiais e abundantes. Ora, como quereria Deus prodigalizar os seus favores a quem se pôs a seu serviço, e depois o serve mal?  Santo Inácio de Loiola chamou um dia um irmão leigo da sua Companhia, que passava uma vida muito tíbia, e falou-lhe assim:  "Dizeme, irmão meu, que vieste fazer à religião?" Ele respondeu-lhe:  "Vim para servir a Deus". "Ah, meu irmão, replicou o Santo, que disseste?  Se me tivesses respondido que foi para servir um cardeal, um príncipe da terra, terias mais desculpa;  mas, visto que vistes para servir a Deus, - é assim que o serves?

                Todo o sacerdote entra na corte, não dum príncipe da terra, mas noutra muito mais alta, - a dos amigos de Deus, onde se tratam continuamente e em confidência os negócios mais importantes para a glória da soberana Majestade. Donde procede que um padre tíbio mais desonra do que honra a Deus;  porque dá a entender, pela sua conduta negligente e cheia de defeitos, que o Senhor não merece ser servido e amado com mais diligência;  que, procurando agradar-lhe, não encontra prêmio que o faça bastante feliz;  e que a sua divina Majestade não é digna dum amor tal, que nos obrigue a preferir a sua glória a todas as nossas satisfações.

§ 3º  Exortação

                Redobremos de esforços, ó padres, irmãos meus, e tremamos!  Não aconteça que todas as nossas grandezas, todas as honras a que Deus nos alteou, entre todos os homens, venham a terminar um dia na nossa condenação eterna!  Diz São Bernardo que o empenho com que os demônios trabalham na nossa ruína, deve excitar o nosso zelo, em assegurarmos a salvação. Ó, como esses inimigos terríveis porfiam em perder um padre!  Ambicionam com mais ardor a perda dum padre, que a de cem seculares, não só porque a vitória alcançada sobre um padre é para eles um triunfo mais brilhante, mas porque um padre na sua queda arrasta muitos outros desgraçados para o abismo.

                Assim como as moscas se afastam dum vaso que contenha algum líquido a ferver, e procuram outro de licor tépico, assim os demônios se mostram menos pressurosos em assaltar os sacerdotes fervorosos, que em impelir os tíbios do estado de tibieza para o de pecado. Diz Cornélio A-Lápide que o tíbio, desde que seja atacado por alguma tentação grave, está em grande perigo de sucumbir, porque se encontra quase sem força para lhe resistir;  e assim, no meio de tantas ocasiões em que se encontra, caí muitas vezes em faltas graves.

                É preciso pois que o sacerdote se aplique a evitar os pecados que comete cientemente e de propósito deliberado. Além de Jesus Cristo, que por natureza e sua divina Mãe por um privilégio especial, foram puros de toda a mancha de pecado, é certo que de todos os homens, sem exceptuar os santos, nenhum foi isento de pecados ao menos veniais. Nem os céus são puros na sua presença. Todos pecamos em muitas coisas. Como diz pois São Leão, para todos os filhos de Adão, é uma triste herança o serem manchados do pó da terra.

                Acima de tudo porém, é necessário prestar atenção a esta palavra do Sábio:  O justo cairá sete vezes e se levantará. O que cai por fragilidade, sem pleno conhecimento do mal que faz, e sem consentimento deliberado, levanta-se com facilidade. Se, ao contrário, o pecador conhece o mal e o pratica deliberadamente e, em vez de o detestar, se compraz nele, - como poderá levantar-se?

                Diz Santo Agostinho:  Se escorregamos em algumas faltas, ao menos detestemo-las e confessemo-las, e Deus no-las perdoará:  Se confessarmos os nossos pecados, Deus, que é fiel e justo no-los perdoará, e nos purificará de toda a iniqüidade. Falando dos pecados veniais, Luís de Blois ensina com Tauler que basta, para obter o perdão deles, confessá-los ao menos em geral. E noutro lugar diz que se apagam mais facilmente tais pecados, voltando-se para Deus com um sentimento de humildade e amor, do que passando muito tempo a pesá-los com excessivo temor. Lê-se igualmente em São Francisco de Sales que as faltas ordinárias das pessoas piedosas, como as cometem indeliberadamente, também se apagam indeliberadamente.

                No mesmo sentido se exprime Santo Tomás, quando diz que, para a remissão dos pecados veniais, basta um ato de detestação, implícito ou explícito, como o que uma pessoa faz, voltando-se para Deus com devoção e amor. E acrescenta:  Os pecados veniais remitem-se de três modos:  1º. pela infusão da graça, e é o que acontece, quando se recebe a Eucaristia, ou outro sacramento;  2º. por certos atos acompanhados de algum movimento de arrependimento, como são a confissão geral, o ato de tocar no peito, e a oração dominical;  3º. por atos acompanhados dum certo movimento de reverência para com Deus e as coisas divinas;  e é assim que a benção do bispo, a aspersão da água benta, a oração numa igreja consagrada, e outras coisas deste gênero, produzem a remissão dos pecados veniais.

                São Bernardino de Sena, falando especialmente da comunhão, diz:  Pode acontecer que, pela recepção da Eucaristia, uma alma se una tão estreitamente a Deus que fique purificada de todos os seus pecados veniais.

                O venerável Luís du Pont dizia:  "Tenho cometido muitas faltas, mas nunca fiz a paz com as minhas faltas". Há muitos que fazem as pazes com os seus defeitos, e é o que há de causar a sua perda. Segundo São Bernardo, enquanto se detestam as próprias imperfeições, dá se esperança de regressar ao bom caminho;  mas, deste que se peca ciente e deliberadamente, sem temor de pecar e sem dor de haver pecado, pouco a pouco se cai na perdição. As moscas que morrem no bálsamo fazem-lhe perder a suavidade do odor, diz o Sábio. Essas moscas são precisamente as faltas que se cometem e não se detestam;  porque então permanecem como mortas na alma:  é a explicação de Dionísio Chartreux. Quando uma mosca cai num perfume, diz ele, e lá permanece, estraga-o e anula-lhe o bom odor.

                No sentido espiritual, essas moscas que morrem em nós são os pensamentos vãos, as afeições mais ou menos culposas, as distrações não combalidas:  tudo isso nos rouba a doçura dos exercícios espirituais.

                Nota São Bernardo que não há grande mal em dizer que tal coisa é um pecado venial;  mas cometer esse pecado, acrescenta, e comprazer-se nele, é um mal que tem conseqüências graves, e Deus há de punir severamente, como está escrito em São Lucas:  Aquele que conheceu a vontade do seu senhor, e não fez os preparativos necessários para o seu regresso, e não cumpriu a sua vontade, receberá grande número de açoites;  o que porém o não conheceu, e fez coisas dignas de castigo, receberá poucos açoites. É verdade que nem mesmo as pessoas espirituais são isentas de pecados veniais;  mas, diz o Padre Alvarez de Paz, cada dia diminuem elas o número e a gravidade, e depois apagam a mancha por atos de amor de Deus. Quem assim procede acabará por se santificar, e as suas faltas não o impedirão de tender para a perfeição. Por isso Luís de Blois nos exorta a não nos desanimarmos com essas pequenas faltas, pois que temos muitos meios para nos corrigirmos delas.

                Mas quem ainda está preso à terra por algum laço, quem cai e recai nelas voluntariamente, sem desejar levantar-se, como poderá adiantar no caminho de Deus?  Quando a ave está solta de todas as prisões, logo levanta o seu vôo;  mas, se estivesse presa, embora por um fio delgado, permaneceria retida. O menor laço que prenda a alma à terra, dizia São João da Cruz, impede-a de adiantar na perfeição.

                Guardemo-nos pois de cair no miserável estado da tibieza;  porque, à face do que fica dito, para arrancar dele um padre, é necessária uma graça potentíssima. E que fundamento temos nós para pensar que o Senhor concederá uma tal graça a quem lhe provoca náuseas?  - Alguém dirá que já se encontra nesse estado;  - e não lhe restará esperança?  - Há ainda uma esperança:  a misericórdia e o poder de Deus, - As coisas impossíveis aos homens são possíveis para Deus. É impossível ao tíbio arrancar-se da tibieza, mas não é impossível a Deus tirá-lo dela. É preciso contudo que ele ao menos o deseje:  se nem mesmo deseja levantar-se, como poderá esperar o socorro de Deus?  Ainda assim, o que não tem esse desejo, ao menos peça ao Senhor que lho dê. Se lho pedir com perseverança, Deus lhe dará o desejo e o socorro de que necessita. A promessa de Deus não falta.

                Oremos pois e digamos com Santo Agostinho:  Senhor, nenhuns merecimentos tenho a oferecer-vos para ser atendido por vós;  mas, ó Padre eterno, a vossa misericórdia e os merecimentos de Jesus Cristo, são os meus méritos. - É também um grande meio para sair da tibieza, recorrer à santíssima Virgem.

CAPÍTULO, 6.  Do pecado da incontinência

§ 1º  Necessidade da pureza no padre

                A incontinência é chamada por Basílio de Seleucia uma peste viva, e por São Bernardino de Sena, o mais funesto de todos os vícios;  e isso porque, como diz São Boaventura, a impudicícia destrói o germe de todas as virtudes. Por isso Santo Ambrósio lhe chama a origem e mãe de todos os vícios. De fato, este vício arrasta consigo todos os crimes:  ódios, roubos, sacrilégios etc. São Remígio teve pois razão em dizer que por causa deste vício, poucos adultos se salvam. E lê-se no Padre Paulo Segneri que assim como o orgulho encheu o inferno de anjos rebeldes, assim a impudicícia o enche de homens.

                Nos outros vícios pesca o demônio ao anzol;  neste é à rede, de modo que enche mais o inferno com esta paixão, do que com todas as outras. Assim, para punir a incontinência, há Deus enviado à terra os flagelos mais espantosos:  dilúvios de água e de fogo!

                Segundo Santo Atanásio, é a castidade uma pérola mui preciosa, mas poucas pessoas cá na terra sabem encontrá-la. Ora, se esta pérola convém aos seculares, é absolutamente necessária aos padres. Entre todas as virtudes que o Apóstolo prescreve a Timóteo, recomenda-lhe em especial a castidade. Orígenes diz que é a primeira virtude que deve adornar o padre, quando sobe ao altar. E, segundo São Clemente de Alexandria, nesta vida, somente são e se podem com verdade dizer sacerdotes os de vida pura. Se pois a pureza faz o padre, a impureza dalgum modo o há de despojar da sua dignidade, diz Santo Isidoro de Pelusa.

                Eis a razão por que a santa Igreja, em tantos concílios, em tantas leis e advertências, sempre se tem mostrado ciosa de conservar a castidade nos padres. Inocêncio 3º publicou o seguinte decreto:  "Ninguém seja admitido a uma Ordem sacra, desde que não seja virgem ou duma castidade provada;  = Nemo ad sacrum Ordinem permittatur accedere, nisi aut virgo aut probatae castitatis existat. E ao mesmo tempo ordenou que os eclesiásticos incontinentes fossem excluídos - ab omnium graduum dignitate. Outro decreto é de São Gregório:  "Se alguém se manchar com um pecado carnal, depois de receber alguma Ordem sacra, seja excluído das funções da sua Ordem, e não seja mais admitido a servir ao altar ".

                Além disto, condenou todo o sacerdote réu dum pecado vergonhoso, a dez anos de penitência:  durante os três primeiros meses devia dormir no chão duro, viver na solidão, sem nenhuma comunicação com os homens, e privado da sagrada comunhão;  depois, durante ano e meio, devia sustentarse a pão e água;  nos anos seguintes, devia continuar o jejum a pão e água, mas só três dias na semana. Em suma, a Igreja olha como monstros os padres que não têm uma vida casta.


§ 2º  Malícia do pecado de impureza no padre

                Examinemos primeiro a malícia do pecado dum padre contra a castidade. O padre é o templo de Deus, tanto pelo voto de castidade que fez, como pela unção santa que o consagrou a Deus. Assim fala São Paulo de si próprio e dos outros sacerdotes, associados ao seu ministério;  o que faz dizer ao cardeal Hugues:  Acautele-se o padre de manchar o santuário de Deus, porque ele foi ungido com óleo sagrado. O corpo do padre é pois esse santuário do Senhor. Conservai-vos casto, escrevia Santo Inácio mártir, como casa de Deus e templo de Jesus Cristo. Por isso São Pedro Damião diz que os padres, manchando o seu corpo com ações desonestas, profanam o templo de Deus. Depois ajunta:  "Não demudeis os vasos consagrados a Deus, em vasos de desprezo".

                Que se diria se alguém se servisse, à mesa para beber, dum cálice consagrado?  Dirigindo-se aos padres, diz Inocêncio 2º:  Visto que eles devem ser santuário de Espírito Santo, que indignidade vê-los escravos da impureza!  Que horror ver manchado com as ignomínias dos pecados carnais um padre, que por toda a parte devia difundir, a par duma vida luz, o doce odor da pureza:  vê-lo imundo e pestilento!  Foi o que fez dizer a Clemente de Alexandria que os padres impudícos, quanto lhes é possível, mancham o próprio Deus, que habita na sua alma.

                E disso se lamenta o Senhor:  Os sacerdotes calcaram aos pés a minha lei e profanaram os meus santuários, e Eu era manchado no meio deles. Pois que, exclama Ele!  Vejo-me desonrado pela incontinência dos meus padres, porque, faltando à castidade, profanam os meus santuários, isto é, os seus corpos, que eu consagrei ao meu culto, e onde venho muitas vezes fazer a minha morada!  Foi também o que fez compreender São Jerônimo nestas palavras:  "Manchamos o corpo de Cristo, quando nos aproximamos indignamente do altar".

                Além disto, o padre imola a Deus sobre o altar o Cordeiro sem mancha, o Filho do próprio Deus;  por este motivo ainda, diz São Jerônimo, deve ser de tal modo casto, que se abstenha não só de toda a ação desonesta, mas até do menor olhar pouco honesto. São João Crisóstomo ensina igualmente que o padre deve ser muito puro, para tomar lugar no Céu entre os Anjos. Noutra parte acrescenta que a mão do padre, que há de tocar a carne de Jesus Cristo, deveria resplandecer em pureza mais que o sol.

                Onde se poderia encontrar, pergunta Santo Agostinho, um homem bastante ímpio que se atrevesse a tocar o Sacramento do altar com as mãos cheias de imundícia?

                Mas há ainda uma coisa muito mais horrível, - é que os padres ousem subir ao altar e tocar o corpo de Jesus Cristo, depois de se terem manchado com pecados obscenos, como diz São Bernardo. Ai, padres do Senhor, exclama Santo Agostinho!  Tomai cuidado para que essas mãos que se banham no sangue do Redentor, derramado outrora por vosso amor, não venham a manchar-se no sangue sacrílego do pecado.

                Demais, Cassiano observa que os padres não devem somente tocar a carne do Cordeiro sagrado, mas alimentar-se dela, o que os obriga a uma pureza mais que angélica. Segundo Pedro Comestor, quando o padre pronuncia, com os lábios manchados do vício vergonhoso, as palavras da consagração, é como se escarrasse no rosto do Salvador;  e quando mete na sua boca impura o Corpo sagrado e o Sangue precioso, é como se os lançasse na lama. Mais ainda, diz São Vicente Ferrer, esse desgraçado comete crime mais horrível do que se lançasse uma hóstia consagrada numa sentina.

                Ó Padre!  Exclama aqui São Pedro Damião, vós que deveis sacrificar a Deus o Cordeiro sem mancha, não vades antes imolar-vos ao demônio por vossas impurezas!  O mesmo santo chama aos padres impudicos vítimas do demônio, vítimas de que o inimigo das almas faz as suas delícias no inferno. É necessário ajuntar que o padre impuro não se perde só;  arrasta consigo muitos outros. Segundo São Bernardo, a incontinência dos eclesiásticos é a perseguição mais funesta que a Igreja sofre. Sobre estas palavras de Ezequias - eis que no seio da paz a minha amargura é amaríssima escreve ele gemendo:  Foi a dor da Igreja amarga na morte dos mártires, mais amarga na guerra, que lhe moveram os hereges, amaríssima na corrupção dos seus membros.

                Está em paz a Igreja, e não tem paz:  está em paz da parte dos pagãos, em paz do lado dos hereges, mas não por certo da parte dos seus filhos. Os filhos dilaceram as entranhas da sua mãe. Na verdade a Igreja sofreu cruelmente da parte dos tiranos, que pelo martírio lhe arrebataram tantos fiéis;  depois sofreu ainda mais cruelmente da parte dos hereges, que com o veneno do erro inficionaram muitos dos seus súditos;  mas o seu maior sofrimento, a sua maior perseguição é a que lhe advém dos seus filhos, desses eclesiásticos indignos, que por seus escândalos dilaceram as entranhas maternais!  - Que vergonha, exclama também São Pedro Damião, ver escravo da luxúria aquele que devia pregar a castidade!

§ 3º  Conseqüências funestas da impureza

                Examinemos agora os estragos que o pecado desonesto causa na alma, e principalmente na alma do padre.

1º. A cegueira do Espírito

                Primeiro que tudo, o pecado cega o espírito, e faz-lhe perder de vista Deus as verdades eternas. Segundo Santo Agostinho, a castidade faz que os homens vejam a Deus. Pelo contrário, o primeiro efeito do vício impuro é a cegueira do espírito, cujas conseqüências no sentir de Santo Tomás são:  cegueira do espírito, ódio a Deus, apego à vida presente, horror à vida futura ou desesperação de salvação. A impudicícia, ajunta Santo Agostinho, roubanos o pensamento da eternidade. A primeira coisa que faz o corvo, quando encontra um cadáver, é arrancar-lhe os olhos, o primeiro mal que a incontinência faz à alma é tirar-lhe a luz das coisas divinas.

                Quantos exemplos desta triste verdade!  Vêde Calvino, primeiro inclinado para a vida eclesiástica, pastor de almas, tornado depois, por essa paixão infame, o chefe duma heresia;  Henrique 8º, primeiro defensor da Igreja, depois seu perseguidor;  Salomão, que começa por ser um santo, e acaba por idólatra!  O mesmo acontece de contínuo aos sacerdotes impuros. Caminharão como cegos, porque pecaram contra o Senhor. Desgraçados!  No meio das luzes das missas que celebram, das orações que recitam, dos funerais a que assistem, permanecem cegos, como se não acreditassem, nem na morte que os espera, nem no juízo em que hão de prestar contas, nem no inferno que será a sua herança!  Parecem feridos desta terrível maldição:  Que o Senhor te faça louco, cego e delirante, de modo que andes às apalpadelas, como o cego nas trevas, e não possas trilhar o caminho direito.

                Esse lamaçal infecto em que estão engolfados, a tal cegueira os reduz, que depois de terem abandonado a Deus, - que os havia sublimado acima dos astros, - não pensam mais em prostrar-se a seus pés, a solicitar-lhe perdão:  Não terão o pensamento de voltar para o seu Deus;  porque o espírito de fornificação está no seio deles, e não conheceram o Senhor. Como diz São João Crisóstomo, nada mais pode alumiá-los, nem as advertências dos superiores, nem os conselhos dos bons amigos, nem o temor dos castigos, nem o perigo de serem desonrados. E será para a admirar que eles não vejam mais?  Caiu sobre eles o fogo, e não viram mais o sol. Que fogo, pergunta o Doutor angélico, senão o da concupiscência?. Depois, noutra parte diz:  O vício da carne extingue o juízo da razão. Os prazeres impuros não deixam mais na alma sentimento senão para os deleites carnais.

                Pela sua deleição brutal faz este vício perder ao homem até a razão, a ponte, como diz São Jerônimo, de o tornar pior que uma besta. Donde resultará que o padre impudico, cego pelas suas impudicícias, nenhuma atenção prestará, nem aos ultrajes que faz a Deus com a sua conduta sacrílega, nem ao escândalo que dá aos outros;  chegará mesmo a celebrar missa com pecado na alma. Que admira?  Quem perdeu a luz facilmente se deixa ir a toda a espécie de mal.

                Se se quer encontrar a luz, é necessário aproximar de Deus, diz o Salmista. Mais que nenhum outro vício, porém, a impudicícia afasta o homem de Deus, diz Santo Tomás. Por isso o impudico se torna semelhante a um bruto, incapaz para o futuro de compreender as coisas espirituais. Não compreende o homem animal as coisas do espírito de Deus. Nada lhe faz impressão, nem o inferno, nem a eternidade, nem a dignidade sacerdotal:  Non percipit. Segundo Santo Ambrósio, começará talvez a duvidar da fé:  "Desde que uma pessoa começa a entregar-se à luxúria, começa a afastar-se da verdadeira fé".

                Ó, quantos desgraçados padres, transviados por este vício, acabaram por perder a fé!  Assim como a luz do sol não pode penetrar num vaso cheio de terra, assim a luz divina não brilha numa alma habituada aos pecados da carne:  o habitudinário levará consigo para a sepultura os seus vícios. Os seus ossos se hão de encher dos vícios da sua juventude, (os vícios da juventude são os vícios vergonhosos)  vícios que dormirão com ele no pó.

                Como esta alma desgraçada acabará por se esquecer de Deus, no meio das suas impurezas, também Deus a esquecerá, e permitirá que ela fique abandonada nas suas trevas:  Visto que me esqueceste, e me atiraste para trás das costas, arrasta tu também o estigma da tua perversidade e das tuas abominações. São Pedro Damião explica assim:  Os que lançam a Deus para trás das costas são os que se deixam arrastar pela luxúria.

                Conta o Padre Cataneo que um pecador, que vivia em relações criminosas, foi advertido por um amigo para que emendasse a vida, se não queria condenar-se. Ele porém respondeu-lhe:  "Meu amigo, por uma tal mulher bem se pode ir para o inferno". Sem dúvida, para lá foi esse miserável, porque foi morto. - Um outro, e era padre, surpreendido em casa duma dama, a quem pretendia seduzir, foi obrigado pelo marido dela a ingerir um veneno. De regresso a sua casa, deitou-se no leito e contou a um amigo a desgraça que lhe tinha acontecido. O amigo, vendo-o prestes a expirar, exortou-o a confessar-se sem demora, mas ele respondeu-lhe:  "Não, não posso confessar-me;  só tenho um favor a pedir-te, - dize a Senhora N. que morro por amor dela". Pode ir mais longe a cegueira?

2º. A obstinação da vontade

                O segundo efeito do pecado impuro é a obstinação da vontade. Diz São Jerônimo que o que se deixa cair na rede do demônio não se escapa dela facilmente. E em Santo Tomás lê-se que nenhum pecado dá tanta alegria ao demônio como o da impudicícia, porque a carne está muito inclinada para este vício;  de modo que os que nele caem mui dificilmente se levantam. É por isso que São Clemente de Alexandria chama à impudicícia uma moléstia incurável e Tertuliano um vício sem conversão. São Cipriano chama-lhe a mãe da impenitência. É quase impossível, dizia Pedro de Blois, vencer as tentações carnais, quando se está escravizado pela carne.

                Conta o Padre Biderman que um certo jovem caía com muita freqüência no pecado da impureza;  à hora da morte fez uma confissão, acompanhada de muitas lágrimas, e morreu deixando a todos grande esperança de se ter salvado. No dia seguinte porém o confessor, ao dizer missa por ele, sentiu que lhe puxavam pela casula;  voltou-se e viu um fumo negro, donde saíam centelhas de fogo;  em seguida ouviu uma voz a dizer-lhe, que era a alma do jovem defunto, que depois de recebida a absolvição dos seus pecados fôra de novo tentado nos últimos momentos;  tinha consentido num mau pensamento e se tinha condenado.

                O profeta e o sacerdote estão manchados... eis por que o caminho deles será como um atalho escorregadio e coberto de trevas;  serão impelidos e cairão. Tal é a desgraça final dos padres impudícos:  caminham em trevas por uma via escorregadia, e são impelidos pelos demônios e pelo seu mau hábito para o abismo;  por isso lhe é quase impossível escapar à ruína. os que se entregam a este vício, diz Santo Agostinho, em breve contraem o hábito, que prestes se torna em necessidade de pecar. O gavião, que se repasta sôfrego da carne podre, deixa-se matar pelo caçador, mas não abandona a sua iguaria;  é o que acontece ao impudíco de hábito.

                E, quanto a obstinação dos padres, escravos deste vício vergonhoso, é ainda mais invencível que a dos seculares!  A razão disto é, ou porque recebem luzes mais abundantes para conhecerem a malícia do pecado mortal, ou porque a impudicícia neles é muito maior crime. De fato, eles não ultrajam somente a castidade, mas a religião, por causa do voto que fizeram;  e as mais das vezes ferem também a caridade para com o próximo, porque quase sempre a impudicícia do padre origina grande escândalo nos outros. Refere Dionísio Chartreux que um servo de Deus, levado um dia em espírito pelo seu anjo ao Purgatório, vira lá uma multidão de seculares que expiavam as suas impurezas, mas poucos padres. Perguntou a razão, e foi-lhe respondido que um padre impudíco dificilmente chega a arrepender-se devéras, e por conseqüência esses padres quase todos se condenam.

3º. A condenação eterna

                Finalmente, este vício execrável conduz o homem, e sobretudo o padre à condenação eterna. Diz São Pedro Damião que os altares de Deus não recebem outro fogo senão o do amor divino;  de modo que todos aqueles que lá sobem, com uma chama impura no coração, devem ser atormentados pelo fogo da vingança divina. E ajunta que todas as obscenidades do impudíco se hão de demudar um dia em pez que nas suas entranhas alimentará eternamente o fogo do inferno.

                Ó, que terríveis castigos reserva Deus para os padres impudícos!  E a quantos padres este pecado há precipitado no inferno!  Diz ainda São Damião:  Se o homem do Evangelho, que se tinha apresentado no festim nupcial sem o vestido conveniente, foi por isso condenado às trevas, - que há de esperar aquele que, introduzido na sala do festim celeste, longe de lá brilhar pela riqueza da veste nupcial, se mostra conspurcado com a imundícia abominável de uma luxúria espantosa?  Conta Barônio que um padre, que tinha passado uma vida licenciosa, viu à hora da morte, durante a sua agonia, uma multidão de demônios que vinham contra ele;  então voltou-se para um religioso que lhe assistia e pediu-lhe que intercedesse por ele. Um instante depois, disse-lhe que já estava no tribunal de Deus, e exclamou:  Cessai, cessai de orar por mim, são inúteis as vossas preces, estou condenado.

                Escreve São Pedro Damião que, na cidade de Parma, um padre e uma mulher foram feridos de morte repentina, no momento em que se entregavam ao crime. Nas revelações de Santa Brígida lê-se que um padre impudíco, estando no campo, fôra fulminado por um raio, que só lhe reduziu a cinzas as partes pudendas, e lhe deixou intacto o resto do corpo;  prova evidente de que Deus o tinha castigado assim, em razão da sua incontinência. - Em nossos dias morreu também repentinamente um padre no meio do crime;  e, para cúmulo de desonra foi exposto à porta duma igreja, no mesmo estado de desnudez, em que tinha sido encontrado em casa da sua cúmplice.

                Como os padres impudícos desonram a Igreja com os seus escândalos, o Senhor lhes inflige o castigo que merecem, tornando-os os mais vis e desprezíveis de todos os homens. É precisamente o que ele declara pela boca de Malaquias, falando dos padres:  Desertastes do caminho, escandalizastes a muitos, a quem ensinastes a lei..., por isso vos humilhei e entreguei ao desprezo de todos os povos.

§ 4º  Remédios contra a incontinência

                Muitos remédios indicam os mestres da vida espiritual, contra esta lepra de impureza;  mas os dois principais e os mais necessários são a fuga das ocasiões e a oração.

                Quanto ao primeiro, dizia São Filipe de Néri que neste combate a vitória é para os poltrões, isto é, para os que fogem à ocasião. Embora o homem empregue todos os outros meios possíveis, se não fugir, está perdido. Quanto ao segundo remédio, que é a oração, devemos estar persuadidos que de nós mesmos não temos força para resistir às tentações da carne. Há de vir-nos de Deus a força, - que ele não concede senão a quem lha suplica. O único baluarte contra esta tentação, diz São Gregório de Nyssa, é a oração. E antes dele tinha dito o Sábio:  Como eu sabia que não podia possuir este tesouro, se Deus mo não desse, apresentei-me diante do Senhor e pedi-lho.

                Para maior desenvolvimento sobre os meios de combater o vício impuro, e em especial sobre os dois meios aqui indicados, a fuga das ocasiões e a oração, veja-se a instrução sobre a castidade, na segunda parte desta obra.

CAPÍTULO, 7.  A missa sacrílega

§ 1º  Pureza exigida no padre para celebrar dignamente

                Lê-se no Concílio de Trento:  Devemos reconhecer que entre todas as obras, ao alcance dos fiéis, nenhuma há mais santa que este mistério terrível.

                Nem o próprio Deus pode fazer que haja no mundo uma ação maior e mais santa que a celebração duma missa. Ó, quanto mais excelente que todos os sacrifícios antigos o sacrifício dos nossos altares, em que a vítima oferecida não é já um touro ou um cordeiro, mas o próprio Filho de Deus!

                Para a vítima, o judeu tinha um boi, escreve São Pedro de Cluny;  o cristão tem Jesus Cristo;  tanto este último sacrifício excede o primeiro, como Jesus Cristo excede a um boi. Depois ajunta que uma vítima servil era a única que convinha a servos, ao passo que aos amigos e aos filhos estava reservado o próprio Jesus Cristo, como vítima que nos libertou do pecado e da morte eterna. Tem pois razão São Lourenço Justiniano em dizer que não há oferenda nem maior em si mesma, nem mais útil aos homens, nem mais agradável a Deus, que a que se faz no sacrifício da missa.

                Assim, São João Crisóstomo assegura que, durante a celebração da missa, está o altar cercado de anjos, reunidos para honrarem a Jesus Cristo, que é a Vítima oferecida neste augusto sacrifício. Que fiel poderá duvidar, pergunta por sua vez São Gregório, que no momento do sacrifício o Céu se não abra à voz do padre e numerosos coros de anjos não estejam presentes a este mistério em que Jesus Cristo se imola?  E Santo Agostinho acrescenta que os anjos se conchegam a rodear o sacerdote como servos, para o ajudarem nas suas funções.

                Falando deste grande sacrifício do Corpo e Sangue de Jesus Cristo, o Concílio de Trento nos ensina que é o próprio Salvador que aí se oferece a seu Pai, mas pelas mãos do sacerdote, que escolheu para seu ministro, encarregado de o representar ao altar. E São Cipriano tinha dito antes:  O padre ao altar ocupa o lugar de Jesus Cristo. É por isso que, ao consagrar, o padre se exprime assim:  Isto é o meu corpo;  este é o cálice do meu sangue. E o próprio Jesus Cristo disse a seus discípulos:  Quem vos ouve, a mim ouve;  quem vos despreza, a mim desprezas.

                Ora, mesmo aos antigos Levitas exigia o Senhor que fossem puros, só porque tinham por dever transportar os vasos sagrados:  Purificai-vos, vós que levais os vasos do Senhor. Sobre o que Pedro de Blois faz esta reflexão:  Quanto mais puros devem ser os que trazem Jesus Cristo nas suas mãos e nos seus corações?  E com quanta mais razão exigirá o Senhor a pureza dos padres da Lei nova, encarregados de representar ao altar a pessoa de Jesus Cristo, para oferecerem ao Padre eterno o seu próprio Filho!  Tem pois justo motivo o Concílio de Trento, para querer que os padres celebrem este augusto sacrifício com a máxima pureza de consciência possível. E é o que significa, nota o abade Rupert, a brancura da alba, de que a Igreja quer que o sacerdote se revista e cubra da cabeça aos pés, quando celebrar os divinos mistérios.

                É muito justo que o sacerdote honre a Deus com a inocência da sua vida, visto que Deus tanto o há honrado, elevando-o acima de todos os outros homens, e fazendo-o ministro seu, neste mistério sublime, como dizia São Francisco de Assis. Mas como deve o padre honrar a Deus?  Será porventura trajando ricos vestidos, anafando a cabeleira com arte, ostentando punhos elegantes?  Não, responde São Bernardo, é por uma vida irrepreensível, pelo estudo das ciências sagradas, e pelos trabalhos que empreender para glória de Deus.

§ 2º  Quanto é enorme o crime do padre que celebra em estado de pecado mortal

                Que faz então o padre que celebra, em pecado mortal?  Acaso honra ele a Deus?  Ai, muito ao contrário!  Comete contra ele o maior ultraje de que é capaz;  despreza-o na sua própria pessoa, porque pelo sacrilégio parece fazer quanto de si depende para manchar o Cordeiro imaculado, que oferece sob as espécies sacramentais!  Eis o que diz o Senhor:  Escutai, ó sacerdotes que desprezais o meu nome... Ofereceis sobre o meu altar um pão manchado e dizeis:  Em que é que te desonramos?  São Jerônimo comenta assim esta passagem:  Manchamos o pão, isto é, o corpo de Cristo, quando nos aproximamos indignamente do altar.

                Não podia Deus elevar um homem a uma dignidade mais sublime, que à dignidade sacerdotal. Que escolha teve de fazer o Senhor para formar um padre!  Primeiro, teve de escolhê-lo na multidão inumerável das criaturas possíveis;  depois teve de separá-lo de tantos milhões de pagãos e hereges;  e por último teve de tirá-lo do meio de tantos simples fiéis. Depois disto, que poder lhe não foi dado!  Se Deus tivesse concedido a um só homem o poder de fazer descer à terra por suas palavras o próprio Jesus Cristo, quanto não estaria obrigado para com o Senhor esse homem tão privilegiado, e quantas ações de graças não teria de lhe render!  Pois bem, esse poder concede-o Deus a cada um dos padres. Nada importa que o mesmo poder tenha sido confiado a muitos:  o número dos padres, nem apouca a sua dignidade, nem diminui as suas obrigações.

                Mas, grande Deus!  Que faz um padre que ousa celebrar com o pecado na sua alma?  Desonra-nos, despreza-vos, declarando por isso mesmo que este sacrifício não é tão digno dos nossos respeitos, que devamos temer profaná-lo por um sacrilégio!  Aproximar-se alguém do altar, sem o respeito que lhe é devido, diz São Cirilo de Alexandria, é mostrar que o julga digno de desprezo.

                A mão que toca a carne sagrada de Jesus Cristo, a língua que se tinge do sangue divino, diz São João Crisóstomo, deveriam ser mais puras que os raios do sol. Noutro lugar, ajunta que um padre que sobe ao altar deveria ser bastante puro e santo para merecer um lugar entre os anjos. Que horror pois para os anjos verem um padre, inimigo de Deus, levar uma mão sacrílega para o Cordeiro sem mancha, e fazê-lo seu alimento!  Onde se encontraria um homem tão ímpio, exclama Santo Agostinho, que ousasse tocar o Santíssimo com as mãos enlameadas?  Muito pior faz o padre que celebra missa com a consciência manchada. Deus então desvia os olhos, para não ver um atentado tão horrível:  Quando estenderdes as vossas mãos, afastarei de vós os meus olhos. E, para exprimir o desgosto que lhe causam esses padres sacrílegos, declara que lhes dá de atirar à cara a imundícia dos seus sacrifícios.

                Como ensina o Concílio de Trento, é verdade que o santo sacrifício não pode ser manchado pela malícia do padre. No entanto os sacerdotes, que celebram em estado de pecado mortal, não deixam de profanar, quanto podem, este adorável mistério;  por isso declara Deus que as manchas deles o atingem dalgum modo.

                Ai, Senhor, exclama São Bernardo, como é possível que os chefes da vossa Igreja sejam os primeiros a perseguir-vos?  É bem verdade, segundo São Cipriano, que o padre, que celebra em estado de pecado mortal, ultraja com a sua boca e com as suas mãos o próprio corpo de Jesus Cristo. Pedro Comestor ajunta que, quando um padre fora da graça de Deus pronuncia as palavras da consagração, escarra por assim dizer no rosto de Jesus Cristo, e quando recebe na sua boca indigna o corpo adorável do Salvador, é como se o lançasse na lama. Mas, que digo, na lama?  O padre no estado do pecado é pior que a lama:  a lama, diz Teofilato, é muito menos indigna de receber essa carne divina, do que um padre sacrílego. Segundo São Vicente Ferrer, esse miserável comete então muito maior crime do que se atirasse o Santíssima a uma sentina.

                E tal é também o sentir de São Tomás de Vilanova:  Que abominação, exclamava ele, derramar o sangue de Cristo na sentina infecta do seu coração!

                O pecado do padre é sempre gravíssimo, em razão da injúria que ele faz a Deus, que se dignou escolhê-lo para seu ministro e cumulá-lo de tantas graças. Observa São Pedro Damião que uma coisa é transgredir as leis do príncipe, e outra feri-lo com as suas próprias mãos, como faz o padre, quando celebra em estado de pecado mortal. Tal foi o crime dos judeus que ousaram levantar as mãos contra a pessoa de Jesus Cristo;  mas, segundo Santo Agostinho, o pecado dos sacerdotes que celebram indignamente é muito mais grave ainda.

                Os judeus não conheciam o Redentor como o conhecem os padres. E de mais, diz Tertuliano, os judeus só uma vez levantaram as mãos contra Jesus Cristo, ao passo que os padres sacrílegos têm a audácia de renovar com freqüência esta injúria. Notai além disto, como ensinam os doutores, que o sacerdote sacrílego ao celebrar comete quatro pecados mortais:  1º. consagra em estado de pecado;  2º. comunga em estado de pecado;  3º. administra o Sacramento em estado de pecado;  4º. ministrando-o a si próprio, administra-o a um indigno, isto que se encontra em estado de pecado.

                Era o que inflamava em zelo São Jerônimo e o fazia estuar de indignação contra o diácono Sabiniano. Miserável, exclamava!  Como não se cobriram de trevas os vossos olhos, como não se vos gelou a língua na boca, como vos atrevestes a assistir no altar em estado de pecado?  Dizia São João Crisóstomo que o padre, que se aproxima do altar com a consciência manchada de falta grave, é muito pior que o demônio. Com efeito, os demônios tremem na presença de Jesus Cristo, como o prova uma passagem que lemos na vida de Santa Teresa. Indo ela um dia comungar, percebeu aos dois lados do padre, que celebrava em pecado, dois demônios, que tremiam à vista do Santíssimo, e pareciam querer fugir. Então, do meio da hóstia consagrada, Jesus dirigiu à Santa estas palavras:  "Vê que força têm as palavras da consagração, e vê também, ó Teresa, até onde vai a minha bondade, que, para teu bem e de todos, consinto em me pôr nas mãos do meu inimigo".

                Assim os demônios tremem à vista de Jesus Cristo no Santíssimo Sacramento, ao passo que o padre sacrílego, não só não treme, mas tem a audácia de calcar aos pés, segundo a expressão de São João Crisóstomo, a própria pessoa do Filho de Deus. Verificam-se então as palavras do Apóstolo:  Quanto mais digno de castigo deveis crer aquele que calca aos pés o Filho de Deus, e trata como uma coisa impura o sangue da aliança, pelo qual foi santificado?. Em presença pois deste Deus, a cuja vista, diz Jó, tremem as colunas do céu, um verme da terra ousa calcar aos pés o sangue do Filho de Deus!

                Mas, ai!  Que maior desgraça pode acontecer a um padre, do que mudar a sua salvação em condenação, o sacrifício em sacrilégio, e a sua vida em morte?  Sem dúvida foram muito ímpios os judeus, que atravessaram o lado de Jesus Cristo, para dele fazerem sair o seu precioso sangue;  mas ainda mais ímpio é o padre, que tira do cálice este mesmo sangue, para o tratar dum modo tão indigno!  Tal é o pensamento de Pedro de Blois:  = Quam perditus ergo est, qui redemptionem in perditionem, qui sacrificium in sacrilegium, qui vitam convertit in mortem!  Verbum beati Heronymi est:  "Perfidus Judaeus, perfidus Christianus, ille de latere, iste de calice sanguinem Christi fundit"!. O próprio Senhor dizia um dia a Santa Brígida, lamentando-se destes padres sacrílegos:  Eles me crucificam mais cruelmente do que o fizeram os judeus.

                O padre que celebra em estado de pecado, diz um autor, chega por assim dizer a matar o próprio Filho de Deus, sob os olhos de seu Pai.

                Ó, que horrível traição!  Eis como Jesus Cristo se lamenta do padre sacrílego, pela boca de Davi:  Se o meu inimigo me tivesse execrado, tê-lo-ia sofrido;  mas tu, meu amigo íntimo, e um dos chefes do meu povo, tu que partilhavas das delícias da minha mesa...!  Tal é, feição por feição, o padre que diz a missa em pecado mortal:  Se o meu inimigo me tivesse ultrajado, diz o Senhor, eu o teria sofrido com menor pena;  mas tu, a quem escolhi para meu ministro, para seres o príncipe do meu povo;  tu, venderes-me ao demônio por um capricho, por um prazer brutal, por um pouco de lodo!

                Foi o que o divino Mestre declarou mais particularmente a Santa Brígida:  Padres tais não são sacerdotes meus, são antes traidores, porque me vendem como Judas. Aos olhos de São Bernardino de Sena, são estes sacerdotes ainda piores que Judas:  com efeito Judas entregou o Salvador aos judeus, mas eles entregam-no aos demônios, lançando-o num lugar submetido ao seu poder, no seio dum padre sacrílego.

                Pedro Comestor faz esta reflexão:  Quando o padre sacrílego sobe ao altar, recita a oração Aufer a nobis, e beija o altar, parece que Jesus Cristo lhe censura o seu crime e lhe diz:  Ó Judas!  É com um ósculo que me entregas?  E, quando depois esse padre estende a mão para comungar, observa São Gregório, parece-me ouvir o Redentor a dizer como outrora a respeito de Judas:  Eis comigo sobre o altar a mão que me entrega!  Foi o que fez dizer a Santo Isidoro de Pelusa que "o padre sacrílego se encontra, como Judas, possesso do demônio".

                Ó, como então o sangue de Jesus Cristo, assim profanado, grita contra este padre indigno, ainda em mais altas vozes que o sangue do inocente Abel contra Caim!  Foi o que o Salvador disse a Santa Brígida. Ó, que horror causa a Deus e aos anjos uma missa celebrada em pecado mortal!  Fê-lo o Senhor compreender um dia, em 1688, à sua fiel serva, a irmã MariaCrucificada, de Palma, na Sicília, conforme se lê na sua vida.

                Ouviu primeiro o retinir lúgubre duma trombeta, que com o estampido do trovão fazia ouvir, em todo o mundo estas palavras:  Ultio, poena, dolor!  Viu depois uma multidão de eclesiásticos sacrílegos, cujas vozes confusas formavam uma salmódia discordante. A seguir, um dentre eles se ergueu para dizer missa. Enquanto ele se revestia dos ornamentos sagrados, a igreja se cobriu de trevas e luto. Aproxima-se do altar e diz:  Introibo ad altare Dei;  neste instante, de novo retine a trombeta e repete:  Ultio, poena, dolor!  De repente - sinal visível da justa cólera do Senhor contra o ministro indigno, turbilhões de chamas se elevam e cintilam em volta do altar. Ao mesmo tempo a religiosa distingue uma legião de anjos, armados de espadas ameaçadoras, como para tirarem vingança do sacrilégio que se vai cometer.

                Quando o monstro se prepara, para o grande ato da consagração, uma multidão de serpentes saltam do meio das chamas, para o expulsarem do altar, - símbolo dos temores e remorsos da consciência. É em vão, o sacrílego sacrifica todos os remorsos à sua própria reputação. Pronuncia enfim as palavras da consagração;  então a serva de Deus observa um tremor universal, que parece abalar o céu, a terra e o inferno.

                Depois da consagração a cena muda:  Jesus Cristo aparece como um doce cordeiro, que se deixa maltratar entre as garras desse lobo cruel. No momento da comunhão, o céu obscurece-se, e todo se abala de novo, a ponto de parecer que a igreja desaba. Os anjos choram amargamente em redor do altar;  mas ainda mais amargas são as lágrimas, que inundam o rosto da Mãe de Deus;  geme ela sobre a morte de seu Filho inocente, e sobre a perda dum filho culpado.

                Depois duma visão tão terrível, permaneceu a serva de Deus de tal modo aterrada e abatida pela dor, que não pôde fazer outra coisa senão chorar. O autor da sua Vida nota que foi precisamente no mesmo ano de 1688 que se deu o grande terremoto, que tantos estragos fez na cidade de Nápoles e seus contornos, donde se pode concluir que tal castigo foi efeito da celebração desta missa sacrílega.

                Haverá no mundo crime mais horrível do que o dessa língua, que faz descer do Céu à terra o Filho de Deus, e ousa depois carregá-lo de ultrajes no mesmo instante em que o chama?  Que coisa mais espantosa que ver essas mãos, que se banham no sangue de Jesus Cristo, mancharem-se ao mesmo tempo no sangue impuro do pecado, segundo a expressão de Santo Agostinho!  Pelo menos, exclama São Bernardo, dirigindo-se ao padre sacrílego, pelo menos, ó miserável, quando quiseres levar as tuas culpas até o extremo, procura outra língua diferente da que se banha com o sangue de Jesus Cristo, e outras mãos que não sejam as que tocam a sua carne sagrada.

                Se tais padres, - dispostos a comportar-se como inimigos de Deus, que os elevou a tão altas funções, - se abstivessem ao menos de sacrificar indignamente no altar!  Mas não, diz São Boaventura, para não perderem o salário miserável duma missa, uma vil moeda, ousam cometer um crime tão horrível. Como assim!  Para falar segundo a linguagem de Jeremias, pensais então que a carne de Jesus Cristo, que ides oferecer, vos há de livrar das vossas iniqüidades?  Não;  o contato desse corpo adorável, sobre o qual vos atreveis a estender uma mão conspurcada pelo pecado, servira para vos tornar mais culpado ainda e digno de maior castigo. Quando se comete um crime, diz São Pedro Crisólogo, na presença do próprio juiz, nenhuma desculpa se pode invocar.

                Que castigo não merece sobretudo um padre que, em vez de levar consigo ao altar o fogo do amor divino, intromete lá as chamas infectas de afeições impuras!  É do que nos adverte São Pedro Damião, ao considerar o castigo dos filhos de Aarão que no sacrifício se serviram dum fogo estranho. Quem tiver uma tal audácia, ajunta ele, infalivelmente será consumido pelo fogo da vingança divina. Que Deus nos guarde pois, diz ele ainda, de virmos adorar no altar o ídolo da impureza, e colocar o Filho da Virgem no templo de Vênus, isto é, num coração impudíco. Se aquele homem do Evangelho, continua o mesmo Santo, por se ter apresentado no festim sem a veste nupcial, foi condenado às trevas eternas, - que castigo bem mais terrível está reservado para quem, admitido à sagrada mesa, não só não se encontra preparado com o vestido conveniente, mas até exala o cheiro infecto da impudicícia?

                Desgraçado, exclama São Bernardo, o que se afasta de Deus, mas muito mais desgraçado o padre, que se aproxima do altar com a consciência manchada. Falando um dia o Senhor a Santa Brígida a respeito de um padre sacrílego, disse-lhe que entrava na alma dele como Esposo, com desejo de o santificar, mas pouco depois se via obrigado a sair como Juiz, para castigar a injúria que lhe fazia este ministro indigno, recebendo-o em estado de pecado mortal.

                Mas, se o horror do ultraje, ou para melhor dizer, dos numerosos ultrajes que faz a Deus uma missa sacrílega, não pode impedir esses padres culpados de celebrarem em estado de pecado mortal, deveriam eles ao menos tremer com o pensamento do grande castigo, que lhes está preparado. Segundo São Tomás de Vilanova, não há castigo bastante rigoroso para punir um tal crime como ele merece:  = Vae sacrilegis manibus, vae immundis pectoribus impiorum Sacerdotum!  Omne supplicium minus est fragitio quo Christus contemnitur in hoc sacrificio. O Senhor disse a Santa Brígida que tais padres são amaldiçoados por todas as criaturas no Céu e na terra.

                Como noutra parte dissemos, o padre é um vaso consagrado a Deus;  portanto, assim como Baltasar foi punido por ter profanado os vasos do Templo, do mesmo modo, diz Pedro de Blois, será punido o sacerdote, que celebra indignamente. Já uma mão misteriosa se prepara para traçar estas palavras terríveis:  Máne, Thécel, Farés. Numeratum, Appensum, Divisum. Numeratum, quer dizer, um só sacrilégio basta para suspender a torrente das graças divinas;  Appensum, é bastante para fazer pender a balança da justiça divina, e decidir a ruína eterna do padre culpado;  Divisum, Deus, irritado por um crime tão atroz, o repelirá e afastará para sempre.

                É assim que se há de cumprir a palavra de Davi:  Torne-se em ruína sua a mesa posta diante deles. Sim, o altar há de tornar-se para este desgraçado o lugar do seu suplício;  ali será carregado com as cadeias que hão de retê-lo para sempre escravo do demônio, fazendo-o perseverar no mal;  porque, segundo São Lourenço Justiniano, todos os que comungam em pecado mortal permanecem mais obstinados na sua malícia. Isto está de acordo com o que o Apóstolo declarou:  O que come e bebe indignamente, come e bebe a sua própria condenação. Ó padre do Senhor, exclama sobre este ponto São Pedro Damião, vós, que deveis oferecer em sacrifício ao Padre eterno o seu próprio Filho, não vades primeiro dar-vos como vítima ao demônio!

O pecado de escândalo

                Nos tempos antigos, inventou o demônio deuses fantásticos, entregues a todos os vícios, e empenhou todos os meios para os fazer adorar, a fim de que os homens, perdendo até o horror aos crimes de que as divindades lhes davam exemplo, cressem que lhes era permitido pecar à vontade. Assim confessa o pagão Sêneca, nestes termos:  "Por estas invenções, chegou-se a destruir nos homens a vergonha de pecar". Não será fomentar os vícios e atribuí-los aos deuses, e desculpar-se do mal como o exemplo da divindade?  Imersos em tal cegueira, os desgraçados pagãos, como se vê no mesmo filósofo, diziam:

                "O que os deuses fizeram sem vergonha, hão de corar os homens de o fazer?"

                Ora, o que o demônio conseguiu dos pagãos, por meio dessas falsas divindades, que lhes propunha por modelos, hoje o consegue dos cristãos por meio de padres prevaricadores, cujos escândalos persuadem aos pobres seculares, que lhes é permitido, que lhes é permitido, ou pelo menos que não é grande mal para eles, fazerem o que vêem fazer aos seus pastores;  é o que nota São Gregório. Colocou Deus os padres na terra para servirem de modelos aos outros, do mesmo modo que o nosso Salvador foi enviado por seu Pai para ser o exemplar de todos:  Conforme o meu Pai me enviou, assim eu vos envio a vós. Por isso São Jerônimo escrevia a um bispo que evitasse tudo quanto fosse capaz de induzir a pecado os que quisessem imitá-lo.

                Não consiste o pecado de escândalo só em aconselhar diretamente o mal aos outros, mas em levar o próximo a pecar, dum modo indireto, pelo exemplo da própria conduta. "Uma palavra ou ação, mais ou menos repreensível, e que é para o próximo ocasião de ruína espiritual", dá escândalo. É assim que se define geralmente o escândalo, segundo Santo Tomás.

                E, para se conhecer quanto é grande a malícia do escândalo, basta recordar o que dele diz São Paulo:  que o que ofende o seu irmão, fazendo-o cair em pecado, ofende o próprio Jesus Cristo. São Bernardo dá esta razão:  que o escandaloso faz perder a Jesus Cristo as almas, resgatadas a preço do seu sangue;  e acrescenta que o Salvador sofre uma perseguição mais cruel da parte dos escandalosos, do que da parte dos algozes que o crucificaram.

                Mas se o escândalo é tão abominável mesmo nos seculares, quanto mais o não será no padre, que Deus estabeleceu na terra para salvar as almas e conduzi-las o para o céu!  O padre é chamado o sal da terra. É próprio do sal conservar as coisas:  assim o padre é destinado a manter as almas na graça de Deus. Em que se tornarão os outros homens, pergunta Santo Agostinho, se os padres não produzirem sobre eles o efeito do sal?  Então, prossegue ele, esse sal só será bom para ser lançado fora da Igreja e calcado aos pés, por todos os transeuntes. E, se o sal em vez de conservar não fizesse senão corromper, quero dizer, se o padre, em vez de salvar as almas, só trabalha em as perder, que castigo não chama sobre si!  Também o padre é luz do mundo. Donde São João Crisóstomo conclui que o padre deve ter uma vida tão radiante de virtudes, que possa alumiar os outros e servirlhes de modelo.

                Mas se esta luz se muda em trevas, em que se tornará o mundo?  Só servirá para precipitar na ruína o mesmo mundo, como diz São Gregório. No mesmo sentido escreveu este grande papa aos bispos de França, exortando-os a castigar os padres escandalosos. É a palavra do profeta Oséias:  Tal padre tal povo. E pela boca de Jeremias se exprime o Senhor assim:  Hei de encher de favores a alma dos meus sacerdotes, e o meu povo será enriquecido dos meus benefícios. Por isso mesmo dizia São Carlos Borromeu que, se os padres forem ricos e fecundos em virtudes, também ricos serão os povos;  mas, se os sacerdotes forem pobres, bem miseráveis serão os povos.

                Conta Tomás de Cantimpré que um eclesiástico que pregara em Paris, em presença do clero, fôra encarregado pelo demônio de saudar os príncipes da Igreja, e dar-lhe os agradecimentos, da parte dos príncipes do inferno, pelas muitas almas que deixavam perder. É precisamente do que o Senhor se lamenta pela boca de Jeremias:  O meu povo não é mais que um rebanho perdido;  os pastores seduziram as suas ovelhas:  = Grex perditus factus est populus meus;  pastores eorum seduxerunt eos. É inevitável, diz São Gregório:  quando o pastor caminha para o precipício, as ovelhas vão com ele. O mau exemplo dos padres, diz também São Bernardo, necessariamente arrasta o povo à depravação. Se um leigo, acrescenta ele, se transvia do reto caminho, perder-se-á ele só;  mas, se um padre se desgarrar, causará a perdição duma multidão de almas, sobretudo das que lhe estiverem sujeitas.

                Mandou o Senhor, no Levítico, que se imolasse um novilho pelo pecado dum só sacerdote, como pelos pecados de todo o povo;  donde Inocêncio 3º deduz que o pecado do padre pesa tanto como os pecados de todo o povo, e a razão que dá é que o padre, pecando, arrasta ao pecado todo o povo. Foi o que o próprio Deus declarou no Levítico:  Se o sacerdote que recebeu a unção santa vier a pecar, fazendo pecar o povo... Assim Santo Agostinho dizia, dirigindo-se aos padres:  Não fecheis o Céu aos fiéis;  de fato lho fechais, desde que lhes deis o exemplo duma má vida. Um dia dizia o Senhor a Santa Brígida, que os pecadores, à vista dos maus exemplos dos padres, se animavam a praticar o mal, e chegavam até a gloriar-se dos vícios, que antes os faziam corar. Assim, o Senhor ajunta que os padres maus serão carregados de maldições, muito mais terríveis que os outros homens, porque a sua má vida, é a ruína deles e também a dos outros.

                À vista duma árvore cujas folhas se mostram amarelentas e murchas, diz o autor da Obra imperfeita, logo se compreende que ela sofre nas raízes;  do mesmo modo quando se vê um povo corrompido, pode-se concluir, sem receio de proferir um juízo temerário, que é entre os seus sacerdotes que reina o mal. Com efeito, ajunta ele, a vida dos padres é a raiz que comunica a seiva das virtudes aos fiéis, que são coo os ramos a respeito da árvore. No mesmo sentido, diz Santo Ambrósio, que os padres são a cabeça, donde os espíritos vitais se difundem em todos os membros, que são os seculares. E lê-se em Isaías:  Toda a cabeça está esvaecida... Da planta dos pés ao alto da cabeça nada há nela de são. Palavras que Santo Isidoro aplica assim ao nosso assunto:  A cabeça enfraquecida é o doutor que se entrega ao pecado;  o seu mal comunica-se ao corpo. Do mesmo modo lamenta São Leão esta desordem e diz que não pode haver saúde no corpo quando não a há na cabeça.

                Santo Ambrósio, servindo-se doutra figura, pergunta:  Quem procurará uma fonte de água cristalina no meio de um lamaçal?  Por outras palavras, olharia eu como idôneo para me dar conselhos quem não soubesse aconselhar-se a si próprio?  Diz Plutarco que a corrupção dos príncipes é como um veneno lançado, não numa taça, mas numa fonte, onde todos venham colher e beber água que os há de envenenar. O que tem aplicação ainda mais aos padres;  por isso Eugênio 3º disse que os pecados dos inferiores se devem atribuir de preferência aos maus superiores.

                Aos sacerdotes chama São Gregório - Patres christianorum. É o título que lhes dá também São João Crisóstomo, que afirma que o padre, na sua qualidade de vigário de Deus, é obrigado a tomar cuidado de todos os homens, visto que é pai do mundo inteiro. Assim como um pai se torna duplamente culpado, quando dá mau exemplo a seus filhos, também o padre dalgum modo comete dois pecados, quando escandaliza os simples fiéis. Que fará o leigo, pergunta Pedro de Blois, senão o que vir fazer ao seu pai espiritual?. É precisamente o que São Jerônimo escrevia a um bispo:  Os outros acreditarão que devem fazer quanto virem que vós fazeis.

                E, conforme nota São Cesário, ao seguirem os maus exemplos dos eclesiásticos, os leigos desculpam-se dizendo:  Não fazem a mesma coisa os eclesiásticos mais graduados?  Santo Agostinho põe a mesma linguagem na língua dum homem do mundo:  O que é que me mandais?  Nem os padres fazem isso, e vós quereis que eu o faça?  Quando os padres, diz São Gregório, em vez do bom exemplo, dão escândalo, fazem de algum modo que o pecado deixe de ser aborrecido e inspire horror.

                Tais sacerdotes pois são ao mesmo tempo pais e parricidas, visto que são a causa da morte de seus filhos. Disto se lamentava São Gregório:  "Vêde donde partem os dardos, que semeiam a morte nas fileiras do povo;  - qual a causa de tantos males senão os nossos pecados?  Sim, damos a morte ao povo, nós que devíamos ser os seus guias nos caminhos da vida".

                Dirão talvez alguns na sua cegueira:  Que me importam os pecados dos outros?  - Digam lá o que quiserem, mas escutem o que escreveu São Jerônimo:  "Se disserdes:  'Basta-me a minha consciência;  não me importo com o que disserem', escutai o que vos responde o Apóstolo:  Devemos aplicar-vos a praticar o bem, não só diante de Deus, mas também diante dos homens". Nota São Bernardo que os padres escandalosos dão a morte aos outros, dando-a a si próprios. E noutra parte acrescenta que não há peste mais funesta aos povos, que a ignorância e a corrupção unidas nos padres. Ajunta ainda noutro lugar que muitos padres são católicos na sua pregação, mas hereges nos seus costumes;  porque fazem muito maior mal com os seus maus exemplos, que os hereges, ensinando o erro:  têm as obras mais força que as palavras.

                Segundo Sêneca, para cair no vício, como para chegar à virtude, é longo o caminho do ensino, ao passo que o do exemplo é curto e eficaz. O que fez dizer a Santo Agostinho, falando especialmente da castidade dos sacerdotes:  A todos é indispensável a castidade, mas especialmente aos ministros do altar de Jesus Cristo, porque a sua vida deve ser uma pregação contínua para os outros. Como pregar a castidade, quando se é escravo da impudicícia?  Tal é a reflexão de São Pedro Damião. O estado em que se acha constituído, o hábito que veste, tudo nele diz São Jerônimo, reclama e exige a santidade.

                Que escândalo não será pois na Igreja, segundo nota São Gregório, ver aquele que é honrado, com um nome e caráter sagrados, dar o exemplo do vício!  E que desordem ainda mais horrível, acrescenta Santo Isodoro de Pelusa, ver um sacerdote servir-se da sua dignidade como de uma arma para ofender a Deus!  Segundo a palavra de Ezequiel, um tal padre torna abominável a nobreza do seu estado. Diz São Bernardo que os padres que não dão bom exemplo são a fábula de todo o mundo. É já uma grande desordem que os padres vivam à maneira das pessoas do mundo, observa o autor da Obra imperfeita, mas o que será se a sua conduta for pior que a dos mundanos?

                E que exemplo pode o povo receber de vós, pergunta Santo Ambrósio, se em vós nota certas ações que o fazem envergonhar, devendo olhar-vos como santos?

                Lê-se no profeta Oséias:  Ouvi isto, ó sacerdotes... visto que se trata de culpa vossa, porque vos tornastes como um laço e uma rede estendida para caçar aves. Para atrair as aves aos seus laços, serve-se o caçador do chamariz doutras aves, que retém presas no lugar em que preparou as armadilhas. O mesmo faz o demônio:  serve-se dos escandalosos para atrair os outros aos seus laços. Desde que uma alma se deixa cair, diz Santo Efrém, serve-se dela para seduzir outras. É dos escandalosos que se queixa o Senhor pela boca de Jeremias, quando diz:  Há no meu povo ímpios que, à semelhança do passareiro, armam emboscadas e estendem laços traiçoeiros para caçarem os homens.

                Mas os que os demônios buscam com mais empenho e escolhem de preferência, para chamariz nesta caça, são os padres escandalosos, diz São Cesário, o qual explica como é que os demônios se servem deles:  Fazem como os passareiros que, tendo tomado algumas pombas, as tornam cegas e surdas, para que as outras pombas se aproximem delas e caiam nas armadilhas.

                Afirma um autor que antigamente, quando um simples clérigo ia a passar na rua, todos se levantavam, e cada um se recomendava às suas orações. Vê-se o mesmo nos nossos dias?  Ai!  Devemos exclamar Jeremias:  Como se obscureceu o ouro, como se embaciou o seu brilho, como se dispersaram as pedras do santuário pelos ângulos de todas as praças?  Eis como São Gregório explica toda esta passagem:  Está o ouro obscurecido, porque os padres desonram a sua vida com ações baixas:  está empanado o vivo resplendor do ouro, porque o mais santo dos estados se tornou desprezível, por obras abjectas;  dispersaram-se as pedras do santuário pelos ângulos de todas as praças, porque os que deviam passar uma vida toda interior e de oração, só se ocupam de coisas exteriores. Quase não há negócios seculares que não sejam administrados pelos padres.

                Lê-se nos Cânticos:  Combateram contra mim os filhos de minha mãe. Orígines aplica estas palavras aos padres que, por seus escândalos se armam contra a Igreja, sua mãe. Diz São Jerônimo que a vida criminosa dos padres produz a devastação na Igreja. E a propósito da lamentação de Ezequias - Eis que no seio da paz a minha amargura é amaríssima - São Bernardo põe na boca da Igreja estas palavras:  Tenho a paz do lado dos pagãos, tenho a paz do lados dos hereges, mas em verdade não a tenho da parte dos meus filhos. Não sou hoje perseguida pelos pagãos, não há tiranos;  não sou perseguida pelos hereges, não há heresias novas;  mas sou perseguida pelos meus próprios filhos, pelos sacerdotes, cuja vida desordenada me rouba um grande número de almas!  Não, diz São Gregório, ninguém prejudica tanto a causa de Deus como os padres que, estabelecidos para encaminharem os outros, são os primeiros a dar-lhes maus exemplos.

                Pelos seus maus exemplos, fazem os maus sacerdotes que os povos desprezem o ministério deles, isto é, os sermões, as missas, e todos os ministérios da religião. Por isso o Apóstolo lhes dirige este aviso:  Não demos a ninguém ocasião de escândalo, para que não se torne desprezível o nosso ministério;  mostremo-nos ao contrário verdadeiros servos de Deus. Se a lei de Jesus Cristo é desprezada, diz Salviano, a causa disso somos nós, os padres. São Bernardino de Sena ajunta que muitos cristãos, à vista dos maus exemplos dos eclesiásticos, chegam a vacilar na fé, e acabam por se abandonar aos vícios, desprezando os sacramentos, o inferno e o Paraíso.

                Segundo o autor da Obra imperfeita, quando os infiéis viam os desregramentos dos sacerdotes, diziam que o Deus dos cristãos ou não existia, ou era um deus mau;  porque, acrescentavam, se fosse bom, como poderia suportar tais desordens nos seus ministros?  Na Instrução sobre a missa, mais de espaço nos havemos de referir ao caso de um herege que estava disposto a converter-se:  tendo porém visto em Roma um padre a dizer missa com pouco respeito, desistiu de abjurar os seus erros, dizendo que nem o próprio papa tinha fé;  de contrário, teria mandado queimar vivos tais padres, desde que os conhecesse.

                Dizia São Jerônimo que, procurando saber pela história quais os homens que têm difundido na Igreja o veneno das heresias e pervertido os povos, não encontrava outros senão os padres. Pedro de Blois diz por sua vez:  É pela negligência dos padres que as heresias se têm multiplicado... Por causa dos nossos pecados, é que a Igreja tem sido calcada aos pés e caído no desprezo. E, no sentir de São Bernardo, mais mal nos fazem os padres escandalosos, que os próprios hereges;  porque, afirma ele, está no nosso poder guardarmo-nos dos heréticos, - mas como será possível guardarmonos dos padres, cuja assistência a cada instante nos é necessária?  Eis as suas palavras:  Uma peste mortal invade hoje todo o corpo da Igreja;  e o mal é tanto mais assombroso quanto se mostra geral;  é tanto mais funesto quanto procede do interior.

                Se o inimigo fosse um herege declarado, poderia lançar-se fora;  se o inimigo se apresentasse com as armas na mão, poderia a Igreja furtar-se aos seus golpes;  mas como lançá-lo fora?  Como escapar aos seus golpes?  Todos são a um tempo amigos e adversários dela.

                Ó, que terrível castigo está reservado para os padres escandalosos!  Se é ameaçado de grande desgraça todo o homem por quem vem o escândalo, que desgraça ainda mais terrível há de estalar sobre aquele que Deus escolheu para ser ministro seu!  De preferência a tantos outros, o encarregou Deus de lhe granjear frutos, salvando-lhe almas, e ele, por seus maus exemplos, arrebatou almas ao seu divino Mestre!  Diz São Gregório que tais sacerdotes merecem sofrer tantas mortes, quantos os maus exemplos que dão. Falando dos padres em especial, disse o Senhor a Santa Brígida:  Serão duplamente malditos os que por sua conta se perdem a si próprios e consigo perdem os outros. São os sacerdotes encarregados da vinha;  o Senhor porém expulsa da sua vinha os maus jornaleiros e a confia a outros, que saibam produzir bons frutos.

                Ai!  Que será dos padres escandalosos no dia do juízo?  Hei de aparecerlhes como a ursa a que arrebataram os filhos. Com que furor se não precipita a ursa contra o caçador que vai para lhe arrebatar e matar os filhos!  É assim, diz o Senhor, que eu me lançarei contra os sacerdotes que, em vez de me salvarem as almas, as fazem perder. E, se nesse dia terrível cada um há de ter dificuldade em responder por si, pergunta Santo Agostinho, que será dos padres que hão de dar conta de tantas almas que fizeram perder?  O autor da Obra imperfeita acrescenta:  Quando os padres vivem em pecado, todo o povo se afunda nos vícios;  também, ao passo que os outros só prestarão conta dos próprios pecados de todos.

                Ó, quantos seculares, quantos pobres camponeses e mulheres humildes, serão no Vale de Josaphat um motivo de confusão para os padres!  Acrescenta ainda o autor da Obra imperfeita:  No dia do juízo hão de ver se leigos revestidos da túnica da glória destinada aos padres;  e alguns padres, por seus pecados, despojados da dignidade sacerdotal e repelidos para o meio dos infiéis e hipócritas.

                Guardemo-nos pois, ó sacerdotes, ó irmãos meus, de causar por nossos maus exemplos a perda das almas, nós a quem Deus colocou na terra para as salvar. Em ordem à consecução deste fim, evitemos com zelo não só as ações, más em si mesmas, mas até as que tenham aparência de mal, conforme a palavra do Apóstolo:  Ab omni specie mala abstinete vos. Por esta razão ordenou o concílio de Agda:  Ut ancillae a mansione, in qua clericus manet, removeantur. Ter na própria casa criadas novas, - ainda mesmo que, por impossível, não fossem ocasião de pecado, - seria pelo menos uma aparência de mal, que podia ser motivo de escândalo para os outros.

                Assim o Apóstolo nos adverte que devemos abster-nos até de certas coisas permitidas, com receio de escandalizar os fracos. Devemos absternos igualmente, com muito cuidado, de repetir certas máximas do mundo, tais como estas:  É preciso que não nos deixemos calcar aos pés;  é necessário gozar da vida;  felizes os ricos;  Deus é cheio de misericórdia e compadece-se das nossas fraquezas. (falando-se de pecadores, que persistem nas suas desordens)  Que escândalo não seria também aplaudir quem pratica o mal, por exemplo:  um homem que se vinga, ou que mantém relações perigosas!  Louvar os que fazem o mal, diz São Crisóstomo, é muito pior que praticálo!  Finalmente, quanto ao passado, quem teve a desgraça de dar algum escândalo, ou qualquer ocasião de pecado, deve saber que está obrigado a repará-lo publicamente por seus bons exemplos.

CAPÍTULO, 8.  Zelo a que é obrigado o padre

                Cumpre notar que, num retiro eclesiástico, de todos os discursos a fazer, o mais importante, e de que se pode esperar mais fruto, é o que versa sobre o zelo;  porque, se de entre os ouvintes, - como se deve esperar da graça do Senhor, - algum sacerdote vier a tomar a resolução de trabalhar, com ardor na salvação do próximo, ter-se há ganhado, não apenas uma alma, mas cem, mil almas, que se salvarão por meio desse padre.

                Vamos falar neste capítulo:

                1º. Da obrigação, que têm todos os padres de trabalhar na salvação das almas;

                2º. Do prazer que dá a Deus o padre, que trabalha na salvação das almas;

                3º. Da salvação eterna e da grande recompensa que pode esperar de Deus o padre, que trabalha na salvação das almas;

                4º. Do fim, meios e obras do padre zeloso.

§ 1º  Da obrigação que incumbe aos padres de trabalhar na salvação das almas

                Lê-se na Obra imperfeita:  Muitos padres e poucos padres:  muitos no nome, poucos nas obras. Está o mundo cheio de padres, mas poucos dentre eles trabalham por ser verdadeiros padres, isto é, por satisfazer a grande obrigação que o sacerdócio impõe, à obrigação de salvar almas. É uma alta dignidade a dos padres, visto que são cooperadores do próprio Deus. Que há de mais nobre, diz o Apóstolo, que trabalhar com Jesus Cristo na salvação das almas, que ele resgatou com o seu sangue?  É por isso que São Dionísio Areopagita chamava à dignidade sacerdotal a mais divina de todas as dignidades. De fato, como diz Santo Agostinho, maior poder se exige para justificar um pecador, que para criar o Céu e a terra.

                São Jerônimo chamava aos padres os salvadores do mundo, e São Próspero dava-lhes o título de intendentes da casa real de Deus. E primeiro Jeremias os tinha designado com o nome de pescadores e caçadores do Altíssimo:  Hei de enviar muitos pescadores, diz o Senhor, e eles os pescarão;  e depois, hei de enviar-lhes caçadores, e eles os procurarão, para os retirarem de todos os montes, e de todas as colinas e das cavernas. É precisamente aos padres que Santo Ambrósio aplica esta passagem. Os bons sacerdotes reconduzem a Deus os pecadores mais pervertidos e libertam-nos de todos os seus vícios:  Monte, da montanha do orgulho;  colle, da colina da pusilanimidade;  e cavernis, dos maus hábitos, que trazem consigo as trevas para o espírito e o endurecimento para o coração.

                Falando de Deus, diz Pedro de Blois:  Na obra da criação, não teve Deus nenhum auxiliar, mas no mistério da redenção quis ter cooperadores. Ao rei, diz São João Crisóstomo, foram confiadas as coisas da terra, mas a mim, a mim sacerdote, as coisas do Céu. Ainda que a bem-aventurada Virgem é superior aos apóstolos, diz Inocêncio 3º, nem por isso lhe confiou Deus as chaves do reino dos Céus, mas sim àqueles.

                O padre é chamado por São Pedro Damião - guia do povo de Deus;  por São Bernardo guarda da Igreja, que é a Esposa de Jesus Cristo;  e por São Clemente um Deus terreno. É na verdade por meio dos padres que se formam os santos na terra. Afirma São Flaviano que a esperança e a salvação dos homens estão nas mãos dos sacerdotes. E São João Crisóstomo diz:  Os nossos pais geraram-nos para a vida presente, os padres para a eterna. Sem os padres, diz Santo Inácio Mártir, não haveria santos na terra. Muito antes tinha dito Judite que dos padres está dependente a salvação dos povos. Ensinam os padres aos seculares a prática das virtudes, e é delas que depende a salvação deles. Isto fez dizer a São Clemente:  Honrai os padres que vos guiam pelo caminho da santidade.

                Bem alta pois é a dignidade do padre, mas à mesma altura está também a obrigação que lhe incumbe de trabalhar na salvação das almas. Ouçamos o que diz o Apóstolo:  Todo o Pontífice escolhido dentre os homens, é estabelecido a favor dos homens no que respeita ao culto divino, para oferecer dons e sacrifícios pelos pecados. Depois ajunta:  É necessário que o padre saiba condoer-se dos que estão na ignorância e se acham extraviados. O padre pois recebeu de Deus uma dupla missão:  a de o honrar pelos sacrifícios, e a de salvar as almas, instruindo os ignorantes e convertendo os pecadores.

                Há uma diferença completa entre os seculares e os eclesiásticos:  aqueles aplicam-se às coisas terrenas e só cuidam de si próprios;  estes formam o povo eleito, encarregado de adquirir tesouros, mas que tesouros?  O ofício de clérigo, responde Santo Ambrósio, é ganhar, não dinheiro, mas almas. O mesmo nome de padre, em latim sacerdos, exprime a natureza das suas funções:  segundo Santo Antonino, que faz derivar esta palavra de sacra docens, e segundo Santo Tomás que a explica por sacra dans. Honório de Autum pensa que presbyter vem de praebens iter, - o que mostra ao povo o caminho por onde se chega do exílio à patria. Está isto de acordo com o sentir de Santo Ambrósio, que chama aos padres os guias e dirigentes do rebanho de Jesus Cristo. Donde o santo tira esta conclusão:  Que a vida corresponda ao nome, que o nome não seja uma palavra vã;  o que não poderia dar-se sem um crime enorme.

                Se pois os nomes de Sacerdos e de Presbyter significam que o padre deve servir de sustentáculo às almas, guiálas no caminho da salvação, e conduzi-las ao Céu, necessário é, segundo a reflexão de Santo Ambrósio, que o nome seja justificado pelas obras, para não ser um título vão;  não aconteça que a honra das funções sacerdotais se torne um crime, ou uma ignomínia, como diz São Jerônimo.

                Se quereis cumprir os deveres do sacerdócio, continua ainda São Jerônimo, procedei de modo a salvardes a vossa alma, salvando os outros. Preservar as almas da corrupção do mundo e conduzi-las para Deus, tal é, segundo Santo Anselmo, a função própria do padre. E segundo o abade Filipe da Boa Esperança, o Senhor separou os padres do resto dos homens, para que eles trabalhem, não só na sua própria salvação, mas ainda na dos outros. Nasce o zelo do amor, como diz Santo Agostinho;  assim como a caridade nos obriga a amar a Deus e ao próximo, também o zelo nos obriga primeiro a procurar a glória de Deus, e impedir que se ultraje o seu nome;  depois a promover o bem do próximo e preservá-lo do mal.

                Não digais:  Sou um simples padre, sem cura de almas, basta que cuide de mim. Não;  todo o padre é obrigado a trabalhar na salvação das almas, segundo as suas forças e a necessidade em que elas se encontrarem. Assim, quando as almas por falta de confessores se encontram em grande necessidade espiritual, até o simples padre está obrigado a confessar, como demonstramos na nossa Teologia moral. Se não tem a ciência precisa, para exercer esta função do seu ministério, está obrigado a adquirila. É o sentir do Padre Pavone, da Companhia de Jesus, e que não é destituído de razão. Com efeito, assim como o Padre eterno enviou Jesus Cristo à terra para salvar o mundo, assim também Jesus Cristo destinou os padres, para converterem os pecadores:  Assim como meu Pai me enviou, assim eu vos envio. Razão esta por que o Concílio de Trento exige, dos que aspiram ao sacerdócio, que sejam julgados idôneos para a administração dos sacramentos.

                Estabeleceu Deus a Ordem sacerdotal neste mundo, diz o Doutor angélico, para que haja cá homens encarregados de santificar os outros, pela administração dos sacramentos. E é especialmente para a administração do sacramento da Penitência que os padres estão colocados na terra, porque a seguir às palavras que acabamos de citar, - Eu vos envio como meu Pai me enviou, - São João ajunta imediatamente:  Dito isto, soprou sobre eles e disse-lhes:  Recebei o Espírito Santo;  aqueles a quem perdoardes os pecados ser-lhes-ão perdoados. Mas, se o perdoar os pecados é um dos principais deveres do padre, segue-se que é uma das suas principais obrigações aplicar-se a cumpri-lo, ao menos quando a necessidade o exigir;  de contrário, merecerá a censura de ter faltado ao aviso que São Paulo dirigia aos seus irmãos no sacerdócio:  Nós vos exortamos a não receberdes em vão a graça de Deus.

                São os padres destinados por Deus a serem o sal da terra, e assim preservarem as almas da corrupção dos pecados, conforme a reflexão do venerável Beda. Mas, se o sal já não tem a propriedade do sal, para que serve ele, no dizer do Evangelho, senão para ser lançado fora da casa do Senhor e calcado aos pés de todos os transeuntes?

                O padre, diz São João Crisóstomo, é como que o pai do mundo inteiro;  deve pois tomar cuidado de todas as almas, que pelo seu ministério puder ajudar a salvar, correspondendo assim às vistas de Deus, de quem faz as vezes. Além disto, os padres são os médicos encarregados por Deus da cura das enfermidades de todas as almas. Assim os chama Orígenes:  Medicos animarum;  do mesmo modo São Jerônimo:  Medicos spirituales. E São Boaventura ajunta:  Se o médico abandona os doentes, quem tomará cuidado deles?.

                Demais, são os padres chamados muros da Igreja. Santo Ambrósio diz:  Habet et Ecclesia muros suos;  e o autor da Obra imperfeita:

                Muri illius sunt sacerdotes. Por Jeremias são também chamados as pedras que sustentam a Igreja de Deus;  e por Santo Euquério as colunas que sustentam o mundo e o impedem de desabar. Finalmente São Bernardo os chama casa do próprio Deus. Dizemos pois com o autor da Obra imperfeita que se não cair senão parte do edifício, será fácil repará-lo;  mas se as paredes da casa, se os alicerces, se as colunas que a sustentam vierem a cair, que reparação será ainda possível?

                Também na Obra imperfeita os padres são chamados da vinha do Senhor.

                Mas, ó Céu!  exclama em gemidos São Bernardo, os vinhateiros não se poupam nem a suores nem a fadigas, trabalham dia e noite na cultura das suas vinhas;  pela sua parte porém que fazem os padres, a quem o Senhor encarregou o cultivo da sua vinha?  Adormecem ociosos e consomem as suas forças no meio dos prazeres terrenos!

                É grande a seara, mas são poucos os obreiros. É certo que nem os bispos nem os pastores seriam bastantes para as necessidades dos povos;  se Deus não tivesse mandado outros sacerdotes em socorro das almas, não estaria a sua Igreja bem provida.

                Diz Santo Tomás que os doze apóstolos, encarregados por Jesus Cristo da conversão do mundo, figuravam os bispos, e que os setenta e dois discípulos representavam todos os padres. Estes estão estabelecidos para trabalharem na salvação das almas, - fruto que o Redentor espera do ministério deles:  Eu vos estabeleci para que vades pelo mundo e façais fruto. Tal a razão por que Santo Agostinho chama aos padres administradores dos interesses de Deus. Receberam eles a missão de extirpar os vícios e as máximas perniciosas do meio dos povos, fazendo florescer em seu lugar as virtudes e as máximas eternas. No dia em que Deus eleva algum ordinando ao sacerdócio, impõe-lhe a mesma obrigação que outrora a Jeremias:  Eis que hoje te estabeleci sobre as nações e os reinos, para que arranques, e destruas, e dissipes, e edifiques e plantes.

                Não sei como se poderá desculpar um padre que vê as necessidades instantes das almas, onde habita;  que pode socorrê-las, quer ensinando-lhes as verdades da fé, quer pregando-lhes a palavra de Deus, ou ainda ouvindoas de confissão, e que o não faz por preguiça. Não sei, repito, como no dia do juízo um tal padre poderá escapar à reprovação e castigo com que o Senhor, no Evangelho, ameaça o servo negligente, que escondeu o talento. Tinha-lhe o senhor confiado o talento para que negociasse com ele, mas o servo deixou-o estéril, e, quando lhe pediu conta dos lucros a feridos, respondeu:  Escondi o vosso talento na terra;  ei-lo, entrego-vos o que vos pertence.

                Ora, é precisamente o que seu senhor lhe censura:  Como assim, lhe diz, dei-te um talento para negociares;  está aqui o talento, mas onde está o lucro?  - Mandou então que lhe tirasse o talento, e deu-o a outro;  depois fez lançar nas trevas exteriores esse servo inútil:  Tirai-lhe o talento, dai-o ao que tem dez... e quanto ao servo inútil, lançai-o nas trevas exteriores. Por trevas exteriores, entende-se o fogo do inferno, que é privado de luz, isto é, que está fora do Céu, como explicam os intérpretes.

                Santo Ambrósio e outros, como Calmet, Cornélio e Tirin, aplicam esta passagem do Evangelho aos que podem trabalhar na salvação das almas, e por uma negligência culpável, ou vão temor de pecar, deixam de o fazer. Que prestem atenção a esta passagem, diz Cornélio A-Lápide, os que por moleza ou temor de pecar, nem para a sua salvação nem para a do próximo, fazem uso dos talentos, ciência e outros dons que receberam de Deus;  de tudo lhes há de pedir contas Jesus Cristo no dia do juízo. E São Gregório:  Notem os padres ociosos, quem não quiser empregar o seu talento será privado dele e além disso condenado. E Pedro de Blois:  O que faz servir à utilidade de outrem o dom que recebera de Deus, merece que lhe seja acrescentado o que já tem;  mas o que enterra o talento do Senhor, ver-se-á despojado do que parecia ter. São João Crisóstomo afirma não se poder persuadir de que um padre, que nada faz pela salvação do seu próximo, possa salvar-se.

                Pois, aludindo, à parábola do talento, ajunta que a negligência dum tal padre, em usar do talento que lhe foi confiado, será o seu crime e a causa da sua condenação. Pouco lhe aproveitará, diz o santo, não ter perdido o talento que recebêra;  o servo foi condenado precisamente por não ter aumentado e duplicado o seu. Em resposta aos que dizem - basta que salve a minha alma - escreveu Santo Agostinho:  Que dizeis vós?  Esqueceis o que aconteceu ao servo que tinha escondido o seu talento?

                Segundo São Próspero, ao padre não lhe basta para se salvar que viva santamente, porque se perderá com os que se perderem por sua culpa;  e de que lhe servirá, ajunta ainda, não ser castigado pelas suas faltas pessoais, se o é pelos pecados dos outros?  Lemos nos Cânones apostólicos:  O padre que não tomar cuidado, nem do clero nem do povo, será separado dos seus irmãos e, se continuar na sua negligência, será deposto. Como se atrevem a pretender a honra do sacerdócio, pergunta São Leão, se não querem trabalhar pelas almas?

                Um decreto do Concílio de Colônia estatuiu que quem se introduzir no sacerdócio, sem a intenção de exercer as funções de vigário de Jesus Cristo, isto é, de trabalhar na salvação das almas, é um lobo e um bandido, segundo a expressão do Evangelho, e deve esperar um castigo tão terrível como certo.

                Santo Isidoro não hesita em declarar culpados de falta grave dos padres, que descuram ensinar os ignorantes ou converter os pecadores. E São João Crisóstomo exprime o mesmo pensamento:  Estão condenados muitos, não por seus próprios pecados, mas por pecados alheios, que não impediram. Falando dos simples padres, diz o Doutor angélico que aquele que, por negligência ou ignorância, não presta às almas os socorros do seu ministério, torna-se responsável diante de Deus pelas que podia salvar, e por sua falta não salvou. É ainda o sentir de São João Crisóstomo:  Se o padre se contenta com salvar a sua alma, negligenciando as dos outros, será precipitado no inferno com os ímpios.

                Um sacerdote que tinha passado uma vida piedosa e retirada, encontrando-se em Roma prestes a morrer, interrogado a respeito dos seus terrores, respondeu:  "Tremo, porque não tenho trabalhado em salvar almas". Tinha razão para temer, porque o Senhor estabeleceu os sacerdotes para salvar as almas e libertá-las dos vícios. Se o padre não desempenhar a sua missão, terá de dar contas a Deus de todas as almas que se perderem por sua culpa:  Quando digo ao ímpio:  Tu morrerás, se pela tua parte o não advertires e não instares para que se converta e viva, morrerá o ímpio por causa da sua iniqüidade, mas Eu te pedirei contas do seu sangue. Assim, diz São Gregório, ao falar dos padres preguiçosos, que eles serão responsáveis diante de Deus por todas as almas que podiam socorrer, e de cuja perda se tornaram causa por sua negligência.

                Jesus Cristo resgatou as almas à custa do seu sangue. Depois, como Redentor, confiou-as à guarda dos padres. Desgraçado de mim, exclamava São Bernardo, vendo-se padre, se negligenciar a guarda deste depósito, isto é, as almas que o Salvador julgou mais preciosas que o seu sangue!  Os simples fiéis só hão de prestar contas dos seus próprios pecados, diz o autor da Obra imperfeita, mas o padre há de responder pelos pecados de todos. É o que o Apóstolo nos declara nesta passagem:  Vigiam eles sobre vós, como quem há de dar contas a Deus das vossas almas. Deste modo, ajunta São João Crisóstomo, são imputados ao padre os pecados dos outros, a que ele por negligência não deu remédio.

                Daí a reflexão de Santo Agostinho:  Se no dia do juízo cada um há de ter dificuldade em responder por si, - que será dos padres, a quem se pedirá contas das almas de todos os fiéis?  E São Bernardo, ao considerar os que se fazem padres, não para salvarem almas, mas para terem uma vida mais cômoda, exclama com dor:  Ai!  Melhor seria para eles cavar a terra ou mendigar, do que serem revestidos do sacerdócio;  porque no dia de juízo se levantarão contra eles as lamentações de todas as almas que a sua preguiça fez condenar.

§ 2º  Quanto agrada a Deus o padre que trabalha na salvação das almas

                Para se conhecer quanto Deus deseja a salvação das almas, basta considerar o que ele fez na obra da redenção dos homens. Esse desejo bem o patenteou Jesus Cristo, quando disse:  Tenho de ser batizado com um batismo de sangue, e quanto estou ansioso de que ele se consuma!  Sentia-se como desfalecer, em razão do desejo que tinha de levar a cabo a obra da redenção, para ver os homens salvos. Donde com razão conclui São João Crisóstomo que nada há mais caro aos olhos de Deus, que a salvação das almas. E antes dele tinha dito São Justino:  Nada agrada tanto a Deus como os esforços que se fazem para tornar os homens melhores. Um dia que o Padre Bernardo Colnado se dava a grandes trabalhos pela conversão dos pecadores, o próprio Senhor lhe dirigiu estas palavras:  Trabalha na salvação dos pecadores, porque nada me é mais agradável.

                Trabalhar na salvação das almas é uma obra tanto do agrado de Deus, acrescenta São Clemente de Alexandria, que parece não ter ele outro pensamento senão o de ver todos os homens salvos. Por isso São Lourenço Justiniano dá este aviso ao padre:  Se desejas honrar a Deus, o mais seguro meio que para isso tens é trabalhar na salvação dos homens.

                Aos olhos de Deus, diz São Bernardo, mais vale uma alma que o universo inteiro. Também, segundo São João Crisóstomo, quem converte uma só alma torna-se mais agradável ao Senhor, que quem reparte todos os seus bens em esmolas. E Tertuliano afirma que o regresso duma só ovelhinha desgarrada é tão caro a Deus como a salvação de todo o rebanho. Neste sentido dizia o Apóstolo:  Ele me amou e se entregou por mim. Queria assim significar que Jesus Cristo teria morrido por uma só alma, como morreu por todos os homens, conforme a interpretação de São João Crisóstomo. Foi o que o nosso Redentor nos deu bem a entender na parábola da dracma perdida, sobre a qual diz o Doutor angélico:  Tendo encontrado a dracma, reuniu todos os anjos e convidou-os a regozijarem-se, não com o homem, mas com ele próprio, como se o homem fosse o Deus de Deus, como se a salvação do próprio Deus dependesse de tornar a encontrar o homem perdido, e não pudesse ser feliz sem ele.

                Conforme o testemunho de muitos autores, o bispo São Carpo teve uma visão, em que parecia representar-se-lhe, que um pecador escandaloso tinha arrastado ao crime um inocente. Levado do seu zelo, ia o Santo a precipitá-lo num abismo, à beira do qual esse criminoso se achava, quando apareceu Jesus Cristo e o segurou com a sua mão, dizendo a São Carpo estas palavras:  Percute me, quia iterum pro peccatoribus mori paratus sum. Era como se tivesse dito:  Parai lá;  sou antes eu que quero sofrer, porque já uma vez dei a minha vida por esse pecador, e estou pronto a dá-la de novo para evitar a perda dele.

                O espírito eclesiástico, segundo Luís Habert, consiste essencialmente num grande zelo de aumentar a glória de Deus e salvar o maior número de almas. A Moisés mandou o Senhor que fizesse trazer aos sacerdotes uma vestimenta toda premiada de figuras circulares, em forma de olhos, para significar, segundo um autor, que o sacerdote deve ser todo olhos para vigiar pela salvação dos povos. Segundo Santo Agostinho, o zelo pela salvação das almas, assim como o desejo de ver Deus amado de todos os homens, nasce do amor;  quem pois não ama está perdido. Quem cuida da sua alma torna-se agradável a Deus;  mas muito mais quem atende também à alma do seu próximo, diz São Bernardo.

                Nada prova melhor ao Senhor o amor e fidelidade duma alma, diz São João Crisóstomo, que um zelo ardente pelo bem do próximo. Até três vezes perguntou o Salvador a São Pedro se o amava, e assegurado do seu amor, não lhe exigiu outra garantia senão o tomar cuidado das almas. Eis a reflexão de São João Crisóstomo:  Podia dizer-lhe:  "Se me amas, deixa o teu dinheiro, entrega-te ao jejum, castiga o teu corpo com trabalhos";  mas não, diz-lhe apenas:  Apascenta as minhas ovelhas. Sobre a palavra meas, nota Santo Agostinho que o Salvador quis dizer:  Apascenta-as como minhas e não como tuas, pondo nisso a minha glória e não a tua, o meu proveito e não o teu. Por isso o santo Doutor nos ensina que quem quer agradar a Deus, trabalhando na salvação das almas, não deve ter em vista nem a sua própria glória, nem as suas vantagens pessoais, mas somente o acréscimo da glória de Deus.

                Santa Teresa dizia que, ao ler a vida dos santos mártires e dos santos missionários, tinha mais inveja aos últimos que aos primeiros, por causa da glória imensa que alcançavam para Deus os que trabalhavam na conversão dos pecadores. Santa Catarina de Sena beijava a terra tocada pelos pés dos sacerdotes, que consagravam os seus trabalhos ao bem das almas. Estava esta santa abrasada dum zelo tão ardente pela salvação dos pecadores, que desejava ser colocada à porta do inferno, para de futuro impedir que lá caíssem mais almas. E nós que somos padres, que dizemos?  Que fazemos?  Vemos tantas almas que se perdem, e permaneceremos espectadores ociosos?

                Dizia São Paulo que, para obter a salvação de seus irmãos, teria consentido até em ser separado de Jesus Cristo, - por algum tempo - conforme a explicação dos intérpretes. São João Crisóstomo desejava ser olhado com execração, contanto que as almas confiadas aos seus cuidados se convertessem.

                São Boaventura protesta que aceitaria tantas mortes quantos os pecadores que há no mundo, para salvar a todos. Quando São Francisco de Sales se encontrava no meio dos hereges em Chablais, não hesitou, durante o inverno, em atravessar um riacho, agarrando-se e escorregando por uma trave gelada, a servir de pontilhão. Afrontou as maiores fadigas e perigos para ir levar ao povo a palavra do Evangelho. São Caetano encontrava-se em Nápoles, durante a revolução terrível de 1547;  ao ver que tantas pobres almas se perdiam, por ocasião destas perturbações, sentiu-se tão profundamente magoado que morreu de dor. Por sua parte, Santo Inácio de Loiola dizia:  "Ainda que tivesse a certeza de que, morrendo agora, me salvara, quereria antes ficar na terra, incerto da minha salvação, para continuar a socorrer as almas".

                Eis o zelo de que estão animados pelo bem das almas todos os padres que amam a Deus;  e contudo muitos há que, sob o menor pretexto, para não se exporem a um pequeno incomodo, descuram tão graves obrigações!  Até entre os que têm cargo de almas se encontram alguns réus desta indiferença!  Dizia São Carlos Borromeu que um pároco, dado às comodidades, e que toma todas as precauções possíveis a respeito da saúde, nunca poderá cumprir os seus deveres. Acrescentava ainda, que um pastor não se deve meter na cama, senão depois de três acessos de febre.

                Se amais a Deus, dizia Santo Agostinho, levai o mundo inteiro a amar a Deus. Quem ama verdadeiramente a Deus, faz todos os esforços para levar os outros a amá-lo;  insta-os e diz a todos com Davi:  Glorificai comigo ao Senhor, e de comum acordo exaltemos o seu nome. O sacerdote que ama a Deus vai por toda a parte, exortando a todos e repetindo sem cessar na cadeira, no confessionário, nas praças públicas e nas casas:  Irmãos meus, amemos a Deus;  glorifiquemos o seu santo nome pelas nossas palavras e pela nossa vida.

§ 3º  Como um padre, trabalhando na salvação das almas, assegura a sua própria salvação, e como será recompensado no Céu

                Não pode morrer mal um sacerdote que gastou a sua vida a trabalhar na salvação das almas. "Se empregaste a tua vida, diz o Profeta, a socorrer uma alma nas suas necessidades, se a consolaste nas suas aflições, o Senhor, no meio das trevas da tua morte temporal, te encherá de luz e te livrará da morte eterna". Era o que dizia Santo Agostinho:  Animam salvasti, animam tuam praedestinasti. E antes dele tinha dito o apóstolo São Tiago:  Quem houver convertido um pecador extraviado, salvará a sua alma e cobrirá a multidão dos seus pecados.

                Um padre da Cia. de Jesus, José Scamaca, tinha consagrado a sua vida a trabalhos relativos à conversão dos pecadores;  à hora da morte, mostrouse tão alegre e seguro da sua salvação, que alguns olharam como demasiada a sua confiança e disseram-lhe que, em tal situação, devia a confiança andar acompanhada do temor. "Como, respondeu ele!  é porventura a Maomé que eu tenho servido?  Terei razão para temer, depois de haver servido um Deus tão bom e tão fiel?" Como acima referimos, Santo Inácio de Loiola declarou um dia que, para socorrer as almas, de bom grado permaneceria na terra incerto da sua própria salvação, embora morrendo primeiro tivesse a certeza de se salvar. Houve quem lhe dissesse:  "Não é prudente arriscar a salvação própria pela dos outros". - "Ora essa!  respondeu o Santo, seria Deus um tirano?  Tendo-me visto expor a minha salvação para lhe ganhar almas, quereria depois mandar-me para o inferno?"

                Tinha Jonatas salvado os Hebreus das mãos dos Filisteus, vencendo-os com o máximo risco da própria vida. Foi condenado à morte por seu pai Saul, em razão de ter, contra a sua proibição, comido um pouco de mel. O povo porém começou a clamar a Saul:  Como pode ser isso!  Quereis tirar a vida a Jonatas que nos salvou da morte?  Foi assim que obteve o seu perdão. Eis o que pode esperar com fundada razão o padre que, pelos seus trabalhos, chegou a salvar algumas almas. Ao tempo da sua morte, elas se apresentarão a Jesus Cristo e lhe dirão:  Senhor, quereis acaso precipitar no inferno, quem de lá nos livrou?  E se Saul perdoou a Jonatas, a pedido do seu povo, por certo não recusará Deus o perdão a esse padre, por quem pedem almas benditas. Os padres que trabalham na salvação das almas ouvirão, no momento da morte, o próprio Senhor a anunciar-lhe o repouso eterno.

                Ó que consolação!  Que motivo de confiança, no leito mortuário, pensar que se ganhou alguma alma para Jesus Cristo!  É doce o repouso depois da fadiga. Assim, para o sacerdote que trabalhou por Deus é mui doce a morte.

                Quanto mais um pecador tiver contribuído para libertar as almas da escravidão do pecado, diz São Gregório, tanto mais facilmente conseguirá o perdão dos seus próprios pecados. Ter a felicidade de trabalhar na conversão dos pecadores, é um sinal claro de que se está predestinado e escrito no Livro da vida, como o Apóstolo o manifesta, quando fala dos que com ele cooperavam na conversão dos povos, dizendo:  Também te rogo, meu irmão amantíssimo, que venhas em auxílio dos que têm trabalhado comigo no Evangelho, com Clemente e com os restantes cooperadores meus, cujos nomes estão inscritos no Livro da Vida. Notem-se estas últimas palavras.

                Quanto às magníficas recompensas, reservadas aos obreiros evangélicos, escutemos o que diz Daniel:  Brilharão como estrelas, por eternidades infindas, os que instruem a muitos na justiça.

                Vemos agora as estrelas a brilhar no firmamento;  assim na mansão dos bem-aventurados hão de resplandecer, com uma glória ainda mais deslumbrante, os que trabalharam em reconduzir almas para Deus. Se se merece uma grande recompensa quando se livra um homem da morte temporal, diz São Gregório, quanto maior quando se livra uma alma da morte eterna, e se lhe alcança uma vida sem fim!  Foi o que o nosso Salvador declarou expressamente:  Quem houver ensinado e praticado, será chamado grande no reino dos céus. Quando um mau padre vem a condenar-se, depois de ter pervertido uma multidão de almas com os seus escândalos, - que tremendo castigo tem a sofrer no inferno!  Ao contrário, Deus, que é mais liberal nas suas recompensas, do que severo nos seus castigos, - como não retribuirá magnificamente no Paraíso um padre que, pelos seus trabalhos lhe tiver ganhado um grande número de alma?

                São Paulo apoiava toda a esperança da sua coroa eterna, na salvação das almas, que tinha convertido para o Senhor, e estava persuadido de que elas lhe haviam de obter uma grande recompensa do Céu:  Qual é pois a nossa esperança, a nossa alegria, a nossa glória?  Não sois vós que haveis de ser tudo isso diante de N. Sr. Jesus Cristo no dia da sua vinda?  Assegura São Gregório que um pregoeiro do Evangelho há de alcançar tantas coroas quantas as almas que tiver ganhado para Deus. Lemos nos Cânticos:  Vem do Líbano, ó esposa minha, vem do Líbano, vem;  hão de contribuir para a tua coroa... os covis dos leões, os montes dos leopardos. Tal é a promessa magnífica que o Senhor faz, a quem se dedica à conversão dos pecadores:  almas que outrora eram como bestas ferozes e monstros infernais, converteram-se e tornaram-se agradáveis a Deus.

                Um dia hão de ser elas no Céu outras tantas pérolas preciosas, destinadas a ornar a coroa do padre, que as encaminhou para a virtude.

                Um padre que se condena, não se condena só;  e um padre que se salva, com certeza se não salva só. Quando São Filipe de Néri morreu e subiu ao Céu, enviou o Senhor ao encontro da sua todas as almas que se tinham salvado pelo seu ministério. O mesmo se conta dum outro grande servo de Deus, - o irmão Querubim de Spoleto:  viram-no entrar na glória, acompanhado de muitos milhares de almas, que aos seus trabalhos deviam a salvação. Conta-se também do venerável Padre Luís La Nuza, que fôra visto no Céu, assentado num trono elevado, cujos degraus estavam ocupados pelas almas que havia convertido.

                Para cultivarem os seus campos, semeá-los e ceifá-los, sofrem os pobres lavradores duros trabalhos;  mas todas as suas penas são depois amplamente compensadas pela alegria da colheita:  Lá iam eles e choravam ao lançarem as sementes;  mas voltavam na alegria, trazendo os seus feixes. Também, para levar as almas para Deus, é necessário sofrer muitas penas e fadigas;  mas os obreiros evangélicos hão de ser abundantemente recompensados, pela alegria de apresentarem a Jesus Cristo, no Vale de Josafat, todas as almas salvadas pelo seu zelo.

                E que não afrouxe nem desista de tão importante missão o padre que, depois de ter trabalhado em reconduzir os pecadores para Deus, não vir os seus esforços coroados de bom êxito. Padre de Jesus Cristo, lhe diz São Bernardo, para reanimar o seu zelo, não te desanimes;  a recompensa que te espera, está garantida;  Deus não exige de ti a cura das almas;  contenta-se com lhes dispensares os teus cuidados;  não é o êxito dos esforços que será coroado, serão antes os próprios esforços a medida da recompensa. É o que São Boaventura confirma, dizendo que o padre não será menos recompensado com respeito aos que tiverem desprezado ou aproveitado mal os seus trabalhos, do que em relação aos que souberam colher os maiores frutos. O mesmo Santo acrescenta que o lavrador, que cultiva uma terra árida e pedregosa, não é menos digno de recompensa, embora colha dela pouco fruto.

                Quer dizer com isso que um padre que trabalha, ainda que sem fruto, em reconduzir um pecador obstinado, receberá uma recompensa tanto maior, quanto mais penosos tiverem sido os seus trabalhos.

§ 4º  Fim, meios e obras do padre zeloso

1º. Fim que se deve propor

                Se queremos que Deus recompense os trabalhos que consagramos à salvação das almas, não nos devemos deixar mover nem pelo respeito humano, nem pela nossa própria honra e interesse, mas só pelo amor de Deus e da sua glória. De contrário, o fruto dos nossos labores seria um castigo e não uma recompensa. "Grande seria a nossa loucura, dizia o bem-aventurado José Calasanzio, se trabalhando como trabalhamos, esperássemos dos homens uma recompensa temporal".

                É muito arriscada, diz Santo Tomás, a missão de salvar as almas. E São Gregório diz do padre:  Quantas pessoas um homem tem a governar, outras tantas, por assim dizer, são as almas de que há de prestar contas ao soberano Juiz. Com auxílio de Deus, pode-se exercer o ministério sem pecar e com merecimento;  mas quem não o exerce com o fim de agradar a Deus, será privado do socorro divino, - e então como poderá eximir-se de pecado?  Como procederão os que, segundo São Boaventura, "recebem as santas Ordens, não na intenção de salvarem as almas, mas com os olhos em sórdidos lucros?" Ou, segundo São Próspero, "não para se tornarem melhores, mas para se enriquecerem;  não para se santificarem, mas para serem honrados?" Quando um eclesiástico procura ser provido num benefício, pergunta acaso, quantas almas tem a ganhar para Deus?  Não, responde Pedro de Blois;  o que pergunta é quanto rende.

                Conforme a expressão do Apóstolo, muitos padres "procuram os seus interesses e não os de Jesus Cristo". "Abuso detestável!  exclama o venerável João de Avila, fazer servir o Céu à terra!" Observa São Bernardo que N. Senhor ao recomendar as suas ovelhas a São Pedro, lhe disse:  Apascenta as minhas ovelhas, e não:  ordinha ou tosquia as minhas ovelhas. E lê-se na Obra imperfeita:  Somos obreiros contratados por Jesus Cristo;  portanto assim como ninguém chama um operário só para comer, também nós não fomos chamados pelo Salvador somente para cuidarmos dos nossos interesses, mas para a glória de Deus. Donde São Gregório conclui que os padres não devem comprazer-se em estar à frente dos outros homens, mas sim em lhes fazer bem.

                É pois a glória de Deus o único fim que o padre se deve propor, trabalhando no bem das almas.

2º. Meios que deve empregar

                Quanto aos meios a empregar para ganhar almas para o Senhor, eis o que principalmente se deve observar:

1º.

                Primeiro que tudo, deve aplicar-se o padre à própria santificação;  o meio mais eficaz para converter os outros é a santidade do padre. Diz Santo Euquério que as forças que a santidade lhe dá são o sustentáculo do mundo. Na sua qualidade de mediador, está o padre encarregado de manter a paz e a união entre Deus e os homens, conforme o sentir de Santo Tomás. Para que se apresente porém como mediador perante uma pessoa ofendida, é preciso que não lhe seja odioso;  de contrário, diz São Gregório, não fará senão irritá-la mais. O mesmo Santo ajunta:  É necessário que se esforce por ser limpa a mão que se aplica a lavar as manchas dos outros. Donde São Bernardo conclui que um padre, que quer trabalhar com êxito na conversão dos pecadores, deve purificar a sua própria consciência, antes de pensar em purificar as alheias. Dizia São Filipe de Néri:  "Dai-me dez padres, verdadeiramente animados do Espírito de Deus, e eu respondo pela conversão do mundo inteiro".

                Que não fez no Oriente São Francisco Xavier!  Diz-se que só ele convertera dez milhões de infiéis. Que não fizeram na Europa São Patrício e São Vicente Ferrer!  Um padre mediocremente instruído, mas bem penetrado do amor de Deus, converterá mais almas ao Senhor, do que cem padres muito sábios, mas pouco fervorosos.

2º.

                Em segundo lugar, para fazer uma vasta colheita de almas, é necessário que o sacerdote se dê muito à oração. Primeiro há de receber de Deus as luzes, e os sentimentos de fervor, para que possa depois comunicá-los aos outros. É pela oração que eles se obtêm:  Pregai em público o que vos digo ao ouvido. É preciso, diz São Bernardo, que sejais reservatório antes de serdes canal;  hoje, acrescenta ele, temos muitos canais, e poucos reservatórios. Converteram os santos mais almas pelas suas orações que pelos seus trabalhos.
               
3º. Obras do padre zeloso

                Eis agora as obras a que se deve consagrar o padre zeloso:

1º.

                Deve ser cuidadoso em advertir os pecadores. Os padres que vêem ofender a Deus, e se calam, são chamados por Isaías de cães mudos. E é a esses cães mudos que serão imputados os pecados que não tiverem impedido, quando podiam impedi-los. Não vos caleis, diz Alcuino, para que não vos sejam imputados os pecados do povo. Não querem certos padres repreender os pecadores, para não se incomodarem, dizem eles;  mas São Gregório adverte-lhes que essa paz que desejam conservar lhes fará desgraçadamente perder a paz com Deus. Caso estranho, exclama São Bernardo!  Se um animal cai, correm muitos a levantá-lo;  perde-se uma alma e ninguém a socorre!  Apesar de tudo isso, diz São Gregório, o padre é estabelecido principalmente para apontar o bom caminho a quem se extraviou. E São Leão ajunta:  O padre que não avisa os fiéis a respeito dos seus desmandos mostra que também anda fora do caminho.

                Nós, sacerdotes do Senhor, diz ainda São Gregório, damos a morte a todas as almas que vemos perecer, sem corrermos em seu socorro.

2º.

                O padre zeloso deve dar-se à pregação. Foi pela pregação, diz São Paulo, que o mundo se converteu à fé de Jesus Cristo. É também pela pregação que a fé e o temor de Deus se conservam entre os fiéis. Os padres que se não sentem capazes de pregar devem ao menos, todas as vezes que possam, nas suas conversações com parentes e amigos, dizer coisas edificantes, quer contando algum exemplo de virtude da vida dos santos, quer lembrando alguma máxima eterna, por exemplo, sobre a vaidade do mundo, importância da salvação, certeza da morte, paz de que se goza no estado de graça etc.

3º.

                Deve o padre assistir aos moribundos;  é a obra de caridade mais agradável a Deus, e mais útil à salvação das almas;  porque no momento da morte os pobres doentes, por um lado são mais vivamente tentados pelo demônio, e pelo outro menos capazes de lhe resistir por si mesmos. São Filipe de Néri viu muitas vezes os anjos a sugerir aos padres as palavras, que deviam dirigir aos moribundos. Para os párocos é um dever de justiça, e para todos os sacerdotes um dever de caridade;  porque todos o podem cumprir, mesmo os que não têm o talento da pregação. Têm aí ocasião de fazer muito bem, não só aos doentes, mas ainda a todos os parentes e amigos que os rodeiam;  porque é o tempo mais próprio para entretenimentos espirituais. Em tal conjuntura, não conviria mesmo que um padre falasse doutra coisa, senão da alma e de Deus.

                Necessário é contudo desempenhar este dever com muita prudência e modéstia, para não ser ocasião de ruína para si próprio e para os outros;  não aconteça que, ajudando os outros a morrer, dê a morte à sua própria alma. - Além disto, o que não se encontra em condições de pregar, deve ao menos cuidar de instruir as crianças e os rústicos, dos quais um grande número nos campos, não podendo frequentar os templos, ignoram até as principais verdades da fé.

4º.

                Finalmente, deve o padre persuadir-se de que o meio mais eficaz para salvar as almas é aplicar-se a ouvir confissões. O venerável Padre Luís Fiorilo, dominicano, dizia que pregar é lançar a rede, ao passo que confessar é puxá-la para a praia e tomar o peixe.

                Mas, direis vós, é um ministério muito arriscado. - Sim, por certo, vos responde São Bernardo, é perigoso exercer as funções de juiz das consciências;  mas ainda a maior perigo vos expondes, se, por preguiça ou excessivo temor, negligenciais cumprir este dever, quando a ele vos chama o Senhor. Lamento, acrescenta ele, que estejais à frente dos outros homens, mas lamento ainda que, por temor de exercerdes a autoridade sobre eles, recuseis fazer-lhes bem. Já falamos da obrigação, imposta a todos, de empregarem na salvação das almas o talento que receberam de Deus, e dissemos que, ao receberem a ordenação, se encarregam especialmente de administrar o sacramento da penitência.

                Replicareis ainda:  Não estou apto para este ministério, porque não tenho estudado. - Mas não sabeis que o padre está obrigado a instruir-se?  Pois que os lábios do sacerdote devem ser os guardas da ciência, é da sua boca que se há de aprender a lei. Se não quereis estudar para vos tornardes capaz de assistir ao próximo, para que vos ordenastes?  Quem vos obrigou, pergunta o Senhor, a receber as Ordens sacras?  Quem vos forçou a serdes padres, insiste São João Crisóstomo?  Antes de receberdes o sacerdócio, ajunta ele, devíeis examinar-vos;  ao presente, visto que sois padre, já não é tempo de vos examinardes, é necessário trabalhar;  tornai-vos capaz, se o não sois. Alegardes hoje ignorância, continua o santo Doutor, é acusar-vos duma segunda falta para desculpardes a primeira:  não pode desculpar-se com a ignorância quem se obrigou por ofício a ensinar os ignorantes.

                Não poderia com esse pretexto escapar ao suplício que o espera, ainda mesmo que, por sua negligência, apenas tivesse causada a perda duma alma. Há padres que passam o seu tempo a estudar uma infinidade de coisas inúteis, e descuram a aquisição dos conhecimentos necessários para trabalharem com fruto na salvação das almas;  proceder assim, diz São Próspero, é violar as regras da justiça.

                Numa palavra, é necessário ter bem presente ao espírito que o padre só deve trabalhar para a glória de Deus e salvação das almas. Por isso o papa São Silvestre quis que, para os eclesiásticos, os dias da semana não tivessem outro nome senão o de férias, isto é, dias vagos:  "Dias em que se devem pôr de parte todos os cuidados, para só tratar das coisas de Deus". Os próprios pagãos diziam que os sacerdotes só se devem ocupar das coisas divinas;  razão por que lhes era interdito o exercício de cargos públicos, para que só se consagrassem ao culto dos seus deuses. Moisés, a quem Deus tinha encarregado especialmente os interesses da sua glória e a execução da sua lei, dava-se ainda a outros cuidados, mas Jetro advertiu-o e disse-lhe:  Olha que tu está a esgotar-te com um trabalho inútil... Presta-te ao povo nas coisas que dizem respeito a Deus.

                Antes de seres elevado ao sacerdócio, diz Santo Atanásio, podias fazer o que quisesses, mas agora que estás investido nele, deves aplicar-te a cumprir os deveres do teu ministério. E quais são eles?  Um dos principais é trabalhar na salvação das almas, como acima demonstramos. Confirmam-no estas palavras de São Próspero:  Foi confiado aos padres o cuidado das almas, como sua atribuição própria.

CAPÍTULO, 9.  Da vocação ao Sacerdócio

§ 1º  Necessidade da vocação divina para receber as ordens sacras

                Para entrar em qualquer estado de vida, é necessário ser chamado por Deus, porque, sem vocação, se não é impossível, é pelo menos muito difícil satisfazer às obrigações desse estado e salvar-se.

                Mas, se para todos é necessária a vocação, sobretudo é indispensável para abraçar o estado eclesiástico. É a porta única para se entrar na Igreja;  quem lá se introduzir doutro modo é um bandido e um ladrão, diz o Senhor. São Cirilo de Alexandria conclui que o que recebe as Ordens sacras, sem a elas ser chamado por Deus, se torna culpado de roubo, porque arrebata uma graça que Deus lhe não quer confiar. Também São Paulo declarou que a vocação divina é necessariamente requerida para se ser elevado ao sacerdócio, e cita o exemplo de Aarão e do próprio Jesus Cristo. Ninguém por si mesmo assume esta honra, que não se confere senão a quem é chamado por Deus, como Aarão. Foi assim que nem o próprio Jesus Cristo se arrogou a função de Pontífice, que lhe conferiu Aquele que lhe disse:  Tu és o meu Filho.

                Ninguém pois, por mais inteligente, sábio e santo que seja, pode entrar no santuário, por iniciativa próprio;  é necessário que seja chamado e introduzido lá por Deus. O próprio Jesus Cristo, que foi em verdade o mais santo e sábio dos homens, por isso que é cheio de graça e de verdade, e nele estão encerrados todos os tesouros da sabedoria e da ciência, o próprio Jesus Cristo, digo, para se revestir da dignidade de sacerdote, quis ser chamado a ela por Deus.

                Ainda mesmo quando estavam certos da sua vocação divina, tremiam os santos de assumir o sacerdócio. Santo Agostinho, na sua humildade, olhava como castigo dos seus pecados a violência que o seu bispo empregara para o fazer sacerdote. Santo Efrém, apresentou-se como insensato, para não ser constrangido a receber o sacerdócio, e Santo Ambrósio fingiu ser cruel. O santo monge Amon, para escapar à ordenação, cortou as orelhas e fez ameaça de cortar também a língua, se persistissem em inquietá-lo a tal respeito. Em resumo, São Cirilo de Alexandria afirma que todos os santos têm considerado a dignidade sacerdotal como um fardo enorme. Depois disso, pergunta São Cipriano, poderá encontrar-se alguém tão temerário que se abalance a receber as sagradas Ordens sem a vocação divina?

                Quem se introduz no santuário sem vocação ofende a autoridade de Deus, como um vassalo rebelde, que por si mesmo se fizesse ministro contra a vontade do seu soberano. Que temeridade a de um súdito que, sem ordem do rei e até contra a sua vontade, se metesse a administrar os domínios da coroa, a julgar causas, a comandar o exército, numa palavra a exercer as funções de vice-rei!  É de São Bernardo esta reflexão. Segundo São Próspero não são outras as funções dos padres senão serem dispenseiros na casa de Deus;  chefes do rebanho de Jesus Cristo, os chama Santo Ambrósio;  intérpretes da lei divina, os apelida São Dionísio. No dizer do autor da Obras imperfeita, são os vigários de Jesus Cristo. À vista disto, quem teria ainda a audácia de se fazer ministro de Deus, sem a isso ser chamado?

                Num reino, diz São Pedro Crisólogo, só o pensamento de usurpar a autoridade suprema é um crime da parte do súdito. Até na casa dum particular, ninguém se atreveria a entrar lá, para dispor dos seus bens e administrar os seus negócios;  porque é ao dono que cabe o direito de escolher e estabelecer os gerentes dos seus negócios. E vós, diz São Bernardo, sem serdes chamados por Deus, quereis entrar na sua casa, para lançardes mão dos seus interesses e dispordes dos seus bens?  Eis a razão por que o Concílio de Trento declarou que a Igreja não olha como seu ministro, mas como ladrão, quem ousa ingerir-se sem vocação nas funções eclesiásticas. Poderá esse padre dar-se a muitas fadigas, mas os seus trabalhos pouco lhe aproveitarão diante de Deus;  mais ainda, as obras que para os outros são meritórias, para ele se tornarão demeritórias.

                Imaginais que um servo recebeu ordem do seu senhor para lhe guardar a casa, e ele por seu arbítrio preferiu ir cavar a vinha;  debalde se fatigará e suará, em vez de recompensa, deve antes esperar castigo. Tal é a sorte dos que, sem vocação, invadem o santuário:  em primeiro lugar, não aceitará o Senhor os meus trabalhos, porque os empreenderam sem o seu beneplácito. Não está em vós a minha vontade, diz o Senhor dos exércitos, e não receberei as dádivas das vossas mãos;  e depois, em vez de recompensa, terão castigo:  Todo o estrangeiro que se aproximar (do tabernáculo)  será condenado à morte.

                Aquele pois que aspira a Ordens sacras, deve antes de tudo examinar bem, diz São João Crisóstomo, se é Deus quem o chama a tão alta dignidade. Ora, para se conhecer se a vocação vem de Deus, é necessário examinar os sinais dela. Escutemos a advertência que nos faz o Senhor:  Quando se quer edificar uma torre, começa-se por fazer o orçamento, para se ver se não faltam os recursos necessários para levar a obra ao fim.

§ 2º  Sinais da vocação divina ao sacerdócio

                Eis agora quais são os sinais da vocação divina para o sacerdócio. Não é a nobreza de nascimento. Segundo São Jerônimo, quando se trata de escolher um chefe que dirija os povos pelo caminho da salvação eterna, não se deve considerar a nobreza do sangue, mas a santidade da vida. São Gregório emprega a mesma linguagem..

                De nenhum modo deve a influência dos pais impelir os filhos para o sacerdócio, com a mira apenas nos interesses e vantagens da própria família, e não com os olhos no bem das suas almas. Esses pensam na vida presente, diz o autor da Obra imperfeita, e esquecem a eternidade que se há de seguir. Persuadamo-nos de que, no que respeita à escolha de estado, conforme a palavra de Jesus Cristo, são os próprios pais os inimigos mais temíveis:  Cada um terá por inimigos os da sua casa. A isto ajunta:  Quem ama o seu pai ou a sua mãe mais do que a mim, não é digno de mim. Ó!  quantos padres se verão condenados no dia do juízo por terem recebido as santas Ordens, para fazerem a vontade a seus pais!

                Não se compreende!  Se um jovem, movido por uma vocação divina, quer entrar em religião, - que não fazem então os pais, por paixão ou por interesse da família, para o afastarem dum estado a que Deus o chama!  Entenda-se bem, um tal procedimento, como ensinam em comum todos os doutores, não pode escusar-se de pecado mortal;  leia-se o que escrevemos na nossa Teologia moral. Neste caso, os pais tornam-se duplamente culpados:  1º., pecam contra a caridade, pelo grande mal que causam àquele a quem Deus chama, pois comete uma falta grave qualquer pessoa, embora estranha, que afasta alguém da vocação religiosa;  2º., pecam contra o amor paternal, porque os pais que têm a seu cargo a educação de seus filhos, estão obrigados a procurar-lhes a maior vantagem espiritual.

                Há confessores ignorantes que, - aos seus penitentes que querem abraçar o estado religioso, - insinuam que devem nisso obedecer a seus pais, e renunciar à sua vocação, se eles se opuserem a ela. É seguir a doutrina de Lutero que dizia que os filhos pecam, quando entram em religião sem o consentimento de seus pais. Tal doutrina é contradita por todos os Santos Padres e pelo Concílio 10 de Toledo, onde se decidiu que é permitido aos filhos, passados os catorze anos, fazerem-se religiosos, mesmo contra a vontade de seus pais. (Veja-se o Novo Código de Direito Canônico, cânon 555 e 573.)

                Sem dúvida, são os filhos obrigados a obedecer a seus pais. em tudo quanto respeita à educação e o governo da casa;  mas, quanto à escolha de estado, devem obedecer a Deus, e escolher o estado a que ele os chamar. Quando os pais quiserem fazer-se obedecer também nesse ponto, devem os filhos responder-lhes o mesmo que os apóstolos responderam aos príncipes dos judeus:  Vós próprios julgai se é justo, aos olhos de Deus, obedecer antes a vós do que a Deus.

                Ensina expressamente Santo Tomás que na escolha dum estado, não estão os filhos obrigados a obedecer a seus pais e ajunta que, quando se trata da vocação religiosa, os filhos nem mesmo estão obrigados a tomar conselho com os pais, que, ao verem feridos os seus interesses, são antes inimigos do que pais. Como diz São Bernardo, antes querem ver os filhos condenar-se com eles, do que permitir-lhes que se salvem sem eles.

                Pelo contrário, se vêem que um filho, fazendo-se padre, pode ser útil à família, que esforços não fazem então para que se ordene, a torto ou a direito, embora não seja chamado por Deus!  E que gritos, que ameaças se o filho, sensível aos remorsos da própria consciência, recusa receber as santas Ordens!  Pais bárbaros, e antes homicidas do que pais, vos chamamos com São Bernardo!  Mais uma vez, desgraçados pais e desgraçados filhos!  Quantos não havemos de ver no Vale de Josafat que serão condenados por causa da vocação, visto que a salvação de cada um, como acima demonstramos, está dependente da fidelidade em seguir a vocação divina!

                Voltemos ao assunto. Não se devem pois olhar, como sinais de vocação ao sacerdócio, nem a nobreza de sangue, nem a vontade dos pais, nem mesmo os talentos e aptidões que possa haver para as funções sacerdotais;  porque além dos talentos convenientes, é necessária uma vida boa, unida à vocação divina.

                Quais os verdadeiros sinais pelos quais se pode reconhecer que se é chamado por Deus ao estado eclesiástico?  Eis os três principais.

1º. A reta intenção

                O primeiro é uma reta intenção. É necessário entrar no santuário pela porta, que é o próprio Jesus Cristo:  Sou Eu a porta do aprisco... Quem entrar por mim, salvar-se-á. Não está pois a entrada legítima para o santuário, no desejo de comprazer com os pais, ou de engrandecer a família, nem no interesse ou amor próprio;  mas somente na intenção de servir a Deus, trabalhando na sua glória e salvação das almas, como o sábio continuador de Tournely muito bem o diz. Se sois conduzido pela ambição, interesse ou gosto das honras, diz um outro teólogo, não é Deus que vos chama, é o demônio. E quem se apresenta à ordenação com disposições tão indignas, ajunta Santo Anselmo, receberá a maldição de Deus, e não a sua bênção.

2º. A ciência e os talentos

                O segundo sinal da vocação é a ciência e capacidade necessária, para desempenhar convenientemente as funções sacerdotais. Devem os padres ser os doutores, que ensinem a lei de Deus aos povos:  Porque os lábios do sacerdote devem ser os guardas da ciência, e da sua boca receberão os outros a lei. Dizia Sidônio Apolinário que os médicos pouco instruídos muitas vezes matam os doentes, em vez de os curarem. Um padre ignorante, sobretudo se é confessor, ensinará falsas doutrinas, dará maus conselhos, e assim causará a ruína de muitas almas;  porque facilmente se dará crédito às suas palavras, em razão de ser padre. Era o que fazia dizer a Yves de Chartres que a admissão às santas Ordens, além duma boa conduta, exige uma instrução suficiente.

                Conhecidas todas as rubricas do Missal, para bem celebrar a santa Missa, todo o padre está ainda obrigado a saber as coisas principais relativas ao sacramento da Penitência. Como noutra parte fica dito, nem todo o padre é obrigado a ser confessor, a não ser que as necessidades instantes, do país em que habita, reclamem o seu ministério;  todavia até o simples sacerdote está obrigado a conhecer ao menos o que se deve saber em geral, para ouvir as confissões dos moribundos, isto é:  em que casos há faculdade para os absolver;  quando e como se deve dar a absolvição ao enfermo, sob condição ou em absoluto;  qual a obrigação que se lhe deve impor, se estiver incurso nalguma censura. Deve também o simples sacerdote conhecer ao menos os princípios gerais da moral.

3º. Bondade positiva de vida

                O terceiro sinal de vocação, para o estado eclesiástico, é a bondade positiva de vida.

                Primeiro que tudo, deve o ordinando ter uma vida inocente, não manchada de pecados. O Apóstolo exige que aquele que aspira ao sacerdócio seja irrepreensível, conforme o escrevia ao seu discípulo Tito. Nos primeiros séculos da Igreja, quem tivesse cometido um só pecado mortal não podia ser ordenado;  prova-o uma decisão do 1º. Concílio de Nicéia. Segundo São Jerônimo, para ser admitido ao sacerdócio, não bastava estar sem pecado ao tempo da ordenação, era necessário não ter cometido nenhuma falta grave depois do batismo. Verdade é que depois a disciplina a disciplina da Igreja cessou de ser tão rigorosa;  mas dos aspirantes a Ordens sacras sempre tem exigido ao menos que, depois das suas quedas graves, tenham conservado a sua consciência bem purificada, durante um período considerável de tempo.

                É o que vemos numa carta de Alexandre 3º ao arcebispo de Reims, a propósito dum diácono que tinha ferido outro diácono:  o Papa decidiu que, se o culpado estava verdadeiramente arrependido do seu crime, depois de recebida a absolvição e cumprida a penitência, que lhe fosse imposta, poderia ser reintegrado nas funções da sua Ordem, e até, se depois desse exemplo duma vida perfeita, lhe poderia ser conferido o sacerdócio. Se haveis pois contraído algum mau hábito, e ainda não o arrancastes, não vos atrevais a receber nenhuma Ordem sacra. Seria uma falta grave, que causava horror a São Bernardo:  É necessário ao menos, dizia ele, que ponhais em regra a vossa consciência, antes de vos ocupardes da consciência dos outros. Um autor antigo, Gildas o Sábio, falando dos que cheios de maus hábitos têm a temeridade de assaltar o sacerdócio, diz que eles mereciam antes ser expostos no pelourinho.

                Devemos concluir pois com Santo Isidoro:  recusem-se por completo as Ordens sacras a quem quer que ainda seja escravo de algum mau hábito.

                Quando se aspira à honra de subir ao altar, não basta que se esteja isento de pecado, é preciso ter bondade positiva, isto é, caminhar na via da perfeição, possuir já algum hábito de virtude. Na nossa Teologia moral demonstramos suficientemente, pelo sentir comum dos doutores, que quem tem vivido no hábito de algum vício, e quer ser promovido a uma Ordem sacra, deve estar disposto para receber, não só o sacramento da Penitência, mas também o da Ordem;  de contrário, não estará disposto nem para um, nem para outro;  e cometerá falta grave, tanto o ordinando que receber a absolvição com a intenção de entrar nas Ordens sacras, sem as disposições requeridas, como o confessor que o absolver.

                A razão é que, a quem deseja receber as ordens, não lhe basta ter saído do estado de pecado;  é-lhe necessária, repetimos, a bondade positiva, indispensável para o estado eclesiástico, conforme o texto de Alexandre 3º, acima citado:  Si perfectae vitae et conversationis fuerit.

                A decisão deste Pontífice prova-nos que a penitência basta para exercer uma Ordem já recebida, mas não para ser promovido a uma Ordem superior;  é precisamente o que ensina o Doutor Angélico. Doutrina conforme com a que São Dionísio tinha já estabelecido:  Nas coisas divinas, não deve o primeiro adventício atrever-se a tomar a dianteira aos outros;  é necessário para isso ter dado provas duma conduta muito correta e ser muito semelhante a Deus. Santo Tomás dá duas razões:  a 1ª é que o que recebe as santas Ordens deve elevar-se acima dos simples fiéis pela santidade, na mesma proporção em que os excede pela dignidade do seu ministério.

                "Para desempenhar dignamente as funções das santas Ordens, diz ele, não basta qualquer bondade, é necessária uma bondade excelente, de modo que os ministros sagrados sejam tão superiores ao povo pela sua santidade, como pela Ordem que receberam;  ora, para receber as Ordens, requere-se uma graça que torne o ordinando apto para aparecer com honra no rebanho de Jesus Cristo".

                A 2ª razão é que na ordenação recebe-se a missão de exercer ao altar as mais altas funções, para as quais se exige maior santidade do que para o estado religioso. Por isso o Apóstolo, proibiu que se ordenassem os neófitos, isto é, segundo a explicação de Santo Tomás, os que ainda não deram provas de constância na prática das virtudes.

                Eis a razão porque o Concílio de Trento, fazendo alusão às palavras da Escritura - A velhice é uma vida sem mancha - manda aos bispos que não admitam à ordenação, senão os que se mostrarem digno dela por uma virtude madura.

                E é necessário, diz Santo Tomás, que esta bondade positiva dos ordinandos seja conhecida. Recomenda São Gregório esta precaução, sobretudo no que respeita à virtude da castidade. Exige neste ponto uma prova de muitos anos.

                À vista disto, medite-se nas contas que hão de dar a Deus muitos párocos que nos seus certificados atestam, que os ordinandos têm frequentado os sacramentos e são de bons costumes, sabendo que eles nem frequentam os sacramentos, nem dão bom exemplo, antes causam escândalo!  Com atestados tais, passados, não por caridade, como dizem, mas contra a caridade devida a Deus e à Igreja, esses párocos tornam-se responsáveis por todos os pecados que de futuro hão de cometer esses seus paroquianos indignos;  porque os Bispos fazem juízo pelos certificados dos párocos, e são assim induzidos a erro. Para passar os certificados de que vimos falando, não deve o pároco proceder ao de leve em colher informações;  deve ter certeza do que atesta, deve saber positivamente que o clérigo tem um comportamento exemplar e freqüenta os sacramentos.

                Quanto aos confessores dos ordinandos, assim como o Bispo não pode ordenar um súdito, cuja castidade ainda não esteja bem provada, também o confessor não pode permitir que um penitente seu, que vive na incontinência, se apresente à ordenação, se não estiver moralmente certo de que tal ordinando já se libertara do mau hábito antigo, e adquirira o hábito da virtude da castidade.

§ 3º  Ao que se expõe quem entra nas ordens sem vocação

                Do que levamos dito resulta que não se poderia escusar de falta grave quem entrasse nas Ordens, sem consciência de possuir os sinais da vocação divina. É o sentir dum grande número de teólogos, tais como Habert, Natal Alexandre, Juenino, e o Continuador de Tournely;  e é o que antes deles claramente ensinou Santo Agostinho quando ao falar do castigo infligido pelo Senhor a Coré, Datan e Abiron, - que se haviam ingerido nas funções sacerdotais, sem a elas serem chamados, - afirma que esse exemplo é uma advertência para os que sem vocação aspiram às Ordens sacras. A razão é que se taxa de presunção grave e indesculpável entrar no santuário sem a isso ser chamado por Deus, e o réu de tal culpa fica depois privado das graças de estado e dos socorros oportunos, sem os quais se pode, falando em absoluto, desempenhar as próprias obrigações, mas não sem muita dificuldade, conforme nota Habert. Será como um membro deslocado, que não poderá obrar sem dor e sem dificuldade.

                Nesse caso pois, fica-se grandemente exposto ao perigo de perder a alma, porque, diz o bispo Abely, é um dos pecados contra o Espírito Santo, pecado de perdão muito difícil, conforme o testemunho do Evangelho.

                Declara o Senhor que se sente indignado contra os que querem reinar na Igreja, sem a isso serem chamados. Reinam por sua própria autoridade, e não por escolha do soberano Senhor do mundo;  sem nenhum apelo divino, antes somente por impulso da sua cobiça;  não obtém o governo das almas, usurpam-no. Que esforços, que tentativas, que súplicas, que meios não empregam certos sujeitos para se fazerem ordenar, sem vocação, e só com vistas mundanas!  Desgraçados que se aventuram a tais empresas, contra a minha vontade, diz o Senhor pela boca de Isaías!  Pedirão no dia do juízo uma recompensa, mas Jesus Cristo os repelirá para longe de si:  Muitos me dirão naquele dia:  Senhor, Senhor, não profetizamos nós (quer dizer, não pregamos e ensinamos)  em vosso nome, e não expulsamos o demônio em vosso nome, (dando a absolvição)  e não fizemos em vosso nome muitos milagres.

corrigindo, acalmando discórdias, reconduzindo os pecadores ao bom caminho?)  E Eu lhes responderei:  Nunca vos conheci;  retirai-vos de mim, obreiros da iniqüidade. Os padres sem vocação são de fato agentes e ministros de Deus, porque receberam o caráter sacerdotal;  mas são ministros de iniquidade e rapina, visto que por si mesmos e sem serem chamados invadiram o aprisco.

                Não receberam as chaves, diz São Bernardo, roubaram-nas. Muito embora trabalhem, não lhes recompensará o Senhor os seus suores, antes os punirá por não terem entrado no santuário pelo caminho direito. Não recebe a Igreja, diz São Leão, senão os que o Senhor escolhe e torna dignos, pela sua escolha, de serem seus ministros. Repele os que Deus não chamou, porque vêem antes para trabalhar na ruína da mesma Igreja, do que em proveito dela, e, longe de a edificarem, são a sua desolação e opróbrio, como diz São Pedro Damião.

                Hão de aproximar-se de Deus os que ele tiver escolhido. O Senhor há de acolher os que tiver chamado ao Sacerdócio;  logo os que não escolheu serão rejeitados. Assim Santo Efrém olha como condenado o que teve a audácia de se fazer padre sem vocação:  "Estou espantado, diz ele, da audácia de certos insensatos, que assaltam como à força as funções sacerdotais, sem pensarem, desgraçados, nem na morte, nem nos fogos eternos em que se lançam!" Pedro de Blois exprime quase o mesmo pensamento nestas palavras:  "Como é para lamentar o que muda o sacrifício em sacrilégio, e a vida em morte!" Quem se engana na sua vocação corre muito maior perigo de se condenar, do que quem transgride os preceitos particulares;  porque este pode erguer-se da sua queda e retomar o bom caminho, ao passo que aquele segue um caminho errado, pelo qual se afasta cada vez mais da pátria, à medida que adianta.

                Pode aplicar-se-lhe o dito de Santo Agostinho:  "Corres muito, mas por fora do caminho".

                Estejamos pois persuadidos do que dizia São Gregório, - que a nossa salvação eterna depende principalmente da nossa docilidade em abraçarmos o estado a que o Senhor nos chama. A razão é evidente:  na ordem da sua providência, é Deus que assinala a cada um de nós o seu estado de vida, e nos prepara as graças e socorros próprios do estado a que nos chama;  e tal é o pensamento de São Cipriano. O Espírito Santo distribui as suas graças segundo a ordem por ele próprio estabelecida, e não ao nosso gosto. E esta ordem é, para cada um de nós, a ordem da predestinação, como o Apóstolo nos dá a entender nestas palavras:  Os que escolheu, chamou-os, e os que chamou, justificou-os, e os que justificou, também os glorificou. Assim, depois da vocação, vem a justificação e depois da justificação, a glorificação, isto é, a consecução da vida eterna;  por conseqüência quem não obedece à vocação divina, nem será justificado nem glorificado.

                O frei Luís de Granada tinha pois razão para dizer que a vocação é a mola real de toda a vida:  assim como um relógio pára, desde que a roda principal se desarranja, do mesmo modo, diz São Gregório de Nazianzo, desde que nos desviamos da nossa vocação, toda a nossa vida caminha de erro em erro;  porque fora do estado, a que Deus nos chama, nos faltam os socorros de que necessitamos para bem obrar.

                Cada um recebeu de Deus um dom que lhe é próprio:  uns num sentido, outros noutro. Segundo os intérpretes, esta sentença do Apóstolo quer dizer - que Deus dá a cada um as graças necessárias para cumprir as obrigações do estado a que o chama, como ensina Santo Tomás, apoiando-se nas palavras de São Paulo:  Fez-nos idôneos para sermos os ministros do Novo Testamento. Donde se segue que aquele mesmo que é apto para desempenhar as funções a que Deus o chama, é inapto para outras a que não o chama. Assim o pé, que é destinado a caminhar, com certeza é incapaz de ver;  e o olho que é dado para ver não pode aplicar-se a ouvir. Como poderá pois desempenhar-se das funções sacerdotais aquele que Deus não destinou ao sacerdócio?

                É o Senhor quem escolhe os obreiros que hão de trabalhar na sua vinha:  Eu vos escolhi e estabeleci para que vades pelo mundo e façais fruto. Por isso mesmo não diz o divino Redentor:  Pedi aos homens que trabalhem na seara;  - mas:  Pedi ao Senhor que mande obreiros E acrescenta noutra parte:  Conforme meu Pai me enviou, assim eu vos envio. Ora, quando Deus chama alguém a um cargo, dá-lhe todos os socorros necessários. O Autor da minha elevação, diz São Leão, há de vir em meu auxílio, no governo dos interesses que me confiou;  tendo-me imposto o encargo, há dar-me a força para o levar dignamente. É o que o próprio Jesus Cristo declara nestes termos:  Sou Eu a porta. Quem entrar por mim será salvo;  entrará, e sairá, e encontrará o seu sustento. O que pode explicar-se assim:  Entrará:  Tudo quanto empreender o sacerdote chamado por Deus, há de levá-lo a cabo sem pecado, e até com merecimento.

                E ele sairá:  Há de encontrar-se em ocasiões e perigos, mas com o auxílio do Céu sairá são e salvo. E há de encontrar o seu sustento:  Finalmente, em todas as funções do seu ministério, há de ver-se assistido de graças especiais, que o farão caminhar a passos largos no caminho da perfeição;  e isso por se encontrar no estado em que o Senhor o colocou. Poderá assim dizer com confiança que está sob a direção de Deus e na abundância de todos os bens.

                Pelo contrário, os padres que não foram enviados por Deus, para trabalharem na sua Igreja, hão de ver-se abandonados dele e condenados a um opróbrio eterno, a desgraças sem fim, como ele o declara pela boca de Jeremias:  Eu não enviava estes profetas e eles corriam por si mesmos. Por isso vos tomarei para levar-vos e vos abandonarei longe de mim... e vos entregarei a um opróbrios sempiterno e a uma eterna ignomínia, que jamais será apagada pelo esquecimento.

                Somente pelo poder de Deus, diz Santo Tomás, pode um homem ser elevado à altura do sacerdócio, por isso que está constituído santificador dos povos e vigário de Jesus Cristo. A quem pretende elevar-se por si mesmo a uma dignidade sublime, há de acontecer-lhe o que diz o Sábio:  Depois do louco se ter elevado a uma grande altura, há de ser posta a descoberto a sua loucura no dia do juízo. Se ele tivesse ficado no mundo, teria sido talvez um leigo virtuoso:  mas, tendo-se feito padre sem vocação, será um mau padre, e, em vez de se tornar útil à Igreja, será para ela um verdadeiro flagelo. É o que diz o Catecismo Romano, ao falar de tais padres:  "Nenhuma desgraça maior que o destes padres, e nada mais funesto à Igreja de Deus". Que bem poderiam eles fazer à Igreja, tendo entrado nela sem vocação?  É muito difícil, diz São Leão, que um começo tão mau seja seguido dum bom fim.

                São Lourenço Justiniano emprega a mesma linguagem:  "Que fruto poderá produzir uma raiz contaminada?" E o divino Mestre afirma que não só o fruto será rejeitado, mas até a planta será arrancada. Também, segundo Pedro de Blois, quando o Senhor permite que alguém chegue ao sacerdócio, sem a ele ser chamado, não significa isso uma graça, mas um castigo;  porque uma árvore que não está bem arraigada, e se encontra exposta ao vento, em breve cairá e será depois lançada ao fogo. Para ele próprio pois é uma desgraça, mas também o é para os outros, como nota São Bernardo;  porque aquele que não entrou legitimamente no santuário, continuará a caminhar pelas vias da infidelidade e, em vez de procurar a salvação das almas, será antes para elas uma causa de perdição e morte. É o que ensina a sentença de Jesus Cristo:  O que não entra pela porta... é um bandido e um ladrão. O ladrão só vem para roubar, e matar, e fazer perecer.

                Mas, dir-se-á, se somente se admitirem às santas Ordens os que reunirem todos os sinais de vocação, de que acabais de falar e exigis, poucos padres haverá na Igreja, e faltarão os socorros aos fiéis. - O 4º Concílio de Latrão já respondeu a esta objeção, dizendo que é preferível haver poucos padres bons, que muitos maus. Por outro lado, conforme nota Santo Tomás, nunca Deus desampara a sua Igreja de modo que a deixe desprovida de ministros dignos, necessários parar obviar às necessidades dos povos. E se alguém quisesse dirigir os povos, mediante ministros indignos, seria isso, diz com razão São Leão, querer antes a sua ruína que a sua salvação.

                Que tem pois a fazer um padre que entrou nas Ordens sem vocação?  Há de ter-se como um condenado e entregar-se ao desespero?  - Não, por certo. São Gregório faz a si próprio esta pergunta:  Sacerdos sum non vocatus;  quid faciendum?  E responde:  Ingemiscendum. Eis o que deve fazer este padre, se quiser salvar-se:  procure à força de lágrimas aplacar o Senhor, para obter da sua misericórdia o perdão do crime que cometera, introduzindo-se no santuário sem vocação. - Conforme a exortação de São Bernardo, que se esforce por passar, ao menos de futuro, a vida santa de que devia ter feito preceder a sua elevação ao sacerdócio. E para isso, ajunta o Santo, necessário é que mude de costumes, de companhias e de sentimentos.

                Se é ignorante, aplique-se ao estudo;  se tem vivido na dissipação, nas intimidades e divertimentos do mundo, renuncie a tudo isso, e de futuro consagre o seu tempo à oração, às leituras espirituais e à visita das igrejas. Não se consegue isto sem violência. Como acima dissemos, a entrada no sacerdócio sem vocação é semelhante a um membro do corpo humano, que saiu para fora do seu lugar próprio. Por isso a salvação de tais sacerdotes não pode operar-se senão à custa de muitos esforços e penas.


                Fica demonstrado que quem se ordena sem ser chamado, priva-se dos socorros necessários para cumprir as obrigações do sacerdócio:  como poderá então desempenhá-las?  Que fará?  Que ore, diz Habert e o Continuador de Tournely. Por suas preces obterá o que de nenhum modo merece;  porque, dizem eles, Deus concede então por misericórdia ao homem os socorros que, de certo modo, deve por justiça aos que são legitimamente chamados. Está isto de acordo com o que ensina o Concílio de Trento:  Deus não manda impossíveis;  mas preceituando, adverte-nos que façamos o que pudermos, e peçamos o que não pudermos;  e ajuda-nos para que possamos.


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