A Imitação de Cristo
Livro III Da consolação interior
Capítulo, 1 Da comunicação íntima de Cristo com a alma fiel
Ouvirei o que em mim disser o Senhor meu Deus.
Salmo, 84,9. Bem-aventurada a alma que ouve em si a voz do Senhor e recebe de seus
lábios palavras de consolação! Benditos os ouvidos que percebem o sopro do divino
sussurro e nenhuma atenção prestam às sugestões do mundo! Bem-aventurados, sim,
os ouvidos que não atendem às vozes que atroam lá fora, mas à Verdade que os ensina
lá dentro! Bem-aventurados os olhos que estão fechados para as coisas exteriores
e abertos para as interiores! Bem-aventurados aqueles que penetram as coisas interiores
e se empenham, com exercícios contínuos de piedade, em compreender, cada vez melhor,
os celestes arcanos. Bem-aventurados os que com gosto se entregam a Deus e se desembaraçam
de todos os empenhos do mundo. Considera bem isso, ó minha alma, e fecha as portas
dos sentidos, para que possas ouvir o que em ti falar o Senhor teu Deus. Eis o que
te diz o teu Amado:
Eu sou tua salvação, tua paz e tua vida. Fica comigo
e acharás paz. Deixa todas as coisas transitórias e busca as eternas. Que é todo
o temporal, senão engano sedutor? E de que te servem todas as criaturas, se o Criador
te abandonar? Renuncia, pois, a tudo, entrega-te dócil e fiel a teu Criador, para
que possas alcançar a verdadeira felicidade.
Reflexões:
Chamamos inspirações todos os atrativos, movimentos,
repreensão e remorsos interiores, luzes e conhecimentos que nos vêm de Deus, prevenindo
nosso coração com suas bênçãos por seu cuidado e amor paternal, a fim de despertar-nos,
excitar-nos, impelir-nos e atrair-nos para as santas virtudes, para o amor celeste,
para as boas resoluções: em suma, para tudo que nos encaminhe para o nosso bem eterno...
Toma a resolução, Filoteia, de aceitar de boa vontade todas as inspirações que apraz
a Deus conceder-te; e quando elas chegarem, trata de recebê-las como embaixadoras
do Rei Celeste que deseja contrair núpcias contigo. Ouve pacificamente suas propostas,
considera o amor com que és inspirada, e acolhe com carinho a santa inspiração.
Deves consentir, mas com um consentimento pleno,
amoroso e constante, à santa inspiração. Porque, deste modo, Deus, que não podes
obrigar, vai considerar-se fortemente obrigado à tua afeição. Mas, antes de consentir
nas inspirações de coisas importantes ou extraordinárias, a fim de não seres enganada,
aconselha-te sempre com teu diretor espiritual, para que ele examine se a inspiração
é verdadeira ou falsa, principalmente porque o inimigo, vendo uma alma pronta a
consentir nas inspirações, lhe propõe frequentemente falsas inspirações para enganá-la:
o que ele jamais pode fazer enquanto ela obedecer com humildade a seu diretor.
Oração:
Meu Senhor Jesus Cristo, vigilante pastor das almas,
eu vos peço com toda a minha afeição que, se for do vosso agrado, apascenteis minha
alma com a abundância de vossos dons e graças celestes. Eu vos suplico, fazei-me
saborear as coisas espirituais, a palavra de Deus, a frequência dos sacramentos,
principalmente do santo sacramento do altar, e as obras de misericórdia.
Capítulo, 2 Que a verdade fala dentro de nós, sem estrépito de palavras
Falai, Senhor, que o vosso servo escuta: Vosso
servo sou eu, dai-me inteligência para que conheça os vossos ensinamentos. Inclinai
meu coração às palavras de vossa boca; nele penetre, qual orvalho, vosso discurso.
1, Reis 3,10; Salmo, 118,36. 125; Deuteronômio, 32,2. Diziam, outrora, os filhos
de Israel a Moisés: Fala-nos tu e te ouviremos; não nos fale o Senhor, para que
não morramos. Êxodo, 20,19. Não assim, Senhor, não assim, vos rogo eu; antes, como
o Profeta Samuel, humilde e ansioso, vos suplico: Falai, Senhor, que o vosso servo
escuta. Não fale Moisés, nem algum dos profetas, mas falai-me vós, Senhor, Deus,
que inspirastes e iluminastes todos os profetas, porque vós podeis, sem eles, me
ensinar perfeitamente, ao passo que eles, sem vós, de nada me serviriam.
Podem muito bem proferir palavras, mas não conseguem
dar o espírito; falam com muita elegância, mas, se vós vos calais, não inflamam
o coração.
Ensinam a letra; vós, porém, explicais o sentido.
Propõem os mistérios, mas vós descobris a significação das figuras. Proclamam os
mandamentos, mas vós ajudais a cumpri-los. Mostram o caminho, mas vós dais força
para segui-lo. Eles regam a superfície, mas vós dais a fecundidade. Eles clamam
com palavras, mas vós dais a inteligência ao ouvido.
Não me fale, pois, Moisés, mas vós, Senhor meu
Deus, Verdade Eterna, para que não morra sem ter alcançado fruto algum, se só for
admoestado por fora e não abrasado interiormente; e não seja minha condenação a
palavra ouvida e não praticada, conhecida e não amada, criada e não observada. --
Falai, pois, Senhor, que o vosso servo escuta; porque possuís palavras de vida eterna.
1, Reis 3,10; São João, 6,69. Falai-me para consolação de minha alma e emenda de
minha vida, também para louvor, glória e perpétua honra vossa.
Reflexões:
Existem almas que não querem, como elas dizem,
ser guiadas, a não ser pelo espírito de Deus, e lhes parece que tudo o que imaginam
sejam inspirações e movimentos do Espírito Santo, que as toma pela mão e conduz,
como crianças, em tudo o que querem fazer. Nisto elas certamente se enganam muito,
porque, eu te pergunto: será que houve alguma vez uma vocação mais especial do que
a de São Paulo, na qual o próprio Nosso Senhor lhe falou para convertê-lo? E, não
obstante, ele não quis instruí-lo, mas o enviou a Ananias dizendo: Vai à cidade,
lá encontrarás um homem que te dirá o que deves fazer. Atos dos Apóstolos, 9,7.
E ainda que São Paulo pudesse dizer: "Senhor, e por que não o dizeis vós mesmo?",
ele não disse nada, mas simplesmente foi fazer o que lhe foi mandado. E nós, será
que pensamos ser mais favorecidos por Deus do que São Paulo, achando que ele mesmo
quer orientar-nos, sem intervenção de nenhuma criatura?.
Capítulo, 3 Como as palavras de Deus devem ser ouvidas com humildade e como
muitos não as ponderam
Jesus. Ouve, filho, as minhas palavras, palavras suavíssimas
que excedem toda a ciência dos filósofos e sábios deste mundo. As minhas palavras
são espírito e vida, São João, 6,64. e não se devem interpretar humanamente. Não
devem ser abusadas para vã complacência, mas devem ser ouvidas em silêncio e recebidas
com máxima humildade e grande afeto.
A alma. E disse eu: Bem-aventurado o homem a quem instruís, Senhor,
e lhe ensinais a vossa lei, para suavizar lhe os dias maus e dar-lhe consolo neste
mundo. Salmo, 93,12-13.
Jesus. Eu, diz o Senhor, desde o princípio ensinei aos profetas
e ainda agora não cesso de falar a todos; mas muitos são insensíveis e surdos à
minha voz.
A muitos agrada mais a voz do mundo que a de Deus;
mais facilmente seguem os apetites da carne que o preceito divino. O mundo promete
apenas coisas temporais e mesquinhas e é servido com grande ardor; eu prometo bens
sublimes e eternos, e só encontro frieza nos corações dos mortais. Quem há que me
sirva e obedeça em tudo com tanto empenho como se serve ao mundo e aos seus senhores?
Envergonha-te, Sídon, diz o mar. Isaías. 23,4. E se queres saber por que, ouve o
motivo: Por um pequeno salário se empreendem grandes viagens, e pela vida eterna
muitos nem dão um passo sequer. Busca-se o lucro vil; por um vintém, às vezes, há
torpes brigas; por uma ninharia e promessa mesquinha não se teme a fadiga, nem de
dia, nem de noite.
Mas que vergonha! Pelo bem imutável, pelo prêmio
inestimável, para honra suprema e pela glória sem fim, o menor esforço nos cansa.
Envergonha-te, pois, servo preguiçoso e murmurador, por serem os mundanos mais solícitos
para a perdição que tu para a salvação. Procuram eles com mais gosto a vaidade que
tu a verdade. Entretanto, não raro, sua esperança os engana; mas minha promessa
a ninguém falta, nem despede com as mãos vazias ao que em mim confia. Darei o que
prometi, cumprirei o que disse, contanto que se persevere fiel no meu amor até ao
fim. Eu sou quem remunera todos os bons e sujeita a provas duras todos os devotos.
Grava minhas palavras em teu coração e medita-as
atentamente, porque te serão muito necessárias na hora da tentação. Coisas que agora
não entendes quando lês, entenderás quando eu te visitar. De dois modos costumo
visitar meus eleitos: pela tentação e pela consolação. E duas lições lhes dou cada
dia: numa repreendo-lhes os vícios e noutra exorto-os ao progresso na virtude. Quem
ouve minha palavra e a despreza, por ela será julgado no último dia.
Oração para implorar a
graça da devoção:
A alma. Meu Senhor e meu Deus! vós sois todo o meu bem. E quem
sou eu para me atrever a falar-vos? Eu sou vosso paupérrimo servo, um vil vermezinho,
muito mais pobre e desprezível do que sei e ouso dizer. Lembrai-vos, Senhor, de
que sois bom, justo e santo; vós tudo podeis, tudo dais, tudo encheis, e só ao pecador
deixais vazio. Lembrai-vos de vossas misericórdias Salmo, 24,6. e enchei meu coração
com a vossa graça, pois não quereis que sejam infrutuosas vossas obras.
Como poderei eu, nesta miserável vida, suportar-me
a mim mesmo, se não me confortar vossa graça e misericórdia? Não desvieis de mim
a vossa face, não demoreis a vossa visita, não me tireis o vosso consolo, para que
não fique a minha alma diante de vós qual terra sem água. Salmo, 142,6. Ensinai-me,
Senhor, a fazer vossa vontade, Salmo, 142,10. ensinai-me a andar em vossa presença,
digna e humildemente; pois vós sois minha sabedoria, que em verdade me conheceis
antes de ser feito o mundo, e antes de eu nascer na terra.
Reflexões:
Para preparar-nos bem e tornar-nos capazes de ouvir
esta divina palavra, como devemos, é preciso expandir nossos corações na presença
da divina Majestade, para receber o orvalho celeste, como Gedeão estendeu seu velo
de lã na eira, para que fosse regado pelo orvalho e pelas águas que caíam do céu.
Devemos, pois, expandir nossos corações diante
de Deus através dos bons propósitos de tirar proveito das coisas que nos serão ditas
de sua parte, mantendo-nos atentos, pois é sua Divina Majestade que nos fala e nos
faz conhecer sua vontade. Ouvindo as verdades que os pregadores nos propõem, com
espírito de devoção, reverência e atenção, colocando esta divina palavra em nossas
cabeças, à imitação dos espanhóis, que, quando recebem uma carta de alguém que é
importante, a colocam no mesmo instante sobre a cabeça, tanto para demonstrar a
honra que prestam àquele que lhes escreveu, como para mostrar que se dispõem a obedecer
às ordens que lhes são dadas através desta carta.
Façamos nós o mesmo, minhas caras almas: quando
ouvimos a palavra de Deus na pregação, ou quando a lemos em algum livro, devemos
colocá-la em nossas cabeças, não quero dizer visivelmente e de modo real, mas espiritualmente,
submetendo nossos corações à obediência das coisas que nos são ensinadas, pelas
quais ouvimos qual é a vontade de Deus no que diz respeito à nossa perfeição e avanço
espiritual, escutando-a e lendo-a com a resolução de tirar dela o maior proveito.
Capítulo, 4 Que devemos andar perante Deus em verdade e humildade
Jesus. Filho, anda diante de mim em verdade e procura-me sempre
com simplicidade de coração. Quem anda diante de mim na verdade será defendido dos
ataques inimigos, e a verdade o livrará dos enganos e das murmurações dos maus.
Se te libertar a verdade, serás verdadeiramente livre e não farás caso das vãs palavras
dos homens.
A alma. Verdade é, Senhor, o que dizeis; peço-vos que assim se
faça comigo. A vossa verdade me ensine, me defenda e me conserve até meu fim salutar.
Ela me livre de toda má afeição e amor desregrado e assim poderei andar convosco,
com grande liberdade de coração.
Jesus. Eu te ensinarei, diz a Verdade, o que é justo e agradável
a meus olhos. Relembra teus pecados com grande dor e pesar e jamais te desvaneças
por tuas boas obras. Com efeito, és pecador, sujeito a muitas paixões e preso em
seus laços. De ti pendes sempre para o nada; depressa cais, logo és vencido, logo
perturbado, logo desanimado. Nada tens de que possas gloriar-te; muito, porém, para
te humilhar; pois és muito mais fraco do que podes imaginar.
Nada, pois, do que fazes te pareça grande, nada
precioso e admirável, nada digno de apreço, nada nobre, nada verdadeiramente louvável
e desejável, senão o que é eterno. Acima de tudo te agrade a eterna verdade, e te
desagrade a tua extrema vileza. Nada temas, nada vituperes e fujas tanto como os
teus vícios de pecados, que te devem entristecer mais do que quaisquer prejuízos
materiais. Alguns não andam diante de mim com simplicidade, mas, curiosos e arrogantes,
pretendem saber meus segredos e compreender os sublimes mistérios de Deus, descurando-se
de si próprios e de sua salvação. Estes, por sua soberba e curiosidade, não raro
caem em grandes tentações e pecados, porque me afasto deles.
Teme os juízos de Deus, treme da ira do Onipotente.
Não queiras discutir as obras do Altíssimo; examina antes as tuas iniquidades, quanto
mal cometestes e quanto bem deixastes de fazer por negligência. Alguns põem toda
a sua devoção nos livros, outros nas imagens, outros em sinais e exercícios exteriores.
Alguns me trazem na boca, mas mui pouco no coração.
Outros há, porém, que, alumiados no entendimento e purificados no afeto, sempre
suspiram pelos bens eternos; não gostam de ouvir das coisas da terra e com repugnância
satisfazem as exigências da natureza; estes percebem o que lhe diz o Espírito da
Verdade.
Pois lhes ensina a desprezar as coisas terrenas
e amar as celestiais, a esquecer o mundo e almejar o céu dia e noite.
Reflexões:
Viver na verdade e decisivamente não na mentira,
é construir uma vida totalmente conforme à lei pura e simples, segundo as operações
da graça, e não segundo as operações da natureza; porque nossa imaginação, nossos
sentidos, nosso sentimento, nosso gosto, nossas consolações e nossos discursos podem
ser enganados e extraviados: e viver assim é viver na mentira, ou pelo menos num
perpétuo risco de mentira; mas viver segundo a fé pura e simples é viver na verdade.
Por isso é dito do espírito maligno que ele não
se manteve na verdade, São João, 8,44. porque, embora tivesse a fé no começo de
sua criação, ele se desviou dela, querendo discursar sem a fé sobre sua própria
excelência, e querendo ser ele mesmo o fim, não segundo a fé pura e simples, mas
segundo as condições naturais que o levaram ao amor exagerado e desregrado de si
mesmo: é a mentira na qual vivem todos aqueles que não aderem com simplicidade e
pureza de fé à palavra de Nosso Senhor, mas querem viver segundo a prudência humana
que não passa de um formigueiro de mentiras e de vãos discursos.
Capítulo, 5 Dos admiráveis efeitos do amor divino
A alma. Bendigo-vos, Pai celestial, Pai de meu Senhor Jesus Cristo,
por vos terdes dignado lembrar-vos de mim, pobre criatura. Ó Pai de misericórdia
e Deus de toda consolação!, 2, Coríntios. 1,3. graças vos dou porque, apesar de
minha indignidade, me recreais às vezes com vossa consolação. Sede para sempre bendito
e glorificado, com vosso Filho unigênito e o Espírito Santo consolador, por todos
os séculos. Ah! Senhor Deus, santo amigo de minha alma, tanto que entrais em meu
coração, exulta de alegria o meu interior. Vós sois a minha glória e o júbilo de
meu coração; vós sois a minha esperança e meu refúgio no dia da tribulação.
Mas, como ainda sou fraco no amor e imperfeito
na virtude, necessito ser consolado e confortado por vós; por isso visitai-me mais
vezes e instruí-me com santas doutrinas. Livrai-me das más paixões e curai meu coração
de todos os afetos desordenados, para que eu, sanado e purificado interiormente,
seja apto para amar, forte para sofrer e constante para perseverar.
Jesus. Grande coisa é o amor! É um bem verdadeiramente inestimável
que por si só torna suave o que é difícil e suporta sereno toda a adversidade.
Porque leva a carga sem lhe sentir o peso e torna
o amargo doce e saboroso. O amor de Jesus é generoso, inspira grandes ações e nos
excita sempre à mais alta perfeição. O amor tende sempre para as alturas e não se
deixa prender pelas coisas inferiores. O amor deseja ser livre e isento de todo
apego mundano, para não ser impedido no seu afeto íntimo nem se embaraçar com algum
incômodo.
Nada mais doce do que o amor, nada mais forte,
nada mais sublime, nada mais amplo, nada mais delicioso, nada mais perfeito ou melhor
no céu e na terra; porque o amor procede de Deus, e em Deus só pode descansar, acima
de todas as criaturas.
Quem ama, voa, corre, vive alegre, é livre e sem
embaraço. Dá tudo por tudo e possui tudo em todas as coisas, porque sobre todas
as coisas descansa no Sumo Bem, do qual dimanam e procedem todos os bens. Não olha
para as dádivas, mas eleva-se acima de todos os bens até aquele que os concede.
O amor muitas vezes não conhece limites, mas seu ardor excede a toda medida. O amor
não sente peso, não faz caso das fadigas e quer empreender mais do que pode; não
se escusa com a impossibilidade, pois tudo lhe parece lícito e possível.
Por isso de tudo é capaz e realiza obras, enquanto
o que não ama desfalece e cai.
O amor vigia sempre, e até no sono não dorme. Nenhuma
fadiga o cansa, nenhuma angústia o aflige, nenhum temor o assusta, mas qual viva
chama a ardente labaredas irrompe para o alto e passa avante. Só quem ama compreende
o que é amar. Bem alto soa aos ouvidos de Deus o afeto da alma que diz: Meu Deus,
meu amor! Vós sois todo meu, e eu todo vosso!
A alma. Dilatai-me o amor, para que possa, no âmago do coração,
saborear quão doce é amar, no amor desmanchar-me e nadar. Prenda-me o amor, e eleve-me
acima de mim, num transporte de fervor excessivo. Cante eu o cântico do amor, siga-vos
ao alto, ó meu Amado, desfaleça minha alma no vosso louvor, no júbilo do amor. Amar-vos
quero mais que a mim, e a mim só por amor de vós, e em vós a todos que deveras vos
amam, conforme ordena a lei do amor que de vós dimana.
O amor é pronto, sincero, piedoso, alegre e amável;
forte, sofredor, fiel, prudente, longânime, viril e nunca busca a si mesmo. Pois,
logo que alguém procura a si mesmo, perde o amor. O amor é circunspecto, humilde
e reto; não é frouxo, não é leviano, nem cuida de coisas vãs; é sóbrio, casto, constante,
quieto, recatado em todos os seus sentidos. O amor é submisso e obediente aos superiores,
mas aos próprios olhos é vil e desprezível; devoto e agradecido para com Deus, confia
e espera sempre nele, ainda quando está desconsolado, porque no amor não se vive
sem dor.
Quem não está disposto a sofrer tudo e fazer a
vontade do Amado não é digno de ser chamado amante. Àquele que ama cumpre abraçar
por seu amado, de boa vontade, tudo o que for duro e amargo e dele não se apartar
por nenhuma contrariedade.
Reflexões:
Nós temos dois principais modos de exercitar nosso
amor a Deus: um afetivo e o outro efetivo, ou, como diz São Bernardo, ativo. Pelo
afetivo, nos afeiçoamos a Deus e ao que ele se afeiçoa; pelo efetivo, servimos a
Deus e fazemos o que ele nos ordena.
O afetivo nos une à bondade de Deus e o efetivo
nos faz cumprir sua vontade: um nos enche de complacência, benevolência, desejos,
suspiros e ardores espirituais, fazendo-nos praticar as sagradas infusões e fusões
de nosso espírito com o espírito de Deus, e o outro difunde em nós a sólida resolução,
a firmeza de coragem e a inviolável obediência que se exige para cumprir os desígnios
da vontade de Deus e para sofrer, aceitar, apreciar e abraçar tudo que provém de
seu bel-prazer; o afetivo nos faz comprazer-nos em Deus e o efetivo nos faz agradar
a Deus; pelo afetivo nós concebemos e pelo efetivo produzimos; pelo afetivo colocamos
Deus no nosso coração, como um estandarte de amor ao qual todos os nossos afetos
se ordenam; pelo efetivo nós o colocamos sobre o nosso braço como uma espada de
dileção pela qual fazemos todos os atos heroicos das virtudes.
Ó meu caro Teótimo, como deve ser grande a extensão
da força deste amor de Deus sobre todas as coisas! Ele deve ultrapassar todos os
afetos, vencer todas as dificuldades, e preferir a honra da benevolência de Deus
a todas as coisas: mas digo a todas as coisas absolutamente, sem nenhuma exceção
nem reserva.
E digo assim com este cuidado tão grande porque
há pessoas que abandonariam corajosamente os bens, a honra e a própria vida por
Nosso Senhor, mas seriam incapazes de abandonar por ele alguma outra coisa de muito
menos importância.
O amor é forte como a morte: Cântico dos Cânticos,
8,6. a morte separa a alma do moribundo de seu corpo e de todas as coisas do mundo;
o amor sagrado separa a alma do amante de seu corpo e de todas as coisas do mundo;
e não há nisto nenhuma outra diferença, a não ser esta: a morte sempre opera por
efeito o que o amor só opera ordinariamente por afeição. Mas, digo ordinariamente,
Teótimo, porque algumas vezes o amor sagrado é tão violento que, mesmo por efeito,
causa a separação do corpo e da alma, fazendo os amantes morrer de uma morte tão
feliz que vale mais do que cem vidas.
Capítulo, 6 Da prova do verdadeiro amor
Jesus. Filho, não és ainda forte nem prudente no amor. -- A alma.
Por que, Senhor? -- Jesus. Porque por qualquer
contrariedade deixas o começado e com ânsia excessiva procuras a consolação. O homem
forte no amor permanece firme nas tentações e não dá crédito às astuciosas sugestões
do inimigo. Assim como lhe agrado na prosperidade, não lhe desagrado nas tribulações.
Quem ama discretamente não considera tanto a dádiva
de quem ama, como o amor de quem dá. Atende mais à intenção que ao valor do dom,
e a todas as dádivas estima menos que o Amado. Quem ama nobremente não repousa no
dom, mas em mim acima de todos os dons. Nem tudo está perdido, se sentires, às vezes,
menos devoção, a mim ou meus santos, do que desejaras.
Aquele sentimento terno e doce que experimentas,
às vezes, é efeito da graça presente, um como que antegosto da pátria celestial;
nele não te deves firmar muito, porquanto vai e vem. Mas pelejar contra os maus
movimentos do coração e desprezar as sugestões do demônio é sinal de virtude e grande
merecimento.
Não te perturbem, pois, estranhas imaginações,
oriundas de matéria qualquer. Guarda firme teu propósito, e tua reta intenção fixa
em Deus. Não é ilusão o seres, alguma vez, subitamente arrebatado em êxtase, e logo
depois caíres de novo nos costumados desvarios do coração. Porque mais os padeces
contra a vontade do que és causa deles, e enquanto te desagradarem e os repelires,
serão para ti ocasião de merecimento e não de perdição.
Fica sabendo que o antigo inimigo de todos os modos
se esforça por impedir-te os bons desejos e apartar-te de todos os exercícios devotos,
nomeadamente da veneração dos santos, da devota memória de minha paixão, da salutar
lembrança dos pecados, da vigilância sobre o próprio coração e do firme propósito
de aproveitar na virtude. Sugere-te muitos maus pensamentos para te causar tédio
e horror e arredar-te da oração e leitura espiritual.
Desagrada-lhe muito a confissão humilde e, se pudesse,
far-te-ia abandonar a comunhão. Não lhe dês crédito, nem faças caso dele, posto
que muitas vezes te arme laços e enganos. Leva à sua conta os pensamentos maus e
desonestos que te sugere. Diz-lhe: Retira-te, espírito imundo, desgraçado, sem-vergonha;
muito perverso deves ser para me insinuares tais coisas! Vai-te daqui, malvado sedutor,
não terás em mim parte alguma, que Jesus estará comigo, qual guerreiro invencível,
e tu ficarás confundido. Antes quero morrer e sofrer todos os tormentos, que te
fazer a vontade; cala-te e emudece; não te escutarei, por mais que me molestes.
O Senhor é minha luz e minha salvação, a quem temerei.
Levante-se embora contra mim um exército, não temerá
meu coração. O Senhor é meu socorro e meu Salvador. Salmo, 26,1-6; 18,17.
Peleja como bom soldado e, se alguma vez caíres
por fraqueza, torna a cobrar maiores forças que as anteriores, tendo certeza que
receberás mais copiosa graça; acautela-te, porém, muito contra a vã complacência
e a soberba.
Por falta desta vigilância andam muitos enganados
e caem, às vezes, em cegueira incurável. A ruína destes soberbos, que loucamente
presumem de si próprios, sirva-te de cautela e te conserve na virtude da humildade.
Reflexões:
Louvo a Deus de todo o meu coração, ao ver em tua
carta a grande coragem que tens de vencer todas as dificuldades para ser verdadeira
e santamente devota em tua vocação. Faze isto e espera de Deus grandes bênçãos;
certamente mais numa hora como esta de devoção tão bem e justamente regrada, do
que em cem dias de uma devoção bizarra, melancólica e dependente de tua própria
cabeça. Fica firme neste rumo, sem deixar-se abalar de forma nenhuma nesta resolução.
Conforme me disseste, relaxaste um pouco teus exercícios
no campo. Pois bem, é preciso retesar o arco e recomeçar com mais cuidado ainda:
mas uma outra vez não é preciso que os campos te tragam este incômodo; não, porque
Deus também está lá do mesmo modo que está na cidade.
Infelizmente, que piedade é esta das almas que,
vendo-se sujeitas a diversas imperfeições, depois de se terem exercitado algum tempo
na devoção, começam a inquietar-se, perturbar-se e perder a coragem, deixando quase
seu coração ceder à tentação de tudo abandonar e voltar atrás!... Não devemos perturbar-nos
absolutamente com nossas imperfeições, pois nossa perfeição consiste em combatê-las,
e não poderíamos combatê-las sem vê-las, nem vencê-las sem encontrá-las; nossa vitória
não consiste em não senti-las, mas em não consentir-lhes.
Ora, às vezes é melhor ceder-lhes do que ser importunados
por eles: é preciso que, para o exercício de nossa humildade, saiamos algumas vezes
feridos nesta batalha espiritual; mas jamais somos tidos por vencidos, a não ser
quando perdemos a vida ou a coragem.
Oração:
Ó Senhor, eis este pobre e miserável coração que,
por vossa bondade, concebeu vários bons sentimentos; mas infelizmente ele é muito
fraco e mísero para fazer o bem que deseja, se vós não lhe dispensais a vossa bênção
celeste que vos peço nesta intenção, ó Pai complacente, pelo mérito da Paixão de
vosso Filho, em honra do qual eu consagro este dia e todo o resto de minha vida.
Capítulo, 7 Como se há de ocultar a graça sob a guarda da humildade
Jesus. Filho, muito útil e seguro te é encobrir a graça da devoção,
sem te desvaneceres ou te preocupares muito com ela; convindo antes desprezar-te
a ti mesmo e temer que não sejas digno da graça recebida. Importa não estares muito
apegado a tais sentimentos, que bem depressa podem mudar-se nos contrários. Com
a graça presente, pondera quão miserável e pobre és sem ela.
O progresso na vida espiritual não consiste tanto
em teres a graça da consolação, mas em suportar-lhe com humildade, abnegação e paciência
a privação, de sorte que então não afrouxes no exercício da oração, nem deixes de
todo as demais boas obras que costumas praticar. Antes faz tudo de boa vontade,
como melhor puderes e entenderes, nem te descuides totalmente de ti por causa das
securas e ansiedades espirituais.
Muitos há que se deixam levar pela impaciência
e pelo desalento, logo que as coisas não correm como desejam. Pois nem sempre está
nas mãos do homem o seu caminho, Jr 10,23. mas a Deus pertence consolar e dar a
graça quando quiser, e quanto quiser, a quem quiser, tudo como lhe apraz, nem mais
nem menos. Perderam-se alguns imprudentes por causa da graça da devoção, porque
quiseram fazer mais do que podiam, não ponderando a fraqueza das suas forças e seguindo
mais o impulso do coração que os ditames da razão. E porque presumiram de si coisas
bem depressa perderam a graça. Caíram maiores do que Deus havia determinado, na
pobreza e no abatimento os que pretendiam pôr seu ninho no céu, para assim, humilhados
e empobrecidos, aprenderem a não voar com suas próprias asas, mas a esperar à sombra
das minhas. Os novos e principiantes no caminho do Senhor facilmente se podem enganar
e perder, se não se aconselharem com homens experientes.
Estes, se quiserem antes seguir seu próprio parecer,
que confiar no conselho de pessoas experimentadas, põem em grande risco sua salvação,
se continuarem aferrados à sua opinião. Os que se têm por sábios raro se deixam
dirigir pelos outros. É melhor saber e entender pouco, humildemente, que possuir
tesouros de ciência e presumir de si. Melhor te é ter menos do que muito, se com
o muito te vem o orgulho. Não é bastante prudente quem se entrega todo à alegria,
esquecido da antiga pobreza e do casto temor de Deus que sempre receia perder a
graça concedida. Nem tampouco muita virtude denota entregar-se a nímio desânimo
em tempo de adversidade e por qualquer contratempo, sem pôr em mim a confiança devida.
Quem se dá por muito seguro no tempo de paz, muitas
vezes se revela tímido e covarde em tempo de guerra. Se te souberes conservar sempre
humilde e pequeno no teu conceito, e governar com moderação teu espírito, não cairás
tão depressa na tentação e no pecado. É de aconselhar, quando sentes fervor de espírito,
meditar no que será de ti, retirando-se esta graça. E quando isto de fato acontecer,
pensa que a luz pode voltar, que ta tirei por algum tempo, para tua cautela e minha
glória.
Tal provação, muitas vezes, te é mais proveitosa
do que se tudo te saísse à medida de teu desejo. Pois não se devem avaliar os merecimentos
do homem pelas muitas visões e consolações, nem pela perícia nas Escrituras, nem
pela elevação do cargo. Mas, para conhecer o valor de cada um, considera: se está
fundado na verdadeira humildade e vive cheio de amor de Deus; se sempre busca a
honra de Deus com pura e reta intenção; se se despreza a si mesmo, nem faz caso
algum de si, e se gosta mais de ser desprezado e humilhado do que estimado pelos
homens.
Reflexões:
A humildade que oculta e cobre as virtudes para
conservá-las, no entanto as faz aparecer quando a caridade o exige, para fazê-las
crescer, aumentar e aperfeiçoar-se. Nisto ela se assemelha àquela árvore das ilhas
de Tylos, que, de noite, fecha e mantém fechadas suas belas flores vermelhas, e
não as abre senão ao nascer do sol, de modo que os habitantes da região dizem que
essas flores dormem de noite. Assim a humildade cobre e oculta todas as nossas virtudes
e perfeições humanas, e jamais as faz aparecer senão para a caridade, que, sendo
uma virtude não só humana, mas celeste, não só moral, mas divina é o verdadeiro
sol das virtudes, sobre as quais ela deve sempre dominar. Por isso as humildades
que prejudicam a caridade certamente são falsas.
Não gostaria de fazer-me de louco, nem de sábio,
pois se a humildade me impede de fazer-me de sábio, a simplicidade e franqueza também
me impede de fazer-me de louco. E se a vaidade é contrária à humildade, o artifício
ou fingimento é contrário à franqueza e à simplicidade. Se alguns grandes servos
de Deus se fingiram de loucos para se tornarem mais abjetos diante do mundo, devemos
admirá-los, mas não imitá-los, porque eles tiveram motivos para chegar a estes extremos,
que lhes foram tão particulares e tão extraordinários que ninguém deve tirar deles
nenhuma consequência para si mesmo.
Oração:
Eu vos dou graças infinitas, ó Santíssima Trindade,
pela gloriosa Assunção da Imaculada Virgem Maria, nossa mãe, ao céu. Eu vos bendigo
infinitamente pela honra e glória que lhe destes, elevando-a acima dos coros dos
anjos, à destra de vosso Filho único e seu, coroando-a rainha e imperatriz do céu
e da terra.
Suplico-vos, por seus méritos, conceder-me a graça
de amar e imitar com todo zelo suas santíssimas virtudes, de modo especial sua profunda
humildade e pureza imaculada, a fim de que, imitando-a nesta vida, eu mereça gozar
eternamente de sua presença na outra vida. Assim seja.
Capítulo, 8 Da vil estima de si próprio ante os olhos de Deus
A alma. Ao meu Senhor falarei, ainda que seja pó e cinza. Gênesis,
18,27. Se eu me tiver em maior conta, eis que vos ergueis contra mim, e ao
testemunho verdadeiro que dão meus pecados não posso contradizer. Mas se me
tiver por vil e me aniquilar, deixando toda a vã estima de mim mesmo, e me
reduzir a pó, que sou na verdade, ser-me-á propícia a vossa graça, e a vossa
luz há de vir em meu coração, e todo sentimento de amor-próprio, por mínimo que
seja, perder-se-á no abismo do meu nada e perecerá para sempre. Ali me dais a
conhecer o que sou, o que fui, a que ponto cheguei; porque sou nada -- e não o
sabia.
Abandonado a mim mesmo, sou um puro nada e a
mesma fraqueza; tanto, porém, que lançais um olhar sobre mim, logo me sinto
forte e cheio de nova alegria. E é grande maravilha que tão sabiamente me
levantais e tão benigno me abraçais, a mim, que pelo próprio peso pendo sempre
para a terra.
Isto é obra do vosso amor, que me previne
gratuitamente, socorrendo-me em mil necessidades, guardando-me de males, para
bem dizer, infindos. Perdi-me, amando-me desordenadamente; mas, buscando a vós
unicamente, e amando com puro amor, a mim me achei e a vós também, e este amor
me fez ainda mais aprofundar-me em meu nada. Porque vós, ó dulcíssimo Senhor,
me tratais além do meu merecimento, e mais do que ouso esperar ou pedir.
Bendito sejais, meu Deus, pois conquanto eu
seja indigno de todo bem, ainda assim não cessa vossa liberalidade e bondade
infinita de fazer bem até aos ingratos e aos que de vós andam apartados.
Convertei-nos a vós, para que sejamos gratos, humildes e devotos, pois vós sois
nossa salvação, nossa virtude e fortaleza.
Reflexões:
Humilha-te amorosamente diante de Deus e dos
seres humanos, pois Deus fala aos ouvidos abaixados. Escuta, diz ele à sua
esposa, e abaixa teus ouvidos: esquece teu povo e a casa de teu pai. Salmo,
45,11. Assim o Filho bem-amado se prostra diante de sua face, quando fala a seu
Pai Eterno e espera a resposta de seu oráculo. Deus encherá teu vaso com seu
bálsamo, quando o vir vazio dos perfumes deste mundo; e quando fores humilde,
ele te exaltará.
Oh! sem dúvida quando sentimos desejos de
fazer grandes coisas por Deus, devemos então mais do que nunca aprofundar-nos
na humildade e desconfiança de nós mesmos, confiando-nos em Deus e jogando-nos
em seus braços, reconhecendo que sem ele não temos nenhum poder de pôr em
prática nossas resoluções e bons desejos, nem de fazer algo que lhe seja
agradável. Mas nele e com sua graça, todas as coisas nos serão possíveis,
dizendo com São Paulo: Tudo posso naquele que me conforta. Filipenses, 4,13.
Capítulo, 9 Tudo se deve referir a Deus como ao fim último
Jesus. Filho, eu devo ser o teu supremo e último fim, se
desejas ser verdadeiramente feliz. Esta intenção purificará teu coração, tantas
vezes apegado desregradamente a si mesmo e às criaturas. Porque se em alguma
coisa te buscas a ti mesmo, logo desfaleces e afrouxas. Refere, pois, tudo a
mim, principalmente porque eu sou quem te deu tudo. Considera todos os bens
como dimanados do Sumo Bem, e por isso refere tudo a mim como sua origem.
De mim, como de fonte de vida, tiram água viva
o pequeno e o grande, o rico e o pobre, e os que me servem voluntária e
livremente receberão graça sobre graça. Mas quem, fora de mim, quiser
gloriar-se, ou deleitar-se em algum bem particular, jamais poderá firmar-se na
verdadeira alegria, nem se lhe dilatará o coração, mas sempre andará perturbado
e angustiado de mil maneiras. Não te atribuas, pois, bem algum, nem a pessoa
alguma atribuas virtude, mas refere tudo a Deus, sem o qual nada tem o homem.
Eu dei tudo, eu quero tudo reaver, e com estrito rigor exijo as devidas ações
de graças.
É esta a verdade que afugenta toda a
vanglória. E se entrar em teu coração a graça celestial e a verdadeira
caridade, não sentirás mais inveja alguma, nem aperto de coração, nem haverá
mais lugar para o amor-próprio.
Porque tudo vence a divina caridade, e
multiplica as forças da alma. Se és verdadeiramente sábio, só em mim te
alegrarás e porás a tua confiança; porque ninguém é bom senão Deus, São Mateus,
19, 17. só Ele cumpre seja louvado e bendito em tudo, acima de todas as coisas.
Reflexões:
Pergunta a Deus com humildade por que ele te
colocou neste mundo; e considera que não foi por alguma necessidade que ele
tivesse de ti, mas para poder exercer em ti sua liberalidade e bondade: porque
é para te dar seu paraíso, e a fim de que possas tê-lo, deu-te o entendimento
para conhecê-lo, a memória para lembrar-te dele, a vontade e o coração para
amá-lo e amar o teu próximo, a imaginação para te representá-lo, seus
benefícios e todos os teus sentidos para servi-lo, os ouvidos para ouvir seus
louvores, a língua para louvá-lo, os olhos para contemplar suas maravilhas e
assim por diante.
Considera que, sendo criada com esta intenção,
todas as ações contrárias a ela devem ser extremamente evitadas, e aquelas que
não servem de nada para este fim devem ser desprezadas.
Considera que desgraça é ver que, no mundo, a
maioria dos seres humanos não pensa absolutamente nisto, mas acha que estamos
neste mundo para construir casas, fazer jardins, ter vinhas, acumular ouro e
coisas transitórias semelhantes.
Oração:
O que pensava eu quando não pensava em vós,
meu Senhor? De que me lembrava quando vos tinha esquecido? O que eu amava quando
não vos amava?
Não era eu miserável servindo à vaidade em vez
de servir à verdade?
Infelizmente, o mundo, que não foi feito senão
para me servir, dominava e exercia controle sobre meus afetos. Eu renuncio a
vós, pensamentos vãos, lembranças inúteis, amizades infiéis, serviços perdidos
e miseráveis.
Capítulo, 10 Como, desprezando o mundo, é doce servir a Deus
A alma. De novo, Senhor, vos falarei e não me calarei; direi
aos ouvidos de meu Deus, meu Senhor e meu Rei, que está nas alturas: Quão
grande, Senhor, é a abundância da doçura que reservastes aos que vos temem!. Salmo,
30,20. Mas que será para os que vos amam e de todo o coração vos servem? É
verdadeiramente inefável a doçura da contemplação que concedeis aos que vos
amam. Nisto particularmente me manifestastes a doçura de vosso amor: quando não
era, vós me criastes, e quando andava longe de vós, perdido no erro, me
reconduzistes a vos servir e me destes o preceito de vos amar.
Ó fonte perene de amor, que direi de vós? Como
poderia eu esquecer-me que vos dignastes lembrar-vos de mim, ainda depois de
depravado e perdido? Além de toda esperança, usastes de misericórdia para com
vosso servo, e acima de todo mérito me prodigalizastes vossa graça e amizade.
Com que poderei agradecer-vos tal mercê? Porque nem a todos é dado deixar tudo,
renunciar ao mundo e abraçar a vida religiosa. Será porventura mérito que eu
vos sirva, quando toda criatura tem obrigação de vos servir? Não me deve
parecer grande coisa que eu vos sirva; antes devo considerar grande e digno de
admiração que vos digneis receber-me, pobre e indigno como sou, em vosso
serviço e associar-me aos vossos servos prediletos.
Vede, é vosso, Senhor, tudo que possuo e com
que vos sirvo; entretanto, mais me servis vós a mim, do que eu a vós. Aí estão
o céu e a terra, que criastes para uso do homem, e estão atentos a vosso aceno,
a fazer cada dia o que lhes mandais. Mais ainda: os próprios anjos destinastes
ao serviço do homem. Mas, acima de tudo isso, vós mesmos vos dignais servir ao
homem, e prometestes ser a sua recompensa.
Que vos darei eu por esses benefícios sem
conta! Oh! se pudera servir-vos todos os dias da minha vida! Se pudera, ainda
que um só dia, prestar-vos condigno serviço! Na verdade, sois digno de todo
serviço, de toda honra e glória eterna. Vós sois verdadeiramente meu Senhor, eu
vosso pobre servidor, obrigado a servir-vos com todas as minhas forças, sem me
cansar jamais de vos dar louvores. Assim o quero, assim o desejo: dignai-vos,
Senhor, suprir o que me falta.
Grande honra e glória é servir-vos e desprezar
tudo por vosso amor.
Porque copiosa graça alcançarão os que
livremente se sujeitam ao vosso santíssimo serviço. Encontrarão suavíssima
consolação do Espírito Santo os que por vós desprezam todos os deleites
carnais. Conseguirão grande liberdade da alma os que por vosso nome entram na
vereda estreita e se apartam de todos os cuidados mundanos.
Ó doce e amável servidão de Deus, que torna o
homem verdadeiramente livre e santo! Ó sagrada servidão do estado religioso,
que faz o homem igual aos anjos, agradável a Deus, terrível aos demônios e
recomendável a todos os fiéis!
Ó ditoso e nunca assaz desejado serviço, que
nos mereceu o Bem Soberano e adquire o gozo que há de durar para sempre!
Reflexões:
Só a alegria de ter abandonado tudo por Deus
vale mais do que mil mundos: a doçura de ser conduzido pela obediência, de ser
conservado pelas leis e de estar como que imune das maiores ciladas são grande
suavidade, sem contar a paz e tranquilidade que encontramos em tudo isto, o
prazer de estarmos ocupados noite e dia na oração e nas coisas divinas, e mil
delícias como estas.
O que é a religião senão uma casa ou uma
cidade florida e salpicada de flores, mais ainda porque nela não se faz
qualquer coisa quando se vive segundo suas regras e estatutos. que não sejam
mais flores ainda? As mortificações, humilhações, orações, em suma todos os
exercícios, o que são senão práticas de virtudes que são como outras tantas
belas flores que difundem um perfume extremamente suave diante da Divina
Majestade? Portanto, o que é a religião, senão um canteiro semeado de flores
tão agradáveis à vista e de odor tão salutar para os que querem sentir seu
perfume?...
A quem pertencem... tantas flores das quais a
Igreja tem estado cheia e tem sido tão embelezada e ornada, senão à Santíssima
Virgem, cujo exemplo fez existir todas elas? E não foi por meio dela que a
Igreja foi salpicada de rosas dos mártires invencíveis em sua constância, de
maravilhas de tantos santos confessores e de violetas de tantas santas viúvas
que são pequenas, humildes e baixas como essas flores, mas que difundem um
perfume tão bom e tão suave? E, enfim, não é a ela que pertencem mais
particularmente tantos lírios brancos de pureza das virgens cândidas e
inocentes? Mais ainda porque foi a seu exemplo que tantas delas consagraram
seus corações e seus corpos à Divina Majestade, por uma resolução e um voto
indissolúvel de conservar sua virgindade e pureza.
Oração:
Ó benigno Senhor, eu vos recomendo minha alma,
meu espírito, meu coração, minha memória, meu entendimento e minha vontade: fazei
que com isto e em tudo isto eu vos sirva, vos ame, vos agrade e honre para
sempre.
Capítulo, 11 Como devemos examinar e moderar os desejos do coração
Jesus. Filho, muitas coisas deves ainda aprender, que não
sabes bem.
A alma. Que coisas são estas, Senhor?
Jesus. Que conformes completamente teu desejo a meu
beneplácito e não sejas amante de ti mesmo, mas zeloso cumpridor de minha
vontade. Muitas vezes se inflamam teus desejos, e com veemência te impelem;
examina, porém, o que mais te move, se minha honra ou teu próprio interesse. Se
for eu o motivo, ficarás bem contente, qualquer que seja o sucesso do
empreendimento; mas, se lá se ocultar algum interesse próprio, eis que isto
logo te embaraça e aflige.
Guarda-te, pois, de confiar demasiadamente em
preconcebidos desejos que tens sem me consultar, para que não suceda que te
arrependas e te desagrade o que primeiro te agradou e procuraste com zelo, por
te haver parecido melhor. Porém nem todo desejo que pareça bom logo devemos
seguir, nem tampouco a todo sentimento contrário logo havemos de fugir. Convém,
às vezes, refrear mesmo os bons empenhos e desejos, para que as preocupações
não te distraiam o espírito; para que não dês escândalo por falta de discrição;
para que, enfim, não te perturbe a resistência dos outros e desfaleças.
Outras vezes, ao contrário, é preciso usar de
violência e rebater energicamente os apetites dos sentidos sem atender ao que a
carne quer ou não quer, mas trabalhando por sujeitá-la ao espírito, ainda que
se revolte. Cumpre castigá-la e curvá-la à sujeição, a tal ponto, que esteja
disposta para tudo, sabendo contentar-se com pouco e deleitar-se com a simplicidade,
sem resmungar por qualquer incômodo.
Reflexões:
Quando fores coagida pelo desejo de ser
libertada de algum mal ou de conseguir algum bem, antes de tudo coloca teu
espírito em repouso e tranquilidade, faze sossegar teu julgamento e tua
vontade. Depois, com toda suavidade e moderação, procura uma saída para teu
desejo, tomando por ordem os meios que serão convenientes. E quando digo com
toda suavidade, não quero dizer com negligência, mas sem pressa, perturbação e
inquietação; de outra forma, em vez de efetivar teu desejo, estragarás tudo e
ficarás muito mais embaraçada ainda...
Não deves permitir que teus desejos, por
pequenos que sejam e de pouca importância, te inquietem, porque, depois dos
pequenos, os grandes e de mais importância encontrarão teu coração mais
disposto à perturbação e desregramento. Quando sentires chegar a inquietação,
recomenda-te a Deus e decide não fazer absolutamente nada daquilo que teu
desejo requer, até que a inquietação passe totalmente, a não ser que se trate
de algo que não pode ser adiado; deves, então, com um suave e tranquilo
esforço, deter a corrente de teu desejo, amenizando-o, acalmando-o e
moderando-o, tanto quanto for possível, e sobre esta situação agir, não segundo
o teu desejo, mas segundo a razão.
Oração:
Meu Senhor Jesus Cristo, que fizestes correr
de vossas chagas a fonte de vossas graças, fazei que vosso sangue sagrado me
fortaleça contra os maus desejos, e me seja um remédio salutar para todos os
meus pecados. Amém.
Capítulo, 12 Da escola da paciência e luta contra as concupiscências
A alma. Deus e Senhor meu, pelo que vejo, a paciência me é
muito necessária; pois são muitas as contrariedades desta vida. Por mais que se
procure a paz, não há viver sem combate e sofrimento.
Jesus. Assim é, filho, e não quero que busques uma paz
isenta de tentações e contrariedades, mas que julgues ter achado a paz, ainda
quando fores molestado de muitas atribulações e provado em muitas
contrariedades. Se dizes que não podes sofrer tanta coisa, como suportarás,
então, o purgatório? De dois males sempre se deve escolher o menor. Para
escapar dos suplícios futuros, trata de sofrer com paciência os males
presentes, por amor de Deus. Julgas, acaso, que nada ou pouco sofrem os homens
do mundo? Tal não encontrarás, nem entre os mais regalados.
Dirás, talvez, que eles têm muitos deleites e
seguem a sua própria vontade, e por isso pouco lhes pesa a tribulação.
Seja embora assim, e tenham eles quanto
desejam, mas quanto tempo achas que há de durar isso: Eis, qual fumo se
desvanecerão os abastados do século, nem lembrança restará de seus prazeres
passados. E mesmo, enquanto vivem, não os fruem sem amargura, tédio e temor.
Porquanto do próprio objeto de seus deleites muitas vezes lhes vem a dor que os
castiga. E é justo que assim lhes suceda que encontrem amargura e confusão nos
gozos que buscam e perseguem desordenadamente.
E quão breves, quão falsos, quão desordenados
e torpes são todos os deleites do mundo! Mas os homens, na embriaguez e
cegueira do espírito, não o compreendem; antes, como irracionais, por um
diminuto prazer, nesta vida corruptível, dão a morte à sua alma. Tu, pois,
filho, não sigas teus apetites, renuncia à própria vontade; Eclesiástico,
18,30. deleita-te no Senhor, e ele te dará o que teu coração anela. Salmo,
36,4.
Pois, se queres verdadeiras delícias e receber
de mim consolação abundante, despreza todas as coisas mundanas e renuncia a
todos os prazeres inferiores, e por recompensa terás copiosa consolação. Quanto
mais te apartares do prazer que encontras nas criaturas, tanto mais suaves e
eficazes consolações em mim acharás. Não o conseguirás, a princípio, sem alguma
tristeza e trabalho na peleja; opor-se-á o costume inveterado, mas será vencido
por outro melhor. Revoltar-se-á a carne, mas o fervor de espírito lhe porá
freio.
Perseguir-te-á a serpente antiga e te
molestará, mas tu a afugentarás com a oração e, com o trabalho proveitoso, lhe
trancarás a principal entrada.
Reflexões:
Precisais de paciência para fazer a vontade de
Deus e alcançar os bens prometidos, diz o Apóstolo: Hebreus, 10,36. sim,
porque, como havia dito o Salvador, em vossa paciência, possuireis vossas
almas. São Lucas. 21,19. A grande felicidade do ser humano, Filoteia, é possuir
sua alma. E à medida que a paciência é mais perfeita, possuímos mais
perfeitamente nossas almas. Devemos, portanto, aperfeiçoar-nos nesta virtude.
Lembra-te muitas vezes que Nosso Senhor nos salvou sofrendo e suportando com
paciência, e que assim também nós devemos operar nossa salvação pelos
sofrimentos e aflições, suportando as injúrias, contradições e pesares com a
maior paciência que nos é possível.
Não deves de forma alguma limitar tua
paciência a este ou aquele tipo de injúrias ou aflições, mas estendê-la
universalmente a todas que Deus te enviar e permitir que te atinjam. Há pessoas
que não querem sofrer, senão as tribulações que são honráveis, como, por
exemplo, sofrer ferimentos na guerra, ser prisioneiros de guerra, sofrer maus-tratos
pela religião, empobrecer por causa de alguma querela na qual eles se tornaram
mestres: todos estes não amam a tribulação, mas a honra que ela lhes traz. O
verdadeiro paciente e servo de Deus suporta igualmente as tribulações ligadas à
ignomínia e as que são honráveis.
Ser desprezado, censurado e acusado pelos
maus, isto não passa de moleza para um homem de coragem; mas ser repreendido,
acusado e maltratado pelas pessoas de bem, pelos amigos ou pelos pais, aí é que
são elas... E acontece com muita frequência que dois homens de bem, ambos com
boa intenção sobre a diversidade de suas opiniões, se fazem grandes
perseguições e contradições um ou outro.
Oração:
Ó santíssima e bem-aventurada Rainha, que
estais no mais alto do paraíso de felicidade, tende piedade de nós que estamos
no deserto de miséria; vós estais na abundância das delícias e nós estamos no
abismo das desolações; impetrai-nos a força de suportar bem todas as nossas
aflições e que possamos sempre contar com o apoio de vosso Bem-amado, único
suporte de nossas esperanças, única recompensa de nossos trabalhos, único
remédio de nossos males.
Capítulo, 13 Da obediência e humilde sujeição, a exemplo de Jesus Cristo
Filho, quem procura subtrair-te à obediência
aparta-se também da graça; e quem procura favores particulares perde os comuns.
Aquele que não se sujeita pronta e de boa mente a seu superior, mostra que sua
carne não lhe obedece ainda prontamente, mas muitas vezes se revolta e
resmunga. Aprende, pois, a sujeitar-te prontamente a teu superior, se queres
subjugar a própria carne, porque facilmente se vence o inimigo exterior quando
o homem interior não está assolado. Pior inimigo e mais perigoso não tem a
alma, que tu mesmo, quando não obedeces ao espírito. Se queres vencer a carne e
o sangue, deves compenetrar-te do sincero e absoluto desprezo de ti mesmo. Mas
porque ainda te amas desordenadamente, por isso te repugna sujeitar-te de todo
à vontade dos outros.
Ora, que muito é que tu, que és pó e nada, te
sujeites a um homem, por amor de Deus, quando eu, o Todo-poderoso e Altíssimo,
que criei do nada todas as coisas, me sujeitei humilde ao homem, por amor de
ti? Fiz-me o mais humilde e o último de todos para que venças, com a minha
humildade, a tua soberba. Aprende, pó, a obedecer; aprende, terra e limo, a
humilhar-te e curvar-te aos pés de todos. Aprende a quebrantar tua vontade e a
submeter-te a todos em tudo.
Indigna-te contra ti mesmo; não toleres em ti
desvanecimento algum; mas torna-te tão humilde e submisso, que todos te possam
pisar e calcar aos pés, qual lama da rua. Em que podes, vil pecador,
contradizer os que te repreendem, tu, que ofendeste a Deus tantas vezes e
tantas vezes mereceste o inferno? Pouparam-te, porém, meus olhos, porque tua
alma é preciosa diante de mim, para que conheças meu amor e te conserves grato
aos meus benefícios; para que te dês continuamente à verdadeira sujeição e
humildade, sofrendo com paciência o desprezo dos outros.
Reflexões:
O grande apóstolo São Paulo, querendo
fazer-nos entender de alguma forma o amor de Nosso Senhor por esta virtude da
humildade, diz que ele se humilhou até a morte, e morte na cruz. Filipenses,
2,8. Isto quer dizer: Meu Senhor e meu Mestre não se humilhou somente por um
tempo ou por alguma ação particular, mas até a morte, isto é, desde o instante
de sua concepção até o último momento de sua vida; e para mostrar-nos a
grandeza desta humildade de Nosso Senhor, ele se humilhou, diz ele, até a
morte, e morte na cruz, que era a morte mais ignominiosa, mais infame e mais
abjeta do que qualquer outro gênero de morte.
Nesta morte ele quis ensinar-nos que não
devemos contentar-nos em praticar a humildade em algumas ações particulares, e
somente por um tempo, mas sempre e em todas as ocasiões; e não somente até a
morte, mas até a morte na cruz, isto é, até a total mortificação de nós mesmos,
humilhando o amor de nossa própria estima, e a estima de nosso próprio amor;
porque não devemos iludir-nos com a prática de uma certa aparência de humildade,
de atitude e de palavras, que consiste em dizer que não somos nada mais do que
a própria imperfeição, e fazer uma quantidade de reverências e humilhações
externas, e coisas semelhantes que pouco têm a ver com a humildade, a qual,
para ser verdadeira, faz-nos reconhecer-nos e manter-nos como verdadeiros nadas
que não merecem viver e nos torna flexíveis, tolerantes e submissos uns aos
outros.
Oração:
Senhor..., eu vos dou infinita graça e
bênção..., pedindo-vos... um verdadeiro desprezo de mim mesmo e das honras do
mundo, e uma obediência cega a meus superiores, por amor de vós, em tudo que
não vos ofenda.
Capítulo, 14 Que se devem considerar os altos juízos de Deus, para não nos
desvanecermos na prosperidade
Trovejam sobre mim, Senhor, vossos juízos,
temem e tremem meus ossos abalados e minha alma fica de todo espavorida. Estou
assombrado ao considerar que nem os céus são puros à vossa vista. Se nos anjos
achastes maldade e não lhes perdoastes, que será de mim? Caíram as estrelas do
céu, e eu, pó, de que hei de presumir? Aqueles cujas obras pareciam louváveis
precipitaram-se no abismo, e vi os que comiam o pão dos anjos deleitarem-se com
o alimento dos animais imundos.
Não há, pois, santidade, Senhor, se retirais
vossa mão. Não há sabedoria que aproveite, se deixais de a governar. Não há
fortaleza que valha, se deixais de a conservar. Não há castidade segura, se
deixais de a defender. Não é proveitosa a própria vigilância, se falta vossa
santa guarda. Desamparados, afundamos logo e perecemos, mas visitados por vós
nos reerguemos e vivemos.
Somos, com efeito, inconstantes, mas por vós
somos confirmados; somos tíbios, mas vós nos afervorais.
Oh! quão humilde e baixo conceito devo formar
de mim próprio! Em quão pouca conta devo ter o bem que possa haver em mim! Quão
profunda deve ser a minha submissão a vossos insondáveis juízos, Senhor, se
outra coisa não sou que nada e puro nada! Ó peso imenso! Ó pélago insondável,
onde não acho outra coisa em mim senão um puro nada! Onde se refugiará, pois, a
minha soberba? Onde a presunção de alguma virtude? Sumiu-se toda vanglória na
profundeza dos vossos juízos.
Que é toda carne em vossa presença? Porventura
gloriar-se-á o barro contra quem o formou? Como se pode desvanecer com vãos
louvores aquele cujo coração está deveras sujeito a Deus? Nem o mundo todo é
capaz de ensoberbecer aquele a que a Verdade subjugou. Nem os louvores de todos
os lisonjeiros poderão mover aquele em que Deus põe toda a sua esperança.
Porque todos que falam não são nada, e se esvaecem como som das palavras; ao
passo que a verdade do Senhor permanece para sempre. Salmo, 116,2.
Reflexões:
Ó Deus, como são horríveis e perigosas as
quedas dos que estão no alto da montanha! Porque desde que se começa a cair,
rola-se até chegar ao fundo do precipício. Assim foram as quedas daqueles que,
depois de terem recebido grandes graças, decaíram no serviço de Deus. Coisa
estranha que alguém, depois de um começo tão bom, depois de ter permanecido
trinta ou quarenta anos a serviço de sua divina Majestade, já na velhice,
quando seria o tempo de colher o fruto de seu trabalho, chega a perder tudo, a
precipitar-se no abismo da desgraça, como aconteceu com Salomão, da salvação do
qual duvidam os Padres da Igreja, e de muitos outros que também abandonaram o
bom caminho em sua velhice. Como é terrível cair nas mãos do Deus vivo!. Hebreus,
10,31.
Como são imperscrutáveis seus juízos! Aquele
que acredita estar em pé, cuide de não cair, diz o Apóstolo, e que ninguém se
glorie de ter sido chamado por Deus, nem de estar em algum lugar onde parece
não ter nada a temer. Romanos, 11,20; 1, Coríntios. 10,12.
Que ninguém se vanglorie de suas boas obras e
pense que nada tem a temer, pois São Pedro, que havia recebido tantas graças de
Nosso Senhor, e lhe havia prometido acompanhá-lo na prisão e até a morte, o
negou ao mínimo assobio de uma criada; e Judas por uma soma tão irrisória de
dinheiro, o vendeu.
Oração:
Senhor, eis um pintinho que acaba de sair da
casca do ovo sob as asas de vossa graça: se ele se afastar da sombra de sua
mãe, o milhafre o roubará.
Fazei, pois, que ele viva à mercê e ao abrigo
da graça que o produziu.
Capítulo, 15 Como se deve haver e falar cada um em seus desejos
Jesus. Filho, dize assim em todas as coisas: Senhor, se for
do vosso agrado, faça-se isto assim. Senhor, se for para vossa honra, suceda
isto em vosso nome. Senhor, se vos parecer que me é proveitosa e útil tal
coisa, concedei-me para que dela use para vossa glória; mas, se conheceis que
me seria nociva e sem proveito para minha salvação, tirai-me tal desejo; porque
nem todo desejo procede do Espírito Santo, ainda que nos pareça bom e justo. É
dificultoso discernir se te move espírito bom ou mau, a desejar isto ou aquilo,
ou se te move tua própria vontade. Muitos se acharam no fim enganados, que a
princípio pareciam animados de bom espírito.
Qualquer coisa, pois, que se te afigura
desejável, deves sempre desejá-la e pedir com temor de Deus e humildade de
coração, particularmente encomendar-me tudo com sincera resignação, dizendo: Vós
sabeis, Senhor, o que é melhor; faça-se isto ou aquilo, conforme vossa vontade.
Dai-me o que quiserdes, quanto e quando quiserdes. Disponde de mim como
entendeis, como mais vos agradar e para maior glória vossa. Ponde-me onde
quiserdes e disponde de mim livremente em tudo; estou em vossas mãos, virai-me
e revirai-me segundo vos parecer. Eis aqui vosso servo, pronto para tudo; pois
não desejo viver para mim, mas para vós; oxalá com dignidade e perfeição.
Oração para cumprir a
vontade de Deus:
Concedei-me, benigníssimo Jesus, que a vossa
graça esteja comigo, comigo trabalhe e persevere comigo até ao fim. Dai-me que
deseje e queira sempre o que mais vos for aceito e agradável. Vossa vontade
seja a minha, e a minha acompanhe sempre a vossa e se conforme em tudo com ela.
Tenha eu convosco o mesmo querer e não querer, de modo que não possa querer ou
não querer, senão o que vós quereis ou não quereis.
Fazei que eu morra a tudo que é do mundo, e
que deseje ser desprezado e esquecido neste século, por vosso amor. Dai-me que
descanse em vós acima de todos os bens desejáveis, e repouse em vós o meu
coração. Vós sois a verdadeira paz do coração e seu único descanso; fora de vós
tudo é inquietação e desassossego. Nesta paz verdadeira, que sois vós, sumo e
eterno bem, quero dormir e descansar. Amém.
Reflexões:
Procura dizer com Nosso Senhor,
indiferentemente em todas as coisas: Meu Deus, entrego meu espírito, absolutamente
e sem reserva, em vossas mãos.
Quereis que eu esteja em secura ou em
consolação? que seja contrariada, que tenha repugnâncias e dificuldades? que eu
seja amada ou não? que obedeça nisto e naquilo, em coisa grande ou pequena,
fácil ou difícil? Nada disto importa, entrego meu espírito em vossas mãos.
Quereis que eu me dedique às ações da vida ativa ou contemplativa? Entrego meu
espírito em vossas mãos. Que aqueles que se dedicam às ações da vida ativa não
desejem sair dela para abraçar a vida contemplativa, até que Deus o ordene. E
que aqueles que contemplam não abandonem a contemplação até que Deus o ordene.
Que nos calemos quando for preciso, e que falemos quando for tempo de falar. E,
se fizermos isto, poderemos dizer na hora de nossa morte, como nosso caro
Mestre: Meu Deus, tudo está consumado! Cumpri tudo conforme vossa vontade
divina em todos os acontecimentos que ordenastes.
O que me resta nesta hora senão entregar meu
espírito em vossas mãos, no fim e declínio de minha vida, como o entreguei no
começo e no meio dela?.
Capítulo, 16 Que só em Deus se há de buscar a verdadeira consolação
Tudo que posso desejar ou procurar para meu
consolo não o espero nesta vida, mas na futura, porque ainda que eu tivesse
todas as consolações do mundo e pudesse fruir todas as suas delícias, certo é
que não poderiam durar muito tempo. Portanto, considera, ó minha alma, que não
poderás achar consolo pleno e alegria perfeita senão em Deus, que consola os
pobres e agasalha os humildes.
Espera um pouco, ó minha alma, espera a divina
promessa, e no céu terás todos os bens em abundância. Se desordenadamente
desejares os bens presentes, perderás os eternos e celestes. Usa das coisas
temporais, mas deseja as eternas.
Não te pode satisfazer bem algum temporal,
porque não foste criada para gozá-los.
Ainda que possuísses todos os bens criados,
não poderias ser feliz e estar contente, porque só em Deus, criador de tudo,
consiste tua bem-aventurança e felicidade; não qual a entendem e louvam os amadores
do mundo, mas como a esperam os bons servos de Cristo, e às vezes antegozam as
pessoas espirituais e limpas de coração, cuja conversação está nos céus. Filipenses,
3,20. Curto e vão é todo consolo humano; bendita e verdadeira a consolação que
a verdade nos comunica interiormente. O homem devoto em toda parte traz consigo
seu consolador, Jesus, e lhe diz: Assisti-me, Senhor Jesus, em todo lugar e
tempo. Seja, pois, esta a minha consolação: o carecer voluntariamente de toda
consolação humana. E se me faltar também vosso consolo, seja para mim vossa
vontade, que justamente me experimenta, a suprema consolação. Porque não dura
sempre a vossa ira, nem nos ameaçareis eternamente. Salmo, 102,9.
Reflexões:
Se quiseres, toma todos os grandes da terra e
considera suas condições, umas depois das outras e verás que eles nunca estão
perfeitamente satisfeitos, porque, se são ricos e alcançaram os mais altos
escalões da dignidade do mundo, sempre desejam mais...
Não acharíamos que é bem louco e pouco
ajuizado um comerciante que se esforçasse extremamente para fazer um negócio do
qual só tiraria prejuízo?
Portanto, aqueles que sabem com certeza, pois
têm seu entendimento esclarecido com a luz celeste, que só Deus pode dar um
verdadeiro e perfeito contentamento aos seus corações, não fazem um negócio vão
e inútil, alojando em seus corações as criaturas inanimadas, ou então esses
outros seres humanos como eles? Os bens terrenos, as casas, o ouro, a prata, as
riquezas e até as honras e dignidades que nossa ambição nos faz perseguir e
buscar tão desesperadamente, não são negócios muito vãos, uma vez que tudo isto
é perecível? Não estamos muito enganados ao colocar nisto o nosso coração,
visto que todas essas coisas, em vez de proporcionar-lhe repouso e quietude,
não lhe fornecem senão objetos de pressa e de inquietação, seja para
conservá-los ou aumentá-los, se a pessoa já os tem, ou para adquiri-los se
ainda não os tem?.
Capítulo, 17 Que todo o nosso cuidado devemos entregar a Deus
Jesus. Filho, deixa-me fazer contigo o que quero; eu sei o
que te convém.
Tu pensas como homem, e julgas em muitas
coisas consoante te persuade o afeto humano.
A alma. Senhor, verdade é o que dizeis. Maior é vossa
solicitude por mim, que todo o cuidado que eu comigo possa ter. Está em grande
perigo de cair quem não entrega a vós todos os seus cuidados. Fazei de mim,
Senhor, tudo o que quiserdes, contanto que permaneça em vós, reta e firme, a
minha vontade.
Pois não pode deixar de ser bom tudo o que
fizerdes de mim. Se quereis que esteja nas trevas, bendito sejais; e se quereis
que esteja na luz, sede também bendito. Se quereis que esteja consolado, sede
bendito, e se quereis que esteja tribulado, sede igualmente para sempre
bendito.
Jesus. Filho, assim deves pensar, se desejas andar comigo.
Tão pronto deves estar para sofrer como para gozar; para a pobreza e
indigência, como para a riqueza e abundância.
A alma. Por vós, Senhor, sofrerei de bom grado tudo que
quiserdes que me sobrevenha. De vossa mão quero aceitar, indiferentemente, o
bem e o mal, as doçuras e as amarguras, as alegrias e as tristezas, e quero
dar-vos graças por tudo que me suceder. Livrai-me de todo pecado, e não temerei
nem morte nem inferno. Contanto que não me rejeiteis eternamente, não me fará
mal qualquer tribulação que me sobrevenha.
Reflexões:
O Salvador de nossas almas teve o uso da razão
desde o instante de sua concepção..., e o glorioso São João, seu precursor,
desde o dia da santa visitação.
E ainda que um e outro, durante este tempo e o
da infância, gozassem de sua própria liberdade para querer e não querer as
coisas, talvez tenham deixado às suas mães o cuidado de fazer e de querer para
eles o que convinha, no que diz respeito à sua conduta exterior.
Teótimo, devemos ser assim, tornando-nos
dóceis e manejáveis ao bel-prazer divino, como se fôssemos de cera; não nos
entretendo em desejar e querer as coisas, mas deixando Deus querer e fazer por
nós, como lhe aprouver, lançando sobre ele todas as nossas preocupações, porque
ele cuida de nós 1, Pedro. 5, 7. como diz o santo apóstolo. E observa que ele
diz todas as nossas preocupações, isto é, tanto a que temos de receber os
acontecimentos como a de querer ou não querer, porque haverá preocupação com o
sucesso de nossos negócios, e de querer para nós o que será o melhor.
Mas empregamos afetuosamente nossa preocupação
em bendizer a Deus por tudo que ele fará, a exemplo de Jó, que dizia: O Senhor
o deu, o Senhor o tirou; bendito seja o nome do Senhor. Jó 1,21. Não, Senhor,
não quero nenhum evento, porque deixo todos a vós para querê-los por mim como
vos aprouver.
Mas em vez de querer os acontecimentos, eu vos
bendirei por tê-los querido por mim. Ó Teótimo, como é excelente esta ocupação
de nossa vontade, quando ela cede a preocupação de querer e escolher os efeitos
do bel-prazer divino, para louvar e agradecer este bel-prazer por tais
efeitos!.
Capítulo, 18 Como, a exemplo de Cristo, se hão de sofrer com igualdade de
ânimo as misérias temporais
Jesus. Filho, desci do céu para tua salvação; tomei tuas
misérias, não levado pela necessidade, mas pelo amor, para ensinar-te a
paciência e a suportar com resignação as misérias temporais. Porque, desde a
hora do meu nascimento até à morte na cruz, nunca estive um instante sem
sofrer. Padeci grande penúria dos bens terrestres: ouvi muitas vezes grandes
queixas de mim: sofri com brandura injúrias e opróbrios; recebi, pelos
benefícios, ingratidões; pelos milagres, blasfêmias; pela doutrina;
repreensões.
A alma. Senhor, já que fostes tão paciente em vossa vida,
cumprindo nisso principalmente a vontade de vosso Pai, justo é que eu, mísero
pecador, me sofra a mim com paciência, conforme quereis, e suporte por minha
salvação o fardo desta vida corruptível. Porque, se bem que a vida presente
seja pesada, torna-se, contudo, com a vossa graça, muito meritória e, com vosso
exemplo e o de vossos santos, mais tolerável e leve para os fracos. É também
muito mais consolada do que outrora, na lei antiga, quando a porta do céu estava
fechada, e o caminho do céu parecia mais escuro, e bem poucos tratavam de
buscar o reino dos céus. Nem os justos sequer e predestinados podiam entrar no
reino celeste antes da vossa paixão e resgate da vossa sagrada morte.
Oh! quantas graças vos devo render, por vos
terdes dignado mostrar a mim e a todos os fiéis o caminho direito e seguro para
vosso reino eterno! Porque vossa vida é o nosso caminho e pela santa paciência
caminhamos para vós, que sois nossa coroa. Sem vosso exemplo e ensino, quem cuidaria
de vos seguir? Ah! quantos ficariam atrás, bem longe, se não vissem vossos
luminosos exemplos! E se ainda andamos tíbios, com tantos prodígios e
ensinamentos, que seria se não tivéssemos tantas luzes para vos seguir?
Reflexões:
Quando estiveres doente, oferece todas as tuas
dores, penas e languidez a serviço de Nosso Senhor, suplicando-lhe que os
associe aos tormentos que ele sofreu por ti. Obedece ao médico, toma os
remédios, carnes e outros alimentos prescritos, por amor de Deus, lembrando-te
do fel que ele bebeu por amor de nós. Deseja curar-te para prestar-lhe serviço;
não recuses absolutamente languescer para lhe obedecer, e dispõe-te a morrer,
se assim lhe aprouver, para louvá-lo e gozar de sua presença... Contempla
muitas vezes com os olhos interiores Jesus Cristo crucificado, nu, blasfemado,
caluniado, abandonado, e enfim oprimido de todo tipo de contrariedades, de
tristeza e de trabalhos, e considera que todos os teus sofrimentos não são de
forma nenhuma comparáveis aos dele, nem em qualidade nem em quantidade, e que
jamais sofrerás nada por ele, pelo preço do que ele sofreu por ti.
Considera as penas que os mártires sofreram
outrora, e as que tantas pessoas suportam hoje, penas mais prejudiciais, sem
nenhuma proporção com as que sofres, e dize: Meu Deus, meus trabalhos são
consolações e minhas penas rosas, em comparação com aqueles que, sem socorro,
sem assistência e sem alívio, vivem numa morte contínua, oprimidos de aflições
infinitamente maiores.
Capítulo, 19 Do sofrimento das injúrias e quem é provado verdadeiro
paciente
Jesus. Filho, que é o que estás dizendo? Deixa de te
queixar, em vista da minha paixão e dos sofrimentos dos santos. Ainda não tens
resistido até derramar sangue. Pouco é o que sofres em comparação ao muito que
padeceram eles em tão fortes tentações, tão graves tribulações, tão várias
provações e angústias. Convém, pois, que te lembres dos graves trabalhos dos
outros, para que mais facilmente sofras os teus, que são mais leves. E se te
não parecem tão leves, olha, não venha isso de tua impaciência. Contudo, sejam
graves ou leves, procura levá-los todos com paciência.
Quanto melhor te dispões para padecer, tanto
mais paciente serás em tuas ações e maiores merecimentos ganharás; com a
resignação e a prática torna-se também mais suave o sofrimento. Não digas: não
posso sofrer isto daquele homem, nem estou para aturar tais coisas, pois me fez
grave injúria e me acusa de coisas que jamais imaginei; de outros sofreria
facilmente, quanto julgasse que devia sofrer. Insensato é semelhante pensar,
pois não considera a virtude da paciência nem olha àquele que há de coroá-la,
mas só atende às pessoas e às ofensas recebidas.
Não é verdadeiro sofredor quem só quer sofrer
quanto lhe parece e de quem lhe apraz. O verdadeiro paciente também não repara
em quem exercita a paciência; se é seu superior, ou igual, ou inferior, se é
homem bom e santo, ou mau e perverso. Mas, sem diferença de pessoa, sempre que
lhe sucede qualquer adversidade, aceita-a gratamente da mão de Deus e a
considera um grande lucro para sua alma. Porque aos olhos de Deus qualquer
coisa, por insignificante que seja, que soframos por amor dele, terá seu
merecimento.
Aparelha-te, pois, para o combate, se queres a
vitória. Sem peleja não podes chegar à coroa da vitória. Se não queres sofrer,
renuncia à coroa; mas, se desejas ser coroado, luta energicamente e sofre com
paciência. Sem trabalho não se consegue o descanso e sem combate não se alcança
a vitória.
A alma. Tornai-me, Senhor, possível, pela graça, o que me
parece impossível pela natureza. Vós bem sabeis quão pouco sei sofrer, e que
logo fico desanimado com a menor contrariedade. Tornai-me amável e desejável
qualquer prova e aflição, por vosso amor, porque o padecer e penar por vós é muito
proveitoso à minha alma.
Reflexões:
Sê paciente, não somente para o mais penoso e
principal das aflições que te sobrevêm, mas ainda para os complementos e
acidentes que as acompanham.
Muitas pessoas desejariam muito sofrer um mal,
mas com a condição de não serem incomodadas. Eu não ficaria aborrecida se me
tornasse pobre, diz uma, se isto não me impedisse de servir meus amigos, criar
e educar meus filhos, e viver honradamente, como desejaria. E a outra dirá: eu
não me preocuparia, se o mundo não pensasse que isto me aconteceu por minha
culpa. A outra aceitaria facilmente que fosse difamada e o sofreria com muita
paciência, contanto que ninguém acreditasse no difamador. Há ainda outras que
querem muito sofrer algum incômodo do mal, como lhes parece, mas não um
incômodo total: não ficam impacientes, dizem, por estar doentes, mas porque não
têm dinheiro para tratar-se ou porque vão importunar os que estão próximos.
Mas eu te digo, Filoteia, que é preciso ter
paciência, não só por estar doente, mas por estar com a doença que Deus quer, e
não com aquela que a gente quer e entre as pessoas que queremos estar. E assim
deve ser com as outras tribulações. Quando te acontecer um mal, trata de tomar
os remédios que serão possíveis, como Deus quer, porque de outra maneira seria
tentar sua divina Majestade. Mas, depois de teres feito isto, deves também
esperar, com inteira resignação, o efeito que Deus permitirá. Se lhe aprouver
que os remédios vençam o mal, cabe-te agradecer-lhe com humildade; mas se lhe
aprouver que os remédios não façam efeito, deves também bendizê-lo com
paciência.
Capítulo, 20 Da confissão da própria fraqueza, e das misérias desta vida
A alma. Confesso contra mim mesmo minha maldade, Salmo,
31,5. confesso, Senhor, minha fraqueza. Muitas vezes a menor coisa basta para
me abater e entristecer. Proponho agir valorosamente, mas, assim que me
sobrevém uma pequena tentação, vejo-me em grandes apuros. Às vezes é de uma
coisa mesquinha que me vem grave aflição. E quando me julgo algum tempo seguro,
vejo-me, não raro, vencido por um sopro, quando menos o penso.
Olhai, pois, Senhor, para esta minha baixeza e
fragilidade, que conheceis perfeitamente. Compadecei-vos de mim e tirai-me da
lama, para que não fique atolado Salmo, 68,18. e arruinado para sempre. É isto
que a miúdo me atormenta e confunde em vossa presença: o ser eu tão inclinado a
cair, e tão fraco a resistir às paixões. E embora não me levem ao pleno
consentimento, muito me molestam e afligem seus assaltos, e muito me enfastia o
viver sempre nesta peleja. Nisto conheço minha fraqueza, que mais depressa me
vem do que se vão essas abomináveis fantasias da imaginação.
Ó poderosíssimo Deus de Israel, zelador das
almas fiéis, olhai para os trabalhos e dores de vosso servo, e assisti-lhe em
todos os seus empreendimentos! Confortai-me com a força celestial, para que não
me vença e domine o homem velho, a mísera carne, ainda não inteiramente sujeita
ao espírito, contra a qual será necessário pelejar enquanto estiver nesta
miserável vida. Ai! que vida é esta, em que nunca faltam as tribulações e
misérias, em que tudo está cheio de inimigos e ciladas! Porque mal acaba uma
tribulação ou tentação, outra já se aproxima, e, até antes de acabar um
combate, muitos outros já sobrevêm, e inesperados.
E como se pode amar uma vida cheia de tantas
amarguras, sujeita a tantas calamidades e misérias? Como se pode chamar vida o
que gera tantas mortes e desgraças? E, não obstante, muitos amam e procuram
nela deleitarse. Muitos acoimam o mundo de enganador e vão, e ainda assim lhes
custa deixá-lo, porque se deixam dominar pelos apetites da carne. Muitas coisas
nos inclinam a amar o mundo, outras a desprezá-lo. Fazem amar o mundo a
concupiscência da carne, a concupiscência dos olhos e a soberba da vida; mas as
penas e as misérias que estas coisas se seguem geram o ódio e aborrecimento do
mundo.
Infelizmente, o vil deleite vence a alma
mundana, que julga delícia o estar em meio dos espinhos, Jó 30,7. porque nunca
viu nem provou a doçura de Deus, nem a intrínseca suavidade da virtude. Mas
aqueles que perfeitamente desprezam o mundo e procuram viver para Deus, em
santa disciplina, experimentam a doçura divina, prometida aos verdadeiros
abnegados, e mais claramente conhecem os erros grosseiros do mundo e seus
vários enganos.
Reflexões:
Todos os grandes santos, como Jó, Davi e os
outros, começavam todas as suas orações pela confissão de sua miséria e
indignidade, de sorte que é uma coisa muito boa reconhecer-se pobre, vil e
abjeto, e indigno de comparecer na presença de Deus. Este célebre dito entre os
antigos, conhece-te a ti mesmo, ainda que se estenda ao conhecimento da
grandeza e excelência da alma, para não aviltá-la nem profaná-la absolutamente
em coisas indignas de sua nobreza, estende-se também ao conhecimento de nossa
indignidade, imperfeição e miséria. E isto mais ainda porque, quanto mais nos
conhecermos miseráveis, tanto mais confiaremos na bondade e misericórdia de
Deus, porque entre a misericórdia e a miséria há uma certa ligação tão grande
que uma não pode exercer-se sem a outra... Quanto mais nos conhecemos
miseráveis, tanto mais ocasião temos de confiar em Deus, uma vez que não temos
nada em nós mesmos em que podemos confiar.
Capítulo, 21 Como se deve descansar em Deus sobre todos os bens e dons
A alma. Ó minha alma, em tudo e acima de tudo descansa
sempre no Senhor, porque Ele é o eterno repouso dos santos. Dai-me, ó
dulcíssimo e amantíssimo Jesus, que eu descanse em vós mais que em toda
criatura; mais que na saúde e formosura; mais que na glória e honra, no poder e
dignidade; mais que em toda ciência e sutileza; mais que em todas as riquezas e
artes; mais que na alegria e no divertimento; mais que na fama e no louvor;
mais que nas doçuras e consolações, esperanças e promessas, desejos e méritos;
mais que em todos os dons e dádivas que me podeis dar e infundir; mais que em
todo gozo e alegria que minha alma possa experimentar e sentir; finalmente,
mais que nos anjos e arcanjos e todo o exército celeste; acima de todo o
visível e invisível, acima, enfim, de tudo aquilo que vós, meu Deus, não sois.
Porquanto vós, meu Deus, sois bom acima de
todas as coisas. Só vós sois altíssimo, só vós poderosíssimo, só vós
suficientíssimo e pleníssimo, só vós suavíssimo e verdadeiro consolador, só vós
formosíssimo e amantíssimo, só vós nobilíssimo e gloriosíssimo sobre todas as
coisas, em quem se olham, a um tempo e plenamente, todos os bens passados,
presentes e futuros. Por isso é mesquinho e insuficiente tudo quanto fora de
vós mesmo me dais, revelais ou prometeis, enquanto vos não vejo e possuo
inteiramente; porque meu coração não pode descansar verdadeiramente, nem estar
totalmente satisfeito a não ser em vós, acima de todos os dons e de todas as
criaturas.
Ó meu Jesus, esposo diletíssimo, amante
puríssimo, senhor absoluto de toda a criação, quem me dera as asas da
verdadeira liberdade para voar e repousar em vós! Oh! quando me será concedido
ocupar-me totalmente de vós e experimentar vossa doçura, Senhor meu Deus!
Quando estarei tão perfeitamente recolhido em vós, que não me sinta a mim mesmo
por vosso amor, mas só a vós, acima de toda sensação e medida, que nem todos
conhecem! Agora, porém, não cesso de gemer, e levo, cheio de dor, o peso de
minha infelicidade; pois neste vale de lágrimas sucedem tantos males, que
muitas vezes me perturbam, entristecem e anuviam a alma; outras vezes me
embaraçam, distraem, atraem e emaranham, para me impossibilitar vosso acesso e
me privar das doces carícias, que gozam sempre os espíritos bem-aventurados!
Deixai-vos enternecer por meus suspiros e tantas amarguras que padeço nesta
terra.
Ó Jesus, esplendor da eterna glória, consolo
da alma desterrada, diante de vós emudece minha boca e meu silêncio vos fala: Até
quando tardará a vir o meu Senhor? Venha a este seu servo pobrezinho trazer-lhe
alegria; estenda-lhe a mão e livre este miserável de toda angústia. Vinde,
vinde, porque sem vós não posso ter nem um dia, nem uma hora feliz, pois vós
sois minha alegria, e sem vós está vazio meu coração. Miserável sou, como que
preso e carregado de grilhões, enquanto me não recreeis com a luz de vossa
presença e me deis a liberdade, mostrando-me benigno semblante.
Busquem outros o que quiserem em lugar de vós,
a mim nenhuma coisa me há de agradar jamais, senão vós, meu Deus, minha
esperança e salvação eterna. Não calarei, nem cessarei de orar, até que volte
vossa graça, e vós me faleis no interior.
Jesus. Aqui me tens, venho a ti, porque me chamaste.
Moveram-me tuas lágrimas e os desejos de tua alma; a humildade e a contrição do
teu coração me trouxeram a ti.
A alma. Eu disse: Chamei-vos, Senhor, e desejei gozar-vos,
disposto a desprezar tudo por vosso amor, que vós primeiro me inspirastes
buscar-vos. Sede, pois, bendito, Senhor, pela bondade que usais para com vosso
servo, segundo vossa infinita misericórdia. Que mais pode fazer vosso servo em
vossa presença, senão humilhar-se profundamente diante de vós, e lembrar-se
sempre de sua maldade e vileza? Pois nada há semelhante a vós, entre todas as
maravilhas do céu e da terra. Vossas obras são perfeitíssimas, vossos juízos
verdadeiros, e vossa providência governa todas as coisas. Louvor e glória,
pois, a vós, ó Sabedoria do Pai, minha boca vos louva e minha alma vos
engrandece, juntamente com todas as criaturas.
Reflexões:
Observa este mercador do Evangelho que busca
pérolas. Quando encontra uma de grande valor e excelência, vai e vende tudo o
que tem para comprá-la.
Assim agem todos os seres humanos: cada um
busca a sorte e a felicidade. Mas nenhum a encontra senão aquele que encontra
esta pérola preciosa do puro amor de Deus e, tendo-a encontrado, vende tudo o
que tem para adquiri-la. É verdade que o ser humano foi criado para gozar a
felicidade, e a felicidade tem tanta relação e conformidade com o coração do
ser humano que ele não pode encontrar repouso a não ser possuindo-a. Mas a
desgraça é que os seres humanos colocam sua felicidade cada um no que ama: uns
na volúpia, outros nas riquezas, e outros ainda nas honras e dignidades. Mas
eles se enganam, porque tudo isto não é absolutamente capaz de saciar e
contentar seu coração.
São Bernardo diz isto muito bem: Tua alma, ó
homem, é tão grande que nenhuma coisa pode enchê-la nem satisfazê-la, senão
Deus.
Podemos ver a experiência disto em Alexandre o
Grande, o qual, depois de ter subjugado quase toda a terra a seu império, mesmo
assim não ficou contente; pois um certo filósofo tendo-o feito acreditar que
ainda havia outros mundos além dos já conquistados, ele se pôs a chorar porque
achava que não podia conquistar todos. Considera, por favor: se aquele que
possuiu, de um modo mais eminente que nenhum outro, os bens e as riquezas da
terra, não ficou feliz, quem poderá ficar?.
Capítulo, 22 Da recordação dos inumeráveis benefícios de Deus
A alma. Abri, Senhor, meu coração à vossa lei, e ensinai-me
o caminho de vossos preceitos. Fazei-me compreender a vossa vontade, e com
grande reverência e diligente consideração rememorar os vossos benefícios,
gerais ou particulares, para assim render-vos por eles as devidas graças. Bem
sei e confesso que nem pelo menor benefício vos posso render condignos louvores
e agradecimentos. Eu me reconheço inferior a todos os bens que me destes, e,
quando considero vossa majestade, abate-se meu espírito com o peso de vossa
grandeza.
Tudo o que temos, na alma e no corpo, todos os
bens que possuímos, internos e externos, naturais e sobrenaturais, todos são
benefícios vossos, e outras tantas provas de vossa bondade, liberalidade e munificência,
que de vós todos os bens recebemos. E ainda que este receba mais e outro menos,
tudo é vosso, e sem vós ninguém pode alcançar a menor coisa. E aquele que
recebeu mais não pode gloriar-se de seu merecimento, nem elevar-se acima dos
outros, nem desprezar o menor; porque só é maior e melhor aquele que menos
atribui a si, e é mais humilde e fervoroso em vos agradecer. E quem se
considera mais vil e se julga o mais indigno de todos é o mais apto para
receber maiores dons.
O que, porém, recebeu menos não deve
afligir-se, nem queixar-se, nem ter inveja do mais rico; olhará, ao contrário,
para vós e louvará vossa bondade, que tão copiosa e liberalmente prodigalizais
vossas dádivas, sem acepção de pessoas. De vós nos vêm todas as coisas; por
todas, pois, deveis ser louvado. Vós sabeis o que é conveniente dar a cada um,
e não nos pertence indagar por que este tem menos, aquele mais; só vós podeis
avaliar os merecimentos de cada um.
Por isso, Senhor meu Deus, considero como
grande benefício o não ter eu muitas coisas que trazem a glória exterior e os
humanos louvores. Portanto, ninguém, à vista de sua pobreza e da vileza de sua
pessoa, deve conceber, por isso, desgosto, tristeza ou desalento, senão grande
alegria e consolo, porque vós, Deus meu, escolhestes por vossos particulares e
íntimos amigos os pobres, os humildes e os desprezados deste mundo. Testemunho
disto são vossos apóstolos, a quem constituístes príncipes sobre toda a terra.
Todavia, viveram neste mundo tão sem queixa, tão humildes e com tanta singeleza
da alma, tão sem malícia ou dolo, que se alegravam de sofrer contumélias por
vosso nome, e com grande afeto abraçavam o que o mundo aborrece.
Nada, pois, deve alegrar tanto aquele que vos
ama e reconhece vossos benefícios, como ver executar-se a seu respeito vossa
vontade e o beneplácito de vossas eternas disposições. Tanto deve com isto
estar contente e satisfeito, que queira de tão boa vontade ser o menor, como
outro desejaria ser o maior; e tão sossegado e contente deve estar no último como
no primeiro lugar, tão satisfeito em ser desprezado e abatido, sem nome nem
reputação, como se fosse o mais honrado e estimado no mundo. Porque a vossa
vontade e o amor de vossa honra devem ser antepostos a tudo, e devem consolar e
agradar mais ao vosso servo, que todos os dons presentes ou futuros.
Reflexões:
Um dos maiores pecados que os seres humanos
cometem é a ingratidão pelas graças que receberam de Nosso Senhor. Este defeito
procede na maioria das vezes da ignorância que não deixa o ser humano ver o
dever que tem para com esta soberana bondade, da qual recebe tantas graças e
bens. Mas quando esta ingratidão está no entendimento, ela certamente é muito
má e perigosa, porque geralmente passa pela vontade e a vicia de tal forma que
ela se esquece completamente do reconhecimento que deve a Deus. Isto é um
grande mal, e um dos maiores impedimentos à graça que se possa ter...
Ó Deus, como esta ingratidão é um vício
medonho e temível! Santo Agostinho não foi absolutamente atingido por ele, ao
contrário, ele se sentia tão devedor e agradecido a este divino Salvador de
nossas almas que o havia desligado dos laços de seus pecados, que se perdia e
consumava no seu amor a seu soberano benfeitor e libertador; e muitas vezes, em
suas meditações, este reconhecimento abrasava com tanta força seu coração que
ele se fundia de amor por aquele que o havia cumulado de tão grandes
misericórdias.
Capítulo, 23 Das quatro coisas que produzem grande paz
Jesus. Filho, vou agora ensinar-te o caminho da paz e da
verdadeira liberdade.
A alma. Fazei, Senhor, o que dizeis, que muito grato me é
ouvi-lo.
Jesus. Filho, trata de fazer antes a vontade alheia que a
tua. Prefere sempre ter menos que mais. Busca sempre o último lugar e
sujeita-te a todos.
Deseja sempre e roga que se cumpra plenamente
em ti a vontade de Deus. O homem que assim procede penetra na região da paz e
do descanso.
A alma. Senhor, este vosso discurso é breve, mas encerra
muita perfeição.
Poucas são as palavras, cheias, porém, de sabedoria
e de copioso fruto. Se eu as praticasse fielmente, não me deixaria perturbar
com tanta facilidade. Pois, todas as vezes que me sinto inquieto e aflito,
verifico que me desviei desta doutrina. Vós, porém, que tudo podeis e desejais
sempre o progresso da alma, aumentai em mim a graça, para que possa guardar
vossos ensinamentos e levar a efeito minha salvação.
Oração contra os maus
pensamentos:
Senhor, meu Deus, não vos aparteis de mim, meu
Deus, dignai-vos socorrer-me. Salmo, 70,13. Pois me invadem vários pensamentos,
e grandes temores afligem minha alma. Como escaparei ileso, como poderei
vencê-los?
Diante de ti, são palavras vossas, irei eu e
humilharei os soberbos da terra; Isaías. 14,1. abrir-te-ei as portas do cárcere
e te revelarei mistérios recônditos.
Fazei, Senhor, conforme dizeis e dissipe vossa
presença todos os maus pensamentos. Esta é a minha única esperança e
consolação: a vós recorrer em toda tribulação, em vós confiar, invocar-vos de
todo o coração e com paciência aguardar a vossa consolação.
Oração para pedir o
esclarecimento do espírito:
Iluminai-me, ó bom Jesus, com a claridade da
luz interior e dissipai todas as trevas que reinam em meu coração. Refreai as
dissipações nocivas e rebatei as tentações, que me fazem violência. Pelejai
valorosamente por mim, e afugentai as más feras, essas traiçoeiras
concupiscências, para que se faça a paz por vossa virtude, e ressoe perene
louvor no templo santo, que é a consciência pura. Mandai aos ventos e às tempestades;
dizei ao mar: aplaca-te, e ao tufão: não sopres; e haverá grande bonança.
Enviai vossa luz e vossa verdade, Salmo, 42,3.
para que resplandeçam sobre a terra; porque sou terra vazia e estéril, enquanto
não me iluminais. Derramai sobre mim vossa graça e banhai o meu coração com o
orvalho celestial; abri as fontes de devoção, que reguem a face da terra, para
que produza frutos bons e perfeitos. Erguei meu espírito abatido pelo peso dos
pecados e dirigi meus desejos para as coisas do céu, para que, antegozando a
doçura da suprema felicidade, me aborreça em pensar nas coisas da terra.
Desprendei-me e arrancai-me de toda
transitória consolação das criaturas, porque nenhuma coisa criada pode
consolar-me plenamente ou satisfazer meus desejos. Uni-me convosco pelo vínculo
indissolúvel do amor, porque só vós bastais a quem vos ama, e sem vós tudo o
mais é vaidade.
Reflexões:
O meio de adquirir esta disponibilidade para
fazer a vontade do outro é fazer muitas vezes, na oração, atos de
desprendimento e depois colocá-los em prática quando a ocasião se apresentar.
Porque não basta despojar-se diante de Deus, pois isto se faz apenas com a
imaginação e sem grande dificuldade. Mas quando é preciso fazê-lo efetivamente
e, acabando de nos doar totalmente a Deus, encontramos uma criatura que nos dá
ordens, aí a coisa é bem diferente. É neste caso que é preciso mostrar nossa
coragem. Esta bondade e condescendência com a vontade do próximo é uma virtude
de muito valor. Ela é símbolo da oração de união, porque, como esta oração não
é outra coisa senão uma renúncia de nós mesmos em Deus, quando a alma diz com
toda sinceridade que não tem mais vontade senão a vontade do Senhor, então ela
está totalmente unida a Deus.
Da mesma forma, renunciando à nossa vontade
para fazer sempre a vontade do próximo, temos então a verdadeira união com o
próximo, e é preciso fazer tudo isto por amor de Deus.
Permanece em paz com um singular amor à
vontade e Providência divina.
Permanece com nosso Salvador crucificado,
plantado no meio do teu coração.
Eu vi, há algum tempo, uma jovem que trazia um
balde de água na cabeça, no meio do qual ela havia colocado um pedaço de pau;
eu queria saber por que o fizera, e ela me disse que era para deter o movimento
da água, para que ela não derramasse. Então eu lhe disse: doravante é preciso
colocar a cruz no meio de nossos corações, para deter os movimentos de nossas
afeições nesse madeiro e por esse madeiro, a fim de que elas não se espalhem
para outro lugar, para as inquietações e perturbações de espírito.
Capítulo, 24 Como se deve evitar a curiosa inquirição da vida alheia
Jesus. Filho, não sejais curioso, nem te preocupes com
cuidados inúteis. Que tens tu com isto ou aquilo? Segue-me. Pois que te importa
saber se fulano é assim ou assim ou se sicrano procede e fala deste ou daquele
modo? Tu não és responsável pelos outros, mas de ti mesmo deves dar conta; por
que, pois, te intrometes naquilo? Eu conheço a todos e vejo tudo que se faz
debaixo do sol; sei como cada um procede, o que pensa e quer, e a que fim tende
sua intenção.
Deixa, pois, tudo ao meu cuidado, conserva-te
em santa paz e deixa o inquieto agitar-se quanto quiser. Sobre ele recairá tudo
o que fizer ou disser, porque não me pode enganar.
Não te preocupes da sombra dum grande nome,
nem da familiaridade de muitos, nem de amizade particular dos homens. Pois tudo
isso gera distrações e grande perplexidade ao coração. Eu não duvidaria
falar-te e descobrir-te os meus segredos, se atento esperasses minha chegada e
me abrisses a porta de teu coração. Sê cauteloso, vigia na oração, e humilha-te
em todas as coisas.
Reflexões:
Para ti não há senão Deus e tu neste mundo.
Todo o resto não deve absolutamente dizer respeito a ti, a não ser na medida em
que Deus te ordena, e como Ele te ordena. Eu te peço, não olhes tanto para cá e
para lá, mas mantém tua vista recolhida em Deus e em ti: jamais verás a Deus
sem bondade nem a ti sem miséria. E verás sua bondade propícia à tua miséria, e
tua miséria objeto de sua bondade e misericórdia. Não olhes portanto nada mais
do que isto, quero dizer com uma visão fixa, atenta e expressa, e todo o resto
só de passagem.
Por conseguinte, não fique investigando o que
fazem os outros nem o que eles se tornarão, mas olha-os com um olhar simples,
suave e afetuoso. Não exige neles mais perfeição do que em ti, e não te
surpreendas de modo nenhum com a diversidade das imperfeições, porque a
imperfeição não é mais imperfeição por ser extravagante e estranha. Faze como
as abelhas, suga o mel de todas as flores e ervas.
Oração:
Senhor Jesus, eu vos dou infinitas graças e
bênçãos, pedindo-vos... uma perfeita caridade para com meu próximo, com uma
grande prontidão e fervor, para servi-lo em todas as suas necessidades e
precisões, tanto espirituais como temporais.
Capítulo, 25 Em que consiste a firme paz do coração e o verdadeiro
aproveitamento
Jesus. Filho, eu disse a meus discípulos: Eu vos deixo a
paz; eu vos dou a minha paz; não vo-la dou como a dá o mundo. São João, 14,27.
Todos desejam a paz, mas nem todos buscam as coisas que produzem a verdadeira
paz. A minha paz está com os humildes e mansos de coração. Na muita paciência
encontrarás a tua paz. Se me ouvires e seguires a minha voz, poderás gozar
grande paz.
A alma. Que hei de fazer, pois, Senhor?
Jesus. Em tudo olha bem o que fazes e dizes, e dirige toda a
tua intenção só para meu agrado, sem desejar ou buscar coisa alguma fora de
mim. Não julgues temerariamente das palavras e obras dos outros, nem te
intrometas em coisas que não te dizem respeito; deste modo poderá ser que pouco
ou raras vezes te perturbes.
Nunca sentir, porém, inquietação, nem sofrer
moléstia alguma do corpo ou do espírito, não é próprio da vida presente, senão
do estado do eterno descanso. Não julgues, pois, ter achado a verdadeira paz,
se não sentires nenhuma aflição; nem que tudo está bem, se não tiveres nenhum
adversário, ou tudo perfeito, se tudo correr a teu gosto. Nem penses que és
grande coisa ou singularmente amado por Deus, se sentes muita devoção e doçura,
porque não são estes os sinais pelos quais se conhece o verdadeiro amante da
virtude, nem consiste nisso o aproveitamento e a perfeição do homem.
A alma. Em que consiste, pois, Senhor?
Jesus. Em te ofereceres de todo o teu coração à divina
vontade, sem buscares o teu próprio interesse em coisa alguma, nem eterna; de
sorte que com igualdade de ânimo dês graças a Deus na ventura e na desgraça,
pesando tudo na mesma balança. Se fores tão forte e constante na esperança que,
privado de toda consolação interior, disponhas teu coração para maiores
provações, sem te justificares, como se não deveras sofrer tanto, e antes
louvares a santidade e a justiça em todas as minhas disposições, então andarás
no verdadeiro e reto caminho da paz e poderás ter certíssima esperança de
contemplar novamente minha face com júbilo. E, se chegares ao perfeito desprezo
de ti mesmo, fica sabendo que então gozarás da abundância da paz, no grau
possível nesta peregrinação terrestre.
Reflexões:
Nada nos perturba mais do que o amor-próprio e
a estima que fazemos de nós mesmos. Se não temos a ternura ou enternecimento de
coração, o gosto e sentimento na oração, a suavidade interior na meditação,
caímos logo na tristeza. Se temos algumas dificuldades para sermos virtuosos,
se alguma dificuldade se opõe aos nossos justos desígnios, logo nos apressamos
a vencer e desfazer-nos de tudo isto com inquietude. Por que tudo isto? Porque
sem dúvida amamos nossas consolações, nosso bem-estar, nossas comodidades.
O amor-próprio é portanto uma das fontes de
nossas inquietações; a outra é a estima que temos por nós mesmos. Será que isto
quer dizer que, se nos acontece alguma imperfeição ou cometemos algum pecado,
ficamos surpresos, perturbados e impacientes?
Sem dúvida, porque pensávamos que éramos
alguma coisa de bom, resoluto e sólido, e quando vemos efetivamente que não
somos nada disto, e que demos com o nariz no chão, nos enganamos e por
conseguinte ficamos perturbados, ofendidos e inquietos. Que, se soubéssemos bem
quem somos, em vez de ficarmos embasbacados de ver-nos no chão, ficaríamos
atônitos sabendo como podemos continuar de pé. Eis aí outra fonte de nossa
inquietação: nós só queremos consolações e nos admiramos ao reconhecer e tocar
com o dedo nossa miséria, nosso nada e nossa imbecilidade.
Façamos três coisas... e teremos a paz.
Tenhamos uma atenção bem pura de querer em todas as coisas a honra de Deus e
sua glória; façamos o pouco que podemos fazer para este fim, segundo a
orientação de nosso pai espiritual, e deixemos a Deus o cuidado de todo o
resto.
Oração:
Senhor, dai-nos a paz, a fim de que
permaneçais conosco pois vós só habitais onde está a paz. e que nós, estando
livres do poder de nossos inimigos, possamos servir-vos com toda a liberdade.
Capítulo, 26 Excelência da liberdade espiritual à qual se chega antes pela
oração humilde que pela leitura
A alma. Senhor, é próprio do varão perfeito: nunca perder de
vista as coisas celestiais, e passar pelos mil cuidados, como que sem cuidado,
não por indolência, mas por um privilégio duma alma livre, que não se apega,
com desordenado afeto, a criatura alguma.
Peço-vos, ó meu benigníssimo Deus!,
preservai-me dos cuidados desta vida, para que não me embarace demasiadamente
neles; das muitas necessidades do corpo, para que não me escravize a
sensualidade; e de todas as perturbações da alma, para que não me desalente sob
o peso das angústias. Não falo das coisas que a vaidade humana busca tão empenhadamente,
mas das misérias que, pela maldição comum de todos os mortais, penosamente
oprimem a alma de vosso servo, e a impedem de elevar-se à liberdade perfeita de
espírito, sempre que o quiser.
Ó meu Deus, doçura inefável! Convertei-me em
amargura toda consolação carnal, que me aparta do amor das coisas eternas e me
fascina pelo encanto de um prazer momentâneo. Não me vença, Deus meu, não me
vença a carne e o sangue; não me seduza o mundo, com sua glória passageira; não
me faça cair o demônio, com sua astúcia. Dai-me força para resistir, paciência
para sofrer, constância para perseverar. Dai-me, em lugar de todas as
consolações do mundo, a suavíssima unção do vosso espírito e, em lugar do amor
terrestre, infundi-me o amor de vosso nome!
O comer, o beber, o vestir e outras coisas
necessárias ao corpo são um peso para a alma fervorosa. Concedei-me usar com
moderação de tais lenitivos, sem me prender a eles com demasiado afeto. Não é
lícito rejeitar tudo, pois devemos sustentar a natureza; mas buscar as coisas
supérfluas e o que mais delicia, proíbe-o vossa santa lei, porque de outro modo
a carne se rebelará contra o espírito. Entre estes dois extremos, Senhor,
peço-vos que me dirija e governe vossa mão, para que não pratique algum
excesso.
Reflexões:
A curiosidade, a ambição, a inquietação, com a
inadvertência e irreflexão sobre o fim para o qual estamos neste mundo são
causa de termos mil vezes mais impedimentos do que ocupações, mais espalhafato
do que obra, mais ocupação do que necessidade; e são esses embaraços, Teótimo,
isto é, as ninharias, vãs e supérfluas ocupações das quais nos encarregamos,
que nos desviam do amor de Deus, e não os verdadeiros e legítimos exercícios de
nossa vocação...
São Bernardo não perdia nada do progresso que
desejava fazer neste santo amor, embora estivesse a cargo dos grandes
príncipes, onde se empenhava em submeter os negócios do Estado ao serviço da
glória de Deus. Ele mudava de lugar, mas não mudava de forma alguma de coração,
nem seu coração de amor, nem seu amor de objeto. E, para falar sua própria
linguagem, essas mutações se faziam nele, mas não dele, pois, ainda que suas
ocupações fossem muito diferentes, ele era indiferente a todas elas, e
diferente de todas, não assumindo a cor dos negócios e das conversações, como o
camaleão toma a cor dos lugares onde se encontra, mas permanecendo sempre todo
unido a Deus, sempre branco em pureza, sempre vermelho de caridade e sempre
cheio de humildade.
Capítulo, 27 Como o amor-próprio afasta no máximo grau do sumo bem
Jesus. Filho, cumpre que dês tudo por tudo, sem reservar-te
a ti mesmo.
Fica sabendo que teu amor-próprio te prejudica
mais que qualquer coisa do mundo. Cada objeto mais ou menos te prende, segundo
o amor e afeto que lhe tens. Se teu amor for puro, simples e bem ordenado, de
nenhuma coisa serás escravo. Não cobices o que não te é lícito possuir, nem
possuas coisa alguma que te possa impedir a liberdade interior ou dela
privar-te. É de estranhar que te não entregues a mim, do íntimo do teu coração,
com tudo que possas ter ou desejar.
Por que te consomes em vã tristeza? Por que te
afanas em cuidados supérfluos? Conforma-te com a minha vontade e nenhum dano
sofrerás. Se buscares isto ou aquilo, se desejares estar aqui ou ali, por tua
comodidade ou teu capricho, nunca estarás quieto, nem livre de cuidados, porque
em todas as coisas há algum defeito, e em todo lugar quem te contrarie.
De nada te serve, pois, adquirir ou acumular
bens exteriores, mas muito te aproveita desprezá-los e desarraigá-los do
coração. Isso não se entende somente do dinheiro e das riquezas, senão também
da ambição das honras, e do desejo de vãos louvores porque tudo isso passa com
o mundo. Pouco resguarda o lugar, se falta o espírito de fervor; nem durará
muito tempo aquela paz procurada fora, se faltar ao teu coração o verdadeiro
fundamento. Isto é, se não se firmar em mim. Mudar tu podes, mas não melhorar,
porque, chegada a ocasião, e aceitando-a, encontrarás de novo aquilo de que
fugiste e pior ainda.
Oração para implorar
a limpeza do coração e sabedoria celestial:
Confirmai-me, Senhor, pela graça do Espírito
Santo. Confortai em mim o homem interior e livrai meu coração de todo cuidado
inútil e de toda ansiedade, para que não me deixe seduzir pelos vários desejos
das coisas terrenas, sejam vis ou preciosas, mas para que as considere todas
como transitórias, e me lembre que eu mesmo sou passageiro, como elas: Pois
nada há estável debaixo do sol, onde tudo é vaidade e aflição de espírito. Eclesiastes,
1,14. Como é sábio quem assim pensa!
Dai-me, Senhor, sabedoria celestial, para que
aprenda a buscar-vos, e achar-vos, antes que tudo, a gostar-vos e amar-vos
acima de tudo, e a compreender todas as coisas como são, segundo a ordem de
vossa sabedoria.
Dai-me prudência, para afastar-me do
lisonjeiro, e paciência para suportar a quem me contraria. Porque é grande
sabedoria não se deixar mover por todo sopro de palavras, nem prestar ouvidos
aos traiçoeiros encantos da sereia; pois só deste modo prossegue a alma com
segurança no caminho começado.
Reflexões:
Procura consolidar cada vez mais, todos os
dias, a resolução que tomaste, com tanta afeição, de servir a Deus segundo seu
bel-prazer e de ser inteiramente sua, sem reservar nada para ti nem para o
mundo. Abraça com sinceridade suas santas vontades, sejam quais forem, e não
penses jamais ter atingido a pureza de coração que lhe deves dar, até que tua
vontade esteja não somente toda, mas em tudo, e até nas coisas mais
repugnantes, livre e alegremente submissa à sua santíssima vontade. Tendo em
vista estes fins, o que conta não é a aparência das coisas que farás, mas
aquele que as ordena a ti, que tira sua glória e nossa perfeição das coisas
mais imperfeitas e miseráveis, quando lhe aprouver.
O amor-próprio faz-nos querer fazer bem esta
ou aquela coisa por nossa escolha, mas não gostaríamos de fazê-la por escolha
de outro, nem por obediência; gostaríamos de fazê-la como vinda de nós, mas não
como vinda de outro. Sempre somos nós mesmos que buscamos a nós mesmos, nossa
própria vontade e nosso amor-próprio. Ao contrário, se tivéssemos a perfeição
do amor de Deus, gostaríamos mais de fazer o que nos é mandado, porque vem mais
de Deus e menos de nós.
Capítulo, 28 Contra as línguas maldizentes
Filho, não te aflijas se alguém fizer de ti
mau conceito ou disser coisas que não gostas de ouvir. Pior ainda deves julgar
de ti mesmo, e avaliar-te o mais imperfeito de todos. Se praticares a vida
interior, pouco te importarás de palavras que voam. É grande prudência calar-se
nas horas da tribulação, volver-se interiormente a mim, e não se perturbar com
os juízos humanos.
Não faças depender tua paz da boca dos homens;
porque, quer julguem bem, quer mal de ti, não serás por isso homem diferente.
Onde está a verdadeira paz e a glória verdadeira? Porventura não está em mim? Quem
não procura agradar aos homens, nem teme desagradar-lhes, esse gozará grande
paz. É do amor desordenado e do vão temor que nascem o desassossego do coração
e a distração dos sentidos.
Reflexões:
As pessoas que são tão frágeis e sensíveis com
sua reputação assemelham-se às que, ao mais leve sinal de incômodo, já tomam
remédio, pois pensam que mantêm sua saúde deteriorando-a completamente. E
aquelas, querendo manter tão delicadamente sua reputação, a perdem
inteiramente, porque, com esta sensibilidade, elas se tornam bizarras,
obstinadas, insuportáveis e provocam a malícia dos maledicentes...
A reputação é simplesmente como uma insígnia
que dá a conhecer onde está alojada a virtude. Portanto, a virtude deve ser
preferida em tudo e em toda parte. Por isso, se as pessoas dizem que és um
hipócrita, porque te submetes à devoção; se és tido como homem de pouca fibra
porque perdoaste a injúria, não faças caso de tudo isto. Porque esses
julgamentos, além de serem feitos por pessoas néscias e estúpidas, para fazer a
pessoa perder a reputação, nem por isso ela vai abandonar a virtude nem
afastar-nos do seu caminho, tanto mais que se deve preferir o fruto às folhas, isto
é, o bem interior e espiritual a todos os bens exteriores. É preciso ser
zeloso, mas não idólatra de nossa reputação; e como não se deve ofender o olho
dos bons, também não se deve querer contentar o dos malignos.
Oração:
Pai Eterno..., eu vos amo e bendigo
infinitamente, pedindo-vos... a graça de permanecer sempre intimamente ligado
convosco em perfeita caridade, e uma forte paciência para suportar alegremente,
por amor de vós, todos os agravos e injúrias que me serão feitos.
Capítulo, 29 Como, durante a tribulação, devemos invocar a Deus e
bendizê-lo
A alma. Senhor, bendito seja para sempre o vosso nome! pois
quisestes que me sobreviesse esta tentação e este trabalho. Não lhes posso
fugir, mas tenho necessidade de recorrer a vós, para que me ajudeis e tudo
convertais em meu proveito. Eis-me, Senhor, na tribulação, com o coração
aflito; e quanto me atormenta o presente sofrimento. Pois que direi eu agora,
Pai amantíssimo?
Apertado estou entre angústias: "Salvai-me
nesta hora. Veio sobre mim este transe, só para que vós fôsseis glorificado, São
João, 12,17. quando eu estivesse muito abatido e fosse por vós livrado".
"Dignai-vos, Senhor, livrar-me"; Salmo, 39,14. pois, pobre de mim,
que farei e aonde irei, sem vós? Dai-me, Senhor, paciência ainda por esta vez.
Socorrei-me, Deus meu, e não temerei, por mais que seja atribulado.
E que direi em tamanha necessidade? Senhor,
seja feita a vossa vontade. Bem mereço ser atribulado e angustiado. Convém-me
sofrer, e oxalá seja com paciência, até que passe a tempestade e volte a
bonança. Bastante poderosa é, entretanto, vossa mão onipotente para tirar-me
esta tentação, e moderar lhe a violência, a fim de que não sucumba de todo;
assim como já tantas vezes tendes feito comigo, ó meu Deus e minha
misericórdia. E quanto mais difícil para mim, tanto mais fácil para vós é esta
mudança da destra do Altíssimo. Salmo, 76,11.
Reflexões:
Nada é tão útil, nada tão frutífero, nas
securas e esterilidades, do que não afeiçoar-se nem agarrar-se ao desejo de
libertar-se delas. Não quero dizer que não se deva ter simples desejos de
libertação, mas sim que não se deve afeiçoar-se a eles, mas entregar-se à pura
mercê da providência especial de Deus, a fim de que logo que lhe aprouver, ele se
sirva de nós entre esses espinhos e esses desejos. Digamos pois a Deus neste
tempo: Ó Pai, se é possível, afastai de mim este cálice.
Mas acrescentemos também com grande coragem: No
entanto, não se faça a minha vontade, mas a vossa! São Mateus, 26,39. e
fixemo-nos nisto com o máximo de repouso que podemos, porque Deus, vendo-nos
nesta santa indiferença, nos consolará com muitas graças e favores, como quando
ele viu Abraão resolvido a privar-se de seu filho Isaac, ele se contentou em
vê-lo indiferente nesta pura resignação, consolando-o com uma visão tão
agradável e por três suavíssimas bênçãos.
Devemos, portanto, em todo tipo de aflições,
tanto corporais como espirituais, e em distrações ou subtrações da devoção
sensível que nos aconteçam, dizer com todo o nosso coração e com uma profunda
submissão: O Senhor me deu consolações, o Senhor me tirou-as: seja bendito seu
santo nome! Jó, 1,21. Porque, perseverando nesta humildade, ele nos dará seus
deliciosos dons, como fez com Jó, que usou constantemente palavras semelhantes
em todas as suas desolações.
Capítulo, 30 Como se há de pedir o auxílio divino e confiar para recuperar
a graça
Jesus. Filho, eu sou o Senhor, que te conforta no dia da
tribulação. Na 1,7. Vem a mim quando te achares aflito. O que mais te impede de
receber a consolação é que tarde recorres à oração. Antes que ores com atenção,
procuras consolar-te, recreando-te com vários divertimentos exteriores. Daqui
vem que pouco proveito tiras de tudo, até que conheças que sou eu quem salva do
perigo os que em mim esperam, e que fora de mim não há auxílio valioso, nem
conselho útil, nem remédio durável. Uma vez, porém, que recobraste alento
depois da tempestade, procura readquirir forças à luz das minhas misericórdias;
pois estou perto, diz o Senhor, para tudo restaurar, não só com integridade,
mas também com abundância e profusão.
Porventura há para mim alguma coisa
dificultosa, Jr 32,37. ou sou semelhante àquelas que dizem e não fazem? Onde
está a tua fé? Tem firmeza e segurança! Mostra-te corajoso e magnânimo, e a seu
tempo te virá a consolação. Espera por mim, espera! eu virei e te curarei. É
tentação o que te atormenta, é temor vão o que te assusta. Que ganhas com a
solicitude de um futuro contingente, senão que tenhas tristeza sobre tristeza? A
cada dia basta seu fardo. São Mateus, 6,34. Coisa vã e inútil é entristecer-se
ou regozijar-se com as coisas futuras, que talvez nunca venham a realizar-se.
É próprio do homem deixar-se iludir por tais
imaginações, mas é sinal de pouco ânimo ceder tão facilmente às sugestões do
inimigo. A ele pouco importa se é por meios verdadeiros ou falsos que te seduz
e engana, se é com o amor dos bens presentes, ou com o temor dos males futuros
que te deita a perder. "Não se perturbe, pois, teu coração, nem se
amedronte". São João, 14,27. Crê em mim, e tem confiança em minha
misericórdia. Quando te julgas muito longe de mim, mais perto estou, às vezes,
de ti. Quando pensas que está tudo quase perdido, muitas vezes está próxima a
ocasião de granjeares maior merecimento. Nem tudo está perdido, por te
acontecer alguma contrariedade. Não julgues pela impressão do momento, nem te
aflijas com qualquer tribulação, venha donde vier, como se não houvesse
esperança de remédio.
Não te julgues inteiramente desamparado, ainda
quando, de tempos a tempos, te mando alguma tribulação ou te privo de alguma
consolação desejada; porque é este o caminho por onde se vai ao Reino dos Céus.
E isto, sem dúvida, convém mais a ti e a todos os meus servos, serdes exercitados
nas adversidades, do que se tudo vos sucedesse à vossa vontade. Eu conheço os
pensamentos escondidos, e sei que muito importa à tua salvação seres, às vezes,
privado de toda consolação espiritual, para que não te exalte o bom progresso e
te desvaneças do que não és. O que dei posso tirar, e dar de novo, quando me
aprouver.
É sempre meu o que dou, e quando o tiro; não
tomo coisa tua, pois "de mim procede qualquer dádiva boa de todo dom
perfeito". São Tiago, 1,17. Se eu te enviar qualquer pena ou contrariedade,
não te revoltes nem desfaleça teu coração; eu posso num momento aliviar-te e
transformar tua mágoa em alegria. Todavia, procedendo eu assim para contigo,
sou justo e digno de louvor.
Se refletires bem e julgares as coisas segundo
a verdade, não deves afligir-te tanto com a adversidade, nem desanimar, mas, ao
contrário, alegrar-te e dar-me graças. Até deve ser tua única alegria que eu te
aflija com dores, sem poupar-te. Assim como meu Pai me amou, também eu vos amo
a vós, São João, 15,19. disse eu a meus diletos discípulos, e, entretanto, não
os enviei às delícias temporais, mas às grandes pelejas; não às honras, mas aos
desprezos; não aos passatempos, mas aos trabalhos; não a descansar, mas sim a
produzir fruto copioso na paciência. Meu filho, lembra-te bem destas palavras.
Reflexões e orações:
Humilha-te profundamente diante de Deus no
conhecimento de teu nada e miséria. Meu Deus, o que será de mim, quando estou
em mim mesmo? Não outra coisa, Senhor, senão uma terra seca que, rachada em
toda parte, testemunha a sede que tem da chuva do céu, e, no entanto, o vento a
dissipa e reduz a poeira.
Invoca a Deus, e pede-lhe sua alegria: Dai-me,
Senhor, a alegria de vossa Salvação. Salmo, 51,14. Meu Pai, se é possível,
afastai de mim este cálice. São Lucas. 22,42.
Afasta-te de mim, ó vento norte infrutífero
que ressecas a minha alma, e vem, ó aprazível vento das consolações, e vem
soprar em meu jardim, e seus bons afetos espalharão o odor de suavidade. Cântico
dos Cânticos, 4,16.
Entre todas as nossas securas e esterilidades,
não devemos jamais perder a coragem; mas, esperando com paciência o retorno das
consolações, seguir sempre o nosso rumo, sem abandonar nenhum exercício de
devoção, mas, na medida do possível, multiplicar nossas boas obras; e não
podendo apresentar ao nosso caro Esposo frutas em calda, vamos apresentar-lhe
frutas secas; porque para ele é tudo a mesma coisa, contanto que o coração que
os oferece esteja perfeitamente decidido de querer amá-lo.
Acontece muitas vezes, minha Filoteia, que a
alma, vendo-se na bela primavera das consolações espirituais, tanto se entretém
em acumulá-las e sorvê-las, que, na abundância dessas doces delícias, ela
pratica muito menos boas obras; e que, ao contrário, entre as asperezas e
esterilidades espirituais, à medida que ela se vê privada dos sentimentos
agradáveis da devoção, ela multiplica tanto mais as obras sólidas e superabunda
na geração interior das verdadeiras virtudes da paciência, humildade, abjeção
de si mesma, resignação e abnegação de seu amor-próprio.
Capítulo, 31 Do desprezo de toda criatura, para que se possa achar o
Criador
A alma. Senhor, muita graça ainda me é necessária para
chegar a tal ponto, que nenhum homem nem criatura alguma me possa estorvar.
Pois, enquanto me detém alguma coisa, não posso voar a vós livremente. Aspirava
a esta liberdade o profeta, quando dizia: Quem me dera asas como a pomba, para
poder voar e descansar!. Salmo, 54,7. Que há de mais sereno que o olhar
singelo, e quem é mais livre que o homem sem desejo terrestre? Por isso importa
elevares-te acima de todas as criaturas, e renunciares totalmente a ti mesmo, e
naquele arroubo da alma perseverares e compreenderes que o Autor de todas as
coisas não tem semelhança com as criaturas. E quem não estiver desprendido das
criaturas, não poderá livremente atender às coisas divinas. Por isso se
encontram tão poucos contemplativos, porque raros são os que sabem desapegar-se
de todo das coisas perecedoras.
Para isso é mister graça poderosa, que levante
a alma e a arrebate acima de si mesma. Enquanto o homem não for elevado em
espírito, livre de todas as criaturas e de todo unido a Deus, pouco vale quanto
sabe e quanto possui.
Imperfeito permanecerá por muito tempo e preso
à terra quem algo estimar que não seja o único, imenso e eterno Bem. Porque
tudo que não é Deus é nulo, e deve ser tido em conta de nada. Há grande
diferença entre a sabedoria de um homem iluminado e devoto e a ciência de um
letrado e estudioso. Muito mais nobre é a doutrina que vem do céu, por
inspiração divina, do que aquilo que o engenho humano adquire à custa de muito
esforço.
Muitos há que desejam a vida contemplativa,
mas não tratam de exercitar-se nas coisas que ela exige. O grande obstáculo é
que se detêm nos sinais e coisas sensíveis, cuidando pouco da perfeita
mortificação. Não sei o que é, nem que espírito nos move, nem que pretendemos
nós que passamos por homens espirituais quando empregamos tanto trabalho e
cuidado nas coisas vis e transitórias, ao passo que raras vezes nos recolhemos
plenamente a considerar nosso interior.
Ai! que, depois de curto recolhimento, logo
nos dissipamos, sem ponderar nossas ações em rigoroso exame. Não reparamos para
onde se inclinam nossos afetos, nem deploramos quão defeituoso é tudo em nós.
Por ter corrompido toda a carne o seu caminho, Gênesis, 6,12. veio o grande
dilúvio. Estando, pois, corrompido o nosso afeto interior, forçosamente se há
de corromper a ação que dele se segue, patenteando bem a fraqueza interior. Só
do coração puro procede o fruto de boa vida.
Muitos indagam quanto fez uma pessoa, mas de
quanta virtude foi animada nem tanto se cura. Com diligência investigam se
alguém é forte, rico, formoso, hábil, bom escritor, bom cantor, bom artista,
mas quão pobre seja de espírito, quão paciente e manso, quão piedoso e
espiritual, disso não se faz caso.
A natureza só considera o exterior do homem,
mas a graça olha o interior.
Aquela muitas vezes se engana, esta espera em
Deus, para não ser iludida.
Reflexões:
Bem-aventurados os pobres de espírito, porque
deles é o reino dos céus. São Mateus, 5,3. Infelizes, portanto, os ricos de
espírito, porque deles é a miséria do inferno.
É rico de espírito aquele que tem riquezas
dentro de seu espírito, ou seu espírito dentro das riquezas; é pobre de
espírito aquele que não tem riquezas em seu espírito, nem seu espírito dentro
das riquezas. As alcíones fazem seus ninhos como uma palma, e não deixam neles
senão uma pequena abertura do lado do alto; eles os colocam à beira do mar e,
além disso, os fazem tão firmes e impenetráveis que, se as ondas os
surpreendem, jamais a água consegue entrar neles, mas sempre permanecendo em
cima, eles se mantêm no meio do mar, sobre o mar e senhores do mar. Teu
coração, cara Filoteia, também deve ser assim: aberto somente ao céu, e
impenetrável às riquezas e coisas caducas. Se as tens, procura manter teu
coração isento de suas influências; que ele permaneça sempre acima delas, e
que, no meio delas, ele esteja sem riquezas e senhor das riquezas.
Não, não coloques este espírito celeste dentro
dos bens terrestres; procura mantê-lo sempre superior a eles, sem eles, e não
neles.
Há diferença entre ter veneno e ser
envenenado. Quase todos os boticários têm venenos para usá-los em diversas
ocorrências, mas nem por isso são envenenados, porque não têm o veneno dentro
do corpo, mas em suas boticas.
Assim, podes ter riquezas sem ser envenenado
por elas: por exemplo, podes ter riquezas em tua casa ou em tua bolsa, e não em
teu coração. De fato, ser rico ou pobre de afeição é a grande felicidade do
cristão, porque ele tem, por este meio, as comodidades das riquezas para este
mundo, e o mérito da pobreza para o outro.
Oração:
Pai Eterno, eu vos dou graças e bênçãos
infinitas pedindo-vos... que me perdoeis todos os pecados que cometi de
coração, e que o purifiqueis de todas os afetos impuros e terrestres, abrindo-o
às vossas santas inspirações.
Capítulo, 32 Da abnegação de si mesmo e abdicação de toda cobiça
Jesus. Filho, não podes gozar perfeita liberdade, enquanto
não renunciares inteiramente a ti mesmo. Em escravidão vivem todos os ricos e
egoístas, os cobiçosos, curiosos, que gostam de vaguear, buscando sempre as
delícias dos sentidos e não as de Jesus Cristo, mas só imaginam o que não pode
permanecer e só disso cogitam. Pois tudo que não vem de Deus perecerá. Conserva
em teu coração esta breve e profunda sentença: Deixa tudo, e tudo acharás;
renuncia à cobiça, e terás sossego. Pondera isto, e, quando o praticares, tudo
entenderás.
A alma. Senhor, isto não é obra de um dia, nem brincadeira
de criança, antes nesta breve palavra se compendia toda a perfeição religiosa.
Jesus. Filho, não deves recear, nem logo desanimar, ouvindo
falar do caminho dos perfeitos, mas antes esforça-te por um estado mais
perfeito, ou pelo menos almeja-o ardentemente. Oxalá fosses assim e tivesses
chegado a tanto, que não te amasses a ti mesmo, mas estivesses inteiramente
resignado à minha vontade e à daquele que te dei por diretor. Muito me
agradarias, então, e toda a tua vida passaria em paz e alegria. Ainda tens que
desprender-te de muitas coisas, e se não mas entregares inteiramente, não
alcançarás o que me pedes. "Aconselho-te que me compres o ouro acrisolado,
para te tornares rico", Apocalipse, 3,18. isto é, a sabedoria celestial,
que pisa aos pés todas as coisas terrenas.
Despreza a sabedoria terrena, todo o humano
contentamento e a própria complacência.
Eu disse que deves buscar, em lugar das coisas
nobres e preciosas, aquilo que, aos olhos do mundo, é vil e desprezível. Porque
mui vil e desprezível, até quase esquecida, parece a verdadeira e celestial
sabedoria, que não se tem em grande conta, nem trata de se engrandecer na
terra. Muitos a louvam com a boca, mas afastam-se dela na vida; contudo é esta
a pérola preciosa, conhecida de poucos.
Reflexões:
Teótimo, nosso livre-arbítrio jamais é tão
livre como quando é escravo da vontade de Deus, como jamais é tão escravo como
quando serve à nossa própria vontade; jamais ele tem tanta vida como quando
morre para si mesmo, e jamais tem tanta morte como quando vive para si mesmo.
Nós temos a liberdade de fazer o bem e o mal.
Mas escolher o mal não é usar, mas abusar desta liberdade. Renunciemos a esta
deplorável liberdade e sujeitemos para sempre nosso livre-arbítrio à decisão do
amor celeste; tornemo-nos escravos do amor, que faz os servos mais felizes do
que os reis. Se nossa alma jamais quis usar sua liberdade contra nossas
resoluções de servir a Deus eternamente e sem reserva, então sacrificamos por
amor a Deus este livre arbítrio e o fazemos morrer a si mesmo, a fim de que ele
viva para Deus. Quem quiser guardá-lo pelo amor-próprio neste mundo, o perderá
pelo amor eterno no outro, e quem o perder pelo amor de Deus neste mundo, o
conservará pelo mesmo amor no outro.
Quem lhe der a liberdade neste mundo, o fará
escravo e servo no outro, e quem o sujeitar à cruz neste mundo, o terá livre no
outro, onde, estando abismado no gozo da divina bondade, encontrará sua
liberdade convertida no amor e o amor em liberdade, mas liberdade de doçura
infinita; sem esforço nem pena, e sem nenhuma relutância, amaremos
imutavelmente para sempre o Criador e Salvador de nossas almas.
Oração:
Pai Eterno..., eu vos amo e bendigo
infinitamente, suplicando-vos que me perdoeis todas as minhas loucuras, e me
deis a graça de detestar a louca sabedoria do mundo e amar de todo o meu
coração vossa sabedoria infinita, de tal modo que doravante eu não ame nem
deguste em vós senão o que é vosso.
Capítulo, 33 Da instabilidade do coração e que a intenção final se há de
dirigir a Deus
Jesus. Filho, não te fies nos teus afetos atuais, que
depressa em outros se mudarão. Enquanto viveres, estarás sujeito ao variável,
ainda que não queiras; ora te acharás alegre, ora triste, ora sossegado, ora
perturbado, umas vezes fervoroso, outras tíbio, já diligente, já preguiçoso,
agora sério, logo leviano. O sábio, porém, e instruído na vida espiritual, está
acima desta inconstância, não cuidando dos seus sentimentos, nem de que parte
sopra o vento da instabilidade, mas concentrando todo o esforço de sua alma no
devido e almejado fim. Porque assim poderá permanecer sempre o mesmo e
inabalável, dirigindo a mim, sem cessar, a mira de sua intenção, entre todas as
vicissitudes que lhe sobrevierem.
Quanto mais pura for tua intenção, porém,
tanto mais constante serás durante as diversas tempestades. Mas em muitos se
escurece o olhar da pura intenção, porque depressa o volvem para qualquer
objeto deleitável que se lhes depare. Poucos há inteiramente livres da pecha do
egoísmo. Assim, os judeus foram um dia a Betânia, em casa de Maria e Marta, não
só por amor de Jesus, mas também para verem Lázaro. São João, 12,9. Cumpre,
pois, purificar a intenção, para que seja simples e reta e se dirija a mim
acima de tudo que há de permeio.
Reflexões:
Deus continua o ser supremo desse grande mundo
em perpétua mudança, pela qual o dia se transforma sempre em noite, a primavera
em verão, o verão em outono, o outono em inverno e o inverno em primavera. E um
dos dias jamais se assemelha perfeitamente ao outro: há dias nebulosos,
chuvosos, secos, ventosos, variedade que dá uma grande beleza a este universo.
Acontece o mesmo com o ser humano que é, segundo a opinião dos antigos, um
resumo do mundo. Porque jamais ele está num mesmo estado, Jó 14,2. e sua vida
escoa nesta terra, como as águas, flutuando e ondulando numa perpétua
diversidade de movimentos que ora o elevam às esperanças, ora o abaixam pelo
medo, ora o inclinam à direita pela consolação, ora à esquerda pela aflição; e
jamais um só de seus dias se assemelha ao outro, nem mesmo uma de suas horas se
parece inteiramente com a outra.
Daí esta grave advertência: devemos
esforçar-nos para manter uma contínua e inviolável igualdade de coração numa
tão grande desigualdade de acidentes; e embora todas as coisas mudem e variem
diversamente à nossa volta, devemos permanecer constantemente imóveis para
sempre ter em vista, tender e pretender ao nosso Deus.
Oração:
Ó dulcíssima vontade de meu Deus, que sejais
feita para sempre! Ó desígnios eternos da vontade de meu Deus, eu vos adoro,
consagro e dedico minha vontade para querer para sempre, eternamente, o que
eternamente quisestes!
Que eu faça, portanto, hoje e sempre, e em
todas as coisas, vossa divina vontade, ó meu amável Criador! Sim, Pai Celeste,
porque foi este o vosso prazer em toda eternidade. Assim seja.
Capítulo, 34 Como Deus é delicioso em tudo e sobretudo a quem o ama
A alma. Vós sois meu Deus e meu tudo! que mais quero eu e
que dita maior posso desejar? Ó palavra suave e deliciosa! Mas só para quem ama
a Deus, e não o mundo nem as suas coisas. Meu Deus e meu tudo! Para quem a
entende basta esta palavra, e quem ama acha delícia em repeti-la a miúdo.
Porque, quando estais presente, tudo é
aprazível, mas, se vos ausentais, tudo enfastia. Vós dais ao coração sossego,
grande paz e jubilosa alegria. Vós fazeis que julguemos bem de todos e em tudo
vos bendigamos; nem pode, sem vós, coisa alguma agradar-nos por muito tempo,
mas, para ser agradável e saborosa, é necessário que lhe assista a vossa graça
e a tempere o condimento da vossa sabedoria.
A quem saboreia vossa doçura, que coisa não
lhe saberá bem? Mas a quem em vós não se deleita, que coisa lhe poderá ser
gostosa? Diante da vossa sabedoria desaparecem os sábios do mundo e os amadores
da carne, porque nos primeiros se acha muita vaidade, nos últimos, a morte; os
que, porém, vos seguem pelo desprezo do mundo e pela mortificação da carne,
esses são verdadeiramente sábios, porque trocam a vaidade pela verdade, e a
carne pelo espírito. Esses acham gosto nas coisas de Deus, e tudo quanto se
acha de bom nas criaturas, referem-no à glória do seu Criador. Diferente, porém,
e mui diferente, é o gosto que se encontra em Deus e na criatura, na eternidade
e no tempo, na luz incriada e na luz criada.
Ó Luz Eterna, superior a toda luz criada,
lançai do alto um raio que penetre todo o íntimo do meu coração. Purificai,
alegrai, iluminai e vivificai a minha alma com todas as suas potências, para
que a vós se una em transportes de alegria. Oh! quando virá aquela ditosa e
almejada hora, em que haveis de saciar-me com a vossa presença, e ser-me tudo
em todas as coisas? Enquanto isso não me for concedido, minha alegria não será
perfeita. Mas ai! que ainda vive em mim o homem velho, não de todo crucificado
nem inteiramente morto.
Ainda se revolta fortemente contra o espírito
e move guerras interiores; nem consente em que reine tranquilidade na alma.
Mas vós, que dominais a impetuosidade do mar e
aplacais o furor das ondas, levantai-vos e socorrei-me! Dissipai os poderes que
procuram guerras, esmagai-os com o vosso braço. Salmo, 88,10; 43,26; 67,31.
Manifestai, Senhor, as vossas maravilhas, e seja glorificada a vossa destra, Eclesiástico,
36,7. pois não tenho outro refúgio senão em vós, meu Senhor e meu Deus!
Reflexões:
Quando um sentimento de dileção, como, por
exemplo, como Deus é bom! entrou no coração, primeiro ele faz a união com esta
bondade; mas, mantendo o por um pouco mais de tempo, ele penetra, como um
perfume delicioso, em todos os recantos da alma, espalha-se e dilata-se na
nossa vontade e, como se diz, incorpora-se ao nosso espírito, ligando-se e ajustando-se
em todos os lados e cada vez mais a nós e unindo-nos a ele.
E é isto que nos ensina o grande Davi, quando
compara as palavras sagradas ao mel, porque, quem é que não sabe que a doçura
do mel se sente cada vez mais no nosso paladar, por um progresso contínuo do
saborear, e que quando é mantido longamente na boca, ou quando é absorvido
devagarinho, seu sabor penetra muito mais nosso sentido do gosto? Da mesma
forma, este sentimento da bondade celeste expresso por esta palavra de São
Bruno: Ó bondade!, ou por esta de São Tomé: Meu Senhor e meu Deus!, por esta de
Madalena: Oh! meu Mestre!, ou por esta de São Francisco: Meu Deus e meu tudo!,
este sentimento, digo, permanecendo um pouco mais num coração amoroso, ele se
dilata, se estende e se afunda por uma íntima penetração no espírito, e cada
vez mais lhe destempera todo o seu sabor que não é outra coisa senão aumentar
ainda mais a união...
Oh! como é feliz a alma que, na tranquilidade
de seu coração, conserva amorosamente o sagrado sentimento da presença de Deus!
Porque sua união com a Divina Bondade crescerá perpetuamente, ainda que
insensivelmente, e vai destemperar todo o seu espírito com sua infinita
suavidade. Mas quando falo aqui do sagrado sentimento de Deus, não quero falar
do sentimento sensível, mas daquele que reside no topo e supremo pico do
espírito, onde o Divino Amor reina e faz seus principais exercícios.
Capítulo, 35 Como nesta vida não há segurança contra a tentação
Jesus. Filho, nunca estarás seguro nesta vida, mas, enquanto
viveres, terás necessidade de armas espirituais. Andas cercado de inimigos, que
à direita e à esquerda te acometem. Logo, se não te armares por todos os lados
com o escudo da paciência, não estarás por muito tempo sem ferida. Demais, se
não firmares em mim teu coração, com sincera vontade de sofrer tudo por meu
amor, não poderás suportar tão renhido combate, nem alcançar a palma dos
bem-aventurados. Cumpre, pois, caminhar com ânimo varonil por entre todos os
obstáculos, e rebater com a mão poderosa todos os empecilhos. Pois ao vencedor
será dado o maná, Apocalipse, 2,17. e ao covarde aguarda muita miséria.
Se buscas descanso nesta vida, como chegarás
ao descanso eterno? Não procures muito descanso, mas muita paciência. Busca a
paz verdadeira do céu, não sobre a terra, não nos homens, nem nas demais
criaturas, mas só em Deus.
Deves, por amor de Deus, aceitar tudo de boa
vontade, isto é, trabalhos e sofrimentos, tentações, vexames, ansiedades,
doenças, injúrias, murmurações, repreensões, humilhações, afrontas, correções e
desprezos. Tudo isto faz progredir na virtude, prova o novo soldado de Cristo e
prepara a coroa celestial.
Eu darei prêmio eterno por breve trabalho, e
glória infinita por humilhação transitória.
Julgas que sempre há de ter consolações
espirituais à medida de teus desejos? Nem sempre as tiveram os meus santos,
passando ao contrário por muitas penas, várias tentações e grandes angústias,
mas eles suportaram tudo com paciência, mais confiados em Deus que em si,
porque sabiam "que não têm proporção os sofrimentos desta vida com a
futura glória" que os recompensa. Romanos, 8,18. Quereis obter logo o que
tantos apenas conseguiram só depois de copiosas lágrimas e grandes trabalhos? Espera
no Senhor, age energicamente, e sê firme; Salmo, 26,14. não desanimes, não
recues, mas expõe generosamente corpo e alma pela glória de Deus. Eu te
recompensarei plenamente, e estarei contigo em toda tribulação. Salmo, 90,15.
Reflexões:
Meu Deus, dizem esses jovens aprendizes na
perfeição, o que farei? Minhas paixões, que eu achava ter tão bem mortificadas
pela fervorosa resolução que tomei de não mais segui-las, me atormentam muito: ora
sou impelido à aflição, depois me parece que não há mais meio de progredir na
prática da virtude, de tanto que o desânimo me persegue de perto. Sem dúvida, é
uma grande pena que não baste o simples desejo da perfeição para consegui-la,
mas que é preciso adquiri-la com o suor de nosso rosto e com a força do
trabalho. Ah! minhas caras almas, não sabeis que Nosso Senhor foi tentado
durante os quarenta dias que esteve no deserto, para nos ensinar que também
seremos tentados todo o tempo que permanecermos no deserto desta vida mortal,
que é o lugar de nossa penitência; porque a vida do perfeito cristão, mais
especialmente dos religiosos, deve ser uma contínua penitência. Consolai-vos,
portanto, e tomai coragem, porque o tempo do repouso não é agora.
Meu Deus, eu sou tão imperfeito! Isto pode
muito bem ser verdade, mas nem por isso desanimeis, nem penseis que poderíeis
viver sem cometer imperfeições, tanto mais que isto não é possível enquanto
estiverdes nesta vida; basta que não as ameis e que elas não vivam em vosso
coração, isto é, não deveis cometê-las voluntariamente, nem querer perseverar
nelas; e, sendo assim, permanecei em paz e sem perturbar-vos com a perfeição
que tanto desejais. Bastará que a tenhais ao morrer: portanto, não sejais tão
temerosas: caminhai seguramente na via de Deus. Uma vez que estais cingidas com
a armadura da fé, nada poderia prejudicar-vos.
Oração:
Senhor..., eu vos amo e bendigo infinitamente,
pedindo-vos uma grande magnanimidade e constância em todas as minhas
adversidades e tribulações, para superar todas as tentações que se apresentarão
durante o curso desta vida e na hora da morte, e além disso uma perfeita
renúncia de mim mesmo e submissão ao vosso divino querer em todas as coisas.
Capítulo, 36 Contra os juízos dos homens
Jesus. Filho, põe tua confiança em Deus e não temas os
juízos humanos, enquanto tua consciência te der testemunho da tua piedade e
inocência. É bom e salutar sofrer desse modo, nem isso será penoso ao coração
humilde, que confia mais em Deus que em si mesmo. Muitos falam com demasia, e
por isso não se lhes deve dar muito crédito. Mas também não é possível
satisfazer a todos. Ainda que Paulo se empenhasse por agradar a todos no
Senhor, fazendo-se tudo para todos, 1, Coríntios. 9,22. contudo, fez pouco caso
de ser julgado no tribunal dos homens. 1, Coríntios. 4,3.
Fez todo o possível para a edificação e
salvação dos outros, quanto dele dependia; contudo não pôde evitar ser julgado
e desprezado por alguns; por isso pôs tudo nas mãos de Deus, que tudo conhecia,
e defendeu-se com paciência e humildade contra as línguas maldizentes dos que
inventavam maldades e mentiras e as espalhavam a seu bel-prazer. Todavia, uma
vez ou outra, dava resposta, para que seu silêncio não fosse causa de se
escandalizarem os fracos.
Quem és tu, que temes um homem mortal?. Isaías.
51,12. Hoje existe e amanhã já não aparece. Teme a Deus, e não temerás as
ameaças dos homens.
Que mal te pode fazer um homem com palavras e
afrontas? Mais se prejudica a si mesmo do que a ti, e, seja quem for, não
poderá escapar ao juízo de Deus. Põe os olhos em Deus, e não contendas com
palavras de queixa. Se agora pareces sucumbir e padecer injúria não merecida,
não fiques contrariado nem diminuas a tua coroa com a impaciência, mas antes
levanta os olhos ao céu, para mim, que poderoso sou, para te livrar de toda
confusão e injúria e dar a cada um conforme suas obras.
Reflexões:
Tu me dizes que ficas irritada com os maus
juízos que se fazem de mim, que não fazes nada que valha e as pessoas acabam
acreditando que sim; e me pedes uma receita. Ei-la, minha cara filha, tal como
os santos me ensinaram: se o mundo nos despreza, devemos alegrar-nos, porque
ele tem razão, pois somos desprezíveis; se ele nos estima, desprezemos sua
estima e seu julgamento, porque ele é cego. Não procures averiguar tanto o que
o mundo pensa, nem fiques preocupada, mas despreze seu mérito e seu desdém, e
deixa-o dizer o que quiser, bem ou mal.
Diz-se que aqueles que tomaram o preservativo
que se chama comumente a graça de São Paulo não incham de modo nenhum ao serem
mordidos ou picados de cobra, contanto que a graça seja de aguardente fina: assim
também, quando a humildade e a doçura são boas e verdadeiras, elas nos garantem
contra a inchação e o ardor que as injúrias costumam provocar em nossos
corações. Se mordidos ou picados pelos maldizentes e inimigos nos tornamos
arrogantes, presunçosos e exasperados, é sinal de que nossa humildade e doçura
não são verdadeiras e sinceras, mas artificiosas e aparentes.
Oração:
Pai Eterno..., eu vos dou graças e vos bendigo
infinitamente... pedindo-vos... perdão por minha vã soberba, amor-próprio,
impaciência e hipocrisia, e ao mesmo tempo a graça de não fazer o mínimo caso
dos vãos julgamentos dos outros e de vencer todo respeito humano para vos
servir.
Capítulo, 37 Da pura e completa renúncia de si mesmo para obter liberdade
de coração
Jesus. Filho, deixa-te a ti, e achar-me-ás a mim. Despe tua
vontade e teu amor-próprio, e sempre tirarás lucro. Porque, logo que te
entregares a mim sem reservas, se te acrescentará a graça.
A alma. Senhor, em que devo renunciar-me, e quantas vezes?
Jesus. Sempre e a toda hora, tanto no muito como no pouco.
Nada excetuo, mas quero te achar despojado de tudo. De outra sorte, como
poderás ser meu e eu teu, se não estiveres, exterior e interiormente,
desapegado de toda vontade própria? Quanto mais prontamente isso fizeres, tanto
melhor te acharás, e quanto mais pleno e sincero for teu sacrifício, tanto mais
me agradarás e maior lucro terás.
Alguns há que se entregam a mim, mas com
alguma reserva, porque não têm plena confiança em Deus, e por isso tratam de
prover as próprias necessidades. Outros, a princípio, tudo oferecem, mas
depois, combatidos pela tentação, volvem-se novamente às próprias comodidades,
e eis por que quase não progridem nas virtudes. Estes nunca chegarão à
verdadeira liberdade do coração puro, nem à graça de minha doce familiaridade,
enquanto não renunciarem de todo a si mesmos, oferecendo-se em cotidiano
sacrifício a Deus, sem o que não há nem pode haver união deliciosa comigo.
Muitas vezes te disse e agora te torno a
dizer: deixa-te, renuncia a ti mesmo, e gozarás grande paz interior. Dá tudo
por tudo, não busques, não reclames coisa alguma, persevera, pura e
simplesmente, em mim, e me possuirás. Terás livre o coração e as trevas não te
poderão oprimir. A isto te aplica, isto pede, isto deseja: ser despojado de
todo amor-próprio, para que possas seguir nu a Jesus desnudado, morrer a ti
mesmo e viver eternamente.
Então se dissiparão todas as vãs imaginações,
penosas perturbações e supérfluos cuidados. Logo também desaparecerá o temor
demasiado, e morrerá o amor desordenado.
Reflexões:
As pessoas abandonam facilmente a terra e
outras bagatelas, mas, para ser perfeito, é preciso ir mais longe. Na verdade,
muitas pessoas abandonam as coisas exteriores, mas são bem poucas as que
abandonam suas pretensões, pois ainda têm tantas belas esperanças disto e
daquilo, e não são capazes de esvaziar-se inteiramente de seu próprio
interesse. Mas, tratando-se dos vínculos da vaidade, então é muito mais difícil
desfazer-se deles, e não sei se existe alguém que esteja completamente livre
destes liames, porque o mal é tão comum e universal entre os seres humanos que
é difícil encontrar alguém que não esteja absolutamente enlaçado em suas redes.
Quereis conhecer um belo pensamento? Nosso
Senhor disse a seu querido São Pedro: Quando eras jovem, tu te cingias e ias
onde querias; mas, quando envelheceres, estenderás tuas mãos e um outro te
cingirá e te levará para onde não queres ir. São João, 21,18.
Os jovens aprendizes no amor de Deus se cingem
a si mesmos e se entregam a mortificações como bem lhes parece. Eles escolhem
sua penitência, resignação e devoção, e fazem a sua própria vontade entre a
vontade de Deus: mas os velhos mestres no ofício se deixam ligar e cingir por
outro, se submetem ao jugo que lhes é imposto e andam pelos caminhos que não
gostariam de trilhar segundo sua inclinação. É verdade que eles estendem a mão,
porque, apesar da resistência de suas inclinações, eles se deixam governar
contra sua vontade, dizem que é melhor obedecer do que fazer oferendas: Salmo,
15,22. é assim que eles glorificam a Deus, crucificando não somente sua carne,
mas seu espírito.
Oração:
Pai Eterno..., eu vos amo e bendigo
infinitamente..., pedindo-vos... a graça de morrer completamente para o velho
homem e para todos os seus vícios e concupiscências, e de sepultá-lo
eternamente na morte de nosso Salvador.
Capítulo, 38 Do bom procedimento exterior, e do recurso a Deus nos perigos
Jesus. Filho, nisto deves empenhar toda a diligência, que em
todo lugar, ação ou ocupação exterior estejas interiormente livre e senhor de
ti mesmo, dominando todas as coisas, a nenhuma sujeito. Deves ser o senhor e
diretor de tuas ações e não servo ou escravo; cumpre sejas livre e verdadeiro
israelita, que chega à condição de liberdade dos filhos de Deus. Esses
elevam-se acima das coisas presentes e contemplam as eternas; só de relance
olham para as coisas transitórias, e têm a vista presa nas celestiais. Não se
deixam atrair e prender pelas coisas temporais, mas servem-se delas conforme o
fim para que foram ordenadas por Deus e destinadas pelo Supremo Artífice, que
nada deixou sem ordem nas suas criaturas.
Se, além disso, em qualquer acontecimento, não
te demorares na aparência exterior, nem considerares com os olhos carnais o que
vês e ouves, mas em qualquer negócio entrares logo com Moisés no tabernáculo e
consultar o Senhor, ouvirás, às vezes, a sua divina resposta, e sairás
instruído a respeito de muitas coisas presentes e futuras. Sempre recorria
Moisés ao tabernáculo para resolver suas dúvidas e dificuldades, valia-se da
oração para triunfar dos perigos e das maldades dos homens. Do mesmo modo deves
tu te refugiar no mais recôndito do teu coração, para, com mais instância,
implorar o divino auxílio.
Por isso -- como está escrito -- Josué e os
filhos de Israel foram enganados pelos gabaonitas, "porque não consultaram
primeiro ao Senhor", mas, dando crédito demasiado às suas doces palavras,
deixaram-se enganar por fingida piedade.
Reflexões:
A liberdade dos filhos bem-amados..., é um
desapego do coração cristão de todas as coisas, para seguir a vontade de Deus
tida como verdadeira...
Primeira marca: o coração que tem esta
liberdade não está apegado às consolações, mas recebe as aflições com toda a
doçura que a natureza humana pode permitir. Não quero dizer que ele não ama e
não deseja as consolações, mas digo que ele não apega seu coração a elas.
Segunda marca: ele não compromete
absolutamente seu afeto nos exercícios espirituais, de modo que, se ficar
impedido de praticá-los por doença ou outro acidente, nem por isso sente algum
remorso. Também não digo que ele não os ama, mas digo que ele não se apega a
eles.
Ele dificilmente perde sua alegria, porque
nenhuma privação entristece aquele que não tem seu coração apegado a nada deste
mundo. Não quero dizer que ele não a perde, mas que não é por pouco.
Os efeitos desta liberdade são uma grande
suavidade de espírito, uma grande doçura e condescendência com tudo que não é
pecado ou perigo de pecado; é este humor que se curva docilmente às ações de
toda virtude e caridade.
Exemplo: se interromperes uma alma que se
apegou ao exercício da meditação, tu a verás sair com desgosto, apressada e
atordoada. Uma alma que tem a verdadeira liberdade sairá com o rosto igual e o
coração afetuoso para com o importuno que a incomodou, porque para ela é tudo a
mesma coisa, servir a Deus meditando ou servi-lo suportando o próximo: tanto
uma coisa como a outra é a vontade de Deus, mas nesse momento é preciso
suportar o próximo.
Oração:
Meu Senhor Jesus Cristo, que quiseste ser
conduzido como um criminoso à casa de Anás, dai-me a graça de não ser atraído
ao pecado pelo espírito maligno ou pelos seres humanos perversos, mas ser
guiado por vosso Espírito Santo para tudo que é agradável à vossa divina
vontade. Amém.
Capítulo, 39 Que o homem não seja impaciente nos seus negócios
Jesus. Filho, confia-me sempre teus negócios, eu disporei
tudo bem a seu tempo. Espera minha determinação, e disso tirarás proveito.
A alma. Senhor, de mui boa vontade vos confio todas as
coisas, porque pouco adianta o meu cuidado. Oxalá não me perturbasse com os conhecimentos
futuros, mas me oferecesse sem demora ao vosso beneplácito!
Jesus. Filho, muitas vezes procura o homem com ânsia uma
coisa que deseja; logo, porém, que a alcança, muda de parecer, porque as
afeições não persistem muito ao mesmo objeto, mas facilmente passam de um para
outro. Pelo que, não é pouco renunciar-se o homem a si mesmo, ainda nas coisas
pequenas.
O verdadeiro progresso do homem consiste na
abnegação de si mesmo, e, quem assim se abnegou, goza grande liberdade e
segurança. Contudo, o antigo inimigo, o adversário de todo o bem, não desiste
da tentação, armando dia e noite perigosas ciladas, para ver se pode precipitar
algum incauto no laço do seu engano. Vigiai e orai, diz o Senhor, para que não
entreis em tentação. São Mateus, 26,41.
Reflexões:
Em todas as tuas ocupações, apoia-te
totalmente na Providência de Deus, pela qual todos os teus desígnios devem ser
bem-sucedidos; mas, por tua vez, trabalha com toda paciência para cooperar com
a Providência Divina, e depois acredita que, se estás bem confiante em Deus, o
sucesso que terás será sempre mais proveitoso para ti, quer ele te pareça bom
ou mau, segundo o teu julgamento particular.
Procura seguir o exemplo das criancinhas que
com uma das mãos seguram a mão de seu pai e com a outra colhem morangos ou
amoras ao longo das cercas.
Porque, da mesma forma, com uma das mãos
amontoando e manejando os bens deste mundo, segura sempre com a outra mão a mão
do Pai Celeste, voltando-te de tempos em tempos a ele para ver se lhe são
agradáveis tua vida doméstica e tuas ocupações. E toma cuidado em todas as
coisas para não abandonar sua mão e sua proteção, pensando acumular ou recolher
mais, porque se ele te abandonar não darás nenhum passo, sem dar com o nariz no
chão.
Quero dizer-te, minha Filoteia que, quando
estás no meio dos afazeres e ocupações comuns que não exigem uma atenção tão
grande e tão premente, voltes teu olhar mais para Deus do que para os afazeres;
e quando os afazeres são de tão grande importância que exigem toda a tua
atenção para serem bem feitos, de tempos em tempos procura olhar para Deus,
como fazem aqueles que navegam no mar, os quais, para chegar à terra que
desejam, olham mais para o alto do céu, do que para baixo onde vagueiam. Assim
Deus trabalhará contigo, em ti e para ti, e teu trabalho será acompanhado de
consolação.
Oração:
Meu Senhor Jesus Cristo, que destes o Espírito
Santo aos vossos discípulos que perseveravam unanimemente na oração, purificai,
eu vos suplico, o interior do meu coração, a fim de que o Paráclito,
encontrando uma morada agradável na minha alma, a embeleze com seus dons, suas
graças e sua consolação. Amém.
Capítulo, 40 Que o homem por si mesmo nada tem de bom e de nada se pode
gloriar
A alma. Senhor, que é o homem, para que vos lembreis dele,
ou o filho do homem, para que o visiteis?. Salmo, 8,5. Por onde mereceu o homem
que lhe deis a vossa graça? Como me posso queixar, se me desamparais, ou que
posso justamente opor, se não me concedeis o que peço? Decerto, com verdade
posso pensar e dizer: Senhor, nada sou, nada posso, nada de bom tenho de mim
mesmo, mas falta-me tudo, e sempre pendo para o nada. E se vós não me ajudais e
ensinais, fico de todo tíbio e relaxado.
Vós, porém, Senhor, sempre sois o mesmo e
permaneceis eternamente bom, justo e santo, e boas são vossas obras todas, e
justas e santas, e dispondes tudo com sabedoria. Mas eu, que sou mais inclinado
à negligência que ao aproveitamento espiritual, não sei conservar-me no mesmo
estado, porque mudo sete vezes por dia. Mas logo me vai melhor, quando vos
apraz estender-me a mão para me socorrer; porque só vós, sem auxílio humano, me
podeis ajudar e dar-me firmeza, de tal modo que jamais se mude meu rosto, mas
só a vós se converta meu coração e em vós descanse.
Por isso, se eu soubesse rejeitar toda humana
consolação, fosse por adquirir a devoção, fosse pela necessidade que me obriga
a buscar-vos, então poderia com razão esperar a vossa graça e alegrar-me com o
favor de uma nova consolação.
Graças vos sejam dadas, Senhor, porque de vós
procede todo o bem que me sucede. Mas eu sou vaidade e nada, diante de vós, sou
homem frágil e inconstante. De que posso, pois, gloriar-me, ou por que desejo
ser estimado? Porventura do meu nada? Isso seria o cúmulo da vaidade.
Verdadeiramente a vanglória é peste maligna e a pior das vaidades, porque nos
aparta da glória verdadeira e nos priva da graça celestial. Porquanto, desde
que o homem agrada a si, desagrada a vós, e quando aspira aos humanos louvores,
perde as verdadeiras virtudes.
Glória verdadeira, porém, e alegria santa é
gloriar-se cada um em vós e não em si, deleitar-se em vosso nome e não na sua
própria virtude, não achar deleite em criatura alguma, senão por amor de vós.
Seja louvado o vosso nome e não o meu; sejam glorificadas vossas obras e não as
minhas; exaltado seja o vosso santo nome, e a mim nada se atribua dos louvores
humanos. Vós sois minha glória e a alegria do meu coração. Em vós me gloriarei
e exaltarei todo dia, mas, quanto à minha pessoa, de nada me ufano, a não ser
das minhas fraquezas. 2, Coríntios. 12,5.
Busquem os judeus a glória uns dos outros, eu
busco aquela que vem só de Deus. São João, 5,44. Pois toda glória humana, toda
glória temporal e toda grandeza mundana, comparada com a vossa eterna glória,
não passa de vaidade e loucura.
Ó verdade e misericórdia minha, Deus meu,
Trindade bem-aventurada! a vós só seja dado louvor, honra, virtude e glória por
todos os séculos.
Reflexões:
O que foi que fez os anjos pecar senão a falta
de humildade? Porque, ainda que seu pecado fosse uma desobediência, para tomar
todas as coisas em sua origem, foi porém o orgulho que os fez desobedecer a
Deus. Então não vemos que este miserável Lúcifer começou a olhar-se e contemplar-se
e passou depois a admirar-se e comprazer-se em sua beleza, chegando ao cúmulo
de dizer: Subirei ao céu e serei semelhante ao Altíssimo, Isaías. 14,14.
sacudindo assim o jugo da santa submissão e obediência que ele devia a seu
Criador. Ele tinha toda razão de admirar sua excelente natureza, mas não para
comprazer-se nela e ficar vaidoso, porque não é um mal contemplar-se a si mesmo
para glorificar a Deus e agradecer-lhe pelos dons que nos concedeu, contanto
que não passemos daí à vaidade e complacência de nós mesmos...
Tomai o cuidado de permanecer sempre nas
disposições da humildade e de um santo e amoroso reconhecimento para com Deus,
de quem dependemos e que nos fez o que somos.
Capítulo, 41 Do desprezo de toda honra temporal
Jesus. Filho, não te entristeças por veres os outros
honrados e exaltados, ao passo que tu és desprezado e humilhado. Ergue a mim o
teu coração até ao céu, e não te entristecerá o desprezo humano na terra.
A alma. Senhor, vivemos na cegueira, e facilmente nos engana
a vaidade. Se bem me examino, nunca recebi injúria de criatura alguma; não
tenho, pois, motivo de justa queixa contra vós.
Mas, porque cometi tantos pecados, e tão
graves, contra vós, é justo que contra mim se armem todas as criaturas. A mim,
pois, com muita razão, cabe confusão e desprezo, a vós, porém, louvor, honra e
glória. E enquanto não estiver disposto a querer de bom grado ser desprezado e
abandonado de todas as criaturas, e ser tido absolutamente em nada, não haverá
em mim paz e tranquilidade interior, nem serei espiritualmente iluminado, nem
perfeitamente unido a vós.
Reflexões:
Dizemos muitas vezes que não somos nada, que
somos a própria miséria e o lixo do mundo; mas ficaríamos muito aborrecidos se
fôssemos tomados ao pé da letra e declarados tais como nos dizemos. Ao
contrário, fingimos fugir e nos esconder, a fim de que alguém corra atrás de
nós e nos procure; fazemos de conta que queremos ser os últimos, sentando-nos
no último lugar da mesa, mas é a fim de sermos convidados a tomar um lugar mais
importante ou até a cabeceira da mesa. A verdadeira humildade não quer parecer
humilde, nem diz palavras de humildade, porque ela não só deseja ocultar as
outras virtudes, mas ainda e principalmente deseja ocultar-se a si mesma...
A pessoa verdadeiramente humilde gostaria mais
que o outro dissesse que ela é miserável, que não é nada, que não vale nada, do
que dizê-lo ela mesma.
Pelo menos se ela sabe que o outro o diz, ela
não o contradiz, mas concorda de boa vontade, porque, acreditando firmemente
nisto, ela fica perfeitamente à vontade sabendo que o outro segue sua opinião.
Oração:
Eu quero, Senhor, sim, quero que arranqueis
corajosamente tudo que reveste meu coração. Ó Senhor, não, não aceito nada,
arrancai-me de mim mesmo! Ó mim mesmo, eu te abandono para sempre, até que meu
Senhor me ordene retomar-te.
Capítulo, 42 Como não se deve procurar a paz nos homens
Jesus. Filho, se puseres tua paz em alguma pessoa, por
conviver contigo e ser de teu parecer, achar-te-ás inconstante e embaraçado.
Mas, se recorreres à verdade sempre viva e permanente, não te entristecerás
pela ausência e morte de um amigo. Em mim se há de fundar o amor do amigo, e
por mim se há de amar todo aquele que nesta vida te parecer bom e amável. Sem
mim não vale nada, nem durará a amizade; nem é puro e verdadeiro o amor cujos
laços eu não tenha dado. De tal modo deves estar morto para semelhantes
afeições dos amigos que, quanto depender de ti, desejes viver sem relações
humanas. Quanto mais se chegar o homem para Deus, tanto mais se afastará de
todo alívio terreno. E tanto mais alto sobe para Deus, quanto mais baixo desce
na sua estimação, e mais vil se reputa.
Mas quem a si mesmo se atribui algum bem
impede que a graça venha à sua alma; porque a graça do Espírito Santo sempre
busca o coração humilde. Se te souberas perfeitamente aniquilar e desprender de
todo amor criado, então viria a ti com a abundância de minhas graças. Quando
olhas para as criaturas, perdes a contemplação do Criador. Aprende a vencer-te
em tudo por teu Criador, e então poderás chegar ao conhecimento divino.
Qualquer coisa, por pequena que seja, se a amas e aprecias desordenadamente,
mancha a alma e te separa do Sumo Bem.
Reflexões:
Ó Filoteia, procura amar cada pessoa com um
grande amor de caridade, mas não tenhas amizade, a não ser com aquelas pessoas
que podem comunicar-te coisas virtuosas. E quanto mais excelentes forem as
virtudes que colocas nessa relação, tanto mais perfeita será a tua amizade. Se te
comunicas em ciências, tua amizade certamente é muito louvável, e será mais
ainda se te comunicas em virtudes, como prudência, discrição, força e justiça.
Mas se tua comunicação mútua e recíproca se faz na caridade, na devoção e
perfeição cristã, então, ó Deus, como será preciosa a tua amizade! Ela será
excelente, porque vem de Deus, e excelente porque tende para Deus; excelente
porque seu vínculo é Deus, e excelente porque ela durará eternamente em Deus.
Como é bom amar na terra como se ama no céu, e
aprender a querer-nos bem mutuamente neste mundo como será eternamente no
outro! Não falo aqui do simples amor de caridade, porque ele é devido a todos
os seres humanos, mas falo da amizade espiritual pela qual duas ou três ou mais
almas comunicam entre si sua devoção e seus afetos espirituais, tornando-se um
só espírito. Assim, essas almas felizes têm toda razão de cantar: Como é bom e
agradável os irmãos viverem juntos!. Salmo, 133,1. Sim, porque o bálsamo
delicioso da devoção destila de um coração ao outro, por uma contínua
participação, se podemos dizer que Deus derramou sobre esta amizade sua bênção,
e a vida pelos séculos dos séculos.
Oração:
Meu Senhor Jesus Cristo, que, pregado na cruz,
recomendastes vossa mãe ao discípulo amado, e o discípulo à vossa Mãe,
concedei-me a graça de receber-me sob vossa proteção, a fim de que,
preservando-me dos perigos desta vida, eu esteja no número de vossos amigos.
Amém.
Capítulo, 43 Contra a vã ciência do século
Jesus. Não te deixes cativar pela elegância e sutileza dos
dizeres humanos, porque o Reino de Deus não consiste em palavras, mas na
virtude. 1, Coríntios. 2,4.
Atende às minhas palavras, que inflamam o
coração, iluminam o espírito, levam à compunção e produzem muitas consolações.
Nunca leias minha palavra com o fim de pareceres mais douto ou sábio. Aplica-te
a mortificar teus vícios, porque isso te traz mais proveito que o conhecimento
das mais difíceis questões.
Por muito que estudes e aprendas, terás que
referir tudo sempre ao único princípio. Sou eu que ensino ao homem a ciência, e
dou aos pequeninos mais clara compreensão do que os homens são capazes de
ensinar. Aquele a quem eu ensinar, depressa será sábio e muito aproveitará
espiritualmente. Ai daqueles que indagam dos homens muitas coisas curiosas, e
tratam pouco dos meios de me servir. Tempo virá em que aparecerá o Mestre dos
mestres, Cristo, Senhor dos anjos, para tomar lições de todos, isto é, para
examinar a consciência de cada um. E com a lâmpada na mão perscrutará então
Jerusalém, e revelará o segredo das trevas, fazendo calar as objeções das
línguas humanas.
Eu sou o que levanta num instante o espírito
humilde, de maneira que compreenda melhor as razões das verdades eternas, do
que se houvera estudado dez anos na escola. Eu ensino sem ruído de palavras,
sem confusão de opiniões, sem espalhafato, sem contenda de argumentos. Eu sou o
que ensina a desprezar as coisas terrenas, a aborrecer as coisas presentes, a
buscar e apreciar as eternas, a fugir às honras, sofrer as injúrias, pôr em mim
toda esperança, a não desejar coisa alguma fora de mim e amar só a mim, com
todo fervor, acima de tudo.
Alguns, amando-me inteiramente, aprenderam com
isso coisas divinas e falavam coisas maravilhosas. Mais aproveitaram em deixar tudo,
do que em estudar questões sutis. A uns, porém, falo coisas comuns, a outros,
mais particulares; a alguns revelo-me docemente em sinais e figuras, a outros
descubro os meus mistérios com muita luz. A mesma voz fala em todos os livros,
mas não ensina a todos da mesma maneira; pois eu sou o que interiormente ensina
a verdade, perscruta o coração, penetra os pensamentos, inspira as ações,
distribuindo a cada um segundo me apraz.
Reflexões:
Acontece muitas vezes que o conhecimento,
depois de ter gerado o amor sagrado, o amor não se mantém dentro dos limites do
conhecimento que está no entendimento, mas o ultrapassa e avança muito além
dele; e que nesta vida mortal podemos ter mais amor do que conhecimento de
Deus, tanto que o grande Santo Tomás garante que muitas vezes os mais simples e
as mulheres têm mais devoção e de modo geral são mais capazes do amor divino do
que as pessoas hábeis e sábias.
O famoso pároco de Saint-André de Verceil,
mestre de Santo Antônio de Pádua, em seus comentários sobre São Dionísio,
repete diversas vezes que o amor penetra onde a ciência exterior não poderia
chegar, e diz que vários bispos penetraram outrora no mistério da Trindade,
ainda que não fossem doutos, admirando neste sentido seu discípulo Santo Antônio
de Pádua, que, sem ciência mundana, tinha uma tão profunda teologia mística
que, como um outro santo, João Batista, podia ser chamado uma lâmpada luzente e
ardente. São João, 5,35. O bem-aventurado Frei Gil, um dos primeiros
companheiros de São Francisco, disse um dia a São Boaventura: "Como sois
felizes, vós outros doutos, porque sabeis muitas coisas pelas quais louvais a
Deus! Mas nós idiotas, o que podemos fazer?" E São Boaventura respondeu: "A
graça de poder amar a Deus basta.
-- Mas, meu Pai, replicou Frei Gil, será que
um ignorante pode amar tanto a Deus como um letrado? -- Pode, sim, disse São
Boaventura; e te digo que uma pobre e simples mulher pode amar tanto a Deus
quanto um doutor em teologia". A essa altura, Frei Gil, tomado de fervor,
gritou: "Ó pobre e simples mulher, ama teu Salvador e poderás ser como
Frei Boaventura" e ali permaneceu três horas em êxtase.
Oração:
Ó Pai Eterno..., eu vos dou graças e bênçãos
infinitas, pedindo-vos a graça de desprender e desviar completamente minhas
afeições das coisas terrestres, e de amar de todo o meu coração as coisas
espirituais e celestes, a fim de que eu me torne uma morada digna de vosso
Espírito e de todos os seus dons e graças, até que eu mereça reinar junto com o
mesmo Jesus Cristo na glória, por todos os séculos dos séculos.
Capítulo, 44 Que se não devem tomar a peito as coisas exteriores
Jesus. Filho, convém fazeres-te ignorante em muitas coisas,
e reputares-te como que morto sobre a terra, para que todo o mundo te esteja
crucificado.
Importa também que te faças surdo a muitas
coisas, cuidando antes do que serve à tua paz. Mais útil é desviares os olhos
do que não te agrada e deixares a cada um seu parecer, do que entrares em
discussões. Se estiveres bem com Deus e considerares seus juízos, não te será
custoso dares-te por vencido.
A alma. Ah! Senhor, a que chegamos? Eis que choramos uma
perda temporal, trabalhamos e corremos para ganhar mesquinho lucro, mas do dano
espiritual nos esquecemos e mal nos lembramos, ou tarde. Olha-se muito pelo que
pouco ou nada vale, e não se faz caso do que é sumamente necessário, porque o
homem inteiramente se entrega às coisas exteriores, e, se prontamente não se
recolher, nela descansa com prazer.
Reflexões:
Meu Deus, madame, em breve estaremos na
eternidade. Veremos então como todos os trabalhos deste mundo são pouca coisa,
e como importava pouco que fossem feitos ou não. Agora, porém, nós nos
empenhamos neles como se fossem coisas importantes. Quando éramos crianças, com
que esforço juntávamos pedaços de telhas, de madeira e montes de lama para
fazer casas e pequenas construções; e se alguém viesse derrubá-las ficávamos
muito aborrecidos e chorávamos. Agora sabemos que tudo aquilo importava muito
pouco. Um dia será o mesmo no céu: lá veremos que nossas afeições ao mundo não
eram senão verdadeiras criancices...
Dedica-te fielmente a teus afazeres, mas fica
sabendo que não tens absolutamente ocupações mais dignas do que a tua salvação,
e o encaminhamento da salvação de tua alma para a verdadeira devoção.
Oração:
Livrai-me, Senhor, de minhas paixões
desordenadas e de meus maus hábitos, principalmente daqueles para os quais
estou mais inclinado e pelos quais estou mais tiranizado e dominado.
Capítulo, 45 Que se não deve dar crédito a todos, e quão facilmente
faltamos nas palavras
Socorrei-nos, Senhor, na tribulação, porque é
vão o auxílio humano Salmo, 59,3. Oh! quantas vezes procurei em vão fidelidade,
onde cuidava que a havia!
Ah! quantas vezes a encontrei onde menos a
esperava! Vã é, pois, a esperança que se põe nos homens; em vós, meu Deus, está
a salvação dos justos. Bendito sejais, Senhor meu Deus, em tudo que nos sucede.
Nós somos fracos e inconstantes, facilmente nos enganamos e mudamos.
Que haverá tão cauteloso e vigilante em todas
as coisas, que alguma vez não caia em perturbação ou engano? Mas aquele que em
vós, Senhor, confia, e vos procura de coração sincero, não cai tão facilmente.
E se vier a cair em alguma tribulação, de qualquer sorte que esteja embaraçado
nela, prontamente será por vós libertado ou consolado, porquanto não
desamparais para sempre a quem em vós espera. Raro é o amigo fiel que persevera
em todas as tribulações de seu amigo. Vós, Senhor, vós sois o único amigo
fidelíssimo e não se acha outro igual.
Oh! bem o soube aquela alma santa Santa Águeda
que disse: "Meu coração está firmado e fundado em Cristo!" Se assim
fora comigo, não me perturbaria tão facilmente o temor humano, nem me abalariam
as flechas das más palavras.
Quem pode prever tudo e precaver-se contra os
males futuros? Se os males previstos já ferem tanto, quanto mais os imprevistos
causarão feridas dolorosas!
Mas por que motivo, sendo eu tão miserável,
não me acautelei melhor? Por que tão facilmente dei crédito aos outros? Entretanto
-- somos homens e nada mais que homens fracos, ainda que muitos se julguem e
chamem anjos. A quem hei de crer, Senhor? A quem senão a vós? Vós sois a
verdade que não engana nem pode ser enganada. Ao passo que está escrito: "Todo
homem é mentiroso", Salmo, 115,2. fraco, inconstante, inclinado a pecar,
mormente em palavras, de sorte que mal se deve logo acreditar o que, à primeira
vista, parece verdadeiro.
Quão prudentemente nos aconselhastes que nos
acautelássemos dos homens, e nos dissestes que "os inimigos do homem são
os que com ele moram", São Mateus, 10,36. que não devemos dar crédito se
alguém nos disser: Aqui está Cristo! ou Está acolá! À minha custa aprendi esta
verdade, e queira Deus que me sirva de maior cautela e não para dar provas de
maior insensatez! Toma cuidado, diz-me alguém, e guarda para ti o que te digo.
E enquanto me calo e guardo segredo, não pode guardar silêncio aquele que me
pediu segredo, senão logo descobre a si e a mim e lá se vai. De homens tais,
palradores e desacautelados, livrai-me, Senhor, para que não caia em suas mãos
nem cometa semelhantes faltas. Ponde em minha boca palavras sérias e sinceras,
e apartai de mim o embuste da língua. A todo custo devo evitar o que não quero
aturar dos outros.
Oh! Como é bom, para viver em paz, calar dos
outros, não crer tudo indiferentemente, nem repeti-lo logo a outrem; abrir-se a
poucos e buscar sempre a vós, o perscrutador do coração; não se mover com
qualquer sopro de palavra, mas desejar que todas as coisas exteriores e
interiores se façam conforme o beneplácito da vossa vontade. Que meio seguro
para conservar a divina graça, fugir do que cai na vista dos homens, e não
desejar o que possa granjear-nos a admiração dos homens, antes procurar, com
toda solicitude, o que serve para emenda da vida e fervor da alma! A quantos
prejudicou a virtude divulgada e prematuramente elogiada! Quanto proveito,
porém, traz conservar a graça do silêncio, durante esta vida tão frágil, que
não é mais que contínua tentação e peleja!
Reflexões:
Que nossa linguagem seja doce, franca,
sincera, leal, ingênua e fiel. Guarda-te das duplicidades, artifícios e
fingimentos: ainda que não seja bom dizer sempre toda a verdade, também não é
permitido transgredir a verdade.
Acostuma-te a nunca mentir com pleno
conhecimento, nem por escusa, nem por outro motivo, lembrando-te que Deus é o
Deus da verdade; se dizes uma mentira por inadvertência e podes corrigi-la
imediatamente dando alguma explicação ou reparação, deves fazê-lo, pois uma
escusa verdadeira tem muito mais graça e força para escusar do que a mentira.
Ainda que algumas vezes se possa discreta e
prudentemente dissimular e cobrir a verdade por algum artifício de palavra,
isto só deve ser feito em coisa importante, quando a glória e serviço de Deus o
exijam manifestamente. Fora disto, os artifícios são perigosos, porque, como
diz a palavra sagrada, o Espírito Santo não habita num espírito falso e
dissimulado. Sabedoria, 1,5. Não há nenhuma finura tão boa e desejável como a
simplicidade. As prudências mundanas e artifícios carnais pertencem aos filhos
deste século; mas os filhos de Deus caminham sem desvios e têm o coração sem
pregas. Quem caminha na simplicidade ou retidão, diz o Sábio, caminha seguro. Provérbios,
10,9. A mentira, a duplicidade e a simulação denunciam sempre um espírito fraco
e vil.
Capítulo, 46 Da confiança que havemos de ter em Deus quando se nos dizem
palavras afrontosas
Jesus. Filho, conserva-te firme e espera em mim, pois
palavras são palavras; ferem os ares, mas não quebram a pedra. Se és culpado,
trata logo de emendar-te; se a consciência de nada te acusa, faz o propósito de
sofrer isso de boa vontade, por amor de Deus. Não é muito sofreres, às vezes,
más palavras, já que me não podes ainda suportar mais pesados golpes. E por que
razão te ferem tão leves coisas senão porque és ainda carnal e fazes ainda mais
caso dos homens do que convém? Temes ser desprezado, e por isso não queres ser
repreendido de tuas faltas e procuras defender-te com desculpas.
Mas examina-te melhor e verás que vive ainda
em ti o mundo e o vão desejo de agradar aos homens. Pois, já que foges de ser
abatido e confundido por causa dos teus defeitos, mostras claramente que não és
verdadeiramente humilde, nem inteiramente morto ao mundo, e que o mundo não
está de todo crucificado para ti. Gálatas, 6,14. Mas ouve a minha palavra e não
farás caso de dez mil palavras humanas. Mesmo que dissessem contra ti quanto
pode inventar a mais negra malícia, que mal te faria, se o deixasses passar,
não fazendo mais caso daquilo que duma palha? Porventura poderia arrancar-te um
só cabelo?
Mas quem não domina o coração, nem tem a Deus
diante dos olhos, facilmente fica aborrecido com uma palavra de repreensão.
Aquele, porém, que confia em mim, e não se aferra à sua própria opinião, viverá
sem temor dos homens. Eu sou o juiz e conheço todos os segredos, sei como se
passou tudo, quem fez a injúria e quem a sofre. De mim saiu esta palavra, por
minha permissão te sucedeu isso, "para que fossem revelados os pensamentos
de muitos corações". São Lucas. 2,35. Julgarei o culpado e o inocente: primeiro,
porém, quis provar ambos por oculto juízo.
Engana, muitas vezes, o testemunho dos homens;
meu juízo é verdadeiro e não será revogado. As mais das vezes é oculto e poucos
lhe conhecem todas as particularidades, mas nunca erra, nem pode errar, posto
que pareça menos reto aos olhos dos néscios. A mim, pois, deves recorrer em
todo juízo e não te ater ao teu próprio parecer. Pois o justo não se
perturbará, seja o que for que lhe suceda, por permissão de Deus. Não se
afligirá com as palavras que contra ele disserem injustamente. Mas também não
se encherá de vã alegria, quando outros o justificarem com razões. Ele pondera
que "eu sou o perscrutador dos corações e dos rins", Salmo, 7,10. e
não julgo segundo o exterior e as aparências humanas.
Porque muitas vezes é culpável a meus olhos o
que é tido por louvável na opinião dos homens.
A alma. Senhor, "Deus, juiz justo, forte e
paciente", Salmo, 7,12. que conheceis a fraqueza e malícia dos homens,
sede minha fortaleza e toda a minha confiança, porque não me basta a
consciência da própria força. Vós sabeis o que eu não sei, por isso devia ter
recebido qualquer repreensão com humildade e mansidão. Perdoai-me, portanto,
por todas as vezes que assim o não fiz, e dai-me de novo mais graça para
sofrer. Portanto, mais valiosa me é vossa abundante misericórdia para alcançar
o perdão dos pecados do que minha pretensa justiça em defesa do que está oculto
na consciência. E mesmo que ela de nada me acuse, nem por isso sou justificado;
porque sem a vossa misericórdia "nenhum vivente haverá justo a vossos
olhos". Salmo, 142,2.
Reflexões:
Geralmente, a dissimulação e desprezo da
injúria e calúnia é um remédio muito mais salutar do que o ressentimento, a
contestação e a vingança: o desprezo faz desvanecer-se a calúnia e a injúria,
e, se nos irritamos com elas, parece que as ratificamos...
Tenhamos sempre os olhos voltados para Jesus
Cristo crucificado. Andemos em seu serviço com confiança e simplicidade, mas
sábia e discretamente: ele será o protetor de nossa reputação e, se ele permite
que ela nos seja tirada, isto será para dar-nos uma melhor, ou para fazer-nos
crescer na santa humildade, da qual uma só onça vale mais do que mil libras de
honra. Se alguém nos censura injustamente, oponhamos pacificamente a verdade à
calúnia; se a calúnia persistir, perseveremos também em humilhar-nos. Colocando
assim nossa reputação com a nossa alma nas mãos de Deus, não poderíamos
assegurá-la melhor. Sirvamos a Deus pela boa e má reputação, a exemplo de São
Paulo, a fim de que possamos dizer com Davi: Ó meu Deus, foi por vós que
suportei o opróbrio e que o vexame cobriu meu rosto. Salmo, 69,8.
No entanto, devo fazer exceção de dois casos: alguns
crimes são tão atrozes e infames que ninguém deve ser caluniado deles, por isso
a pessoa pode livrar-se justamente da calúnia neste caso; outro caso é o da
calúnia de certas pessoas de boa reputação das quais depende a edificação de
muitas outras; neste caso, é preciso procurar tranquilamente a reparação do
prejuízo sofrido, segundo a opinião dos teólogos.
Capítulo, 47 Que todas as coisas graves se devem suportar pela vida eterna
Jesus. Filho, não te deixes quebrantar pelos trabalhos
empreendidos por meu amor, nem desanimes nas tribulações; mas em tudo que te
suceder, te consolem e fortifiquem minhas promessas. Sou assaz poderoso para te
recompensar além de todo limite e medida. Não lidarás aqui muito tempo, nem
sempre estarás acabrunhado de dores. Espera um pouco e verás em breve o fim de
teus males. Hora virá em que cessará todo trabalho e inquietação. É de pouco
valor e duração o que passa com o tempo.
Faz o que podes fazer, trabalha fielmente em
minha vinha, e "eu serei tua recompensa". Gênesis, 15,1. Escreve, lê,
canta, geme, cala, ora e sofre energicamente toda adversidade; a vida eterna é
digna dessas e outras maiores pelejas. Virá a paz um dia que o Senhor sabe, e
não haverá mais nem dia nem noite, como no presente, mas luz perpétua,
claridade infinita, paz firme e seguro repouso. Não dirás então: Quem me
livrará deste corpo de morte?, Romanos, 7,24. nem exclamarás: Ai de mim, que se
tem prolongado o meu desterro. Salmo, 119,5. Porque a morte será destruída e a
salvação será eterna; livre de toda ansiedade, gozarás deliciosa alegria, em
meio de agradável e brilhante companhia.
Oh! Se visses as coroas imarcescíveis dos
santos no céu, e a glória em que já exultam aqueles que outrora, aos olhos do
mundo, eram desprezados e reputados quase indignos da vida; com certeza, logo
te humilharias até ao pó e desejarias antes obedecer a todos que a um só a
mandar. Nem cobiçarias os dias felizes desta vida, mas antes te alegrarias de
ser atribulado por amor de Deus, e considerarias grande vantagem o ser tido por
nada entre os homens.
Oh! Se achasses gosto nessas coisas e elas
penetrassem profundamente no coração, como poderias ousar proferir uma só
queixa? Porventura haverá pena que não se deva sofrer pela vida eterna? Certo
que não é pouco perder ou ganhar o Reino de Deus. Ergue, pois, os olhos ao céu.
Eis-me aqui com todos os meus santos; eles, que neste mundo sustentaram grandes
combates, ora se rejubilam, ora estão consolados e estão seguros, ora gozam o
repouso e permanecerão para sempre comigo no reino de meu Pai.
Reflexões:
Considera a nobreza, a beleza e a quantidade
de cidadãos e habitantes deste reino feliz: esses milhões e milhões de anjos,
de querubins e serafins; esta turba de apóstolos, mártires, confessores,
virgens e de santas mulheres. A multidão é inumerável! E como é feliz esta
companhia! O mínimo de todos é mais belo de ver que todo o mundo: o que será
então vê-los todos? Ó meu Deus, como eles são felizes! Cantam sempre o suave
cântico do amor eterno; sempre gozam de uma constante alegria; reciprocamente
se dão contentamentos indizíveis e vivem na consolação de uma feliz e
indissolúvel sociedade.
Considera, enfim, o bem de todos eles, de
gozar de Deus, que os gratifica eternamente com seu amável olhar, e através
dele difunde em seus corações um abismo de delícias. Que bem é estar para
sempre unido com seu princípio!.
E se durante esta vida já sentimos tanto
prazer só com imaginar a felicidade eterna, qual não será o nosso prazer no
gozo desta mesma felicidade! Felicidade e glória que jamais terão fim, mas que
durarão eternamente, sem que jamais possamos ser excluídos delas. Oh! Como esta
certeza aumentará a nossa consolação!
Caminhemos, portanto, minhas caras almas, com
alegria e felicidade, no meio das dificuldades desta vida passageira. Aceitemos
de braços abertos as mortificações, as penas e as aflições que encontramos no
nosso caminho, pois temos certeza de que essas penas terão um fim e que elas
terminarão no fim de nossa vida, depois da qual não haverá mais do que
alegrias, contentamento e consolações eternas. Amém.
Oração:
Meu Senhor Jesus Cristo, único santificador e
glorificador das almas, eu vos suplico, pelos méritos de vosso sangue precioso,
que me concedais a graça eficaz de vos servir fielmente durante toda a minha
vida, superando corajosamente todas as dificuldades que se apresentarão no
caminho de vosso divino serviço, a fim de que eu mereça ser participante da
mesma glória de que gozais no céu. Assim seja.
Capítulo, 48 Do dia da eternidade e das angústias desta vida
Ó mansão beatíssima da celestial cidade! Ó dia
claríssimo da eternidade, que a noite não obscurece, mas a Verdade Soberana
sempre ilumina; dia sempre festivo, sempre seguro, que nunca muda no contrário!
Oh! Se já amanhecera aquele dia e acabaram todas as coisas temporais! Para os
santos, sim, brilha este dia com o fulgor de sua perpétua claridade; para nós,
peregrinos da terra, só de longe se mostra e como por espelho.
Sabem os cidadãos do céu quão ditoso é aquele
dia; sentem os desterrados filhos de Eva quão triste e amargo é este da vida
presente. Os dias deste tempo são curtos e maus, cheios de dores e angústias.
Neles se vê o homem manchado de muitos pecados, enredado de muitas paixões,
angustiado de muitos temores, inquietado com muitos cuidados, distraído com
muitas curiosidades, emaranhado em muitas vaidades, cercado de muitos erros,
oprimido de muitos trabalhos, acossado por tentações, enervado pelas delícias,
atormentado pela penúria.
Oh! Quando virá o fim de todos estes males? Quando
me verei livre da triste escravidão dos vícios? Quando me lembrarei somente de
vós, Senhor?
Quando em vós plenamente me alegrarei? Quando
viverei em perfeita liberdade, sem nenhum impedimento, sem aflição da alma e do
corpo? Quando gozarei a paz sólida, imperturbável e segura, paz interna e
externa, paz de toda parte estável? Ó bom Jesus, quando estarei diante de vós
para vos ver? Quando contemplarei a glória do vosso reino? Quando me sereis
tudo em todas as coisas? Oh! Quando estarei convosco no reino que preparastes
desde toda a eternidade para os que vos amam? Pobre e desterrado estou, em
terra de inimigos, onde há guerras contínuas e misérias extremas!
Consolai-me no meu desterro, mitigai-me a dor,
para vós se dirige todo o meu desejo. Tudo quanto o mundo oferece de consolo é
para mim tormento.
Desejo gozar-vos intimamente, mas não o
consigo. Desejo aplicar-me às coisas do céu, mas as coisas temporais e as
paixões imortificadas me abatem. Com o espírito desejava elevar-me acima de
todas as coisas, mas a carne me obriga a sujeitar-me a elas contra a minha
vontade. Assim eu, homem desgraçado, pelejo comigo e "sou a mim mesmo
pesado", Jó 7,20. pois o espírito aspira às alturas, mas a carne às
baixezas.
Oh! Quanto padeço interiormente, quando, ao
meditar nas coisas celestiais, logo uma multidão de ideias carnais vêm
perturbar-me a oração!
Deus meu, em vossa ira, não vos aparteis de
vosso servo!. Salmo, 26,9. Lançai os vossos raios e dissipai estes
pensamentos!. Salmo, 143,6. Despedi vossas flechas, e se desfarão todos esses
fantasmas do inimigo. Concentrai e recolhei em vós meus sentidos; fazei-me
esquecer todas as coisas do mundo; concedei-me a graça de logo rebater e
desprezar todas as imaginações do pecado. Socorrei-me, Verdade Eterna, para que
nenhuma vaidade me possa seduzir. Vinde, doçura celestial, e diante de vós fuja
toda impureza. Perdoai-me também e relevai-me, pela vossa misericórdia, todas
as vezes que, na oração, penso em outra coisa, fora de vós.
Confesso sinceramente que costumo ser muito
distraído. Pois muitas vezes não estou onde tenho o corpo, mas onde me levam os
pensamentos. Estou onde está o meu pensamento, e meu pensamento está, de
ordinário, onde está o que amo.
Ocorre-me com facilidade o que naturalmente me
deleita ou por costume me agrada.
Por isso vós, Verdade Eterna, dissestes
claramente: Onde está teu tesouro, aí se acha também teu coração. São Mateus,
6,21. Se amo o céu, gosto de pensar nas coisas celestiais. Se amo o mundo,
alegro-me com seus deleites e entristeço-me com suas adversidades. Se amo a
carne, com gosto me ocupo dos pensamentos carnais. Se amo o espírito, deleita-me
o pensar nas coisas espirituais. Porque, seja qual for o objeto do meu amor,
dele falo e ouço falar com gosto e trago comigo a sua imagem. Mas
bem-aventurado o homem que por amor de vós, Senhor, abre mão de todas as
criaturas, faz violência à natureza e crucifica a concupiscência da carne com o
fervor do espírito, para, de consciência serena, oferecer-vos uma oração pura
e, desprendido interior e exteriormente de tudo que é terreno, merecer entrar
no coro dos anjos.
Reflexões:
Ainda há mais proporção da luz de uma lâmpada
com a luz e claridade dessa grande luminária que nos alumia, e mais relação
entre a beleza tanto da folha como do fruto de uma árvore, e a própria árvore
carregada de folhas e de frutos tudo junto..., do que entre a luz do Sol e a
claridade de que gozam os bem-aventurados na glória eterna. Ou entre a beleza
de um prado matizado de flores na primavera e as belezas desses campos
celestes, e ainda entre a amenidade de nossas colinas carregadas de frutos e a
amenidade da felicidade eterna.
Mas eles passam, esses anos transitórios...;
seus meses se reduzem a semanas e as semanas a dias, os dias a horas e as horas
a minutos que são os únicos que possuímos, mas que só possuímos na medida em
que eles perecem e tornam nossa duração perecível, a qual no entanto nos deve
ser mais amável.
Uma vez que esta vida está cheia de misérias,
não poderíamos ter nenhuma consolação mais sólida do que a de estarmos certos
de que ela vai se dissipando para dar lugar à santa eternidade que nos está
preparada na abundância da misericórdia de Deus, e à qual nossa alma aspira
incessantemente pelos contínuos pensamentos que sua própria natureza lhe
sugere, ainda que ela não possa esperá-la senão por outros pensamentos mais
elevados, que o autor da natureza lhe infunde na alma.
Capítulo, 49 Do desejo da vida eterna e quantos bens estão prometidos aos
que combatem
Jesus. Filho, quando sentires que o céu te inspira saudades
da bem-aventurança e o desejo de deixar o tabernáculo do corpo para contemplar
minha glória sem sombra de mudanças, alarga o teu coração e recebe esta santa
inspiração com todo afeto. Dá muitas graças à Bondade Soberana, que usa de
tanta liberdade para contigo, com tanta clemência te visita, tanto te anima,
tão poderosamente te levanta, para que teu próprio peso não te arraste para as
coisas terrenas. Pois isto não te vem por teus pensamentos ou esforços, mas só
pela mercê da graça celeste e do beneplácito divino para que te adiantes nas
virtudes, sobretudo na humildade, e te prepares para futuras pelejas; para que
te entregues a mim com todo o afeto do teu coração e me sirvas com ardente
amor.
Filho, muitas vezes arde o fogo, mas não sobe
a chama sem fumo. Assim também os desejos de alguns se abrasam pelas coisas
celestiais, e, contudo, não estão livres da tentação e dos afetos carnais. Por
isso não fazem unicamente pela glória de Deus o que, aliás, com tanto desejo
lhe pedem. Tal é também muitas vezes teu desejo, que manifestastes com tanta
ansiedade; pois não é puro nem perfeito o que está contaminado de algum
interesse próprio.
Pede-me, não o que te é agradável e cômodo,
senão o que a mim me é aceito e honroso; pois, se julgares retamente, deves
preferir minha lei a todos os teus desejos e cumpri-la. Conheço teus desejos e
ouvi teus frequentes gemidos.
Quiseras já agora estar na gloriosa liberdade
dos filhos de Deus, já te deleita o pensamento da morada eterna, na pátria
celestial repleta de gozo; -- mas não é ainda chegada essa hora, outro é o
tempo atual, tempo de guerra, trabalho e provação. Desejas gozar a plenitude do
Sumo Bem, mas por enquanto ainda não o podes conseguir. Sou eu esse Bem
Supremo; espera-me, diz o Senhor, até que venha o Reino de Deus.
Hás de passar ainda por muitas provações na
terra e ser exercitado em muitas coisas. Consolações se te darão de vez em
quando, mas plena satisfação não podes receber. Esforça-te, pois, e tem
coragem, para fazer e sofrer o que repugna à natureza. Importa que te revistas
do homem novo e te transformes em outro homem. Cumpre-te fazer muitas vezes o
que não queres e deixar o que queres. O que agrada aos outros terá bom sucesso;
o que te agrada não se fará. O que os outros dizem está atendido; o que tu
dizes será desprezado.
Pedirão os outros e receberão; tu pedirás, e
não alcançarás.
Serão grandes os outros na boca dos homens;
mas de ti nem se dirá palavra. Os outros serão encarregados de diversas
comissões, e tu não serás julgado capaz de coisa alguma. Com isto se
contristará, às vezes, a natureza; mas muito ganharás se o sofreres calado.
Nessas e noutras coisas semelhantes costuma ser aprovado o servo fiel do
Senhor, para ver como sabe negar-se e mortificar em tudo. Dificilmente haverá
coisa em que mais te seja preciso morrer a ti mesmo, do que em ver e sofrer o
que é contrário à tua vontade mormente quando te mandam fazer coisas que te
parecem inúteis ou desarrazoadas. E porque não ousas resistir à autoridade do
superior, sob cujo governo estás, duro te parece andar à vontade de outrem e
deixar de todo o teu próprio parecer.
Mas considera, filho, o fruto destes
trabalhos, o fim breve e o prêmio excessivamente grande, e não te serão
molestos, mas acharás neles consolo para teus sofrimentos. Pois, por um pequeno
desejo que agora sacrificas, tua vontade será sempre satisfeita no céu onde
acharás tudo que quiseres, tudo o que podes desejar. Ali possuirás todo o bem,
sem medo de o perder. Ali tua vontade, sempre unida com a minha, nada desejará
fora de mim, nada que te seja próprio. Ali ninguém te fará oposição ou de ti se
queixará, ninguém te causará estorvo ou contrariedades; antes, tudo quanto
desejares já estará presente, para preencher e satisfazer plenamente todos os
teus desejos. Ali te darei a glória pela injúria padecida, uma túnica de honra
pela tristeza, e, pela escolha do ínfimo lugar, um trono em meu reino para
sempre. Ali brilhará o fruto da obediência, alegrar-se-á a austera penitência e
será gloriosamente coroada a sujeição humilde.
Sujeita-te, pois, agora humildemente à vontade
de todos, sem te importar quem foi que tal disse ou mandou. Mas cuida muito em
acolher de bom grado qualquer pedido ou aceno, seja de teu superior, ou embora
de teu igual ou inferior, e trata de o cumprir com sincera vontade. Busque um
isto, outro aquilo; glorie-se este numa coisa, aquele em outra, e receba mil
louvores; tu, porém, não te deleites numa nem noutra coisa, mas só no desprezo
de ti mesmo e na minha vontade e glória. Este deve ser o teu desejo: que tanto
na vida como na morte Deus seja sempre por ti glorificado.
Reflexões:
O coração que neste mundo não pode cantar nem
ouvir os louvores divinos a seu bel-prazer, sente desejos incomparáveis de ser
libertado dos vínculos desta vida para ir para o outro mundo, onde se louva
perfeitamente o Bem-amado celeste; e esses desejos se apoderam de tal forma do
coração que se tornam algumas vezes tão fortes e urgentes no peito desses
amantes sagrados, que, banindo todos os outros desejos, eles tornam fastidiosas
todas as coisas terrestres e tornam a alma totalmente enlanguescida e doente de
amor; esta santa paixão chega algumas vezes a tal ponto que pode causar a morte
da pessoa, se Deus o permitir.
Assim este glorioso e seráfico amante, São
Francisco, depois de ter sido longamente trabalhado por este forte desejo de
louvar a Deus, teve, enfim, em seus últimos anos, por uma revelação muito
especial, a certeza de sua salvação eterna. Ele não podia conter sua alegria e
ia se consumindo, de dia em dia, como se sua vida e sua alma se evaporassem,
como o incenso, no fogo dos ardentes desejos que ele tinha de ver seu Mestre
para louvá-lo incessantemente: de modo que esses ardores, aumentando cada dia
mais, sua alma saiu de seu corpo por um impulso em direção ao céu; porque a
Divina Providência quis que ele morresse pronunciando essas sagradas palavras: "Ó
Senhor, tirai minha alma desta prisão, a fim de que eu bendiga vosso nome! Os
justos me esperam até que vós me concedais a tranquilidade desejada.
Oração:
Ó Senhor de minha vida, por vossa tão doce
bondade, livrai-me, pobre que sou, da gaiola do meu corpo; retirai-me desta
pequena prisão, a fim de que, libertado desta escravidão, eu possa voar para
onde me esperam meus queridos companheiros, lá no alto, no céu, para juntar-me
aos seus coros e cercar-me de sua alegria. Lá, Senhor, juntando minha voz às
deles, farei com eles uma suave harmonia de tons e acentos deliciosos,
cantando, louvando e bendizendo vossa misericórdia.
Capítulo, 50 Como o homem angustiado se deve entregar nas mãos de Deus
Senhor Deus, Pai Santo! bendito sejais agora e
sempre; porque como quisestes assim se fez, e bom é quanto fazeis. Alegre-se em
vós o vosso servo, não em si, nem em algum outro, porque só vós sois a
verdadeira alegria, vós a minha esperança e coroa; só vós, Senhor, minha
delícia e glória. Que tem vosso servo, senão o que de vós recebeu, ainda sem o
merecer? Vosso é tudo o que destes e fizestes. Pobre sou e vivo em trabalho
desde a juventude, Salmo, 87,16. e minha alma se entristece algumas vezes até
às lágrimas, e outras se perturba pelos sofrimentos que a ameaçam.
Desejo a alegria da paz, suplico a paz de
vossos filhos, a que apascentais na luz da consolação. Se vós me derdes a paz,
se vós me infundirdes santa alegria, será a alma de vosso servo cheia de
júbilo, entoando devotamente vossos louvores. Mas se vos afastardes, como
muitas vezes fazeis, não poderá ele trilhar o caminho dos vossos mandamentos,
mas antes se prostrará de joelhos, para bater no peito, porque não lhe vai como
nos dias passados, "quando resplandecia vossa luz sobre sua cabeça", Gênesis,
31,2. e encontrava refúgio contra as tentações violentas debaixo da sombra de
vossas asas.
Pai justo e sempre digno de louvor! Chegada é
a hora em que será provado o vosso servo. Pai amoroso! Justo é que nesta hora
sofra alguma coisa o vosso servo por vosso amor. Pai sempre adorável, chegou a
hora que de toda a eternidade prevíeis havia de vir, que por pouco tempo
sucumba vosso servo exteriormente, mas vivendo interiormente sempre unido a vós.
Por pouco tempo seja desprezado e humilhado, abatido diante dos homens e
oprimido de sofrimentos e enfermidades, para que ressuscite convosco na aurora
de uma nova luz e seja glorificado no céu. Pai Santo! Foi esta vossa ordem e
vontade, fez-se o que ordenastes.
Pois é uma graça que concedeis ao vosso amigo:
o sofrer e penar neste mundo por vosso amor, quantas vezes e de quem o
permitireis. Sem o vosso desígnio, sem a vossa providência, ou sem causa, nada
acontece na terra. É bom para mim, Senhor, que me tenhais humilhado, para que
aprenda vossos justos juízos, Salmo, 118,71. e deponha toda a soberba e toda
presunção. Proveitoso é para mim "ter o rosto coberto de confusão", Salmo,
68,8. para que busque a consolação em vós e não nos homens. Também aprendi por
este meio a temer vossos insondáveis juízos; pois afligis o justo com o ímpio,
mas sempre com equidade e justiça.
Graças vos dou, Senhor, que não poupastes
minhas maldades, antes me castigais com duros açoites, enviando-me dores e
afligindo-me exterior e interiormente de angústias. De tudo quanto existe
debaixo do sol, nada há capaz de me consolar senão vós, Senhor meu Deus, médico
celestial das almas, que feris e sanais, pondes em grandes tormentos e deles
livrais. 1, Reis 2,6; Tb 13,2.
Vosso castigo está sobre mim e vossa
disciplina me ensinará. Salmo, 17,36.
Pai querido, em vossas mãos estou e me inclino
debaixo da vara de vossa correção. Feri-me as costas e o pescoço, para que
sujeite minha vontade teimosa à vossa. Fazei-me discípulo devoto e humilde,
como sabeis fazer, para que obedeça ao vosso menor aceno. Entrego-me, com tudo
que é meu, à vossa correção; pois é melhor ser castigado neste mundo que no
outro. Vós sabeis tudo e todas as coisas e nada se vos esconde da consciência humana.
Vós sabeis o futuro antes que se realize, e não precisais de quem vos ensine ou
advirta das coisas que se fazem na terra. Vós sabeis o que serve para meu
progresso e quanto vale a tribulação para limpar a ferrugem dos vícios.
Disponde de mim segundo o vosso beneplácito e não olheis para a minha vida
pecaminosa, de ninguém melhor e mais claramente conhecida do que de vós.
Concedei-me, Senhor, que eu saiba o que devo
saber, ame o que devo amar; fazei-me louvar o que mais vos agrada, estimar o
que vós apreciais, desprezar o que a vossos olhos é abjeto. Não me deixeis
julgar pelas aparências exteriores, nem criticar pelo que ouço de homens
inexperientes, mas dai-me o discernimento certo das coisas visíveis e das
espirituais, e sobretudo o desejo de conhecer sempre vossa vontade.
Enganam-se, frequentemente, os homens em seus
juízos, e não menos se enganam os mundanos, porque só amam as coisas visíveis.
Porventura ficará melhor o homem porque outro o louva? O mentiroso engana ao
mentiroso, o vaidoso ao vaidoso, o cego ao cego, o doente ao doente, em lhe
fazendo elogios; e na verdade, antes o confunde em lhe tecendo vãos louvores.
Porque, quanto cada um é aos olhos de Deus, tanto é e nada mais, diz o humilde
São Francisco.
Reflexões:
Não existe uma maneira mais excelente de rezar
do que contentar-nos simplesmente em apresentar as próprias necessidades a
Nosso Senhor e depois deixá-lo agir, mantendo-nos na certeza de que ele proverá
as nossas necessidades, segundo o que nos for mais conveniente, contentando-nos
em dizer-lhe: Senhor, eis aqui vossa pobre criatura, desolada e aflita, cheia
de secura e aridez, cumulada de misérias e de pecados; mas vós sabeis bem do
que preciso, basta-me fazer-vos ver o que sou; é a vós que cabe prover as minhas
misérias conforme vos aprouver, porque sabeis bem o que me é mais útil para a
vossa glória.
Não, minha querida filha, não é preciso apenas
aceitar que Deus nos fere, mas é preciso aquiescer que é de acordo com o que
lhe agrada. Devemos deixar a escolha a Deus, porque ela lhe pertence. Davi
ofereceu sua vida pela vida de seu Absalão, mas foi porque ele morria
assassinado; é neste caso que se deve conjurar a Deus: mas em perdas temporais,
minha filha, que Deus pinça e toca nosso alaúde por onde ele quiser, e sobre a
corda do nosso alaúde que ele escolher, jamais ele fará outra coisa senão uma
bela harmonia. Senhor Jesus, sem reserva, sem se, sem mais, sem exceção, sem
limitação, seja feita a vossa vontade sobre pai, mãe, filhos, em tudo e sobre
tudo! Ah, não digo que não se deve desejar e orar para a conservação deles, mas
dizer a Deus: deixai este e tomai aquele, minha querida filha, não se deve
dizer.
Capítulo, 51 Que devemos praticar as obras humildes quando somos incapazes
para as mais altas
Jesus. Filho, não podes conservar-te sempre no desejo
fervoroso de todas as virtudes, nem perseverar no mais alto grau de
contemplação; mas às vezes te é necessário, por causa de tua natureza viciada,
descer a coisas humildes e carregar, em que te pese, o fardo desta vida
corruptível. Enquanto viveres neste corpo mortal, sentirás tédio e angústias do
coração. Convém, pois, que na carne gemas muitas vezes debaixo do seu peso,
porque não podes ocupar-te dos exercícios espirituais e da contemplação das
coisas divinas, sem interrupção.
Então te convém recorrer a humildes ocupações
exteriores e recrear-te nas boas obras; esperar, com firme confiança, minha
vinda e visita celestial; levar com paciência o teu desterro e secura de
espírito, até que de novo venha a visitar-te e te livre de todas as penas.
Porque eu te farei esquecer os trabalhos e gozar do sossego interior.
Abrir-te-ei o jardim delicioso das Sagradas Escrituras, para que, com o coração
dilatado, comeces a correr pelo caminho dos meus mandamentos. E então dirás: Não
têm proporção as penas desta vida com a futura glória que se nos há de revelar.
Romanos, 8,18.
Reflexões e oração:
Às vezes os desgostos, as esterilidades e
securas provêm da indisposição do corpo, como quando pelo excesso de vigílias e
jejuns a pessoa se encontra oprimida de lassidão, entorpecimento, sono, fadiga
e de outros incômodos como estes, os quais, ainda que dependam do corpo, não
deixam de molestar o espírito, devido à estreita ligação que existe entre
ambos...
O remédio neste caso é revigorar o corpo por
algum tipo de legítimo alívio e recreação. Assim São Francisco ordenava a seus
religiosos que fossem de tal modo moderados em seus trabalhos que não
prejudicassem o fervor do espírito.
É bom aplicar-se às obras exteriores e
diversificá-las na medida do possível...
Faze atos exteriores de fervor, mesmo sem
gosto, abraçando a imagem do crucifixo, apertando-a sobre o peito, beijando-lhe
os pés e as mãos, levantando teus olhos e tuas mãos ao céu, lançando tua voz em
Deus através de palavras de amor e de confiança, como estas: Meus olhos se
firmam em vós, ó meu Deus, dizendo: Quando me consolareis? Ó Jesus, sede Jesus
para mim. Viva Jesus, e minha alma viverá! Quem me separará do amor de meu
Deus? E semelhantes.
Capítulo, 52 Que o homem se não repute digno de consolação, mas merecedor
de castigo
A alma. Senhor, eu não sou digno da vossa consolação, nem de
visita alguma espiritual, e por isso me tratais com justiça, quando me deixais
pobre e desconsolado. Porque, mesmo que pudesse derramar um mar de lágrimas,
ainda assim não seria digno de vossa consolação. Outra coisa não mereço, pois,
senão ser flagelado e punido por tantas ofensas e tão graves delitos que
cometi. Assim, portanto, bem considerado tudo, não sou digno nem da menor
consolação. Vós, porém, Deus clemente e misericordioso, que não quereis que
pereçam vossas obras, para manifestar as riquezas de vossa bondade nos vasos de
misericórdia, vos dignais de consolar vosso servo, sem merecimento algum, de
modo sobre-humano. Porque vossas consolações não são como as consolações
humanas.
Que fiz eu, Senhor, para que me désseis alguma
consolação celestial? Não me lembra ter feito bem algum, mas antes fui sempre
inclinado a pecados, e tardio na emenda. É esta a verdade, não há negá-lo. Se
dissesse outra coisa, vós estaríeis contra mim e não haveria quem me
defendesse. Que outra coisa mereci pelos meus pecados, senão o inferno e o fogo
eterno? Confesso com sinceridade que sou digno de todo escárnio e desprezo, e
que não mereço ser contado no número de vossos servos. E ainda que ouça isso
muito a contragosto, por amor à verdade, acusarei contra mim os meus pecados,
para alcançar mais facilmente a vossa misericórdia.
Que direi eu, coberto de culpa e confusão? Não
posso abrir a boca senão para dizer esta palavra: Pequei, Senhor, pequei; tende
piedade de mim, Perdoai-me! Deixai-me um pouco de tempo para desafogar a minha
dor, antes de descer para a terra tenebrosa, coberta das sombras da morte. Jó 10,20-21.
Que mais exigis do culpado e mísero pecador senão que se humilhe e tenha
contrição dos seus pecados? Pela contrição sincera e humilde do coração nasce a
esperança do perdão, reconcilia-se a consciência perturbada, recupera-se a
graça perdida, preserva-se o homem da ira futura, em ósculo santo une-se Deus à
alma arrependida.
A humilde contrição dos pecados é para vós,
Senhor, sacrifício mui aceito, que recende mais suave em vossa presença do que
o perfume do incenso. É este também o precioso bálsamo que quisestes ver
derramado em vossos pés sagrados, pois nunca desprezastes o coração contrito e
humilhado. Salmo, 50,19. Lá se encontra o refúgio contra o furor do inimigo,
ali se emendam e lavam as manchas algures contraídas.
Reflexões:
Para fazer bem a oração, devemos reconhecer
que somos pobres, e humilhar-nos profundamente. E como nos vemos como um
atirador de arbaleta, quando ele quer disparar um grande tiro, quanto mais alto
ele quer atirar, tanto mais ele puxa a corda de seu arco embaixo, assim devemos
fazer nós, quando queremos que nossa oração chegue até o céu: é preciso que nos
aprofundemos muito no conhecimento de nosso nada. Davi nos advertiu para
fazê-lo com essas palavras: Quando quiseres fazer tua oração, diz ele, aprofunda-te
de tal forma no abismo do teu nada, que possas depois sem dificuldade disparar
tua oração como uma flecha até o céu.
E não vemos que os grandes príncipes, quando
querem fazer uma fonte subir ao mais alto de seu castelo, vão procurar uma
fonte de água em algum lugar muito alto, depois a conduzem através de canos,
fazendo-a descer até embaixo, porque querem que ela suba, pois de outra maneira
jamais subiria. E se lhes perguntas como foi que fizeram a água subir, eles te
dirão que foi fazendo-a descer.
Isto acontece também na oração, porque, se
alguém perguntar como ela pode subir até o céu, devemos responder que ela sobe
até lá pela descida à humildade da pessoa que a faz.
Capítulo, 53 Que a graça de Deus não se comunica aos que gostam das coisas
terrenas
Jesus. Filho, preciosa é a minha graça; não sofre mistura de
coisas estranhas, nem de consolações terrenas. Cumpre, pois, remover todos os
impedimentos da graça, se desejas que te seja infundida. Busca lugar retirado,
gosta de viver só contigo, e não procures conversa com os outros, mas a Deus
dirige tua oração fervorosa, para que te conserve na compunção de espírito e
pureza da consciência. Avalia em nada o mundo todo: antepõe o serviço de Deus a
todas as coisas exteriores. Pois não podes há um tempo tratar comigo e
deleitar-te nas coisas transitórias. Cumpre apartares-te dos conhecidos e
amigos, e desprenderes teu coração de toda consolação temporal. Assim exorta
também instantemente o apóstolo São Pedro que os fiéis cristãos vivam neste mundo
como estrangeiros e peregrinos. 1, Pedro. 2,11.
Oh! Quanta confiança terá aquele moribundo que
não tem afeição a coisa alguma do mundo. Mas desprender assim o coração de
tudo, não o compreende o espírito ainda enfermo, bem como o homem carnal não
conhece a liberdade do homem interior. Entretanto, se quiser ser
verdadeiramente espiritual, cumpre-lhe renunciar aos estranhos como aos
parentes e de ninguém mais guardar-se do que de si mesmo. Se te venceres
perfeitamente a ti mesmo, tudo o mais sujeitarás com facilidade. Pois a
perfeita vitória é triunfar de si mesmo.
Porque aquele que se domina a tal ponto que os
sentidos obedeçam à razão e a razão lhe obedeça em todas as coisas, este é
realmente vencedor de si mesmo e senhor do mundo.
Se aspiras a galgar estas alturas, cumpre-te
começar varonil mente e pôr o machado à raiz, para que arranque e cortes o
secreto e desordenado apego que tens a ti mesmo, e a todo bem particular e
sensível. Deste vício do amor excessivo e desordenado que o homem tem a si
mesmo provém quase tudo que radicalmente se há de vencer; vencido este e
subjugado, logo haverá grande paz e tranquilidade estável. Mas já que poucos
tratam de morrer a si mesmos e desapegar-se de si, por isso ficam presos em si
mesmos e não se podem erguer em espírito acima de si. A quem, todavia, deseja
livremente seguir-me, cumpre-lhe mortificar todos os seus maus e desordenados
afetos, e não se prender, com amor apaixonado, a criatura alguma.
Reflexões:
Ó Filoteia, visto que queres aplicar-te à vida
devota, não deves somente abandonar o pecado, mas é preciso expurgar teu
coração de todos os afetos que dependem do pecado, porque, além do perigo que
haveria de recair, esses miseráveis afetos enlanguesceriam perpetuamente teu
espírito e o entorpeceriam de tal sorte que não poderias fazer as boas obras
com prontidão, diligência e frequentemente. É nisto, porém, que consiste a
verdadeira essência da devoção. As almas que saíram do estado de pecado e que
ainda têm esses afetos e enlanguesci mentos assemelham-se, na minha opinião, às
religiosas de cor pálida, que não estão doentes, mas todas as suas ações são
doentias: elas comem sem gosto, dormem sem repouso, riem sem alegria e se
arrastam em vez de caminhar; porque, desse modo, essas almas fazem o bem com
lassidão espiritual tão grande que tiram toda a graça de seus bons exercícios,
que são poucos em número e pequenos em efeito.
Oração:
Meu Senhor Jesus Cristo, benigníssimo médico
das almas, curai, eu vos peço, pelos méritos de vossa dolorosíssima Paixão,
todas as chagas e enfermidades de minha alma; iluminai meu entendimento,
estimulando minha vontade ao vosso amor e ao amor às virtudes, e purificando
minha memória de toda fantasia e maus pensamentos.
Capítulo, 54 Dos diversos movimentos da natureza e da graça
Jesus. Filho, observa com diligência os movimentos da
natureza e da graça: pois são muito opostos uns aos outros e tão sutis que só a
custo podem ser discernidos, mesmo por um homem espiritual e interiormente iluminado.
Todos, sim, desejam o bem e intentam algum bem nas suas palavras e obras; por
isso se enganam muitos com a aparência do bem. A natureza é astuta; a muitos
atrai, enreda e engana, e não tem outra coisa em mira senão a si mesma. Mas a
graça anda com simplicidade, evita a menor aparência do mal, não usa de
enganos, e tudo faz puramente por Deus, no qual descansa como em seu último
fim.
A natureza tem horror à mortificação, não quer
ser oprimida, nem vencida, nem sujeita, nem submeter-se voluntariamente a
outrem. A graça, porém, aplica-se à mortificação própria, resiste à
sensualidade, quer estar sujeita, deseja ser vencida e não quer usar da própria
liberdade: gosta de estar sob a disciplina, não cobiça dominar sobre outrem,
mas quer viver, ficar e permanecer sempre debaixo da mão de Deus, sempre
pronta, por amor de Deus, e se curvar humildemente a toda criatura humana. A
natureza trabalha por seu próprio interesse e só atenta no lucro que de outrem
lhe pode advir. A graça, porém, pondera não o que lhe seja útil ou cômodo, mas
o que a muitos seja proveitoso. A natureza gosta de receber honras e
homenagens; a graça, porém, refere fielmente a Deus toda honra e glória.
A natureza teme a confusão e desprezo; mas a
graça alegra-se de sofrer injúrias pelo nome de Jesus. A natureza aprecia a
ociosidade e o bem-estar do corpo; a graça, porém, não pode estar ociosa e
abraça com prazer o trabalho. A natureza gosta de possuir coisas esquisitas e
lindas e aborrece as vis e grosseiras; mas a graça se compraz nas simples e
modestas, não despreza as ásperas, nem recusa vestir-se de hábito velho. A
natureza cuida dos bens temporais, alegra-se por um lucro pequeno,
entristece-se por um prejuízo e irrita-se com uma palavrinha injuriosa. A
graça, porém, cuida das coisas eternas, não se apega às temporais, não se
perturba com a sua perda, nem se ofende com palavras ásperas; porquanto pôs o
seu tesouro e sua glória no céu onde nada perece.
A natureza é cobiçosa, antes quer receber do
que dar; gosta de ter coisas próprias e particulares. Mas a graça é generosa e
liberal, foge de singularidades, contenta-se com pouco e considera "maior
felicidade o dar que o receber". Atos dos Apóstolos, 20,35. A natureza
inclina-se para as criaturas, para a própria carne, para as vaidades e
passatempos. Mas a graça nos conduz a Deus e às virtudes, renuncia às
criaturas, foge do mundo, detesta os apetites carnais, restringe as vagueações
e peja-se de aparecer em público. A natureza gosta de ter qualquer consolação
exterior com que deleite os sentidos. A graça, porém, só em Deus procura seu
consolo e se delicia no sumo bem, mais que em todas as coisas visíveis.
A natureza tudo faz para seu próprio interesse
e proveito, nada sabe fazer de graça, mas espera sempre, pelo bem que faz, receber
outro tanto ou melhor em elogios ou favores e deseja que se faça grande caso de
seus efeitos e dons. A graça, porém, não busca nenhuma coisa temporal, nem
deseja outro prêmio, senão Deus só, e do temporal não deseja mais do que quanto
lhe possa servir para conseguir a vida eterna.
A natureza preza-se de muitos amigos e
parentes, ufana-se de sua posição elevada e linhagem ilustre, procura agradar
aos poderosos, lisonjeia os ricos, aplaude os seus iguais. A graça, porém, ama
os próprios inimigos, não se gaba do grande número de seus amigos, não faz caso
de posição e nobreza, se lhes não vê unida maior virtude. Favorece mais ao
pobre que ao rico, tem mais compaixão do inocente do que do poderoso, alegra-se
com o sincero, e não com o mentiroso. Estimula sempre os bons a maiores
progressos, para que se assemelhem, pelas virtudes, ao Filho de Deus. A
natureza logo se queixa da penúria e do trabalho. A graça sofre com paciência a
pobreza.
A natureza atribui tudo a si, em proveito seu
peleja e porfia. A graça, porém, atribui tudo a Deus, de quem tudo dimana como
de sua origem; nenhum bem atribui a si com arrogante presunção, não questiona,
nem prefere a sua opinião à dos outros, mas em todo juízo e parecer se sujeita
à sabedoria eterna e ao divino exame. A natureza deseja saber segredos e ouvir
novidades, quer exibir-se em público e experimentar muitas coisas pelos
sentidos; deseja ser conhecida e fazer aquilo donde lhe resultem louvor e
admiração. A graça não cuida de novidades e curiosidades, porque tudo isso
nasce da corrupção antiga, pois nada há de novo e estável sobre a terra.
Ensina, pois, a refrear os sentidos, a evitar a vã complacência e ostentação, a
ocultar humildemente o que provoque admiração e louvor, busca em todas as
coisas e ciências proveito espiritual e a honra e glória de Deus.
Não quer que a louvem, nem às suas obras, mas
que Deus seja bendito em seus dons, que ele prodigaliza a todos por mera
bondade.
A graça é uma luz sobrenatural e um dom
especial de Deus; é propriamente o sinal dos escolhidos e o penhor da salvação
eterna, pois eleva o homem das coisas terrenas ao amor das celestiais, e de
carnal o torna espiritual.
Quanto mais, pois, é oprimida e dominada a
natureza, tanto maior graça é infundida, e tanto mais cada dia é renovado o
homem interior, conforme a imagem de Deus.
Reflexões:
O senso humano comum, baseado na carne, muitas
vezes não nos deixa abandonar-nos nas mãos de Deus, supondo que, como não
valemos nada, Deus não deve levar-nos em conta, porque aqueles que vivem
segundo a sabedoria humana, desprezam os que não são úteis. Ao contrário, o
espírito apoiado na fé se encoraja no meio das dificuldades, porque ele sabe
muito bem que Deus ama, apoia e socorre os miseráveis, contanto que esperem
nele.
O senso humano comum quer participar em tudo
que se passa, e ele se ama tanto que lhe parece que nada é bom se ele não está
intrometido. O espírito, ao contrário, se fixa em Deus e diz muitas vezes que o
que não é de Deus é nada para ele; e como ele toma parte nas coisas que lhe são
comunicadas, pela caridade, ele também abandona de boa vontade sua parte em
coisas que lhe são ocultadas, por abnegação e humildade.
Viver segundo o espírito é amar segundo o
espírito; viver segundo a carne é amar segundo a carne. Porque o amor é a vida
da alma, como a alma é a vida do corpo...
Portanto, viver segundo o espírito é fazer o
que a fé, a esperança e a caridade nos ensinam, seja em coisas temporais, seja
em coisas espirituais.
Oração:
Meu Senhor e meu Deus, eu vos presto infinitos
louvores e bênçãos..., suplicando-vos... conceder-me a graça de morrer
inteiramente para o homem velho e para todas as suas concupiscências, e
ressuscitar para uma nova vida de virtudes sólidas e santos costumes.
Capítulo, 55 Da corrupção da natureza e da eficácia da graça divina
A alma. Senhor, meu Deus, que me criastes à vossa imagem e
semelhança, concedei-me a graça que declarastes ser tão importante e necessária
para a salvação: que eu vença minha péssima natureza, que me arrasta ao pecado
e à perdição. Porque sinto em minha carne a lei do pecado, que é contrária à
lei do espírito e me cativa, querendo me levar a obedecer, em muitas coisas, à
sensualidade; nem poderei resistir às paixões, se não me assistir vossa
santíssima graça, e me inflamar o coração.
É necessária vossa graça, e grande graça, para
vencer a natureza, propensa sempre ao mal desde a infância. Porque, viciada
pelo primeiro homem, Adão, e corrompida pelo pecado, transmite a todos os
homens a pena desta mancha, de sorte que a mesma natureza, por vós criada boa e
reta, agora deve ser considerada como enferma e enfraquecida pela corrupção,
visto que seus movimentos, abandonados a si mesmos, a arrastam ao mal e às
coisas baixas.
Porque a módica força que lhe ficou é como uma
centelha oculta debaixo da cinza. Esta centelha é a razão natural, que, embora
envolta em densas trevas, discerne ainda o bem do mal, a verdade do erro, mas
não é capaz de fazer tudo que aprova, já que não possui a plena luz da verdade,
nem a primitiva pureza de seus afetos.
Daí vem, ó meu Deus, que "segundo o homem
interior me deleito em vossa lei", Romanos, 7,22. sabendo que vosso
mandato é bom, justo e santo, que reprova todo mal e ensina que se deve fugir
ao pecado. Segundo a carne, porém, estou escravizado à lei do pecado, pois
obedeço mais à sensualidade que à razão.
Daí vem que "tenho vontade de fazer o
bem, mas não sei realizá-lo". Romanos, 7,18.
Por isso faço muitos bons propósitos, mas,
faltando-me vossa graça que auxilie minha fraqueza, com o menor obstáculo
desfaleço e desisto. Assim sucede que bem conheço o caminho da perfeição e vejo
claramente o que devo fazer.
Entretanto, oprimido com o peso da corrupção,
não me elevo ao que é mais perfeito.
Oh! como me é necessária, Senhor, vossa graça,
para começar, continuar e completar o bem. Porque sem ela nada posso fazer, mas
tudo posso em vós, se me confortar vossa graça. Ó graça verdadeiramente
celestial, sem a qual nada valem os próprios merecimentos, nem apreço merecem
os dons naturais! Nada valem diante de vós, Senhor, as artes e a riqueza, a
formosura e a fortaleza, o engenho e a eloquência -- sem a graça. Porque os
dons da natureza são comuns aos bons e aos maus; mas a graça ou caridade é peculiar
dos escolhidos, porque os torna dignos da vida eterna. Tão excelente é esta
graça, que nem o dom da profecia, nem o poder de fazer milagres, nem a mais
alta contemplação tem valor algum sem ela. Nem mesmo a fé, nem a esperança, nem
as outras virtudes vos agradam, sem a graça e sem a caridade.
Ó graça beatíssima, que fazes rico de virtudes
o pobre de espírito e tornas humilde de coração o rico dos bens de fortunas: vem,
desce sobre mim e enche minha alma de tua consolação, para que não desfaleça,
de cansaço e aridez, meu espírito. Suplico-vos, Senhor, que eu ache graça em
vossos olhos, porque me basta a vossa graça, embora me falte tudo que deseja a
natureza. Ainda que seja tentado e vexado com muitas tribulações, nada temerei,
enquanto estiver comigo a vossa graça. Ela é a minha fortaleza, me dá conselho
e amparo. Ela é mais poderosa que todos os inimigos e mais sábia que todos os
sábios.
Ela é a mestra da verdade e da disciplina, a
luz do coração e o alívio nas tribulações; ela afugenta a tristeza, dissipa o
temor, nutre a devoção, gera santas lágrimas. Que sou eu sem a graça, senão um
lenho seco e um tronco inútil, que se atira ao fogo? Previna-me, pois, Senhor,
a vossa graça e me acompanhe sempre e me conserve continuamente na prática das
boas obras, por Jesus Cristo, vosso Filho. Amém.
Reflexões:
Infeliz de mim -- dizia o grande Apóstolo --
quem me livrará deste corpo de morte?. Romanos, 7,24. Ele sentia o corpo como
uma guerra, composta de seus humores, aversões, hábitos e inclinações naturais;
que havia conspirado sua morte espiritual; e, porque teme esses inimigos, ele
confessa que os odeia; e porque os odeia, não pode suportá-los sem dor; e sua
dor o faz lançar este grito ao qual ele mesmo responde que a graça de Deus, por
Jesus Cristo, o garantirá não do temor, nem do terror, nem do alarme, nem do
combate, mas sim da derrota, e o impedirá de ser vencido.
Ó pobre ser humano, como podes confiar em teu
trabalho e em tua habilidade? Não sabes que, na verdade, cabe a ti cultivar bem
a terra, trabalha-la e semear, mas que só Deus pode fazer as plantas germinar e
crescer, e fazer que tenhas uma boa colheita, mandando a chuva favorável às
tuas terras semeadas? Tu podes regar, mas isto de nada serviria, se Deus não
abençoasse teu trabalho e não te desse, por sua pura graça, e não por teus
suores, uma boa colheita. Dependes, portanto, totalmente de sua divina bondade.
É verdade que devemos cultivar bem, mas cabe a Deus fazer que o nosso trabalho resulte
em êxito. A santa Igreja o canta em cada festa dos santos confessores: Deus honrou
teus trabalhos, para que tirasses fruto deles. Isto mostra que por nós mesmos não
podemos nada sem a graça de Deus, na qual devemos colocar toda a nossa confiança,
nada esperando de nós mesmos.
Capítulo, 56 Que devemos renunciar a nós mesmos e seguir a Cristo pela cruz
Jesus. Quanto mais saíres de ti mesmo, tanto mais poderás chegar-te
a mim. Assim como o não desejar coisa alguma exterior produz paz interior, assim
o desprendimento interior de si mesmo causa a união com Deus. Quero que aprendas
a perfeita abnegação de ti mesmo, submetendo-te, sem resistência e sem queixa, à
minha vontade. Segue-me, eu sou o caminho, a verdade e a vida. São João, 14,6. Sem
caminho não se anda, sem verdade não se conhece, sem vida não se vive. Eu sou o
caminho que deves seguir, a verdade que deves crer, a vida que deves esperar. Eu
sou o caminho seguro, a verdade infalível, a vida interminável. Eu sou o caminho
direito, a verdade suprema, a vida verdadeira, a vida ditosa, a vida in criada.
Se perseverares no meu caminho, conhecerás a verdade, e a verdade te livrará, São
João, 8,32. e alcançarás a vida eterna.
Se queres entrar na vida, guarda os mandamentos.
São Mateus, 19,17. Se queres conhecer a verdade, crê em mim. Se queres ser perfeito,
vende tudo. São Mateus, 19,21. Se queres ser meu discípulo, renuncia a ti mesmo.
Se queres possuir a vida bem-aventurada, despreza a presente. Se queres ser exaltado
no céu, humilha-te na terra. Se queres reinar comigo, carrega comigo a cruz, porque
só os servos da cruz acham o caminho da bem-aventurança e da luz verdadeira.
A alma. Senhor, Jesus Cristo! porque vossa vida foi tão oprimida
e desprezada no mundo, concedei-me o imitar-vos com o desprezo do mundo.
Pois o servo não é maior que seu senhor, nem o
discípulo mais do que o mestre. São Mateus, 10,24. Trabalhe vosso servo por conformar-me
à vossa vida, porque nela está a minha salvação e a verdadeira santidade. Tudo quanto
fora dela leio ou ouço não me pode recrear ou deleitar plenamente.
Jesus. Filho, pois que sabes e lês todas estas coisas, bem-aventurado
serás se as puseres em prática. Quem conhece os meus mandamentos e os guarda, esse
é o que me ama; também eu o amarei e me manifestarei a ele, São João, 14,21. e o
farei assentar comigo no reino de meu Pai.
A alma. Senhor Jesus! faça-se em mim segundo vossa palavra e
promessa, e seja-me dado merecê-lo. Recebi a cruz, da vossa mão a recebi; hei de
carregá-la, carregar até à morte, como vós má impusestes. Na verdade, a vida do
bom religioso é uma cruz, mas o conduz ao Paraíso. O começo está feito; não posso
voltar atrás sem desistir.
Eia, irmãos! marchemos unidos, Jesus está conosco,
por Jesus abraçamos a cruz, por Jesus queremos nela perseverar. Ele, que é nosso
chefe e guia, será também nosso auxílio. Eis o nosso Rei, que marcha à nossa frente,
Ele por nós combaterá. Energicamente queremos segui-lo, ninguém se espante; estejamos
prontos para morrer, com denodo, no combate, e não manchemos nossa glória, desertando
da cruz.
Reflexões:
Tomar tua cruz não quer dizer outra coisa senão
tomar e aceitar todas as penas, contradições, aflições e mortificações que te sobrevirão
nesta vida, sem nenhuma exceção, com submissão. Ao renunciar a nós mesmos, parece
que ainda fazemos alguma coisa que nos contenta, porque somos nós mesmos que escolhemos
nossas cruzes. Mas aqui trata-se de tomar a cruz assim como ela nos é imposta, indiferentemente.
Portanto, há certamente muito mais dificuldade, porque não há escolha nossa. Por
isso, este ponto é de uma perfeição muito maior do que o precedente. E Nosso Senhor
nos mostrou bem que não precisamos escolher a cruz, mas que devemos tomá-la e carregá-la
assim como ela nos é apresentada. Porque, quando ele quis morrer para nos resgatar
e satisfazer à vontade de seu Pai, ele não quis escolher a dele, mas aceitou humildemente
a cruz que os judeus lhe haviam preparado...
Esta palavra de Nosso Senhor, que nos ordena tomar
a nossa cruz, deve ser entendida como aceitar de boa vontade todas as ordens às
quais devemos obedecer e todas as mortificações e contradições que nos são impostas
ou nos sobrevêm, indiferentemente, ainda que sejam leves e de pouca importância,
certos de que o mérito da cruz não está em seu peso, mas na perfeição com a qual
a levamos.
Capítulo, 57 Que o homem não se desanime em demasia, quando cai em algumas faltas
Jesus. Filho, mais me agradam a paciência e humildade nos reveses
que a muita consolação e fervor nas prosperidades. Por que te entristece uma coisinha
que contra ti disseram? Ainda que fosse maior, não te devias ter perturbado.
Deixa passar isso agora, não é novidade; não é
a primeira vez, nem será a última, se muito tempo viveres. Mas valoroso és, enquanto
te não sucede alguma adversidade. Sabes até dar bons conselhos e acalentar os outros
com tuas palavras; mas quando bate, de improviso, à tua porta a tribulação, logo
te falta conselho e fortaleza. Considera tua grande fraqueza, que tantas vezes experimentas
nas pequenas coisas; todavia, é para tua salvação que isso e semelhantes coisas
acontecem.
Procura esquecer isso como melhor souberes, e,
se te impressionou, não te abale nem te perturbe muito tempo. Sofre ao menos com
paciência o que não podes sofrer com alegria. Ainda que te custe ouvir esta ou aquela
palavra e te sintas indignado, modera-te, e não deixes escapar da tua boca alguma
expressão despropositada, com que os pequenos se poderiam escandalizar. Logo se
acalmará a tempestade em teu coração, e a dor se converterá em doçura, com a volta
da graça. Eu ainda vivo, diz o Senhor, pronto para te ajudar e consolar, mais do
que nunca, se em mim confiares e me invocares com fervor.
Sê mais corajoso, e prepara-te para suportar coisas
maiores. Nem tudo está perdido por te sentires a miúdo tribulado e gravemente tentado.
Homem és e não Deus; carne és e não anjo. Como poderás tu perseverar sempre no mesmo
estado de virtude, se tal não pôde o anjo no céu, nem o primeiro homem no paraíso?
Eu sou que levanto os aflitos e os salvo, elevo à minha divindade os que conhecem
as suas fraquezas.
A alma. Senhor, bendita seja a vossa palavra, mais doce na minha
boca que um favo de mel. Salmo, 18,11; 118,103. Que seria de mim em tantas tribulações
e angústias, se vós me não confortásseis com vossas santas palavras? Contanto que
chegue afinal ao porto de salvação, que importa o que e quanto tiver sofrido? Concedei-me
bom fim, ditoso trânsito deste mundo. Lembrai-vos de mim, meu Deus, e conduzi-me
pelo caminho reto ao vosso reino! Amém.
Reflexões:
Devemos consternar-nos com as faltas cometidas
por um arrependimento profundo, calmo, constante, tranquilo, mas não turbulento,
inquieto nem desanimador. Tens consciência de que teu atraso no caminho das virtudes
provém de tua culpa? Então, humilha-te diante de Deus, implora sua misericórdia,
prostra-te diante da face de sua bondade e pede-lhe perdão, confessa tua falta e
suplica-lhe piedade aos ouvidos de teu confessor para receber dele a absolvição.
Mas, depois de feito isto, permanece em paz e, tendo detestado a ofensa, abraça
amorosamente a abjeção que está em ti por ter retardado teu avanço no bem.
Levanta teu coração quando ele cair, com doçura,
humilhando-te profundamente diante de Deus, reconhecendo a tua miséria, sem ficar
surpreso com tua falta, uma vez que não é de admirar que a enfermidade seja enferma,
a fraqueza fraca e a miséria miserável. Detesta, contudo, com todas as tuas forças
a ofensa que fizeste a Deus e, com uma grande coragem e confiança na misericórdia
dele, entrega-te à prática da virtude que havias abandonado.
Capítulo, 58 Que não devemos escrutar as coisas mais altas e os ocultos juízos
de Deus
Jesus. Filho, guarda-te de disputar sobre assuntos altos e os
ocultos juízos de Deus; não queiras investigar por que este é deixado em tal estado,
aquele elevado a tanta graça, este tão oprimido, aquele tão exaltado. Isso excede
o alcance humano, e não há raciocínio nem discussão que possam escrutar os desígnios
de Deus. Quando, pois, o inimigo te sugere tais pensamentos, ou os curiosos questionarem
sobre eles, responde com o profeta: Justo sois, Senhor, e justo é o vosso juízo,
Salmo, 118,37. ou, também: Os juízos do Senhor são verdadeiros e justificados em
si mesmos. Salmo, 19,10. Meus juízos devem se temer, e não discutir, porque são
incompreensíveis ao entendimento humano. Não queiras também inquirir ou disputar
sobre os méritos dos santos, qual seja o mais santo ou o maior no Reino dos Céus.
Daí nascem muitas controvérsias e contendas inúteis,
que nutrem a soberba e a vanglória, donde procedem invejas e discórdias, porque
este prefere soberbamente um santo, aquele quer dar a preeminência a outro. Querer
saber e investigar tais coisas não traz proveito algum, antes desagrada aos santos,
porque "eu não sou Deus de discórdia e sim da paz", 1, Coríntios. 14,33.
e esta paz consiste antes na verdadeira humildade que na própria exaltação.
Alguns, por um zelo de predileção, se afeiçoam
mais a este ou àquele santo, mas este afeto é antes humano que divino. Sou eu que
fiz todos os santos; eu lhes dei a graça, eu lhes outorguei a glória. Eu sei os
merecimentos de cada um, eu os preveni com as bênçãos da minha doçura. Salmo, 20,4.
Eu conheci os meus amados antes dos séculos, eu os escolhi do mundo, e não eles
a mim. Eu os chamei por minha graça e os atraí por minha misericórdia: eu os fiz
passar por várias provações. Eu os inundei de maravilhosas consolações, dei-lhes
a perseverança e coroei a sua paciência.
Eu conheço o primeiro e o último e abraço a todos
com inestimável amor.
Eu devo ser louvado em todos os meus santos, bendito
sobre todas as coisas e honrado em cada um deles, que eu tão gloriosamente exaltei
e predestinei, sem prévio merecimento algum de sua parte. Quem desprezar, pois,
um dos menores dos meus deixa também de honrar o maior, porque fui eu que fiz o
pequeno e o grande. E quem menos preza a qualquer dos santos, a mim menospreza e
todos os mais que estão no Reino dos Céus. Porquanto todos são um pelo veículo da
caridade; todos têm o mesmo parecer, o mesmo querer, e se amam mutuamente com o
mesmo amor.
Além disso -- o que é mais sublime ainda, -- eles
me amam mais a mim que a si e seus merecimentos. Porque, arrebatados acima de si
mesmos e desprendidos de todo amor-próprio, se transformaram inteiramente no meu
amor, no qual descansam com sumo gozo. Nada há que os possa desviar ou deprimir,
porque, repletos da eterna verdade, ardem no fogo inextinguível da caridade. Calem-se,
pois, os homens carnais e sensuais, e não discutam sobre o estado dos santos, porque
não sabem amar senão seus próprios gozos. Eles diminuem ou acrescentam conforme
a sua inclinação, e não como agrada à eterna Verdade.
Em muitos é isso ignorância, mormente naqueles
que, pouco iluminados, raramente sabem amar um santo com amor puramente espiritual.
Leva-os ainda muito a natural afeição e a amizade humana, que os inclina a este
ou àquela, e, como se portam nas coisas terrenas, assim se lhes afiguram também
as celestiais. Há, porém, incomparável distância entre o que pensam os imperfeitos
e o que alcançam os homens espirituais pela revelação superior.
Guarda-te, pois, filho, de discorrer curiosamente
sobre coisas que excedem teu entendimento; cuida antes e trata de seres ainda o
ínfimo no Reino de Deus. E dado que alguém soubesse quem seja deles o mais santo
ou o maior no Reino dos Céus, que lhe aproveitaria esse conhecimento, se dele não
tomasse motivo de humilhar-se diante de mim e louvar mais fervorosamente o meu nome?
Muito mais agrada a Deus quem cuida na grandeza dos seus pecados, na escassez das
virtudes e na grande distância que o separa da perfeição dos santos, do que aquele
que disputa sobre a maior ou menor glória deles. Melhor é implorar os santos com
devotas orações e lágrimas, suplicar-lhes com humildade de coração sua gloriosa
intercessão, que perscrutar, com vã curiosidade, seus segredos.
Os santos estão bem contentes e satisfeitos; oxalá
também os homens soubessem estar contentes e refrear suas vãs palavras. Não se gloriam
dos próprios merecimentos, pois nenhum bem atribuem a si mesmos, mas tudo referem
a mim que lhes dei tudo por infinita caridade. Tão cheios estão do amor da divindade
e de abundantíssima alegria, que nada falta à sua glória, nem pode faltar à sua
bem-aventurança. Quanto mais elevados estão os santos na glória, tanto mais humildes
são em si mesmos e mais perto de mim e de mim amados.
Por isso lês na Escritura que depunham suas coroas
diante de Deus e se prostravam diante do Cordeiro e adoravam aquele que vive nos
séculos dos séculos. Apocalipse, 4,10.
Muitos perguntam qual seja o maior no Reino de
Deus e não sabem se serão dignos de ser contados entre os menores. Grande coisa
é ser ainda o menor no céu, onde todos são grandes, porque serão chamados filhos
de Deus, e, na verdade, o são. O menor valerá por mil, e o pecador de cem anos morrerá.
Isaías. 60,22; 65,20. Pois, quando os discípulos perguntaram quem era o maior no
Reino dos Céus, receberam esta resposta: Se vos não converterdes e vos tornardes
como crianças, não entrareis no Reino dos Céus. São Mateus, 18,3-4.
Ai daqueles que recusam humilhar-se espontaneamente
com os pequenos; porque é baixa a porta do reino celeste e não lhes dará entrada.
Ai também dos ricos, que têm neste mundo suas consolações, porque, quando os pobres
entrarem no Reino de Deus, eles ficarão de fora, chorando. Regozijai-vos, humildes,
e "exultai, pobres, porque vosso é o Reino de Deus", São Lucas. 6,20.
contanto que andeis no caminho da verdade.
Reflexões:
É obvio que, como não encontramos jamais duas pessoas
perfeitamente semelhantes em dons naturais, também não se encontram duas perfeitamente
iguais em dons sobrenaturais. Os anjos, como garantem o grande Santo Agostinho e
Santo Tomás, receberam a graça segundo a variedade de suas condições naturais. Mas
eles são todos de espécie diferente, ou pelo menos de diversas condições, uma vez
que são distintos uns dos outros. Portanto, assim como há anjos diferentes, também
há graças diferentes. E, ainda que, tratando-se dos seres humanos, a graça não seja
dada de acordo com suas condições naturais, no entanto, como a divina doçura se
compraz e se alegra, se assim podemos dizer, na criação das graças, ela as diversifica
de infinitas maneiras, a fim de que esta variedade se torne o brilhante colorido
de sua redenção e misericórdia...
Devemos precaver-nos de jamais procurar saber por
que a suprema Sabedoria distribuiu uma graça de preferência a uma pessoa do que
a outra, nem por que ela faz abundar seus favores num lugar e não em outro. Não,
Teótimo, não te deixes levar por esta curiosidade, porque, tendo todos o suficiente,
e até mais do que se requer para a salvação, que razão pode ter alguém no mundo
de queixar-se, se apraz a Deus distribuir suas graças mais abundantemente a uns
do que a outros?... Por conseguinte, é uma impertinência querer saber por que São
Paulo não teve a graça de São Pedro, nem São Pedro a de São Paulo; por que Santo
Antônio não foi Santo Atanásio, nem Santo Atanásio São Jerônimo; porque se responderia
a essas perguntas que a Igreja é um jardim matizado de flores infinitas, de diversos
tamanhos, de diversas cores, de diversos perfumes e, em suma, de diferentes perfeições.
Todas têm seu preço, sua graça e seu esplendor,
e todas, no conjunto de sua variedade, fazem uma agradabilíssima perfeição de beleza.
Oração:
Ó Santa e imensa onipotência de meu Deus, meu entendimento
vos adora, sentindo-se muito honrado de reconhecer-vos e homenagear-vos com sua
obediência e submissão. Oh! como sois incompreensível e como sou feliz de saber
que o sois! Não, eu não gostaria de poder compreender-vos, porque seríeis pequeno,
se uma capacidade tão mesquinha vos compreendesse.
Capítulo, 59 Que só em Deus devemos firmar toda esperança e confiança
A alma. Senhor, que confiança posso eu ter nesta vida ou qual
é minha maior consolação de tudo quanto existe debaixo do sol? Não o sois vós, Senhor,
Deus meu, cuja misericórdia é infinita? Onde me achei bem sem vós, ou quando passei
mal, estando vós presente? Antes quero ser pobre por vós, que rico sem vós. Prefiro
peregrinar convosco na terra, que sem vós possuir o céu. Onde vós estais, aí está
o céu; e lá existe a morte e o inferno, onde vós não estais. Vós sois o alvo de
meus desejos, por isso por vós devo gemer, clamar e orar. Em ninguém, finalmente,
posso plenamente confiar que me dê auxílio oportuno em minhas necessidades, senão
em vós só, meu Deus. Vós sois minha esperança, vós minha confiança, vós meu consolador
fidelíssimo em todas as coisas.
Todos buscam os seus interesses; vós, porém, só
tendes em vista minha salvação e aproveitamento, e tudo converteis em bem para mim.
Ainda quando me sujeitais a várias tentações e adversidades, tudo isso ordenais
para meu proveito, pois de mil modos costumais provar os vossos amigos. E nessas
provações não menos vos devo amar e louvar, como se me enchêsseis de celestiais
consolações.
Em vós, portanto, Senhor meu Deus, é que ponho
toda a minha esperança e refúgio; a vós entrego todas as minhas tribulações e angústias;
porque tudo quanto vejo fora de vós acho fraco e inconstante. Nada me aproveitam
os muitos amigos, nem me poderão ajudar os homens, nem os prudentes conselheiros
me darão conselho útil, nem os livros dos sábios me poderão consolar, nem qualquer
tesouro precioso me poderá salvar, nem algum retiro delicioso me proteger, se vós
mesmo não me assistis, ajudais, confortais, consolais, instruís e defendeis.
Pois tudo que parece próprio para alcançar a paz
e a felicidade nada é sem vós, nem pode trazer-nos a verdadeira felicidade. Vós
sois, pois, o remate de todos os bens, a plenitude da vida, o abismo da ciência;
esperar em vós acima de tudo é a maior das consolações dos vossos servos. A vós,
Senhor, levanto os meus olhos, em vós confio, Deus meu, Pai de misericórdia! Abençoai
e santificai minha alma com a bênção celestial para que seja vossa santa morada,
o trono de vossa eterna glória, e nada se encontre nesse tempo da vossa divindade
que possa ofender os olhos de vossa majestade. Olhai para mim segundo a grandeza
de vossa bondade e a multidão de vossas misericórdias e ouvi a oração do vosso pobre
servo desterrado tão longe, na sombria região da morte. Protegei e conservai a alma
do vosso mísero servo entre os muitos perigos desta vida corruptível, e com a assistência
de vossa graça guiai-o pelo caminho da paz à pátria da perpétua claridade. Amém.
Reflexões:
Meu Pai, diz nosso dulcíssimo Salvador, em vossas
mãos entrego o meu Espírito. São Lucas. 24,46. É verdade, queria ele dizer, que
tudo está consumado, e que eu cumpri tudo o que me havíeis ordenado. Mas, mesmo
assim, se for vossa vontade que eu permaneça por mais tempo nesta cruz para sofrer,
estou contente. Entrego meu espírito em vossas mãos, podeis fazer dele o que quiserdes.
Não deveríamos fazer o mesmo... em qualquer ocasião, seja quando sofremos ou quando
desfrutamos a vida? Meu Pai, deveríamos dizer, entrego meu espírito em vossas mãos:
fazei de mim tudo que quiserdes, deixando-nos assim conduzir pela vontade divina,
sem jamais preocupar-nos com a nossa vontade particular.
Nosso Senhor ama com um amor extremamente terno
aqueles que são tão felizes que, por abandonar-se totalmente em seu seio paternal
e deixar-se governar por sua divina providência como lhe aprouver, não precisam
perder tempo em considerar se os efeitos desta providência lhes são úteis, proveitosos
ou prejudiciais, pois estão tão certos de que nada poderia ser-lhes enviado desse
coração paternal e tão amável, ou que ele não poderia permitir que nada lhes aconteça
sem que possam tirar disso o bem e a utilidade, contanto que tenham colocado toda
a sua confiança nele, e que lhe digam de boa vontade: Em tuas mãos entrego o meu
espírito; e não somente meu espírito, mas ainda minha alma, meu corpo e tudo que
tenho, a fim de que façais de tudo isto o que vos aprouver.
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